Resumo
Objetivo Avaliar a incidência de fragilidade na pessoa idosa longeva, durante a pandemia da covid–19 e identificar as associações entre os domínios do Índice de Vulnerabilidade Clínico Funcional (IVCF -20) e a fragilização.
Métodos Estudo de coorte com 64 pessoas idosas longevas previamente não frágeis, avaliados em dois momentos: na linha de base, até um ano antes do início da pandemia e no seguimento, com uma média de intervalo entre os dois momentos de 15 meses. A fragilidade foi avaliada por meio do VS – Frailty (linha de base) e aplicação remota do IVCF-20 (seguimento).
Resultados A idade média foi de 88,7±5 anos e a incidência de fragilidade de 20,6%. As pessoas idosas que fragilizaram apresentaram maior dependência em: deixar de fazer compras (p<0,001), deixar de controlar o próprio dinheiro (p<0,001) e deixar de fazer trabalhos domésticos (p=0,010), assim como em: deixar de tomar banho sozinho (p=0,041). A piora da cognição foi mais presente nos idosos que fragilizaram. A presença de desânimo, tristeza ou desesperança foi elevada (92,3%) e teve associação com a fragilização (p<0,001). Na análise multivariada, a fragilização esteve associada com piora do esquecimento (RR=2,39; IC95% 1,27-4,46), perda de interesse e prazer na realização de atividades (RR=4,94; IC95% 1,98-12,35) e incontinência esfincteriana (RR=2,40; IC95% 2.91-1,53).
Conclusões A incidência de fragilização entre as pessoas idosas longevas durante a pandemia foi alta. Identificou-se que mais de um domínio foi afetado o que reforça a necessidade de avaliação da pessoa idosa em sua integralidade, sobretudo em períodos atípicos como o vivenciado.
Palavras-Chave: Fragilidade; Idoso de 80 Anos ou mais; Telemedicina; Pandemia por covid-19
Abstract
Objective To assess the incidence of frailty in oldest old during the covid-19 pandemic and to evaluate the associations between the domains of the Clinical-Functional Vulnerability Index (IVCF -20) and frailty.
Methods A cohort study of 64 non-frail oldest old was conducted. Participants were evaluated at two timepoints: at baseline up to one year before the onset of the pandemic; and at follow-up, with an average interval between the two timepoints of 15 months. Frailty was assessed using the VS – Frailty (baseline) and remote application of the IVCF-20 (follow-up).
Results Mean participant age was 88.7±5 years and the incidence of frailty was 20.6%. Frail participants exhibited greater dependence shopping (p<0.001), controlling their own money (p<0.001) and doing housework (p=0.010), as well as bathing alone (p=0.041). Cognitive decline was more prevalent in the frail individuals. The presence of despondency sadness or hopelessness proved high (92.3%) and was associated with frailty (p<0.001). On the multivariate analysis, frailty was associated with worsening forgetfulness (RR=2.39; 95%CI 1.27-4.46), loss of interest and pleasure in performing activities (RR=4.94; 95%CI 1.98-12.35) and fecal/urinary incontinence (RR=2.40; 95%CI 2.91-1.53).
Conclusions
Keywords Frailty; Aged 80 and over; Telemedicine; Covid-19
INTRODUÇÃO
Pessoas idosas longevas, com 80 anos ou mais, representam a faixa etária que mais cresce no mundo e, no Brasil, compõem cerca de 15% da população idosa1. Embora as projeções sejam realizadas levando em consideração apenas a idade, é importante ressaltar que a população não envelhece de maneira homogênea, uma vez que as pessoas idosas apresentam diferentes graus de vitalidade ou de fragilidade2.
O grau de vitalidade dependerá da reserva homeostática e da habilidade do organismo de enfrentar desfechos negativos à saúde2. Neste sentido, a idade é considerada um fator de risco para perda da vitalidade e fragilidade, porém não determinante dela2. Assim, envelhecimento não significa adoecer e tornar-se incapaz, mas tornar-se mais vulnerável3. Por envelhecimento saudável, entende-se preservação da funcionalidade global da pessoa idosa, fruto da autonomia (cognição, humor e comportamento) e independência (mobilidade e comunicação)3 que possibilita o bem-estar na velhice4.
Assim, a dinâmica do envelhecimento é complexa e envolve um equilíbrio entre a capacidade intrínseca do indivíduo, o ambiente e as interações entre o indivíduo e o ambiente, modelado pela habilidade de resiliência4. Situações de adversidade como a provocada pelo novo coronavírus5, pode desequilibrar essa dinâmica.
A pandemia da covid-19 foi decretada em março de 2020 sendo recomendadas medidas de isolamento e distanciamento social6. Apesar de o mesmo ambiente poder afetar idosos diferentes de maneiras muito distintas4, ambas as medidas podem gerar impactos secundários à saúde da população em relação a fatores psicológicos7 com piora dos sintomas de ansiedade e depressão que vem sendo associado à desconexão social, bem como as mudanças de estilo de vida como a redução da prática de exercícios que pode influenciar a saúde física, influenciando negativamente na funcionalidade8. Todas essas alterações contribuem para o desenvolvimento da fragilidade9,10 considerando seu aspecto amplo, sobretudo na população longeva que é de alto risco para fragilização. No entanto, a maioria dos estudos foram conduzidos em países desenvolvidos e não fazem estratificação entre a faixa etária de idosos.
Tendo em vista o aspecto multidimensional da saúde da pessoa idosa, a Avaliação Geriátrica Ampla (AGA) é a principal ferramenta utilizada para identificação e cuidado da pessoa idosa frágil11. Entretanto é um instrumento que demanda tempo longo para aplicação e deve ser realizado por equipes especializadas12. Nesse contexto, Moraes et al.12 criaram o Índice de Vulnerabilidade Clínico Funcional 20 (IVCF-20), um instrumento que pode ser útil no rastreio de vulnerabilidade clínico-funcional12. Essa triagem é feita por meio de um questionário que utiliza a AGA como padrão de referência. Assim como a AGA, ela avalia à idade, autopercepção da saúde, atividades de vida diária, cognição, humor, mobilidade, comunicação e comorbidades múltiplas12.
Dessa forma, a partir da hipótese de que o isolamento e distanciamento sociais possam ter contribuído para a fragilização da pessoa idosa longeva não frágil, objetivou-se avaliar a incidência de fragilidade, durante a pandemia da covid-19 e identificar as associações entre os domínios do Índice de Vulnerabilidade Clínico Funcional (IVCF -20) e a fragilização.
MÉTODO
Trata-se de um estudo de coorte, com pessoas idosas longevas atendidas pelo Ambulatório de Envelhecimento Saudável do Instituto Jenny de Andrade Faria do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais. O ambulatório pertence ao Centro Referência de Geriatria. A pesquisa foi conduzida em dois momentos distintos: a linha de base ocorreu entre março de 2019 e março de 2020 e o seguimento, entre novembro de 2020 a outubro de 2021, que correspondeu a uma média de intervalo entre os dois momentos de 15 meses.
Como critério de inclusão teve-se: pessoas idosas de ambos os sexos, com idade maior ou igual a 80 anos, e não frágeis até 12 meses do início da pandemia, que foi considerado como março de 2020, de acordo com a declaração da Organização Mundial de Saúde6. Centenários foram incluídos independentemente de seu estado funcional, por serem considerados modelos de envelhecimento saudável13. Idosos sem linha telefônica que possibilitasse o contato e a coleta de dados a distância foram excluídos do estudo.
A fragilidade na linha de base foi classificada de acordo com o modelo de fragilidade multidimensional proposto por Moraes et al.14 em que a Classificação Clínico Funcional está sistematizada a partir da Escala Visioanalógica de Fragilidade (VS–Frailty). Neste modelo, as pessoas idosas são classificadas em categorias (1 a 10) considerando-se a redução progressiva da vitalidade associada ao aumento progressivo da fragilidade14. As pessoas idosas não frágeis são as da categoria 1 a 5. A utilização desse método está em coerência com a Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF) da Organização Mundial de Saúde cuja ênfase deve ser na funcionalidade. Portanto, pessoas idosas robustas são aquelas independentes funcionais, podendo ou não apresentar doenças14.
Já no seguimento, em virtude do distanciamento social e da suspensão dos atendimentos eletivos no ambulatório, avaliou-se a fragilidade por meio da aplicação, à distância do IVCF–20 (https://www.ivcf20.org). Utilizamos esse instrumento devido à facilidade de aplicação em formato remoto. O questionário foi aplicado por contato telefônico pelos pesquisadores previamente treinados.
Do total de pacientes elegíveis (134), 68 não foram possíveis de contactar. Destes, 13 pacientes por não possuírem linha telefônica e 55 em virtude de o telefone cadastrado não corresponder ao paciente ou não completar a ligação. Nenhum caso de óbito se deu por infecção provocada pela covid–19. A figura 1 apresenta a amostra final:
Seleção da amostra considerando o número total de pacientes cadastrados no Ambulatório de Envelhecimento Saudável um ano antes da pandemia da covid-19.
O IVCF–20 é composto por 20 questões dividido por 8 domínios a saber: idade (1 questão); autopercepção da saúde (1 questão); incapacidades funcionais, subdivididas em atividade de vida diária básica e instrumental (4 questões); cognição (3 questões); humor (2 questões); mobilidade que é subdividida em: alcance, preensão e pinça, capacidade aeróbica e/ou muscular que inclui perda de peso não intencional, índice de massa corporal (IMC), circunferência de panturrilha e velocidade de marcha, a marcha e continência esfincteriana (6 questões); comunicação, que inclui visão e audição (2 questões) e comorbidades múltiplas, com os itens de polipatologias, polifarmácia e internação recente (1 questão).
Destaca-se que devido à aplicação do questionário via telefone, o domínio de mobilidade não incluiu o cálculo do IMC, a aferição da circunferência da panturrilha e avaliação do tempo gasto no teste de velocidade de marcha, conforme adaptação para aplicação remota15. Cada domínio apresenta uma pontuação específica e totaliza um valor máximo de 40 pontos. A pontuação total entre 0 e 6 pontos indica que o idoso é de baixa vulnerabilidade clínico-funcional e, provavelmente, robusto. Pontuação entre 7 a 14 pontos há indícios que o idoso está em risco de fragilização e pontuação ≥15 pontos, há suspeita de que o idoso já está em condição de fragilidade (alta vulnerabilidade clínico-funcional)12. Idosos robustos são indivíduos independentes para todas as AVD básicas e instrumentais, independentemente de apresentar ou não doenças. Já as pessoas idosas em risco de fragilização, mantém sua independência, mas apresentam condições crônicas preditoras de declínio funcional, como comorbidades múltiplas, sarcopenia ou transtorno neurocognitivo leve. As pessoas idosas frágeis apresentam declínio funcional estabelecido2.
Na análise estatística, a normalidade das variáveis contínuas foi avaliada pelo teste de Kolmogorov Smirnov. As de distribuição normal foram descritas em médias e desvio-padrão e as categóricas como números absolutos e percentuais. As variáveis categóricas foram comparadas pelo teste de qui-quadrado de Pearson ou Exato de Fisher de acordo com a proporção de frequências esperadas menores que cinco. A fragilização das pessoas idosas foi realizada por meio da diferença encontrada entre o status funcional na linha de base e no seguimento. Apesar de utilizar-se dois métodos distintos para essa comparação (VS-Frailty e IVCF-20), se trata de métodos com alta correlação positiva uma vez que ambos compreendem a mesma finalidade de identificação de pessoas idosas frágeis12. No modelo de Regressão de Poisson com variância robusta explorou-se a relação da alteração do risco funcional (piora ou manutenção do risco de vulnerabilidade) com as categorias do IVCF-20. As variáveis que obtiveram, na análise bivariada, valor p inferior a 20 % (p<0,20) foram inseridas uma a uma no modelo multivariado pelo método forward, no qual as variáveis são incluídas uma a uma no modelo. Caso a variável não fosse significativa, ela era retirada e uma nova variável foi incluída e assim continuamente até todas terem sido incluídas. O procedimento foi repetido até que todas as variáveis presentes no modelo possuíssem significância estatística (p<0,05). Utilizou-se para verificação do ajuste do modelo final, o teste de Hosmer Lemeshow. O risco relativo com intervalo de confiança de 95 % (IC 95) foi utilizado como medida de efeito. Para todas as análises, foi adotado o valor de significância de p<0,05. Como não foi possível calcular a amostra a priori, pois o número de pacientes cadastrados e com contato telefônico positivo era pré-definido, realizou-se análise do poder dos testes (post-hoc) com auxílio do software G*Power 3.1 sendo considerado adequado um poder mínimo de 80%.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (CAAE: 80295616.1.0000.5149 e número do parecer de aprovação: 2422800).
RESULTADOS
A amostra final foi constituída por 64 pessoas idosas, sendo 40 do sexo feminino (62,5%) com média de idade de 88,7 anos ±5 anos, e 27 (42,2%) nonagenários ou centenários. Três idosos (4,7%) foram infectados pelo coronavírus durante o estudo, sendo que dois deles fragilizaram após a infecção. No entanto, nenhum foi a óbito por infecção causada por SARS-COV-2. Até um ano antes da pandemia, 98,4% das pessoas idosas eram não frágeis e somente uma idosa centenária era frágil (1,6%).
Durante a pandemia, identificou-se uma incidência de fragilidade de 20,6% (13 idosos) (Tabela 1).
Fragilização das pessoas idosas longevas durante pandemia causada pelo SARS-COV-2. Belo Horizonte, Minas Gerais 2020 – 2021.
Ao estudar os domínios que compõe o IVFC-20, comparando as pessoas idosas quanto à fragilização (Tabela 2), somente não foi encontrado diferença significativa entre os grupos nas variáveis relativas à presença de quedas (p=0,092) e alcance, preensão e pinça que contempla a incapacidade de elevação dos ombros (p=0,052) e a incapacidade de manuseio de pequenos objetos (p=0,289). O poder do teste foi elevado nas variáveis que apresentaram valores estatisticamente significantes, exceto para a variável deixar de tomar banho sozinho e realizar trabalhos domésticos (0,34 e 0,73, respectivamente).
Comparação das pessoas idosas longevas que fragilizaram com as que não fragilizaram segundo os domínios e os respectivos itens que compõe o IVCF-20, durante a pandemia de covid–19. Belo Horizonte, Minas Gerais 2020 – 2021.
A análise de Regressão de Poisson com variância robusta que explorou a relação da fragilização (presente ou não) com os domínios do IVCF-20, apresentada na tabela 3 demonstra que a incidência de fragilização foi 2,39 vezes maior nas pessoas idosas com piora do esquecimento, 4,94 vezes maior naqueles com perda de interesse/prazer nas atividades e 2,4 vezes maior nas pessoas idosas com incontinência esfincteriana (Tabela 3).
Análise de regressão de Poisson com variância robusta para a fragilização durante a pandemia da covid-19, Belo Horizonte, Minas Gerais 2020 - 2021.
DISCUSSÃO
O presente estudo demonstra a ocorrência de comprometimento de alguns domínios funcionais na amostra de pessoas idosas estudada. Ademais a velocidade de ocorrência do comprometimento observado (incidência de fragilidade de 20% num intervalo de 15 meses), o nexo temporal com a pandemia e a plausibilidade biológica nos permite inferir que tais observações possam ser entendidas como efeitos secundários da pandemia da covid-19. Ressalta-se ainda a baixa taxa de infecção por Sars Cov-2 (4,7%) na população estudada, o que sugere que a infecção em si (efeito direto da pandemia) não foi responsável pela fragilização.
Dentre os domínios comprometidos, destaca-se aqueles relacionados à cognição (piora do esquecimento recente), humor (perda de interesse ou prazer na realização de atividades anteriormente prazerosas) e incontinência esfincteriana. Esses achados foram contrários ao senso comum que as pessoas idosas durante o isolamento declinaram predominantemente por comprometimento da mobilidade. Estudos ao redor do mundo já evidenciam esses impactos8,9,16,17, porém dados da população idosa longeva brasileira ainda são escassos.
No presente estudo, utilizou-se o Índice de Vulnerabilidade Clínico Funcional (IVCF-20) como instrumento de avaliação, uma vez que apresenta elevada correlação com a avaliação multidimensional do idoso2, sendo encontrado que cerca de 20% das pessoas idosas se tornaram frágeis durante o período avaliado. Um estudo japonês longitudinal encontrou 16% de incidência de fragilidade em idosos da comunidade, com idade média de 73 anos, que eram robustos previamente a pandemia. Esse estudo identificou que o isolamento social e as baixas taxas de atividade física contribuíram para aumentar a fragilidade nesses indivíduos16.
Um outro estudo de coorte chinês encontrou que cerca de 12% dos idosos que eram não frágeis antes da pandemia, se tornaram frágeis durante a mesma17. Nesse estudo, a mudança de estado de transição de fragilidade foi associada a presença de múltiplas morbidades e aspectos psicológicos. No entanto, a população desse estudo tinha média de idade de 70 anos e a fragilidade foi avaliada pelos critérios de Fried et al.18, que não é multidimensional e que considera apenas aspectos físicos.
No atual estudo, a população avaliada tem idade mais avançada o que poderia justificar a alta incidência encontrada. Embora a idade não seja um determinante de fragilidade19, é um aspecto predisponente a ser considerado, principalmente nas pessoas idosas longevas20. No entanto, uma metanálise de 2019 com idosos a partir de 60 anos, evidenciou uma incidência de fragilidade anual de 4,0% segundo os critérios de Fried et al18 e 7,0% quando outros critérios de fragilidade foram utilizados21. Outro estudo22 que também avaliou a incidência, porém estratificada por faixa etária, demonstrou uma taxa de 22,6% de fragilidade em idosos acima de 85 anos na Europa em quatro anos, também avaliado segundo os critérios de Fried et al18. Assim, considera-se que a incidência de fragilidade na população estudada foi alta, pois foi evidenciada em somente 15 meses.
Além disso, no estudo em questão, ressalta-se que foi utilizado um instrumento que considera questões que abrange todos os domínios funcionais e não se limita aos aspectos físicos, haja visto que a piora cognitiva e de humor se associou ao declínio funcional.
Dentre as pessoas idosas que se tornaram frágeis, o presente estudo identificou um percentual alto de piora no humor. Cerca de 92% desses idosos relataram tristeza, desânimo ou desesperança. A perda de interesse e prazer nas atividades foi a variável estudada que mais esteve relacionada à fragilização. Esse dado é consistente com outros estudos que avaliaram saúde mental no contexto da pandemia23,24, porém com percentual maior.
Em um estudo transversal, em que se avaliou aspectos psicológicos de pessoas idosas oriundas de um serviço ambulatorial de geriatria que se encontraram em restrição de atividades, encontrou-se um percentual de 70% dos indivíduos com baixo humor pelo menos parte do tempo, após o isolamento social25. Outros estudos de coorte, um chinês17 e outro japonês26, também evidenciaram aumento do sofrimento psicológico nas pessoas idosas que se tornaram frágeis e aumento de sintomas depressivos atribuída ao isolamento social, respectivamente. As pessoas idosas com sintomas depressivos eram propensos ao comprometimento cognitivo e diminuição da realização das atividades de vida diária26. Acredita-se que os conflitos de informações divulgados em meios oficiais de saúde no Brasil, possa ter contribuído de maneira negativa na saúde mental.
A piora na cognição também foi vista como característica no grupo de pessoas idosas que se tornaram frágeis. Estudos anteriores à pandemia já demonstraram haver relação entre isolamento social e função cognitiva. Uma coorte realizada com mais de 2.000 participantes pertencentes ao Estudo do Envelhecimento e Função Cognitiva do País de Gales, conduzida por dois anos, demonstrou que existe associação entre reserva cognitiva e isolamento, além disso, evidenciou que pessoas com maior reserva também apresentaram maior função cognitiva27. Nessa coorte foi demonstrado que o isolamento social estava relacionado com orientação, expressão e percepção, mas não relacionado com memória e atenção. Esse dado foi discordante do estudo realizado com mais de 10.000 participantes do Estudo Longitudinal Inglês do Envelhecimento (ELSA)28 em 2019, em que o isolamento social estava associado com piora da memória em idosos, sendo consistente com o atual estudo em que a cognição foi avaliada por questões que consideram apenas a memória.
A memória se relaciona com capacidade de execução, habilidade motora e com atividade funcionais, sendo considerada um dos domínios mais complexos29. Dessa forma, a piora da memória tem impacto negativo na funcionalidade das pessoas idosas. O isolamento social se traduz em menor interação social e com isso menor estimulação cognitiva entre as pessoas idosas que, além de menor reserva cognitiva, apresentam dificuldades de manter contato social por outros meios que não os presenciais.
A incontinência esfincteriana, outro domínio avaliado no IVCF-20, é comum na população idosa, sendo associada a declínio funcional e fragilidade30. No presente estudo, a incidência da fragilidade esteve associada à incontinência, no entanto não se distinguiu a incontinência urinária da fecal. Já foi demonstrado que a incapacidade funcional é um fator de risco para incontinência urinária em idosos30, mas também uma consequência dela.
Em um estudo realizado com participantes do Estudo Longitudinal Irlandês sobre Envelhecimento (TILDA)30, que não eram institucionalizados e nem apresentavam comprometimento cognitivo grave, a incontinência urinária foi associada com incapacidade de realização das atividades de vida diária, bem como associada a solidão e sintomas depressivos. Já em outro estudo transversal31 que avaliou idosas da comunidade, tanto com incontinência urinária como fecal, demonstrou-se que apresentar incontinência estava relacionado à piora da saúde mental e interação social.
No presente estudo, as pessoas idosas apresentaram perda de cognição, no entanto, a relação entre incontinência e capacidade cognitiva parecem ser bidirecionais32. A incontinência esfincteriana não tem sido explorada na literatura como um possível efeito secundário da pandemia na saúde das pessoas idosas, porém sabe-se que se configura como uma condição multifatorial que envolve tanto questões físicas, como o uso de medicamentos e aspectos relacionados a humor e cognição.
Outro achado importante do estudo em questão é relativo às perdas sensoriais. A redução da audição e visão relacionam-se com a piora da funcionalidade, apesar dessa variável não ter se mantido no modelo multicausal. Um estudo de coorte japonês demonstrou maior dependência nas atividades de vida diária naqueles idosos que apresentaram perda auditiva33. A mesma foi avaliada de acordo com autorrelato, assim como no presente estudo. Uma revisão recente demonstrou que o risco de fragilidade é maior nos idosos com perda auditiva34 e uma coorte de quatro anos demonstrou que o deficit auditivo estava associado a maior risco de fragilidade35. As pessoas idosas com perda auditiva também têm menos interação social, o que pode comprometer outros domínios, como por exemplo, a cognição e aumentar ainda mais o risco de fragilidade.
O presente estudo apresenta pontos fortes, como avaliação da pessoa idosa longeva não frágil por meio de aplicação de um instrumento de fácil aplicação para avaliação da funcionalidade de maneira remota, o que foi de fundamental importância durante o período de pandemia. Além disso, apesar de não se ter calculado a priori a amostra, o poder dos testes foi elevado para maioria das associações que apresentaram diferenças significativas entre as pessoas idosas que fragilizaram e as que não fragilizaram. Mas, também apresenta limitações como a utilização de dois instrumentos de avaliação de fragilidade diferentes e ausência de variáveis relacionadas a multicausalidade do desfecho, aprofundando o estudo dos fatores de risco da fragilização. Outra limitação foi o fato de uma parcela de idosos não possuírem telefone o que impossibilitou o contato, e o uso de autorrelato das informações. No entanto, diversos estudos utilizam essa metodologia, sobretudo durante o período de pandemia, encontrando resultados satisfatórios.
Ressalta-se ainda que outros fatores, além da pandemia da covid-19 podem ter afetado a funcionalidade dessas pessoas idosas durante o período estudado. No entanto, como se tratava de um grupo bastante saudável antes da pandemia, em acompanhamento em um centro de referência, mesmo durante a pandemia (nesse caso de forma remota), acredita-se que o isolamento social imposto pela pandemia tenha sido o principal fator contribuinte para a perda funcional.
CONCLUSÃO
A incidência de fragilização entre as pessoas idosas longevas durante a pandemia foi alta. Identificou-se que mais de um domínio foi afetado o que reforça a necessidade de avaliação da pessoa idosa em sua integralidade, sobretudo em períodos atípicos como o vivenciado.
O estudo permitiu o monitoramento do estado de saúde das pessoas idosas acompanhadas em um momento em que o acesso aos serviços de saúde estava comprometido devido às medidas de restrição recomendadas, o que permitiu também intervenções assistenciais àqueles que apresentaram demanda de atendimento. Além disso, sinalizou o quanto os aspectos de saúde mental foram relevantes nessa população o que pode evidenciar um caminho para formulação de atividades para maior cuidado psicológico para a pessoa idosa.
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Editado por
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Editado por: Yan Nogueira Leite de Freitas
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Nov 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
24 Abr 2022 -
Aceito
03 Out 2022