Resumo
Este artigo se propôs compreender como o fenômeno da medicalização em saúde mental se expressa na realidade dos imigrantes internacionais, a partir de uma revisão integrativa da literatura. Verificou-se que a expressão do fenômeno da medicalização na realidade dos imigrantes se relaciona com a transformação de questões sociais, políticas, morais e culturais em diagnósticos psiquiátricos e individuais. A medicalização adquire caráter de exclusão dos imigrantes ao colonizar seus afetos e manifestações comportamentais e culturais, transformando-as em psicopatologias. Ao mesmo tempo, o diagnóstico psiquiátrico mediante o imigrante apresenta a função de conferir legitimidade ao sofrimento e acesso a direitos jurídicos e políticos no país de acolhimento.
Palavras-chave: imigração; patologização; saúde mental; sofrimento psíquico; vulnerabilidades em saúde
Abstract
This article set out to understand how the phenomenon of medicalization in mental health is expressed in reality of immigrants, based on an integrative literature review. It was found that the expression of the phenomenon of medicalization in the reality of immigrants is social, political, moral and cultural issues into psychiatric diagnoses. cultural issues into psychiatric and individual diagnoses. Medicalization acquires exclusion of immigrants by colonizing their affections and behavioral and cultural manifestations, transforming them into psychopathologies. At the same time at the same time, the psychiatric diagnosis of the immigrant has the function of giving legitimacy to suffering and access to legal and political rights in the host country.
Keywords: immigration; pathologization; mental health; psychic suffering; health vulnerabilities
Introdução
Conforme a OIM (2024) atualmente existem 281 milhões de migrantes internacionais no mundo, número este que reflete a alta mobilidade de pessoas e a diversidade dos fluxos migratórios no século XXI, tanto no que concerne as questões de nacionalidade e etnia, como de gênero, idade, motivação e duração da migração (curta, longa, cíclica) (EPSC, 2017). O ato de imigrar não pode ser compreendido apenas enquanto aspecto individual e subjetivo por estar relacionado com as estruturas sociais e com as condições de existência e qualidade de vida dos sujeitos em seus países de origem. Determinantes sociais, como o desemprego, a baixa qualidade de vida e a ausência de oportunidades, influenciam na decisão daqueles que imigram voluntariamente. Por outro lado, as condições de existência ameaçada devido a guerras, fome, perseguição política, religiosa e de gênero são responsáveis por influenciar o caráter involuntário da imigração (Martins-Borges, 2017).
Considerando a imigração enquanto esse viés social e estrutural, é possível pensar sobre a relação que estabelece com a saúde mental dos imigrantes. De acordo com Oliveira et al. (2016), a saúde mental é uma das áreas mais atingidas e o principal problema de saúde dos imigrantes (Oliveira et al., 2016). Para Machado (2023), embora a migração não esteja relacionada diretamente ao sofrimento psíquico (não é simplesmente o fato de ser imigrante que conduz ao sofrimento), é preciso considerar que os traumas e desejos barrados pela violência e pela opressão advindos do processo migratório, constituem cenário favorável para isso (Machado, 2023). Lechner (2007) complementa que o deslocamento geográfico consubstancia uma experiência de ruptura e descontinuidade na vivência do imigrante e uma fratura dos laços constitutivos de si, podendo conduzir ao mal-estar existencial. Portanto, analisar a saúde mental dos imigrantes requer compreensão ampliada, considerando o contexto migratório desses sujeitos e não apenas seus aspectos individuais e psicológicos em termos de psicopatologias.
Galina et al. (2017) evidenciaram que os estudos sobre saúde mental dos imigrantes se dividem entre aqueles que priorizam a associação da saúde mental com a doença mental e outros que relativizam o sofrimento, sem o associar ao contexto de categorias diagnósticas ocidentais. Mesmo dentre os estudos que procuram analisar a saúde mental dos imigrantes a partir de uma perspectiva que relacione o seu sofrimento psíquico como derivado de aspectos do contexto social e migratório marcado por privações e desigualdades, o foco da análise persiste em denominar este sofrimento a partir de categorias psiquiátricas e transtornos mentais, com ausência de reflexões críticas sobre a medicalização da saúde mental dos imigrantes (Franken, Coutinho, Ramos, 2012; Oliveira et al., 2016; Melo, Romani, 2019; Lima, Souza, Nunes, 2020).
Abordar a saúde mental dos imigrantes amparada predominantemente em categorias diagnósticas e definições psiquiátricas é uma forma de medicalização do sofrimento psíquico desses sujeitos. Isso porque o fenômeno da medicalização opera transformando as experiências e problemas de ordens diversas, como social, moral e político, em objetos de domínio da medicina e, no seu interior, da psiquiatria (Henriques, 2012; Freitas, Amarante, 2017; Pombo, 2017). A medicalização torna condutas que não eram problemas passíveis de cuidado a partir da medicina, em objetos de cuidado desta ciência. Ao localizar problemas que se relacionam ao sistema social no corpo do indivíduo, transformando-os em doença mental, incorre-se ao erro de atribuir aos sujeitos a responsabilidade pelos problemas sociais, isentando-se outras instâncias sobre tais responsabilidades (Brzozowski, Caponi, 2013). Além disso, ao conceituar um problema coletivo em termos médicos, a terapêutica oferecida também se dará nos moldes da medicina, promovendo uso excessivo e irracional de fármacos (Brzozowski, Caponi, 2013). De acordo com Soalheiro e Mota (2014), os diagnósticos não são neutros, eles designam um estado de coisas e interagem com o sujeito nomeado, produzindo efeitos sobre seu processo de produção identitária. Nesse contexto, as pessoas imigrantes que são alvo de medicalização tendem a ser vistas de maneira estereotipada, como vítimas, vulneráveis e passivas, à mercê de apoio psicológico e psiquiátrico oferecido pelo país de acolhimento (Galina et al., 2017).
Considerando a possibilidade de os imigrantes sofrerem com processos de medicalização de sua saúde mental e das consequências negativas geradas por esta conduta sobre a vida dessas pessoas, o presente estudo buscou responder a seguinte questão: como o fenômeno da medicalização em saúde mental se expressa no contexto da integração dos imigrantes internacionais na sociedade de acolhimento?
Metodologia
Caracterização do estudo
Trata-se de uma Revisão Integrativa da Literatura (RI), a qual sintetiza o conhecimento e incorpora à aplicabilidade dos resultados de estudos relevantes, na prática, mediante uma gama complexa de informações disponíveis para acesso na área da saúde (Mendes, Silveira, Galvão, 2008). A presente RI seguiu os seis passos definidos por Mendes, Silveira e Galvão (2008): a primeira etapa consistiu na elaboração da pergunta de pesquisa; a segunda etapa consistiu no estabelecimento de critérios para inclusão e exclusão dos estudos; a terceira etapa definiu às informações a serem coletadas nos estudos selecionados; a quarta etapa avaliou os estudos incluídos; a quinta etapa interpretou e discutiu os resultados; a sexta etapa consistiu na apresentação da revisão.
Critérios de inclusão e exclusão
Foram incluídos artigos científicos, publicados nos idiomas inglês e português. Foram excluídos artigos repetidos, que versavam sobre o tema da medicalização em relação a outros aspectos da saúde de imigrantes que não a saúde mental e que não respondiam à pergunta de pesquisa. Considerando que a literatura sobre o tema do fenômeno da medicalização em saúde mental dos imigrantes é ainda incipiente, não foram utilizados recortes geográficos e de tempo dentre os critérios de inclusão dos estudos.
Coleta dos dados
Os dados foram coletados entre os meses de dezembro de 2023 a janeiro de 2024, a partir de busca na Biblioteca Virtual de Saúde (BVS), Google acadêmico, SciELO, portal de periódicos da CAPES, Medeline e Lilacs. Foram utilizados a combinação dos seguintes descritores: medicalização AND imigrantes, medicalização AND imigração, medicalização AND migração, patologização AND imigrantes, medicalization AND immgrant. Desta busca, resultaram 59 materiais. A partir da leitura dos títulos e resumos, resultaram 22 estudos, os quais foram acessados e lidos na íntegra (Figura 1).
Estratégias de busca dos artigos incluídos na pesquisa sobre medicalização dos imigrantes
Análise de dados
A análise dos dados ocorreu de maneira descritiva, possibilitando observar, contar, descrever e classificar os dados, a fim de reunir o conhecimento produzido sobre o tema explorado, segundo a quarta etapa da revisão integrativa: avaliação dos estudos incluídos, conforme Mendes, Silveira e Galvão (2008). Para tanto, foi realizada uma leitura crítica e na íntegra dos 12 artigos científicos selecionados. A partir desta leitura, foram extraídos e agrupados em uma tabela do Microsoft Excel os seguintes dados: autores, objetivo, tipo de estudo, população participante e os principais resultados sobre o tema da medicalização em saúde mental dos imigrantes internacionais. Os principais resultados foram agrupados, reunindo aspectos comuns a todos os artigos. Os pontos de convergência e divergência dos estudos foram discutidos a partir de duas categorias: A expressão do fenômeno da medicalização na saúde mental dos imigrantes e alternativas para promover a desmedicalização e despatologização dos imigrantes.
Resultados
Foram incluídos 12 artigos científicos. A Tabela 1 apresenta os artigos incluídos, definindo seu título, respectivos autores, objetivos e a metodologia empregada. Alguns estudos objetivaram investigar sobre o fenômeno da medicalização e da patologização na saúde mental dos imigrantes, enquanto outros objetivaram investigar outras questões relacionadas a saúde e a saúde mental dos imigrantes e se depararam com o fenômeno da medicalização e patologização, no decorrer da investigação. Parte dos artigos abordou o tema a partir de uma investigação de campo, especialmente por meio de entrevistas com profissionais da saúde. Apenas três estudos procederam à coleta de dados com imigrantes. As revisões de literatura foram majoritárias (n=6), demonstrando a escassez de estudos de campo (Tabela 1).
A maioria dos estudos (n=10) procedeu a análises críticas sobre o fenômeno da patologização e da medicalização (Ong, 1995; Pussetti, 2010; Knobloch, 2015; Pussetti, 2017; Henrich, 2019; Fogarty, 2020; Bezerra, Silva, 2021; Joia, 2021; Rocha et al., 2023; Hornborg et al., 2023). Por outro lado, alguns (n=2) apenas apontaram sobre a presença dos diagnósticos psiquiátricos dentre os imigrantes, sem, no entanto, refletir e analisar de maneira crítica sobre o fenômeno (Killingswort et al., 2010; Silva, Padilha, Lamy, 2020). Dentre aqueles que analisaram criticamente a medicalização e a patologização, o foco consistiu na discussão sobre como esses fenômenos se apresentam e afetam a vida dos imigrantes. Houve ainda a discussão sobre as estratégias de atuação profissional e dos serviços e políticas de saúde para a desmedicalização (Quadro 1).
Parcela importante dos estudos (n=7) utilizaram os termos patologização e medicalização como sinônimos, para descrever o fenômeno pelo qual a medicina se apropria de questões sociais, culturais, históricas e da vida dos imigrantes, transformando-as puramente em problemas de ordem e compreensão médica (Pussetti, 2010; Knobloch, 2015; Pussetti, 2017; Henrich, 2019; Bezerra, Silva, 2021; Joia, 2021; Rocha et al., 2023). Nenhum estudo teceu análises e discussões de distinção entre os dois conceitos (Quadro 1).
Discussão
A expressão do fenômeno da medicalização na saúde mental dos imigrantes internacionais
O tema da medicalização em saúde mental dos imigrantes internacionais é ainda pouco explorado, tanto no Brasil como no mundo, abordando investigações que se restringem mais ao nível teórico. Quantidade significativa dos estudos de campo investigaram o fenômeno a partir da percepção de profissionais e no contexto dos serviços de saúde. De acordo com Ayres (2004) com frequência, observa-se que os profissionais da saúde reforçam ou deixam de problematizar a medicalização ao embasarem suas ações unicamente em conhecimentos biomédicos e procedimentos que visam ao êxito técnico. Os profissionais da saúde também tendem a assumir relações de cuidado verticais para com os imigrantes, reforçando o seu poder profissional, que o coloca em posição de detentor do saber e operador do diagnóstico e da conduta terapêutica em detrimento do sujeito e de sua realidade (Pussetti, 2010; Knobloch, 2015).
A carência de estudos junto aos próprios imigrantes demonstra uma lacuna sobre a medicalização em saúde mental neste grupo. A análise do fenômeno a partir da compreensão dos imigrantes é imprescindível por duas razões. Uma delas se refere a popularização dos diagnósticos psiquiátricos veiculados pela mídia, possibilitando ao próprio sujeito identificar e estabelecer seu diagnóstico, a partir das categorias do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), que são objetivas e autodidatas, sem a necessidade de recorrer a um profissional da saúde (Rego, Barros, 2017; Pombo, 2017). A outra se relaciona à função social que o diagnóstico psiquiátrico possui no contexto atual, garantindo reconhecimento e legitimidade ao sofrimento, bem como o acesso a direitos jurídicos e sociais (Rego, Barros, 2017; Pombo, 2017). A garantia de direitos políticos proporcionada pelo enquadramento do imigrante na categoria diagnóstica de estresse pós-traumático foi discutida no estudo de Pussetti (2017). Para a autora, muitos imigrantes adotavam comportamentos estereotipados a fim de demonstrar seus traumas e assim garantirem asilo no país enquanto refugiados. A partir de tal observação, Pussetti (2010) passou a “repoliticizar” os imigrantes de vítimas para sujeitos ativos deste processo.
O conceito de medicalização apresenta pluralidade e polissemia dentre a comunidade científica. Algumas correntes teóricas entendem que medicalização e patologização se referem a um mesmo fenômeno, outras fazem distinção entre ambos. Na presente análise, medicalização e patologização serão discutidos como sinônimos, por entender que medicalizar se relaciona a “transformação de experiências consideradas indesejáveis ou perturbadoras em objetos da saúde, permitindo a transposição do que originalmente é da ordem do social, moral, ou político para os domínios da racionalidade médica e práticas afins” (Freitas, Amarante, 2017). Racionalidade essa que, até certo momento histórico, tinha como objeto exclusivo de investigação as doenças, suas causas e terapêuticas, razão pela qual medicalizar tem por consequência patologizar (Garrido, Moysés, 2011). Existe um componente da medicalização que está submerso, por se referir aos discursos ideológicos do saber médico-psiquiátrico, que objetivam legislar e normatizar a vida humana. É a partir destas construções discursivas que a psiquiatria imprime um saber-poder dominante sobre a vida cotidiana, definindo a existência humana como um dado natural, biológico, ideal, um corpo sem história, que amplia o seu campo de intervenção técnica (Santana, Gonçalves, 2019). Assim, importa na medicalização a definição dos fenômenos a partir de uma linguagem pautada na racionalidade médica, assumindo um lugar de poder e controle sobre a vida.
Seguindo essas delimitações, verificou-se que a maioria dos estudos procedeu a análises focadas nos prejuízos causados pela transformação do sofrimento dos imigrantes em doenças mentais ou diagnósticos psiquiátricos (Pussetti, 2010; Pussetti, 2017; Silva, Padilha, Lamy, 2020; Bezerra, Silva, 2021). Freitas e Amarante (2017) entendem que a patologização é um dos pilares que sustenta a medicalização. Para estes, a classificação dos chamados transtornos mentais possibilitou que fenômenos e problemas das mais distintas ordens fossem classificados como doenças mentais, aptas a receber tratamento e intervenção médica (Freitas, Amarante, 2017). Um importante ator nesse processo de patologização é o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), produzido pela American Psychiatric Association (APA) (Freitas, Amarante, 2017). A partir de sua terceira edição, lançada em 1980, o DSM passou a nomear e descrever de maneira objetiva e universal uma série de diagnósticos psiquiátricos.
Neste processo em que o sofrimento dos imigrantes se torna uma doença psiquiátrica, o contexto coletivo, social e político, responsável por colocar esses imigrantes à margem da sociedade, é negado enquanto produtor desse sofrimento (Pussetti, 2010; Pussetti, 2017; Silva, Padilha, Lamy, 2020; Bezerra, Silva, 2021). A Síndrome de Ulisses ou Síndrome do imigrante com estresse crônico foi considerada pelos estudos como uma importante forma de patologização na experiência imigratória (Pussetti, 2010; Knobloch, 2015; Pussetti, 2017; Silva, Padilha, Lamy, 2020; Bezerra, Silva, 2021). Além de um diagnóstico específico ao seu grupo, os estudos também mencionaram que imigrantes podiam ser enquadrados em categorias diagnósticas gerais, como a depressão e o Transtorno do Espectro Autista (TEA) (Joia, 2021; Rocha, Loureiro, Mendes, 2023).
Pussetti (2010) destaca a tendência imposta pela psiquiatria de compreender esses diagnósticos atribuídos aos imigrantes enquanto determinação biológica, ou seja, enquanto transtornos mentais que se correlacionam de maneira única e exclusiva a características cognitivas, problemas físicos ou neuroquímicos e a déficits genéticos dos imigrantes. Para Freitas-Silva e Ortega (2016), a transformação do sofrimento psíquico em transtorno mental pela psiquiatria, o fez ser compreendido enquanto um transtorno determinado biologicamente, que requer estratégias de cuidado centradas na farmacologia (Freitas-Silva, Ortega, 2016). Neste viés, situa-se o problema no corpo do indivíduo, isentando-se a sociedade, o Estado e demais organismos internacionais da responsabilidade por melhorar as condições de vida da população imigrante (Pusseti, 2010; Silva, Padilha, Lamy, 2020; Bezerra, Silva, 2021).
A medicalização em saúde mental dos imigrantes também se manifesta a partir da homogeneização e universalização de seu sofrimento. Ao medicalizar o sofrimento, transforma-se a complexidade das experiências singulares, heterogêneas e subjetivas dos imigrantes em questões universais, objetivas, homogêneas, reduzidas a modelos pré-estabelecidos (Pussetti, 2010; Knobloch, 2015; Joia, 2021). Dessa forma, a psiquiatria impõe seu saber como verdade sobre o sujeito imigrante, excluindo a subjetividade como campo de cuidado, substituindo a centralidade da intervenção que deveria ser na escuta do sujeito, de suas histórias e contextos, para a escuta de seus sintomas (Ong, 1995; Knobloch, 2015). Para Lechner (2007) o alívio e a reconciliação do sofrimento dos imigrantes são possíveis apenas mediante a verdade desse sujeito, acessada na relação de diálogo com seus interlocutores atentos.
Através do poder exercido pela psiquiatria, os diagnósticos psiquiátricos tornam-se a única forma de nomear, legitimar e reconhecer o sofrimento dos imigrantes perante a sociedade de acolhimento. É a partir destes diagnósticos que os sujeitos conseguem garantir uma identidade e um lugar social (Knobloch, 2015), bem como direitos políticos e jurídicos (Killingsworth et al. 2010; Knobloch, 2015; Pussetti, 2017; Rocha, Loureiro, Mendes, 2023). De acordo com Knobloch (2015), foi somente a partir da difusão da categoria diagnóstica de estresse pós-traumático via DSM III que os efeitos da violência nos refugiados ganharam reconhecimento social. Além disso, esta categoria diagnóstica passa a ser uma maneira de garantir direitos políticos, já que o asilo pode estar condicionado a um diagnóstico que legitime que o imigrante está traumatizado. No lugar de evocar a pobreza ou a instabilidade política, os imigrantes precisam utilizar a biomedicina como dispositivo de cidadania para garantir asilo (Pussetti, 2017). Essa questão se encontra diretamente ligada às políticas migratórias dos países de acolhimento, as quais tendem a ser cada vez mais rígidas e restritivas, relegando o direito de asilo a uma questão médica, que reduz o imigrante e sua história ao seu corpo. Assim, os direitos dessa população perdem o caráter político e jurídico e se tornam uma forma de compaixão por parte do país de acolhimento em direção àquele imigrante em sofrimento (Fassin, 2014). Nesse contexto, percebe-se, portanto, que a medicina coloniza outros espaços que não são de seu campo e que a categoria diagnóstica do trauma se torna um aparato de uso político e não apenas nosográfico (Fassin, d’Halluin, 2007).
Fassin e d’Halluin (2007), discutem que, neste contexto das políticas imigratórias, em que a única forma de obtenção de direitos é por meio do reconhecimento de que o imigrante está traumatizado, o profissional de saúde mental torna-se um perito. No lugar de oferecer cuidado e atenção, este profissional deve fornecer uma prova, uma evidência que valide que o imigrante atende aos critérios diagnósticos do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). E essa prova ou evidência de TEPT deve se pautar na descrição de sintomas clínicos, em linguagem psiquiátrica nosológica, permitindo tornar “tangível” questões psicológicas e de ordem subjetiva (Fassin, d’Halluin, 2007). Tal forma de compreender e manejar o sofrimento do imigrante se coloca muito mais a serviço das políticas imigratórias do país, do que dos direitos do imigrante.
Os artigos discutiram ainda que a racionalidade médica manifestava o seu poder de dominação sobre os sujeitos imigrantes, a partir do estabelecimento de critérios de regulação moral da vida e das relações sociais. Para Fogarty (2020), a medicalização incorporada no Canadá entre 1940 e 1950, atuou como política migratória, regulando a entrada e a permanência de determinados imigrantes em seu território. Os imigrantes indesejados no país eram aqueles que, segundo critérios médicos, apresentavam alguma “inaptidão social” (insanos e débeis mentais). Algumas nacionalidades e raças eram consideradas mais suscetíveis a essas inaptidões sociais. Ainda, como parte desta política migratória, mulheres que não eram consideradas doceis e que não se encaixavam aos padrões morais da sociedade canadense, além de imigrantes considerados sexualmente desviantes eram patologizados, internados em asilos, submetidos a tratamentos violentos e posteriormente deportados. O autor destaca o caráter higienista que este movimento assumiu naquele contexto. O higienismo é um movimento que considera que a medicina precisa atuar sobre a desorganização e o mau funcionamento social, a fim de neutralizar todo o perigo, pois seriam essas as causas das doenças mentais. Para tanto, a medicina não intervém apenas diante de quadros instalados, mas também a partir de ações preventivas junto aqueles considerados propensos a algum desvio (Mansanera, Silva, 2000).
O estudo de Killingsworth et al. (2010) realizado com mulheres imigrantes, também apresentou o papel do diagnóstico psiquiátrico na legitimação e reconhecimento do sofrimento. Embora não teceu discussões críticas acerca da medicalização, demonstrou que as compreensões dos sintomas e definições nominais do sofrimento psíquico eram distintas nos países de origem e de acolhimento dessas mulheres. Enquanto no Vietnã os sintomas de sofrimento eram compreendidos enquanto manifestações místico-religiosas e imbuídas de preconceito, na Austrália, país de acolhimento, ao serem compreendidos nos moldes da psiquiatria, conferiam a essas mulheres um lugar de aceitação, acolhimento e cuidado. Com isso, difundia-se uma visão positiva dos diagnósticos psiquiátricos dentre essas mulheres (Killingsworth et al., 2010). No entanto, a pesar da garantia de direitos e da validação do sofrimento que os diagnósticos psiquiátricos produzem mediante algumas sociedades, Joia et al. (2021) menciona sobre o risco de que o sujeito que recebe um diagnóstico psiquiátrico, o incorpore de tal maneira, que essa classificação passe a funcionar como um elemento “identificatório central” na imagem que tem de si. Por se tratar de um conhecimento científico difundido, o sujeito aceita e se identifica com o diagnóstico nosológico, tornando-o parte de sua identidade, razão pela qual passa a se comportar e a viver de acordo com essa classificação, deixando de valorizar aspectos outros de sua identidade que não os correspondentes ao diagnóstico (Freitas, Reuter, 2021).
Ainda neste viés, os estudos indicaram uma tendência por parte dos profissionais de saúde em classificar o imigrante como vulnerável e frágil em termos psíquicos, o que o colocaria em elevado risco de adoecer psiquicamente, independentemente de fatores sociais, históricos e decorrentes de sua própria história de vida, necessitando de intervenções médicas preventivas (Pussetti, 2010; Knobloch, 2015; Henrich, 2019).
O caráter normatizador e disciplinador assumido pelos diagnósticos psiquiátricos em relação aos imigrantes foi evidenciado também pelos estudos mais recentes, para os quais, os comportamentos dos imigrantes considerados distintos daqueles vigentes na sociedade de acolhimento, são enquadrados em diagnósticos psiquiátricos, sujeitos a intervenções em saúde que visam adequá-lo aos critérios de normalidade hegemônicos (Ong, 1995; Pussetti, 2010; Knobloch, 2015; Fogarty, 2020; Rocha, Loureiro, Mendes, 2023; Hornborg et al., 2023). Para Silva, Padilha e Lamy (2020) isso demonstra que a normatização promovida pelos diagnósticos psiquiátricos, não é neutra, propondo-se a controlar os sujeitos, sua saúde, higiene, alimentação, sexualidade, natalidade e tudo aquilo que se constitui como tema político, denominando esse aparato como biopolítica.
No que se refere especificamente ao processo de apropriação da medicina sobre as diferenças culturais dos imigrantes, transformando-as em sintomas definidos a partir de uma linguagem médica, entende-se que essa ciência coloniza o sofrimento dos imigrantes (Knobloch, 2015). Isso porque se utiliza de termos e compreensões provenientes da cultura médica da sociedade de acolhimento para definir aquilo que o imigrante sente e manifesta em termos de sofrimento psíquico (Pussetti, 2010; Killingsworth et al., 2010; Knobloch, 2015; Fogarty, 2020). A compreensão que o imigrante possui acerca de seu sofrimento, a partir de suas crenças culturais, é desconsiderada pelos profissionais de saúde como um saber válido, razão pela qual deve ser substituído por explicações médicas (Ong, 1995; Pussetti, 2010). O que demonstra que os diagnósticos psiquiátricos não são categorias naturais, mas sim construções históricas e sociais, que diferem de uma cultura e de uma sociedade a outra (Foucault, 1963).
Alguns artigos teceram críticas restritas e limitadas ao fenômeno da medicalização (Silva, Padilha, Lamy, 2020; Bezerra, Silva, 2021). Embora tenham criticado a transformação de questões sociais e políticas implicadas no sofrimento dos imigrantes, persistem adotando uma linguagem médica para definir as expressões desse sofrimento. Exemplo disso, ocorreu na análise sobre a Síndrome de Ulisses, a crítica a esta síndrome se relacionou à possibilidade de que ela fosse transformada em doença devido à sua inserção no DSM. De acordo com estes, síndrome e doença são distintas, e apenas a última se configuraria como uma forma de medicalização do sofrimento. Assim, fazem parecer que reduzir o sofrimento dos imigrantes a uma síndrome não se configuraria como uma forma de medicalização e que este caráter só é adquirido por meio de classificação via DSM. Ressalta-se que o DSM abandona a denominação de doença mental, substituindo-a por transtorno mental, em razão de não conseguir comprovar a sua etiologia (Martinhago, Caponi, 2019). No entanto, independentemente da terminologia adotada, síndrome, transtorno ou doença, persiste a objetividade dos diagnósticos, utilizando critérios e linguagem médica para definir o sofrimento, além de explicações naturalistas e reducionistas.
Além de atribuir explicações pautadas na racionalidade médica aos fenômenos de ordens não médicas, a medicalização também opera oferecendo abordagens pautadas nessa mesma racionalidade para resolução dos problemas identificados. Os artigos promoveram críticas à farmacologização, considerada um caminho frequente diante da medicalização, atuando no controle e monitoramento de problemas diaspóricos quase que de maneira exclusiva e predominante (Ong, 1995; Pussetti, 2010; Silva, Padilha, Lamy, 2020). Para Silva, Padilha e Lamy (2020), milhares de imigrantes são submetidos a tratamentos psiquiátricos sem necessidade, por meio do uso de drogas psiquiátricas repletas de efeitos colaterais. A crítica também se estendeu ao uso de terapias individuais e psicológicas, por entender que o sofrimento dos imigrantes advém de questões que não são restritas ao seu psiquismo e sim ao contexto social ao qual estão expostos (Pussetti, 2017; Silva, Padilha, Lamy, 2020; Bezerra, Silva, 2021).
Santana e Gonçalves (2019) fazem uma analogia do fenômeno da medicalização com um iceberg. De acordo com eles, a fabricação e o consumo de drogas psiquiátricas, os manuais e técnicas de diagnóstico e a descoberta de novos transtornos e síndromes representam a parte visível desse iceberg. No entanto, este ainda é composto por uma parte submersa, muito maior, que o sustenta. A parte submersa da medicalização é mais complexa, marcada por relações de saber-poder que sustentam uma estrutura social que alimenta os interesses do modelo econômico vigente. Assim, entende-se que aquilo que está por detrás da patologização e da farmacologização representa uma relação de poder da medicina e da psiquiatria, que dita as regras sobre como a sociedade deve funcionar. Assim, de maneira similar aos nativos, os imigrantes também são forjados a essas relações de poder.
É válido destacar que a crítica à medicalização e à patologização não se trata de negar a existência de sofrimento psíquico dentre os imigrantes, mas de reconhecer e legitimar esse sofrimento a partir de outras formas de compreensão e cuidado que não patologizem as diferenças e que considerem as singularidades e contextos dos imigrantes diante das intervenções (Knobloch, 2015). Para Lechner (2007) desmedicalizar o contexto de saúde mental dos imigrantes consiste em encarar os sintomas como simultaneamente orgânicos, sociais e psíquicos e pensar no cuidado para além da clínica, a partir de competências que não sejam estritamente médicas. Neste sentido, os artigos discutiram brevemente possibilidades de intervenções em saúde mental a partir de estratégias culturalmente sensíveis e desmedicalizantes.
Alternativas para promover desmedicalização e despatologização dos imigrantes
Poucos foram os estudos que propuseram discussões relativas a alternativas e estratégias para promover a desmedicalização mediante a realidade dos imigrantes. Se consideramos que a medicalização em saúde mental se refere ao domínio da psiquiatria sobre questões vitais de diversas ordens, incorporando-as ao seu campo, estabelecendo explicações de ordem médica e oferecendo terapêuticas também médicas para aquilo que não é naturalmente médico (Gaudenzi, Ortega, 2012), desmedicalizar, portanto, seria a via contrária. Desmedicalizar ou despatologizar consistiria na adoção de compreensões para o sofrimento psíquico que não estivessem centradas exclusivamente no raciocínio clínico-médico, oferecendo-se ainda, outras possibilidades de cuidado para o sofrimento que não apenas às médicas ocidentais e hegemônicas (Progianti, Vargens, 2004).
Dentre as possíveis estratégias para promover a desmedicalização dos imigrantes propostas pelos estudos, verificou-se que estas foram direcionadas tanto para o âmbito de mudanças nas condutas terapêuticas e nos entendimentos profissionais no interior dos serviços de saúde que atendem aos imigrantes, como também a um nível macro das políticas migratórias e de acolhimento dos imigrantes nos países de destino. No âmbito das políticas Bezerra e Silva (2021) definem que um cuidado em saúde mental desmedicalizado requer a inclusão de ações que se estendam para além do tratamento individual e psicológico, incluindo a criação e a implantação de políticas públicas que visam melhorar as condições de vida, a integração profissional e comunitária e a formação de vínculos desses imigrantes, no país de acolhimento. Portanto, as políticas públicas destinadas aos imigrantes devem se estender para além dos serviços de saúde, aderindo a ações e estratégias políticas e sociais, que de fato acolham e integrem o imigrante ao país de destino, tornando-o um cidadão. Se considerarmos inclusive que os diagnósticos psiquiátricos em determinados países podem ser utilizados como a única maneira de garantir direitos e cidadania, inclusive o próprio direito de receber refúgio nos países em que as políticas migratórias são rígidas, é possível pensar que a revisão dessas políticas, tornando-as menos rígidas e ampliando os direitos jurídicos e sociais dos imigrantes, seja uma importante forma para contribuir com a desmedicalização em saúde mental e para atenuar o próprio sofrimento do imigrante (Knobloch, 2015; Pussetti, 2017).
No que concerne as estratégias clínicas operadas pelos serviços de saúde mental, é preciso considerar a singularidade do imigrante em seu contexto atual, sem que se perca de vista as suas referências e especificidades culturais de origem. Portanto, os profissionais de saúde precisam adotar formas de cuidado que possam ir além do modelo biomédico e psiquiátrico, o qual possui caráter universalista, valorando as práticas de cuidado que os imigrantes trazem consigo, as quais são fundamentadas em sua cultura de origem, e são responsáveis pelos sentidos atribuídos aos processos de saúde-doença-cuidado (Knobloch, 2015). Para Pussetti (2010) o desenvolvimento de um atendimento amparado na competência intercultural é ainda mais crucial mediante o cuidado em saúde mental, o qual perpassa por uma ordem relacional e dialógica. Neste sentido, o cuidado em saúde mental que valoriza a cultura do imigrante torna-se uma estratégia que rompe com a colonialidade e o etnocentrismo (Andrade, Machado, Gomes, 2023). No entanto, Knobloch (2015) destaca que o avanço em termos de oferta de cuidado culturalmente sensível e desmedicalizado requer investimentos na formação e na educação permanente dos profissionais de saúde que atuam com essa população.
Neste viés, Pussetti (2010) discute a importância da abordagem fornecida pela etnopsiquitria, a qual se coloca como alternativa à psiquiatria transcultural e a outras formas de cuidado oferecidas por serviços de saúde a imigrantes em sofrimento em Portugal. Conforme a autora, a psiquiatria transcultural de derivação Kraepineliana se baseia em uma compreensão de que as emoções são universais e biologicamente determinadas, e, portanto, o referencial teórico utilizado pela psiquiatria para compreender as emoções dentro de cada cultura poderia ser o mesmo. Mesmo que esse modelo utilize a antropologia para interpretar o sofrimento dos imigrantes, persiste focando nos diagnósticos psiquiátricos em detrimento das expressões singulares e culturais que tenham sentido para o imigrante. A etnopsiquiatria, por outro lado, explora os modelos de corpo, de sofrimento, de emoções, de terapias e de conhecimentos que não os psiquiátricos ocidentais, integrando-os e permitindo-se alterar por eles. Esse modelo ainda reconhece as emoções e as doenças enquanto construções socialmente determinadas no interior de cada cultura. Por meio dela, o imigrante se torna o protagonista de seu cuidado, enquanto principal informante sobre o seu sofrimento (Pussetti, 2010).
A autora aborda, ainda, a necessidade de adotar uma postura de cuidado em que explicações para o sofrimento do imigrante não estejam ancoradas apenas em uma explicação cultural (Pussetti, 2010). Além dos aspectos culturais, é preciso considerar os determinantes sociais, históricos e políticos implicados nos processos de sofrimento psíquico dos imigrantes (Pussetti, 2010; Bezerra, Silva, 2021). Portanto, o sujeito imigrante e o seu sofrimento precisam ser entendidos e cuidados considerando as suas relações sociais, coletivas e políticas, uma vez que o sofrimento psíquico não se constitui de maneira individualizada (Andrade, Machado, Gomes, 2023). Embora Bezerra e Silva (2021) não entrem em uma discussão aprofundada sobre metodologias de cuidado em saúde mental desmedicalizantes, citam a clínica ampliada enquanto um dispositivo de cuidado em saúde mental operado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que pode contribuir para um cuidado em saúde mental dos imigrantes que seja desmedicalizado. A clínica ampliada se configura como uma nova forma de fazer a clínica em saúde, superando a lógica biomédica e dos diagnósticos, compreendendo o sujeito em sua singularidade e em seu contexto social em detrimento do diagnóstico nosológico (Cunha, 2004).
Os artigos discutem ainda a necessidade de oferecer escuta atenta e singular ao imigrante, reforçando a importância de dar voz a estas pessoas, as quais possuem não apenas uma cultura distinta dos profissionais de saúde, mas também uma história de vida e uma compreensão particular que os difere inclusive dos demais imigrantes, mesmo daqueles que advém de um mesmo país e de um mesmo contexto cultural, singularidades estas que interferem em seus processos de sofrimento psíquico. Dar voz e luz a essas singularidades contribui para não universalizar o sofrimento, oferecendo-se formas de cuidado mais pessoalizadas e construídas em conjunto com aquela pessoa (Pussetti, 2010).
Pensando na perspectiva dos direitos e de uma visão ampliada de saúde para a superação da medicalização em saúde mental dos imigrantes, e considerando que muitas vezes este fenômeno não se restringe ao aparato do campo da saúde, os autores debateram sobre a importância do olhar sensível e multicultural da escola para com as crianças imigrantes. Ao contrário de patologizar as diferenças culturais e linguísticas das crianças imigrantes, torna-se preciso conhecer mais e melhor as diferenças culturais, lançando sobre essas crianças uma educação inclusiva (Rocha, Loureiro, Mendes, 2023).
Considerações finais
Apesar de a saúde mental dos imigrantes ser tema de discussão e pesquisa dentre as produções científicas dos últimos tempos, verifica-se a carência de estudos que tenham abordado a medicalização em saúde mental dos imigrantes a partir de uma discussão crítica e problematizadora.
A medicalização em saúde mental dos imigrantes se expressa especialmente a partir da transformação dos problemas sociais, políticos e de outros fundos que se relacionam com a imigração, em diagnósticos psiquiátricos, que por serem objetivos e universais, reduzem as questões de ordem coletivas em individuais, ao mesmo tempo, em que negam as experiências subjetivas e singulares dos imigrantes. O próprio sofrimento psíquico passa a ser explicado enquanto doença orgânica, que requer intervenções no corpo do indivíduo, isentando-se a responsabilidade do Estado e dos organismos internacionais sobre a melhora da condição migratória e de acolhimento a estes indivíduos. Nesse sentido, emerge também a farmacologização e o uso de estratégias terapêuticas individualistas e reducionistas, direcionadas para extirpar os sintomas, em detrimento de cuidar daquele sujeito de maneira ampliada.
Os imigrantes são um grupo vulnerabilizado e socialmente excluído, dessa forma, a medicalização assume função higienista e até mesmo eugenista diante desses corpos, atuando inclusive como reguladora das próprias políticas migratórias em determinados países e períodos históricos. Mediante a função de normatizar, docilizar e controlar os corpos e mentes desses sujeitos, a partir da medicalização, os aspectos culturais e linguísticos dos imigrantes, distintos dos vigentes no país de acolhimento, são interpretados como desvios e, portanto, patologizados. A psiquiatria, a partir de seus códigos classifica os aspectos culturais dos imigrantes, vistos como desvios e os define em termos psiquiátricos, desconsiderando a cultura e a compreensão que os próprios imigrantes possuem sobre seus sintomas e problemas, promovendo a colonização desses imigrantes e de seus aspectos culturais.
De maneira similar aos nativos, o diagnóstico psiquiátrico acaba se tornando a única forma de legitimar e reconhecer o sofrimento dos imigrantes socialmente, além de atuar para garantir seus direitos no país de acolhimento. Assim, o diagnóstico passa a ser requisitado pelo próprio imigrante, interferindo diretamente em sua identidade e subjetividade. A função social do diagnóstico e a emergência do autodiagnóstico advindo com o DSM reforçam a necessidade do desenvolvimento de pesquisas de campo sobre a temática da medicalização, abordando os imigrantes e as suas percepções.
Em termos de garantia de direitos, é importante ainda pontuar que mediante a realidade dos imigrantes observam-se especificidades, uma vez que as políticas migratórias restritivas se tornam terreno fértil para que se estabeleça uma medicalização em saúde mental dos imigrantes nos países de acolhimento. Isso porque o diagnóstico psiquiátrico garante aos imigrantes o direito ao refúgio, o qual não seria conquistado de outro modo. Neste contexto, a medicina é a responsável por regular e legitimar esse direito ao imigrante, demonstrando o poder e a força que ela possui enquanto instituição de controle.
Verificou-se ainda, que o conceito de medicalização atrelado a saúde mental dos imigrantes foi restrito em alguns trabalhos, a atribuição de diagnósticos psiquiátricos (patologização), o que não reflete a totalidade deste fenômeno, que se configura mais pela apropriação e expansão da medicina sobre os aspectos diversos da vida, definindo-os por meio de linguagem médica e atuando sobre eles por meio de intervenções também médicas. Com isso, insere-se a necessidade de novas pesquisas que discutam esse conceito a partir de suas diversas faces. Ao deixar escapar desta análise a medicalização em sentido amplo, deixa-se de perceber aspectos seus presentes no contexto dos imigrantes que são prejudiciais, persistindo assim compreensões e atuações que promovem individualização do sofrimento e desresponsabilização das demais instâncias sociais e políticas em termos de promoção de melhoras no contexto migratório.
A relação direta que existe entre a medicalização em saúde mental e os aspectos culturais e linguísticos dos imigrantes, distintos dentre os países de acolhimento, demonstra a importância de pesquisar esses temas de maneira relacionada. Os estudos discutiram de maneira breve as necessidades de mudança e possibilidades de estratégias de cuidado em saúde mental, culturalmente sensíveis e desmedicalizantes mediante o contexto dos imigrantes. Mesmo aquelas ações consideradas culturalmente sensíveis em serviços de saúde mental para imigrantes acabam não se efetivando como tal, abarcando práticas ainda pautadas na psiquiatria ocidental. Diante disso, reforça-se a necessidade de estudos que investiguem essas práticas, a fim de agregar ações que de fato sejam culturalmente sensíveis e desmedicalizantes.
Neste sentido percebe-se que a medicalização da saúde mental dos imigrantes impacta de maneira negativa em seu acolhimento e integração à sociedade do país receptor, tornando-se uma ferramenta para mascarar as desigualdades e as violências direcionadas aos imigrantes, contribuindo para a manutenção das estruturas de poder existentes. Através da medicalização e em acordo com o neoliberalismo, o imigrante é responsabilizado pelos seus sofrimentos, enquanto as questões estruturais que de fato geram sofrimentos a estas pessoas se mantêm vigentes. Considera-se, portanto, que políticas migratórias menos restritivas e mais acolhedoras, além de alterações culturais na compreensão das sociedades de acolhimento sobre os imigrantes, sejam interessantes estratégias para redução do sofrimento dessas pessoas e para um cuidado desmedicalizado.
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Editores de seção
Roberto Marinucci, Barbara Marciano Marques
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Dez 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
04 Jul 2024 -
Aceito
08 Nov 2024