Open-access Estabilidade e mudança em medidas prospectivas de satisfação com a vida em idosos: Estudo Fibra

Resumo

Objetivo  Investigar a incidência e variáveis associadas à estabilidade e à mudança da satisfação com a vida (SV) em medidas de linha de base (LB) e seguimento (SG) realizadas a um intervalo de nove anos, em idosos recrutados na comunidade.

Método  Estudo longitudinal prospectivo com dados da LB (2008-2009) e do SG (2016-2017) do Estudo Fragilidade em Idosos Brasileiros, envolvendo 360 idosos com 71,7±5,0 anos na LB (68,9% mulheres). Foram calculadas associações entre variáveis sociodemográficas, indicadores objetivos e subjetivos de saúde e variáveis psicossociais em LB e a incidência de estabilidade e mudança em SV no SG.

Resultados  Nove anos depois da LB, foram observadas: maior incidência de estabilidade (61,1%) do que de piora (26,4%) ou melhora (12,5%) da SV; menor incidência de piora no grupo de 80 anos e mais do que no de 70 a 79; maior incidência de mudança do que estabilidade da SV entre os idosos com multimorbidades e com pontuação > 6 em sintomas depressivos; maior incidência de piora da SV entre os idosos com baixos níveis de autoavaliação de saúde (risco relativo; RR=2,26) e de satisfação com a memória (RR=2,33).

Conclusões  A incidência de estabilidade em SV em idosos foi mais frequente do que a de piora ou melhora. Indicadores subjetivos de saúde física e satisfação com a memória podem ser sinalizadores de deterioração em bem-estar no tempo e sintomas depressivos de instabilidade nas avaliações, possivelmente acompanhando a redução ou o aumento da SV. Foi observada considerável heterogeneidade nas manifestações de SV entre idosos.

Palavras-Chave: Idoso; Satisfação Pessoal; Memória; Depressão; Estudos Longitudinais

Abstract

Objective  The purpose of this study was to identify the incidence and variables associated with stability and change in life satisfaction (LS) between baseline and 9-year follow-up, in community-dwelling-older adults.

Method  A prospective longitudinal study of baseline (BL; 2008-2009) and follow-up (FW; 2016-2017) data from the Frailty in Elderly Brazilians Study involving 360 individuals aged 71.7±5.0 years at BL, 68.9% women, was conducted. Associations of sociodemographic and psychosocial variables, and objective and subjective health indicators measured at BL with the incidence of stability and change in LS between BL and FW were investigated.

Results  Nine years after the BL collection, the following results were observed: higher incidence of stability (61.1%) than of worsening (26.4%) or improvement (12.5%) in LS; lower incidence of worsening of LS in the ≥80 age group than in the 70-79 years group; higher incidence of change than stability of LS among the participants with multimorbidities and scores > 6 for depressive symptoms; higher incidence of LS worsening among participants with low self-rated health (relative risk; RR=2.26) and low satisfaction with memory (RR=2.33).

Conclusions  The incidence of stability in LS was more frequent than that of worsening or improvement. Subjective indicators of physical health and satisfaction with memory may serve as indicators of deterioration in wellbeing over time and the presence of depressive symptoms may suggest instability in self-assessments, possibly accompanying a reduction or increase in LS over time. There was considerable heterogeneity in the manifestations of LS among the older adults assessed.

Keywords Aged; Personal Satisfaction; Memory; Depression; Longitudinal Studies

Introdução

A satisfação com a vida (SV) é definida como o aspecto cognitivo-avaliativo do bem-estar subjetivo. Reflete a percepção dos indivíduos sobre o grau em que a vida como um todo corresponde às suas expectativas baseadas em padrões internos e externos1. Pode referir-se a domínios específicos, tais como saúde física e mental, capacidade funcional, memória, relações familiares e suporte social, que são relativamente independentes entre si e do construto global1. A SV e a satisfação referenciada a domínios variam ao longo da vida, tornando-se mais fortes ou fracas com o passar do tempo cronológico das coortes e com o tempo biográfico de adultos e idosos2.

Estudos de levantamento feitos em mais de 160 países mostraram que a SV é alta no começo da vida adulta, declina do final dessa fase, se estabiliza e aumenta a partir dos 55-60 anos1 para declinar novamente a partir dos 75 anos, sob a influência de alterações em saúde e em capacidade funcional associadas ao envelhecimento3-5, não sob a influência da passagem do tempo. Dados de três ondas do Health and Retirement Study 6 (2006, 2010-2012, 2014-2016) com 12.998 norte-americanos com 50 anos e mais mostraram que aqueles com pontuações mais altas em SV tinham menos risco para dor, menos limitações em funcionalidade física e menos doenças crônicas. Tiveram altas pontuações em saúde autorrelatada, em comportamentos de saúde e em indicadores psicossociais. Apresentaram baixo risco para depressão, desesperança, afetos negativos, percepção de que as oportunidades sociais são restritas, e solidão. Estudo com delineamento similar, mas envolvendo idosos chineses de 80 anos e mais7 mostrou associações positivas mais robustas entre SV, autoavaliação de saúde e status cognitivo. As correlações negativas mais fortes foram observadas entre satisfação e autoavaliação de saúde e atividades instrumentais de vida diária, e entre satisfação e autoavaliação de saúde e depressão. Foram observadas associações fortes e positivas entre SV e sexo, educação, local de residência e outros indicadores econômicos.

O campo de pesquisa sobre SV é rico em dados, mas a maior parte deles provém de estudos de corte transversal, cuja validade pode ser comprometida pelo fato de serem referentes a comparações entre grupos de idades sucessivas testados em um mesmo momento histórico da vida da sociedade a que pertencem. Embora mais raros, os estudos longitudinais com medidas repetidas e com mistura de sequências longitudinais e transversais que permitem comparar tempo histórico e tempo biográfico, oferecem dados mais elucidativos sobre a heterogeneidade das trajetórias de satisfação.

Resultados de pesquisa que exemplificam esse esforço foram oferecidos pelo estudo de Headey e Muffels8. Foram examinadas as trajetórias de satisfação com a vida de 2.473 adultos e idosos alemães em respostas dadas ao longo de 25 anos consecutivos (1990-2014) ao German Socio-Economic Panel. Trajetórias estáveis em longo prazo foram exibidas por 64% da amostra e trajetórias de piora ou melhora em longo prazo foram observadas em 24% dos participantes. Os demais apresentaram padrão de instabilidade ao longo do tempo. Os autores propuseram que as mudanças em valores, prioridades e escolhas comportamentais são mais raras e explicam mudanças duradouras em satisfação com a vida. Porém, as instabilidades passageiras podem resultar da influência de eventos da vida cotidiana e de feedbacks das ocorrências do curso de vida. Ou seja, a SV é estável ao longo da vida, sob a influência da personalidade, das emoções e das atitudes. Varia sob a influência de eventos passageiros e inesperados, como doenças e acidentes, mas, assim que o impacto desses eventos é absorvido pelo indivíduo, a satisfação retorna aos seus níveis basais1.

Existe considerável heterogeneidade nas trajetórias de SV na velhice, como relatado por pesquisadores coreanos, que identificaram cinco delas em um período de oito anos de um estudo longitudinal9. Quatro foram caracterizadas por estabilidade (alta, média-alta, média, média baixa) e uma por melhora (média-passando-para-superior). As trajetórias de estabilidade predominaram em idosos mais velhos, mais educados e com mais segurança financeira. As de média estabilidade foram mais comuns entre idosos com pior status de saúde, maior probabilidade de morar sozinhos e estresse financeiro. Os idosos que apresentaram melhora eram mais jovens e tinham pior saúde mental na linha de base do que os que apresentaram uma trajetória ascendente.

Até onde se sabe, não há pesquisas brasileiras sobre estabilidade e mudança em SV na velhice, associada com satisfação relativa a aspectos específicos da vida como a saúde, a memória, a sociabilidade e o bem-estar emocional, que contribuem para a satisfação global. Estudos com idosos de mais de 80 anos são raros, a despeito do fato de esse ser o segmento etário que mais cresce na população idosa10, carregando muitas necessidades econômicas, de saúde e educacionais não atendidas. Conhecer essas avaliações e identificar variáveis a elas associadas abre possibilidades de geração de procedimentos eficazes à promoção da saúde e à produção de mudanças comportamentais importantes ao bem-estar global do idosos.

O objetivo deste estudo foi investigar a incidência de estabilidade e mudança em satisfação com a vida entre medidas realizadas a um intervalo de nove anos, considerando condições de saúde física e mental, participação social, autoavaliação de saúde e satisfação referenciada aos domínios memória e apoios recebidos, observados na primeira medida.

Métodos

O presente manuscrito versa sobre uma pesquisa longitudinal prospectiva com dados derivados do Estudo da Fragilidade em Idosos Brasileiros (Estudo Fibra), uma pesquisa multicêntrica, multidisciplinar e de base populacional, que avaliou fragilidade física em 6.762 idosos brasileiros residentes na comunidade, nos anos de 2008 e 2009. Um total de 17 cidades localizadas nas cinco regiões geográficas brasileiras, com diversos índices de desenvolvimento humano, foram escolhidas com base em critérios de conveniência11. Em cada cidade, indivíduos com 65 anos e mais foram selecionados por amostragem probabilística, por sexo, idade, densidade da população de idosos, com base no Censo Demográfico Brasileiro do ano 200010. Quatro universidades públicas foram responsáveis pelo treinamento dos entrevistadores, pela coleta de dados e por seu armazenamento11.

Esta pesquisa teve desdobramentos, sendo um deles a segunda onda de medidas ou seguimento do estudo inicial, conduzido por núcleos de pesquisa estabelecidos nas quatro universidades, dependendo da disponibilidade de equipes e de recursos financeiros. Foi o caso de Campinas/SP e de Ermelino Matarazzo, subdistrito da cidade de São Paulo que, nos anos de 2016 e 2017 realizaram um estudo de seguimento envolvendo os idosos sobreviventes do estudo inicial.

Na linha de base (LB) participaram 1.284 idosos que compuseram a amostra selecionada por meio de sorteio simples de setores censitários urbanos das duas localidades (90 em Campinas e 62 em Ermelino Matarazzo), para os quais foram estimadas cotas de homens e mulheres de 65 a 69, 70 a 74, 75 a 79 e 80 anos ou mais, representativos da população idosa, em 2007, com um acréscimo de 25% para cobrir eventuais perdas. Os participantes foram recrutados nos domicílios e em pontos de fluxo de idosos. Os critérios de inclusão foram: ter 65 anos ou mais, morar permanentemente em domicílio localizado na cidade e no setor censitário e ser capaz de compreender e cumprir instruções. Os critérios de exclusão foram: graves deficit sensoriais e cognitivos; sequelas neurológicas e motoras de acidente vascular cerebral; doença de Parkinson em estágio grave ou instável; retenção ao leito; uso de cadeira de rodas; câncer; submissão a tratamento quimioterápico e estado terminal11.

Na LB, os idosos participaram de sessão única de coleta de dados realizada em centros de convivência, escolas, igrejas e unidades básicas de saúde, em datas e horários previamente estabelecidos durante o recrutamento. Alunos de graduação e de pós-graduação e agentes comunitários de saúde formaram duplas treinadas para realizar o recrutamento e a coleta de dados. Foram feitas medidas de variáveis sociodemográficas, antropométricas, clínicas (pressão arterial e saúde bucal), fenótipo de fragilidade e status mental. Esta última também serviu ao propósito de selecionar para a segunda fase da coleta de dados, que incluiu as variáveis de interesse para o estudo ora relatado. Eram selecionados idosos que pontuassem acima da nota de corte, com ajuste pelos anos de escolaridade, menos um desvio padrão, em comparação com a média do seu grupo12,13, e os que pontuavam abaixo eram dispensados. As notas de corte adotadas foram 17 para os analfabetos e os que nunca foram à escola, 22 para os que tinham de 1 a 4 anos de escolaridade, 24 para os de 5 a 8 e 26 para os com 9 anos ou mais de instrução formal14.

No seguimento (SG), a coleta de dados ocorreu nos domicílios. Foram repetidas as medidas das variáveis sociodemográficas, clínicas, antropométricas e de fragilidade realizadas na LB e novamente excluídos os idosos que obtiveram pontuação inferior à nota de corte no Mini-Exame do Estado Mental (MEEM).

Em 2015, o banco de dados contendo os registros dos idosos na LB foram usados para compor a lista dos recrutáveis para o SG. Os endereços foram percorridos por pessoal treinado, que realizava até três tentativas de localizar cada idoso. Os idosos localizados foram convidados a participar do estudo de SG (n= 549); 192 haviam falecido e 543 foram perdidos. Assim, os dados desta pesquisa derivaram dos bancos de dados da LB (2008-2009) e do SG (2016-2017) do Estudo Fibra Campinas e Ermelino Matarazzo. Dos 549 entrevistados no SG, foram excluídos 130 porque pontuaram abaixo da nota de corte no teste de rastreio cognitivo. Dos 419 remanescentes, foram excluídos 59 porque não tinham registros da aplicação do MEEM na LB e/ou porque não tinham registros de satisfação ou das demais variáveis de interesse no SG. Dessa forma, a amostra ficou composta por 360 idosos com dados nas mesmas variáveis em LB e SG.

A variável dependente foi estabilidade ou mudança da satisfação com a vida, avaliada por meio da pergunta “o(a) senhor(a) está satisfeito com a sua vida?” (pouco x mais ou menos x muito). Para indicar a mudança entre a LB e o SG, foram calculadas as diferenças negativas, nulas ou positivas entre elas, ou deltas, correspondentes a piorou x não sofreu alteração x melhorou (a satisfação com a vida).

As variáveis independentes cuja associação com estabilidade e mudança da SV em nove anos foram objeto de avaliação, foram as seguintes: (a) saúde objetiva: número de doenças crônicas não transmissíveis/multimorbidades, sintomas depressivos e dependência parcial ou total para o desempenho de Atividades Instrumentais de Vida Diária (AIVD); (b) saúde subjetiva: resposta a item único de autoavaliação de saúde; (c) participação social em Atividades Avançadas (ou complexas) de Vida Diária (AAVD); (d) satisfação referenciada aos domínios memória e suporte social, instrumental e afetivo, (e) variáveis sociodemográficas.

O número de doenças crônicas não transmissíveis foi obtido pela soma de diagnósticos médicos constantes de uma lista de nove (doenças do coração, hipertensão, artrite/artrose/reumatismo, derrame/AVE/isquemia, osteoporose, diabetes mellitus, depressão, doenças dos pulmões, e câncer)14, cada um com resposta sim ou não. Idosos que respondiam sim para duas ou mais doenças pontuavam para multimorbidades15. Os sintomas depressivos foram selecionados dentre os 15 itens tipo sim ou não da Escala de Depressão Geriátrica16, indicativos de presença ou ausência de humores disfóricos: 6 ou mais respostas confirmando esses itens pontuavam para depressão. Para a medida da dependência parcial ou total em AIVD foi aplicado o Inventário de Atividades Instrumentais de Vida Diária17, com sete itens descritivos de atividades de vida prática. Idosos que mencionavam que necessitavam de ajuda total ou parcial para desempenhar uma ou mais AIVD pontuavam para dependência.

A autoavaliação de saúde foi aferida por meio de um item escalar que solicitava resposta avaliativa da própria saúde em uma das seguintes categorias: muito boa, boa, regular, ruim e muito ruim, que posteriormente foram reduzidas a duas: muito boa e boa x regular, ruim e muito ruim. O nível de participação social foi representado pelo envolvimento com AAVD18 dispostas em um inventário de 14 itens, dos mais simples aos mais complexos, relativos ao manejo da vida social, cada um com as possibilidades de resposta “nunca fiz” x “deixei de fazer” x “ainda faço”. Pontuavam para alta participação social os idosos que respondiam ainda faço a um número de AAVD superior ao valor da mediana11.

A medida de satisfação referenciada a domínios incluiu um item dicotômico de satisfação com a memória e três outros sobre satisfação com o suporte recebido (de natureza instrumental, quando fica doente, de natureza social quando precisa de companhia, e de natureza afetiva quando precisa de apoio e consolo emocional). Entre as sociodemográficas, situaram-se as variáveis sexo (feminino e masculino), idade (65 a 69, 70 a 79 e ≥80 anos), escolaridade (nenhuma, 1 a 4 e ≥5 anos de estudo), mora sozinho (sim e não) e estado conjugal (com e sem cônjuge), com informações coletadas por autorrelato.

Com a finalidade de avaliar vieses de seleção nas subamostras de idosos localizados e reentrevistados, falecidos e perdidos, foram feitas comparações entre elas, por meio do teste qui-quadrado de Pearson. Foram consideradas estatística e significativamente similares aquelas com valor de p >0,05.

Em seguida, foram realizadas análises descritivas das variáveis na LB e no SG. Depois, foram calculadas as incidências acumuladas (%) das mudanças na SV (piora e melhora x estabilidade) da LB para o SG, considerando as variáveis independentes. As associações foram verificadas por meio do teste qui-quadrado de Pearson, com valor de p com significância estatística fixada em <0,05. Por último, foi realizada análise de regressão logística multinomial para estimar os riscos relativos (RR) e respectivos intervalos de confiança (IC) de 95%, com relação aos efeitos da melhora ou da piora das condições independentes sobre a SV. No modelo múltiplo, foram inseridas as variáveis independentes que apresentaram valor de p<0,20 na análise bivariada. Na regressão final, permaneceram aquelas com valor de p<0,05. A idade foi mantida para ajuste do modelo, independentemente do nível de significância obtido na análise bivariada. A análise de dados foi realizada no programa Stata versão 15.1 (StataCorp, College Station, USA).

O projeto da linha de base foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual de Campinas em 22/05/2007, mediante o parecer 208/2007, e em 15/12/2014 pelo parecer 907.575. O projeto do seguimento foi aprovado em 23/11/2015, pelo parecer 1.332.651. Os participantes foram informados sobre os objetivos e procedimentos e sobre seus direitos e deveres, e assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados

Na análise de comparação entre as subamostras de idosos reentrevistados, falecidos e perdidos, foram identificadas similaridades e diferenças na distribuição das perdas amostrais, que foram mais numerosas entre os idosos mais jovens e entre os que moravam sozinhos (p<0,05). Os valores do teste qui-quadrado foram similares (p>0,05) em relação a todas as demais comparações (dados não apresentados em Tabela).

Foram analisados dados de 360 idosos que tinham 65 anos e mais na LB e que, na LB (2008-2009) e no SG (2016-2017), responderam um item escalar que avaliava SV. A amostra na LB foi composta majoritariamente por mulheres (68,9%), por idosos com 70 anos e mais (62,2%), sem escolaridade formal ou que estudaram de 1 a 4 anos (74,4%), por pessoas que não moravam sós (84,7%) e que eram casados (55,4%). A média de idade foi de 71,7±5,0 anos na LB e 80,3±4,6 anos no SG. A maioria tinha diagnóstico médico de duas ou mais doenças crônicas (62,5%) e avaliou sua saúde como regular ou ruim (57,5%). Cerca de 70% realizavam cinco ou mais AAVD, 77% eram totalmente independentes para o desempenho de AIVD e 17,8% pontuaram acima da nota de corte em sintomas depressivos. Mais da metade estavam muito satisfeitos com a memória (57,2%) e com o apoio instrumental recebido de amigos e parentes quando ficam doentes (59,4%) e quando precisam de companhia (57,1%) e conforto emocional (69,9%) (Tabelas 1 e 2).

A incidência de estabilidade da satisfação com a vida da LB para o SG foi proporcionalmente maior do que a de piora e a de melhora. A incidência de piora na SV foi menor nos idosos com 80 anos e mais do que nos dois outros grupos de idade; menor incidência de melhora ocorreu no grupo de 70 a 79 anos (Tabela 1).

Tabela 1
Incidência de mudanças na satisfação global com a vida em nove anos, segundo as variáveis sociodemográficas. Estudo Fibra, Idosos, Campinas e Ermelino Matarazzo, SP, Brasil, 2008-2009 e 2016-2017.

Observou-se maior incidência de mudança do que estabilidade da SV entre os idosos com multimorbidades e entre os que tiveram pontuação >6 em sintomas depressivos. Os idosos que avaliaram a saúde como regular/ruim e os que relataram baixa satisfação com a memória apresentaram maior incidência de piora da SV e menor de estabilidade. As demais variáveis independentes não se associaram de forma significativa com a medida de SV (Tabela 2).

Tabela 2
Incidência de mudanças na satisfação global com a vida segundo condições objetivas e subjetivas de saúde, participação social e satisfação referenciada aos domínios memória e suporte social percebido. Estudo Fibra, Idosos, Campinas e Ermelino Matarazzo, SP, Brasil, 2008-2009 e 2016-2017.

Na LB, 64,7% dos idosos estavam satisfeitos com a vida, 28,0% estavam moderadamente satisfeitos e 7,3% sentiam-se insatisfeitos. No SG, 79,4% consideravam-se satisfeitos, 16,7% moderadamente satisfeitos e 3,9% insatisfeitos com a vida. A maioria dos idosos (61,1%) manteve a avaliação da satisfação da LB para o SG. Mudança negativa foi identificada em 26,4% dos idosos e mudança positiva em 12,5% (Figura 1).

Figura 1
Mudanças na satisfação com a vida entre as medidas de linha de base (LB) e seguimento (SG) realizadas a um intervalo de 9 anos. Estudo Fibra, Idosos, Campinas e Ermelino Matarazzo, SP, Brasil, 2008-2009 e 2016-2017.

A análise de regressão logística multinomial mostrou que a variável que mais se associou à mudança na avaliação da SV foi depressão: os idosos com pontuação superior à nota de corte na escala de rastreio de sintomas depressivos apresentaram um risco relativo 3,77 vezes maior de associar-se com melhora (p=0,001) e 2,74 vezes maior de associar-se com piora na SV (p=0,002). Baixos níveis de autoavaliação de saúde (RR=2,26; p=0,004) e satisfação com a memória (RR=2,33; p=0,001) também se associaram significativamente com a piora na SV (Tabela 3).

Tabela 3
Riscos relativos e fatores associados às mudanças na satisfação com a vida em idosos, em nove anos, estimados por meio de modelo múltiplo de regressão logística multinomial. Estudo Fibra, Idosos, Campinas e Ermelino Matarazzo, SP, Brasil, 2008-2009 e 2016-2017.

Discussão

Este estudo teve como objetivo identificar fatores associados à estabilidade e à mudança em medida prospectiva de satisfação com a vida em idosos recrutados na comunidade. Nove anos depois da medida inicial, foram observadas: maior incidência de estabilidade do que de piora ou melhora da SV. Uma menor incidência de piora foi observada no grupo de 80 anos e mais comparado ao grupo de 70 a 79. Enquanto uma maior incidência de mudança do que estabilidade da SV foi observada entre os idosos com multimorbidades e com maior pontuação em sintomas depressivos. Por fim, uma maior incidência de piora da SV foi observada entre os idosos com baixos níveis de autoavaliação de saúde e de satisfação com a memória.

Os resultados estão alinhados com a literatura dominante na área, exemplificada pelo estudo de Witley et al.19, que pesquisaram associações entre as dimensões objetivas da velhice bem-sucedida (ausência de doença e de incapacidade, bom funcionamento físico e cognitivo e envolvimento social e interpessoal)20 e aspectos de saúde subjetiva, satisfação com a saúde e satisfação com a saúde considerando a idade. Observaram que todas as dimensões positivas da velhice bem-sucedida se associaram com níveis elevados de autoavaliação de saúde e satisfação, independentemente de idade, gênero, ocupação manual ou não manual, e personalidade. Concluíram que a autoavaliação de saúde relacionou-se fortemente com SV, em virtude da mediação por condições objetivas de saúde21. Os dados replicam, igualmente, os do Health and Retirement Study 6 e do Chinese Longitudinal Health Longevity Survey 7. Este, especialmente, realça a primazia das avaliações subjetivas sobre as objetivas e da estabilidade sobre a mudança, o que favorece sobremaneira os idosos.

Estabilidade ou melhora na satisfação com a vida e seus domínios, mesmo na presença de doenças e incapacidade é um fenômeno bem conhecido pelos pesquisadores, identificado como o “paradoxo do bem-estar subjetivo na velhice21,22. Há quatro explicações para essa forma de adaptação, que também se fez presente neste estudo. A primeira recorre a recursos cognitivo-emocionais, como por exemplo, estratégias de enfrentamento acomodativas, resistência à frustração com base em experiências passadas de privação ou sofrimento, ou minimização da dissonância cognitiva mediante estratégias de comparação social e temporal. Para a segunda explicação, a SV é estável às idades e os declínios ocasionados por eventos marcadores são transitórios, de tal forma que, tão logo os idosos se adaptam, a satisfação retorna aos níveis basais9. Uma terceira tendência considera essa informação como um produto típico de observações de natureza transversal1. A quarta explicação é que a diminuição na perspectiva de tempo futuro que ocorre na velhice contribui para que os idosos galguem níveis mais altos de autorregulação e de seletividade socioemocional23, que os protegem e os ajudam a alcançar maior SV.

Neste estudo, as mudanças caracterizadas como piora e melhora da SV foram marcadas pela heterogeneidade, ou seja, houve diferenças na distribuição dos grupos etários entre as trajetórias de piora, estabilidade e melhora em SV e em memória. Sintomas depressivos associaram-se tanto com a piora quanto com a melhora da SV, sugerindo estabilidade dos julgamentos ao longo do tempo. Não se observaram estabilidade e mudança afetando igualmente todos os domínios da SV24. Os dados são similares aos obtidos por Hansen e Slavsgod23, que envolveram 3.750 noruegueses de 40 a 85 anos. Mostraram que a SV não traduziu a soma de partes iguais de satisfação referenciada a domínios. Os idosos podiam estar insatisfeitos com a própria saúde, mas satisfeitos com as relações familiares. Os afetos negativos mudaram ao longo do envelhecimento, enquanto os afetos positivos e a depressão pioraram na velhice avançada. Perdas em saúde e perda do cônjuge foram as principais causas de declínio do bem-estar subjetivo na velhice avançada, enquanto espírito de parceria e intimidade foram as principais causas de satisfação dos idosos mais jovens25.

Mesmo sendo o grupo mais exposto a prejuízos em condições de vida objetivas, neste estudo o grupo de idosos com 80 anos e mais apresentou menor incidência de piora e maior incidência de estabilidade nas avaliações de satisfação em nove anos, do que os grupos de menos idade. Esse resultado sugere que houve adoção de estratégias acomodativas e compensatórias pelos idosos mais velhos, quando compararam as condições de saúde de que desfrutavam com as desejadas. No entanto, entre os idosos com 2 ou mais doenças e com pontuação maior do que 6 em sintomas depressivos ocorreu maior incidência de mudança para pior, um dado que intuitiva e teoricamente suporta a crença em que há relação entre SV e condições objetivas negativas de saúde física e mental. Ao mesmo tempo, aumentou a incidência de piora da SV na autoavaliação subjetiva da saúde, possivelmente sob a influência de associações com as condições objetivas de piora no humor25-27. A menor incidência de piora ou estabilidade na avaliação da memória e da depressão seria decorrente, ao menos em parte, do raciocínio “poderia ser pior”.

Este estudo tem limitações. Em primeiro lugar, foram excluídos os idosos com deficit cognitivo, um procedimento que se por um lado investiu na confiabilidade dos dados, por outro poderá ter dado origem a um viés de seleção. Em segundo lugar, muito embora não sejam raros estudos com longos intervalos entre duas observações, os que adotam mais medidas repetidas em menores prazos tendem a gerar resultados mais robustos. Por último, mesmo tendo sido observadas similaridades na composição das subamostras, teria sido vantajoso ter um menor percentual de perdas amostrais no SG. As forças do estudo residem na participação de uma amostra de idosos que incluiu uma subamostra considerável de idosos octogenários, assim como na análise das diferenças em satisfação com a vida associadas a variáveis objetivas e subjetivas de saúde, sociabilidade, satisfação referenciada a domínios e sociodemográficas, com base em medidas realizadas a um intervalo de nove anos.

Conclusões

As condições subjetivas tiveram primazia sobre as objetivas e as de estabilidade sobre as de mudança, principalmente entre os mais idosos, que tiveram menos piora da SV. Uma parcela significativa dos idosos sentiam-se satisfeitos com a vida, a despeito das doenças e perdas do envelhecimento. As trajetórias de estabilidade e mudança da SV foram marcadas pela heterogeneidade às idades. As associações observadas entre sintomas depressivos e piora e melhora da satisfação sugerem que as avaliações comportam certo grau de instabilidade.

Os dados trazidos por este estudo são inovadores no Brasil, assim como a metodologia utilizada. Profissionais dedicados à atenção aos idosos e à pesquisa poderão beneficiar-se do aprofundamento dos conhecimentos sobre os componentes e os correlatos do bem-estar subjetivo e sobre os benefícios das avaliações subjetivas, bem como do reconhecimento da velhice e do envelhecimento como fenômenos heterogêneos.

  • Financiamento da pesquisa: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Convênio CAPES/PROCAD. Nº do processo: 2972/2014-01 (Projeto nº 88881.068447/ 2014-01). Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Nº do processo: 2016/00084-8. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Nº do processo: 424789/2016-7. Bolsa de Pós-Doutorado de D. A. PNPD/CAPES, Nº do processo: 88887.320898/2019-00.

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Editado por

  • Editado por: Maria Helena Rodrigues Galvão

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    03 Dez 2021
  • Aceito
    14 Mar 2022
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