Open-access INTERDISCURSIVIDADE, METÁFORA E POLARIZAÇÃO: COMO A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA É REPRESENTADA NOS EDITORIAIS DA FOLHA DE S. PAULO

RESUMO

Este artigo analisa a representação discursiva da população em situação de rua nos editoriais da Folha de S. Paulo entre 2011 e 2020, tendo como aporte teórico os Estudos Críticos do Discurso (ECD) e a análise de metáfora. Editoriais são textos que caracterizam o posicionamento de um jornal, principalmente em momentos marcantes e de tensão para a sociedade, por isso, são um importante objeto de investigação. O corpus deste artigo, parte de trabalho de investigação mais amplo, é composto por oito textos publicados ao longo de uma década. A análise considera as seguintes estratégias e categorias: quadrado ideológico (Van Dijk, 2015, 2017), interdiscursividade (Fairclough, 2001, 2003) e a análise de metáfora (Charteris-Black, 2004). As análises apontam que os editoriais constroem representações negativas da população em situação de rua favorecendo o deslocamento forçado do grupo, negam seus direitos e disseminam discursos que contribuem para a exclusão e naturalização da desigualdade social.

estudos críticos do discurso; população em situação de rua; editoriais; metáforas; polarização

ABSTRACT

This article analyzes the discursive representation of the homeless population in Folha de S. Paulo editorials between 2011 and 2020, using Critical Discourse Studies (CDS) and metaphor analysis as theoretical support. Editorials are texts that characterize the position of a newspaper, especially during significant and tension-filled moments for society, and are thus an essential object of investigation. The corpus of this article, part of a broader research work, comprises eight texts published over a decade. The analysis considers the following strategies and categories: ideological square (Van Dijk, 2015, 2017), interdiscursivity (Fairclough 2002, 2003), and metaphor analysis (Charteris-Black, 2004). The analyses indicate that the editorials build negative representations of the homeless population by favoring the forced displacement of the group, denying their rights, and disseminating discourses that contribute to the exclusion and naturalization of social inequality.

critical discourse studies; homeless population; editorials; metaphor; discourse; polarization

Introdução

O número de pessoas brasileiras em situação de empobrecimento atingiu cerca de 62,5 milhões (ou 29,4% da população do país), conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Belandi, 2022), divulgados em dezembro de 2022. Entre estas, 17,9 milhões (ou 8,4% da população) estavam em extremo empobrecimento. Essa é considerada a maior expansão do empobrecimento desde 2012.

Nesse contexto, agravou-se a situação de rua nas cidades brasileiras. Nessas condições, a população tem sido marginalizada na sociedade desde o período pré-moderno (Pereira, 2008). O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea, 2016) aponta 222 mil pessoas vivendo nas ruas no Brasil, sem condições básicas satisfeitas, vivendo nas ruas ou em abrigos, muitas vezes, inadequados aos parâmetros do Plano Nacional aprovado em 2009.1 Esse contingente populacional em situação de extrema vulnerabilidade vem crescendo com a crise econômica no país, resultado do desemprego e da impossibilidade de manutenção de aluguéis por muitas famílias.

Essa é uma realidade conhecida e com frequência tratada na mídia. Este artigo tem o objetivo de apresentar resultados parciais de investigação sobre a representação da população em situação de rua em editoriais da Folha de S. Paulo entre 2011 e 2020. Trata-se de um recorte de uma pesquisa mais ampla que investiga a representação da população em situação de rua em textos opinativos do jornal no mesmo período.

O olhar para os editoriais se justifica, pois são textos que caracterizam o posicionamento do jornal, principalmente em momentos marcantes e de tensão para a sociedade brasileira. Conforme Mont’Alverne (2017), o editorial coloca em domínio público assuntos, eventos e ideias para consumo e discussão na esfera pública, atuando também como porta-voz da linha ideológica de um jornal. A pesquisa em editoriais da Folha de S. Paulo permite mapear como um dos principais jornais do país se envolve na agenda, sobre a população em situação de rua, promovendo esse debate.2

O objeto analítico deste artigo serão oito editoriais que formam parte de nosso estudo mais amplo da produção opinativa do jornal nos dez anos compreendidos entre 2011 e 2020. Para encontrar esses textos, utilizamos a ferramenta de busca do próprio portal do veículo e os seguintes argumentos: “morador de rua”, “moradores de rua”, “moradora de rua”, “população de rua” e “situação de rua”. No período, dez editoriais resultaram dessa busca, entretanto, dois não foram incluídos na análise por tratarem a situação de rua de forma tangencial.

A seguir, apresentamos um quadro descritivo do corpus:

Tabela 1
Corpus da pesquisa

A Folha repercute frequentemente a situação de rua, em textos opinativos e noticiosos, provavelmente, porque São Paulo é a cidade com o maior contingente populacional nessa situação no país. O levantamento do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (POLOS — UFMG), com dados do CadÚnico, aponta que na cidade de São Paulo 300 pessoas vivem em situação de rua para cada 100 mil habitantes. Já nas capitais carioca e capixaba, 120 e 126 pessoas vivem em situação de rua por 100 mil habitantes, respectivamente.3

Este artigo se ancora centralmente nos Estudos Críticos do Discurso (ECD)4 e na análise de metáfora. Segundo Van Dijk (2015), os ECD estão especificamente interessados no estudo (crítico) “de questões e problemas sociais, da desigualdade social, da dominação e de fenômenos relacionados, em geral, e no papel do discurso, do uso linguístico ou da comunicação em tais fenômenos, em particular” (Van Dijk, 2015, p. 15).

As metáforas são relevantes para a análise em ECD, pois “penetram em todos os tipos de linguagem e em todos os tipos de discurso” (Fairclough, 2001, p. 241). Reforçando a relevância das metáforas para os ECD, Charteris-Black (2004, p. 23) argumenta que elas podem “influenciar o caminho em que problemas sociais são conceituados”.

Outro aspecto da metáfora para os ECD é que mudanças na constituição metafórica são elementos “potentes para transformação não apenas do discurso, mas também do pensamento e da prática” (Fairclough, 2001, p. 241). Isso justifica a centralidade da categoria para este trabalho, que busca responder às seguintes questões: como a população em situação de rua é representada? Quais discursos e polarizações são articulados sobre a população em situação de rua?

Nas seções que seguem, o artigo está dividido em três partes, além dessas considerações iniciais e das considerações finais. Na primeira seção, tratamos a relevância de editoriais como objeto para análise discursiva, justificando seu estudo. Na segunda seção, abordamos as estratégias e as categorias de análise que vão nos permitir construir respostas às perguntas da pesquisa. Na terceira seção, apresentamos um panorama da análise desenvolvida.

Editoriais: um objeto relevante para os ECD

Os editoriais se caracterizam por serem textos não assinados, sendo a autoria atribuída à empresa jornalística, que assume um posicionamento perante diversos temas. Ou seja, são textos que não têm compromissos com a pretensão de imparcialidade das notícias. Esse posicionamento se revela nodal principalmente em momentos políticos marcantes e de tensão para a sociedade brasileira.

Como espaços políticos que procuram estabelecer diálogo com as elites políticas e econômicas do país e ressaltar reivindicações a quem julgam dever atendê-las, editoriais fazem uso de um poder de pressão advindo da credibilidade junto à sociedade (Mont’Alverne, 2017). Dialogando com essa ideia, Muniz (1999) sustenta que os editoriais “fazem um trabalho de convencimento, persuasão, apoio, contestação e coação ao Estado para a defesa de interesses dos segmentos empresariais e financeiros que representam” (Muniz, 1999, p. 5).

Mont’Alverne e Marques (2015) argumentam que apesar de os editoriais serem usados como capital social para pressionar agentes políticos, também devem atender a necessidade de oferecer à audiência um produto que contemple determinadas expectativas. Isso “exprime uma tensão entre os interesses privados e coletivos presentes na configuração do produto jornalístico” (Mont’Alverne; Marques, 2015, p 122). Segundo os autores, editoriais jornalísticos tentam cumprir o papel de fiscalizar agentes políticos e, ao mesmo tempo, pretendem representar (um certo) interesse público.

Para Marques, Mont’Alverne e Mitozo (2018), o editorial pode destacar a empresa como líder de opinião — seja para suas leitoras e leitores, para agentes políticos e econômicos, para jornalistas ou, mesmo, para outros jornais de menor porte que replicam conteúdo dos veículos de mais prestígio. Marques, Mont’Alverne e Mitozo (2018, p.226) afirmam que o editorial pode revelar:

(a) como é construída a interpretação ou a perspectiva da instituição acerca de determinado fato; (b) quais estratégias são utilizadas pela empresa jornalística quando ela reivindica posição de autoridade junto à audiência e ao campo político; e (c) as possíveis transições das opiniões/posicionamentos do jornal em relação às pautas no curso do tempo.

Nesses cem anos de existência, a Folha de S. Paulo deixou de publicar editoriais entre 1972 e 1976 e, depois, novamente suspendeu em 1977. Nos anos 1990, publicava três editoriais diários. A partir de 2006, passou a publicar dois textos e, em algumas ocasiões, apenas um. Segundo Patu (2019), as opiniões da Folha expressas nos editoriais são delineadas em debates internos rotineiros, que cabe à editoria de Opinião fomentar. A partir de contribuições de profissionais da casa e especialistas de variadas tendências, a Direção de Redação, que se reporta à presidência da empresa, define a posição a ser defendida.

As reuniões de pauta que definem os editoriais, de acordo com Patu (2019), são conhecidos como almoços de editoriais, e ocorrem, em geral, a cada 15 dias, às sextas, e reúnem pouco mais de 20 pessoas, entre editorialistas (encarregados de redigir editoriais), editores/as (responsáveis por cadernos e seções do jornal) e representantes do comando da Redação e da empresa, além de convidadas e convidados eventuais.

Dessa forma, entender como o jornal difunde suas opiniões, suas visões particulares de mundo sobre questões políticas, econômicas e sociais pode ajudar a compreender os valores-notícia5 pelos quais todo o jornal se pauta. Além de aprofundar questões tratadas nas notícias, as publicações podem pautar questões que se encontram fora da agenda imediata do noticiário. Dessa forma, acreditamos que se trata de um importante material para ser analisado à luz dos ECD.

Estratégias e categorias de análise: teoria

Priorizamos estratégias e categorias de análise dos ECD que nos possibilitam expandir as “lentes” de observação dos dados. Sendo assim, trabalhamos com a estratégia analítica do quadrado ideológico (Van Dijk, 2015, 2017), a análise de metáfora (Charteris-Black, 2004) e a categoria interdiscursividade (Fairclough, 2003).

O quadrado ideológico (QI) é um instrumento de análise, elaborado por van Dijk, que permite a identificação de ideologias na linguagem, a partir da manifestação de relações entre grupos. Segundo o autor, quem fala/escreve tende a se expressar favoravelmente ao grupo a que pertence, diferenciando-se dos demais. De acordo com o pesquisador, trata-se de “uma estratégia de ‘auto-apresentação positiva e de apresentação negativa do outro’, em que as nossas coisas boas e as coisas más deles são realçadas, e as nossas coisas más e as coisas boas deles são secundarizadas” (Van Dijk, 2017, p. 43). Para efeitos de análise, os grupos são prototipicamente representados pelos pronomes “Nós” (endogrupo — ênfases positivas) e “Eles” (exogrupo — ênfases negativas).

Dessa forma, a estratégia analítica, que considera uma variedade de realizações textuais da polaridade, baseia-se no entendimento de que há uma estrutura ideológica polarizada, sendo que o discurso ideológico pode operar da mesma forma (Van Dijk, 2017). Segundo van Dijk (2015), o QI faculta a quem usa a linguagem a possibilidade de descrever acontecimentos ou características do objeto discursivo em diferentes níveis, a depender de como deseja enfatizar as boas ações ou características do endogrupo e as más condutas ou aspectos do exogrupo.

No uso dessa estratégia analítica neste artigo, então, pretendemos observar a polarização “Nós” (jornal/empresa de comunicação/elite simbólica) versus “Eles” (grupos sociais a que o veículo construa como oposição), o que pode apontar caráter ideológico de opiniões veiculadas no jornal, já que essas “não estão sempre expressas de forma explícita. Isto é, muito frequentemente elas estão implícitas, pressupostas, escondidas, negadas ou são dadas como adquiridas” (Van Dijk, 2017, p. 222). A ênfase nas características negativas dos grupos externos pode ser alcançada por estruturas e estratégias diversas, como as metáforas, por isso, também foi escolhida para a análise.

Charteris-Black (2004) apresenta um arcabouço analítico para a análise crítica da metáfora (ACM), proposta a que nos filiamos para desenvolver este artigo. O autor une critérios linguísticos, cognitivos e pragmáticos, acreditando que apenas um critério não pode abranger a complexidade da relação que a metáfora estabelece entre quem produz e de quem interpreta metáforas. Define sua proposta como “uma abordagem do discurso que nos permite desafiar as formas existentes de pensar e sentir sobre o comportamento humano e sua relação à linguagem” (Charteris-Black, 2004, p. 252).

O mapeamento metafórico proposto por Charteris-Black (2004), amplamente baseado em Lakoff e Jonhson (1980), inclui análise de “expressão metafórica”, “metáfora conceitual” e “chave conceitual”. Para ele, uma “metáfora conceitual” é uma declaração formal daquilo que está presente em uma figura de linguagem (por exemplo, metáfora ou metonímia). Uma “chave conceitual” é inferida a partir de uma série de metáforas conceituais e é, portanto, considerada uma metáfora de alto nível por explicar como várias metáforas conceituais estão relacionadas (Charteris-Black, 2004, p. 16). A expressão metafórica, por sua vez, refere-se à expressão linguística do atravessamento de sentido promovido pela metáfora.

Segundo o autor, as “metáforas conceituais” e as “chaves conceituais” esclarecem quais das ideias associadas à fonte devem ser transferidas para o alvo metafórico. Além disso, resolvem a tensão semântica entre o original e o novo contexto do tópico. Ele ainda ressalta que a metáfora é um recurso comunicativo pelo qual pessoas podem aumentar a expressividade de sua mensagem, por meio de significados mais econômicos disponíveis para a produção de sentido.

Propõe, então, uma classificação hierárquica em que as metáforas seriam descritas de acordo com seu nível de abstração: começando pelas metáforas particulares (expressão metafórica, realização textual, nos termos dos ECD), passando pelas metáforas conceituais até as chaves conceituais (grau máximo de abstração). Em pesquisas baseadas na ACM, mapeamos em textos as expressões metafóricas, que depois agrupamos em metáforas conceituais por inferência analítica. Em seguida, inferimos as chaves conceituais capazes de agrupar as metáforas conceituais em sentidos mais abstratos. Somente as expressões metafóricas têm existência linguística nos textos analisados, os demais passos analíticos são agrupamentos inferenciais decorrentes do trabalho de pesquisa. Dessa forma, mapeamos as seguintes metáforas conceituais:

Tabela 2
– Metáforas conceituais

Para chegar a essas metáforas, lemos todos os textos. No software de análise qualitativa NVivo, codificamos palavras e frases que acreditávamos serem utilizadas como metáforas em potencial, considerando os critérios linguístico, pragmático ou cognitivo. Essas codificações foram armazenadas no Nó Metáforas. Depois, relemos tudo o que foi marcado, buscando identificar domínio alvo, domínio fonte e o sentido metaforicamente ativado. Quando não havia tensão, ou quando não era possível mapear a mudança de domínio, descartávamos a codificação.

Com esse mapeamento foi possível passar para a etapa de agrupamento das expressões metafóricas pela identificação de metáforas conceituais, ou seja, níveis metafóricos mais abstratos em que a tensão semântica se resolve. Dessa forma, detectamos dez metáforas conceituais. Seguindo a proposta de “economia analítica” de Charteris-Black (2004), procuramos agrupar as metáforas conceituais em chaves conceituais, pois isso, conforme o autor, ajuda a perceber a coerência em discursos particulares e aumentar a compreensão do papel ideológico das metáforas.

Tabela 3
– Chaves conceituais

A chave do conflito/territorial está relacionada à questão do espaço público. Ela evidencia a ocupação, a aglomeração e a disputa pelos locais em que a população em situação de rua se encontra, assim como para sua situação de desamparo. Essa chave traz à tona quem pode usufruir (aglomerar, ocupar) das ruas e das praças. Caso estes locais estejam sendo utilizados por grupos sociais considerados “inimigos” ou perigosos, abre-se o conflito. Portanto, relaciona-se ao direito e à defesa da cidade.

A chave biológica está ligada à associação da situação de rua com a doença, inferido por meio da dicotomia saúde — bem x doença — mal. Ou seja, de um lado da sociedade estão as pessoas saudáveis, que nasceram com algum tipo de privilégio e que são consideradas do bem. Do outro, os doentes, que não têm direito algum e vistos como más.

A chave sensorial ativa sentidos de espetacularização e visibilidade das pessoas em situação de rua. Na medida em que estão mais visíveis no espaço, podem provocar medo e insegurança na população, em geral, devido ao estigma que carregam, como de serem “perigosos”, “violentos” e “viciados”. Sendo assim, é uma chave que desperta o discurso do medo, retificando a situação de rua como ameaçadora.

Quanto à chave física, ela está relacionada à objetificação da pessoa em situação de rua. Essa dissociação da pessoa humana contribui para que pessoas em situação de rua sejam vítimas de violações e para naturalização das ações de deslocamento forçado do grupo. A chave da negação, por fim, está ligada à condição de vida na rua, em que não só os direitos são negados, como a própria existência.

Ao expor sua condição de miserabilidade no espaço público, a população em situação de rua aciona sentidos associados à chave do incômodo. Questões como a destruição do espaço público são levantadas, abrindo margem para inferir que a situação urbana se sobrepõe à social. Dessa forma, discursos higienistas, cujo objetivo principal é o deslocamento forçado, ganham êxito, pois há um desejo de se eliminar o “incômodo” que essa população representa.

Já a categoria interdiscursividade está ligada a maneiras particulares de representar aspectos do mundo. “Volta-se para discursos articulados ou não nos textos, bem como as maneiras como são articulados e mesclados com outros discursos” (Vieira; Resende, 2016, p. 144). Um mesmo texto pode incluir vários discursos, os quais podem entrar em conflito, com discursos particulares sendo contestados ou promovidos. Nessa perspectiva, discursos são definidos como posições particulares em relação aos temas tratados nos textos, sendo vinculados a disputas sociais, ideologias e interesses.

É possível identificar diferentes discursos ao observar as maneiras de “lexicalizar” aspectos do mundo. Discursos também podem ser diferenciados por meio de relações semânticas, vocabulário, aspectos gramaticais, dentre outros — isso ocorre, porque a ampla gama de decisões (conscientes ou não) tomadas para relacionar aspectos do mundo e representá-los em textos são decorrentes dos sentidos que se quer atribuir, e a análise interdiscursiva pode lançar mão de uma série de traços textuais para reconstruir essas relações significativas. Essas escolhas dependem dos interesses particulares e das práticas/posições enfatizadas na representação.

Assim, as análises realizadas na próxima seção se aproximam dos editoriais, a partir de uma variedade de pistas analíticas a fim de responder às questões motivadoras deste artigo: como a população em situação de rua é representada e quais discursos e polarizações são articulados sobre ela nos editoriais da Folha de S. Paulo, que trataram o tema na década compreendida entre 2011 e 2020.

Editoriais em análise: interdiscursividade, metáfora e polarização

Nesta seção, apresentamos as análises dos oito editoriais em que a Folha de S. Paulo abordou a situação de rua como tema central entre 2011 e 2020. As análises serão sequenciais por cronologia, começando pelo editorial de dezembro de 2013 e avançando até o editorial de fevereiro de 2020. Para cada análise, utilizamos as categorias apresentadas na seção anterior.

No editorial veiculado em 1º de dezembro de 2013, que trata sobre a possibilidade de cercar o vão do Masp (Museu de Arte de São Paulo), o jornal expõe que o vão-livre do Museu servia de abrigo para pessoas em situação de rua e seria um local de consumo de substâncias psicoativas. Essa presença teria criado, segundo o jornal, um “clima de insegurança”, provocando o desmonte de um estande de exposição antes do previsto. Por essa expressão “clima de insegurança”, codificada na metáfora conceitual “pessoa em situação de rua ou situação de rua é perigo”, infere-se que as pessoas em situação de rua causam perigo e colocam o “conjunto da população” (“Nós”, assimilando o enunciador do editorial) em risco. Há uma polarização em que se entende que “Nós” somos afetados pela presença “Deles”, que representam um risco. Ou seja, pessoas em situação de rua são vistas como grupo que oferece risco e não como quem está em situação de risco.

Nota-se, portanto, um discurso de insegurança que serve para justificar a proposta do jornal de que seja feito um “policiamento efetivo” como alternativa ao gradeamento do Museu. Dessa forma, esse texto se filia também ao discurso da ordem pública. Vale lembrar que Wacquant (2007, p. 23) classifica como um erro científico e cívico crer e fazer as pessoas acreditarem que a gestão policial e carcerária seja caminho real para conter problemas sociais e mentais provocados pela fragmentação do trabalho assalariado e pela polarização do espaço urbano. Considerando o poder da Folha, pela sua audiência e relevância como veículo midiático nacional, essa opinião é muito significativa e pode não só influenciar a opinião pública como colocar essa pauta no debate nacional, influenciando a agenda política sobre o tema.

Quatro dias depois dessa publicação, a Folha voltou a tratar a situação de rua na região central de São Paulo com o editorial intitulado “Fracasso duplo”, que remete à dupla Geraldo Alckmin e Fernando Haddad, então governador e prefeito de São Paulo, respectivamente. Segundo o jornal, os dois estariam fracassando em suas gestões. O texto traz várias construções metafóricas para representar a situação de rua. Nele, a situação de rua está representada como uma das “mazelas típicas dos grandes centros urbanos”. Conforme dicionarização, “Mazela” significa “chaga, ferida”. Sendo assim, trata-se de uma representação metafórica em que o conceito abstrato de “situação de rua” (domínio-alvo) é compreendido em termos do conceito mais concreto “doença” (domínio-fonte), que significa alteração da saúde pela manifestação de alguns sintomas, como ferida.

De acordo com Resende (2008, p. 202), essa metáfora conceitual “psr e/ou situação de rua é doença” opera uma dissimulação da responsabilidade humana, pois, culturalmente, a doença é percebida como uma coisa que acontece, independentemente de vontade ou ação. Infere-se que esse “acontecimento” pode atrapalhar a organização social e se tornar uma “ameaça” à sociedade. Essa metáfora conceitual também está mapeada no trecho: “insuportável ferida no tecido social”, do mesmo texto.

Em “O quadro de absoluta degradação humana”, há uma representação no campo conceitual “situação de rua é destruição”, em que degradação humana aponta para o domínio-fonte destruição, atribuindo característica muito negativa ao grupo. Observa-se, ainda, a metáfora conceitual: “situação de rua é percepção sensorial”, mapeada devido à identificação das seguintes expressões metafóricas: “revelar com mais clareza”, “cenas e acontecimentos que intensificam”, “percepção cotidiana”, em que a situação de rua é representada como impacto sensorial provocado no grupo “Nós”, que não vivencia esse estar na rua.

Em seguida, a construção de sentido de situação de rua é feita a partir do campo semântico da guerra, com a utilização do termo “invasão”. Dessa forma, o jornal se vale da metáfora conceitual “situação de rua é guerra”. Nos termos do Dicionário Online de Português, “guerra”, entre outras definições, significa luta declarada contra algo prejudicial: guerra à dengue. Esse “algo prejudicial” seriam as pessoas em situação de rua, transformadas em “inimigos”, sendo a guerra metaforicamente acionada contra “pessoas em situação de rua”.

Neste excerto, nota-se a representação do exogrupo como “invasores” de uma área. A interpretação sugerida pelo jornal nos efeitos de sentido gerados é a de que “Nós” seríamos “afetados pelos invasores”. E para a “nossa proteção”, “um sólido alambrado se ergueu” (alambrado literal, nesse caso). Mesmo assim, “Eles” ocuparam o espaço: “Encostaram-se ali cerca de cem barracos, que abrigam dependentes de crack, catadores de papel e moradores de rua”. Isto é, “Eles” invadiram e ocuparam o local. Note-se, aqui, a construção de um grupo opositor “Eles” que assimila situação de rua e dependência química.

Outra interpretação ativada é o fato de “Eles” serem avaliados como “indisciplinados”, já que invadem e ainda ocupam área mesmo sendo usado um dispositivo para evitar a ação (“um sólido alambrado”). Interessante observar que o agente que implementou essa ferramenta para evitar a presença de pessoas em situação de rua está indeterminado: governo, moradores locais, empresários? Já a ação negativa “deles” de “encostar os barracos” foi enfatizada pela expressão numérica “cerca de cem” para sugerir a quantidade de pessoas vivendo ali. Além disso, a escolha “cerca de cem barracos” personifica “barracos” ao utilizá-lo no lugar de pessoas, objetificando-as (metáfora conceitual “situação de rua é objeto”).

O jornal trouxe a voz da prefeitura, que se pronunciou por meio de “nota lacônica” ao surgimento da “favelinha”. O termo “favelinha” foi colocado entre aspas pelo/a autor/a e traz uma representação negativa associada a pessoas que vivem em moradias precárias nos subúrbios ou nos centros das cidades. Outro trecho também utiliza o mesmo recurso gráfico “que resultaram em 341 encaminhamentos”, sobre as abordagens de assistentes sociais na região. As aspas remetem ao texto que a Prefeitura deve ter usado na “nota” enviada ao jornal, e seu uso no editorial mitiga o comprometimento do jornal com a informação prestada, podendo também ser lido como indicação de ironia.

A Folha cobra mais transparência da Prefeitura quanto ao “gasto” na assistência a populações vulneráveis, já que apenas divulgou valor relacionado à construção de um complexo cultural, colocando-se como agente fiscalizador do poder público. Da forma como o editorialista escreveu, pode-se inferir que a assistência social envolve um “gasto” e não um investimento. O texto termina com a construção metafórica “para recuperar a dignidade dos que vegetam naquela região”, que remete a um domínio concreto de imobilidade, configurando metáfora conceitual “situação de rua é imobilidade”, com representação negativa desse grupo.

Neste texto, portanto, o jornal faz parte do endogrupo “Nós” e representa negativamente os exogrupos, compostos pelo poder público que agiria com “descaso” em relação à situação de rua, além de não ser transparente sobre as despesas na área de assistência social. Inclusive, pela população em situação de rua, representada por metáfora ou assimilação como invasora, indisciplinada, dependente de substâncias psicoativas e letárgicas. O problema social é representado em termos de doença, percepção sensorial de terceiros e destruição do espaço público.

Um discurso de desigualdade social é mobilizado no editorial “À espera da saúde”, veiculado em 2 de dezembro de 2014. O texto aponta falhas na gestão de saúde no governo municipal do então prefeito Fernando Haddad, que teria feito várias promessas não cumpridas. Assim, o jornal se coloca novamente no papel de agente fiscalizador da gestão pública, realizando um dos propósitos comunicativos atribuídos a editoriais, como vimos em Mont’alverne (2017). No que se refere ao cuidado destinado às pessoas em situação de rua, o jornal sugere que a gestão “mostra evolução” na entrega de unidades móveis de atendimento, os Consultórios da Rua. Ressalta-se o uso de metáfora do campo bélico em “no ataque a questões específicas, como o cuidado destinado aos moradores de rua”, pois ao utilizar esse termo metafórico tomado do domínio-fonte da guerra, o jornal sugere mais uma vez que a “situação de rua é guerra”.

Apesar de o/a editorialista reconhecer como importante a iniciativa do governo de promover assistência médica à população em situação de rua, o texto termina com o trecho: “O conjunto da população ainda aguarda a solução de problemas básicos”. Deste fragmento, é possível inferir que há uma cobrança de melhores resultados para esse “conjunto da população” (“Nós”), evidenciando, portanto, a oposição “Nós/Eles” na argumentação. A polarização também se evidencia em representações divididas: “deve à população” x “destinado aos moradores de rua”; “grupo tradicionalmente desassistido” x “conjunto da população”; “problemas sistêmicos” x “problemas específicos”.

Quando o jornal se inclui no endogrupo “conjunto da população”, cujo direito à saúde é reivindicado, exclui quem está em situação de rua (exogrupo) do grupo populacional detentor de direitos, e assim evoca um discurso de desigualdade, reforçando a cisão entre classe dominante (possuidora de direitos) e classe empobrecida (sem direitos). Isso não é expresso de maneira explícita, mas se constrói por sucessivos reforços da polaridade ao longo do texto, como nos sentidos que antes destacamos.

O editorial “Doença Preexistente”, veiculado em 19 de junho de 2016, repercute a morte de cinco pessoas em situação de rua após dias de frio intenso na capital paulista, a partir do discurso do então prefeito Fernando Haddad (PT). Segundo ele, o confisco de cobertores e de papelão por guardas municipais teria ocorrido para prevenir uma “favelização” e que as mortes teriam decorrido de doenças preexistentes, e não da exposição continuada à intempérie no inverno paulistano. O editorial objetifica as pessoas que morreram em situação de rua ao usar o termo “largadas na rua”, como se fossem um objeto deixado, esquecido na rua (metáfora conceitual “situação de rua é objeto”).

Assim o jornal, desta vez, compromete-se com um discurso de necessidade de assistência do poder público à população em situação de rua. Mobiliza, então, discurso assistencialista, como nos trechos: “Doentes ou não, com a temperatura descendo a 3,5°C, precisam de comida, teto e cobertas para não correrem o risco de morrer na calçada. Para isso existem os abrigos” e em “Surge assim como um passo na direção correta — a do acolhimento humanitário incondicional — que a prefeitura, após o embaraço de início, prometa converter até o fim do mês tendas já existentes na Sé, no Anhangabaú, no Glicério e na Mooca para receber os desabrigados”.

Ao problematizar a situação precária dos albergues, coloca essa questão na voz das pessoas em situação de rua: “Os refratários apontam falta de espaços para famílias, casais, carretas e cães. Reclamam da comida, do tratamento, dos horários rígidos — são instados a sair do local nas primeiras horas da manhã”. Trata-se de uma rara abordagem em que a população em situação de rua é colocada como um ator social que tem papel ativo. Diferentemente, por exemplo, na maioria dos textos na mídia em que representa discursivamente essa população com papel passivo, sendo receptor de uma ação ou se submetendo a uma atividade.

No editorial “Desalento ao relento”, de 17 de julho de 2019, o jornal chama atenção para o aumento no número de pessoas em situação de rua no período de frio em todo o país e para a falta de dados sobre o grupo. No título já se percebe uma representação metafórica que entende a situação de rua como desamparo (metáfora conceitual “situação de rua é desalento/desamparo”). Ou seja, a população em situação de rua é aquela que sofre as consequências da falta de ação do Estado. Essa mesma representação ocorreu em outros momentos: “estima que haja 32,6 mil no sereno” e “amparar quem se acha ao relento”. Essa representação metafórica reconhece a necessidade da assistência à população em situação de rua, e a apresenta como demanda ao Estado.

Contudo, esse é mais um texto em que a Folha traz representações metafóricas que tratam a questão a partir do campo da doença: “psr ou situação de rua é doença”: “inchaço da população” e “chaga social”. Essa construção provoca uma polarização em que “Nós — sociedade” somos afetados por essa “doença”, isto é, por “Eles”, pela presença “deles” no espaço público.

Também encontramos a metáfora conceitual: “situação de rua é percepção sensorial” materializada nos termos “alta aparente”, “a progressão é evidente”, “como percebem os munícipes” e “se impôs às conversas nas metrópoles brasileiras”. Novamente, a situação de rua se representa pela percepção sensorial que provoca em outros corpos, que não vivem a rua, mas a veem, percebem sua ‘aparência evidente’. Há ainda a metáfora que espetaculariza a situação de rua, mapeada na metáfora conceitual “situação de rua é cena”: “ao espetáculo de desamparo a cada esquina”. Todas essas expressões metafóricas denotam representações negativas para a população e para a questão social.

O editorial recorre à voz do Movimento Estadual de População em Situação de Rua para estimar o número de pessoas em vulnerabilidade, cujos números contrastam com os levantamentos do município a cada quatro anos. Enquanto esse indicou 15 mil, aquele estimou 32,6 mil pessoas em situação de rua naquela ocasião. A voz do Movimento legitima o argumento do aumento da população em vulnerabilidade: “Parece mais provável, contudo, que a população de rua esteja de fato crescendo, como percebem os munícipes”, contestando a prefeitura que alegava, segundo o texto, que o número maior fosse decorrência não do crescimento populacional mas do trabalho de abordagem do órgão (“A progressão é evidente, mas as autoridades preferem atribuí-la a um alegado maior empenho da prefeitura”).

O editorial ainda dissemina a ideia de que a situação de rua seria uma questão individual: “Vários fatores contribuem para que uma pessoa chegue a esse extremo de penúria, da incapacidade de achar trabalho à dependência química e aos conflitos familiares”, omitindo todo um contexto histórico e econômico. É preciso considerar que a dificuldade de achar emprego, além de decorrer de uma questão mais ampla do cenário econômico e de acesso à formação, decorre também do preconceito que existe para empregar pessoas que carregam em seus corpos as marcas históricas da terrível desigualdade brasileira.

O/A editorialista menciona o trabalho do jornal para contar o número de pessoas vivendo nas ruas (“despossuídas”, nos termos do editorial) de outras cidades brasileiras: “Levantamento desta Folha, noticiado no domingo (14), constatou que a população de rua aumenta em várias capitais”. Por essa construção, infere-se uma representação positiva do “Nós-jornal” que realizou o trabalho de quantificar o aumento da população em situação de rua, o qual corrobora para confirmar a sua tese de ‘alta aparente’ no número de pessoas em situação de rua. Por outro lado, há uma representação negativa do poder público, que não produz estatísticas padronizadas sobre a população em situação de rua (“Cada prefeitura os conta se quiser, como quiser e quando quiser”). O texto defende que o poder público deve fazer essa contagem de forma precisa, com uma metodologia única para todos os locais — a realização do censo da população em situação de rua é uma demanda do Movimento Nacional da População de Rua, desde 2010.

Com base nas representações metafóricas e polarizadas, observa-se que o jornal profere um discurso que corrobora o entendimento de que a situação é ameaçadora. Diante disso, compromete-se com um discurso assistencial, já que aponta a necessidade de ação do poder público, tanto para contabilizar como para assistir (“Não basta, óbvio, identificar os despossuídos”).

Em “Parque Minhocão”, de 25 de fevereiro de 2019, a Folha se posiciona favoravelmente à desativação do elevado João Goulart, popularmente conhecido como Minhocão, para que no local seja construído um parque. De outro modo, a modalização dessa opinião ocorre por meio de estruturas, como “Trata-se de iniciativa que merece apoio, embora condicionado” e “se atuar com diligência, a prefeitura estará contribuindo para uma cidade menos árida e hostil às pessoas que nela vivem”.

Observa-se polarização na estrutura: “Pesa a favor da implementação do parque, ademais, o fato de o espaço já ter sido acolhido pelos paulistanos. Há alguns anos o Minhocão tem sido aberto à população aos fins de semana, com sucesso”. Quando o jornal menciona que o espaço já foi acolhido pelos paulistanos que frequentam o local no final de semana, exclui as pessoas em situação de rua que utilizam todos os dias o viaduto como abrigo. Dessa forma, polariza “Nós-paulistanos”, que temos direito àquele espaço, porque nós o acolhemos “com sucesso”, e “Eles”, cujo direito à cidade deve ser negado. Há, portanto, um discurso de desigualdade que separa os grupos: os paulistanos que acolhem e as classes vulneráveis que não devem ser acolhidas, conforme a representação que segue.

Em “A transformação prometida, no entanto, não pode vir desacompanhada de medidas que ajudem a revitalizar a área, que concentra moradores de rua, usuários de drogas e um comércio degradado”, há a metáfora conceitual “situação de rua é aglomeração/ concentração”, mapeada por meio da estrutura “concentra moradores de rua, usuários de drogas”. A descrição do local como aquele que concentra moradores de rua, usuários de drogas e um comércio degradado ocorreu após defesa da “revitalização” da área. Importante ressaltar que esse trecho também compõe a linha fina (complemento do título), demonstrando que essa é uma das informações principais do texto. Normalmente, as ações higienistas chamadas de revitalizações de espaços públicos urbanos incluem o deslocamento forçado de pessoas.

Esse deslocamento de populações vulnerabilizadas faz parte de um “novo urbanismo” (ou forma urbana) em que a gentrificação representa uma dimensão central. A gentrificação é um termo atribuído à R. Glass, que, voltada para a realidade de Londres na década de 1960, utilizou a expressão para denominar a expulsão da população de baixa renda de alguns bairros centrais para que esses voltassem a ser frequentados pelas classes média e alta.

O termo também foi utilizado por N. Smith, que estudou o processo de urbanização em Nova Iorque. O autor aponta para a dimensão que o processo tomou a partir de 1990, chamando este de generalização da gentrificação, em que os atores centrais do processo de renovação urbana não são mais as classes média e alta. “Os agentes do renascimento urbano estão ligados ao Estado e às empresas, ou à participação de uma parceria público-privado” (Smith, 2006, p. 59).

Segundo Smith (2006), a generalização da gentrificação está relacionada ao abandono das políticas progressistas do século XX e a vitória das políticas neoliberais. O pesquisador argumenta que a gentrificação passa a ser apresentada, por alguns planejadores e urbanistas, como “natural”, isto é, como parte de uma política urbana que valoriza os centros a fim de torná-los mais atrativos – daí nomear-se o processo por eufemismos metafóricos, como ‘revitalização’.

O problema é que essas intervenções não levam em consideração o destino da população empobrecida, principais vítimas desse processo. O arquiteto e pesquisador Paolo Colosso, em artigo publicado na Agência de Notícias da USP, refere-se a essa situação como “consequências inevitáveis a um bom negócio”. Segundo o autor, valendo-se da narrativa de modernização, os “inimigos públicos” são vítimas de uma “limpeza social” ocultada (Mendonça, 2020).

O editorial também menciona a questão da gentrificação: “Não se pode desprezar ainda o previsível aumento dos aluguéis da região e consequente expulsão das camadas mais pobres que ali residem”. Reconhecendo a gentrificação como um problema, sugere que “Existem políticas públicas capazes de mitigar tal efeito”. Essas políticas, contudo, não adquirem relevância na pauta de nenhum dos editoriais que tratam a situação de rua na Folha de S. Paulo.

Em “Cidade sem-teto”, de 1º de fevereiro de 2020, a Folha volta a tratar do aumento no número de pessoas em situação de rua. Observa-se que há um discurso do medo sendo articulado, quando o jornal enfatiza a dimensão crítica da quantidade de pessoas vivendo em vulnerabilidade. Utiliza expressões metafóricas como “população de rua atingiu a marca” e “trata-se de um salto”. Reforçam esse discurso as estruturas “habitantes da cidade observam cotidianamente a olho nu” e “cidade de pessoas sem teto”, que ressaltam a questão da visibilidade (metáfora conceitual “situação de rua é percepção sensorial”), como também da ocupação (metáfora conceitual “situação de rua é ocupação”), respectivamente. Sendo assim, é possível interpretar que a situação como um todo é ameaçadora.

Ao utilizar os termos “drama social” e “drama dos sem-teto” (mapeados na metáfora conceitual “situação de rua é cena”), o jornal opta por espetacularizar a situação de rua, descrevendo o problema como “drama”. Nesse texto, há também uma articulação intertextual de oposição entre os números apresentados pelo governo e pelo Movimento da População em Situação de Rua de São Paulo, que alega ser maior a quantidade de pessoas que vivem em situação de rua. A articulação intertextual do Movimento contribui com o argumento do aumento quantitativo (“salto”) do “drama social”.

O jornal justifica esse cenário pela questão econômica: “grave recessão econômica”, “morosidade com que se ensaia a retomada do crescimento”, “aumento do desemprego” e “percalços da economia”. Por outro lado, percebe-se que o jornal procura também incorporar um discurso social ao mencionar “albergues”, “insuficiência de investimentos em habitação social”, “regulamentar o artigo da lei 17.252, que prevê vagas para pessoas nessa situação por empresas contratadas pelo município”, “abordagem a moradores de rua”, e ainda ao problematizar a situação dos abrigos: “adotam regras não raro hostis, como horários inflexíveis e proibição da guarda de carroças usadas para coleta de material reciclável — além de alimentação de má qualidade”. A Folha assim oscila, equilibrando-se em seus editoriais entre os discursos de higienização e gentrificação e as demandas por políticas públicas intersetoriais.

Considerações finais

Como recorte de um projeto mais amplo, neste artigo buscamos responder como a população em situação de rua é representada, em termos de discursos e polarizações articulados nos editoriais da Folha de S. Paulo que, publicados entre 2011 e 2020, focalizaram o tema. O objetivo foi compreender como o jornal dissemina seu posicionamento sobre esse grupo social no espaço editorial.

Entendemos que a metáfora foi útil para revelar sentidos implícitos, como mostramos por meio das análises de metáforas e chaves conceituais na seção anterior. Já o quadrado ideológico permitiu perceber a opção da Folha por enfatizar a representação das ações e das características negativas da população em situação de rua e por ocultar seus aspectos positivos.

Os editoriais representaram a população em situação de rua como invasora, indisciplinada, perigosa, objeto, doença, dentre outros rótulos mapeados por meio das metáforas e das polarizações. Essas representações negativas favorecem as ações de deslocamentos forçados do grupo. Dessa forma, o jornal se alinha com a política de “limpeza social” praticada historicamente pelo poder público de São Paulo. Esses sentidos muito crus, no entanto, não são mostrados abertamente nos editoriais, mas podem ser revelados em análises.

Esse posicionamento da Folha é coerente com os discursos da insegurança e do medo disseminado pelos editoriais, os quais demandam ações. Notamos ainda discursos de naturalização da desigualdade social e assistencialistas. Por meio dos discursos assistencialistas, o jornal se utiliza da sua posição privilegiada para cobrar políticas públicas do governo, políticas necessárias, demandadas também pelos movimentos da população que vive nas ruas. Mas contraditoriamente, os editoriais da Folha frequentemente negam os direitos da população em situação de rua (principalmente seus direitos à saúde e à fruição dos espaços públicos). Pode-se perguntar, então, sobre os tipos de assistência que esses editoriais preconizam, e aqueles que preferem calar, ou mesmo criticar abertamente.

Vale salientar que a Folha em todos os editoriais escolhe não tratar o problema a partir da perspectiva das pessoas em situação de rua, mas sim a partir de seus próprios interesses. O recorte longitudinal do corpus nos permitiu observar que não houve mudança de opinião do jornal sobre esse tema ao longo dos anos, havendo ao contrário continuidade de pautas e pontos de vista.

Sabemos que discursos propagados na mídia podem ter amplo alcance social, e quando apresentam avaliações negativas acerca de grupos sociais, compartilham perspectivas discriminatórias que encontram assim um caminho de reificação. Os editoriais da Folha sobre a situação de rua não apenas são discriminatórios, como têm um nefasto potencial para propagação de preconceito contra a população.

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  • WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 3. ed. Tradução: Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007.
  • 1
    O Decreto 7.053, de 23 de dezembro de 2009, que institui a Política Nacional para População em Situação de Rua e os Comitês Intersetoriais de Acompanhamento e Monitoramento (CIAMP — Rua estaduais e municipais), coloca os direitos das pessoas em situação de rua, em definitivo, na agenda pública.
  • 2
    É preciso ressaltar que a Folha foi em 2020 e 2021 o portal de notícias com mais audiência digital do país. Isso mostra a relevância do veículo, que é também um dos veículos de comunicação de massa mais antigos do país: completou cem anos de existência em 2021.
  • 3
    Mais em: https://obpoprua.direito.ufmg.br/boletins.html. Acesso em: 6 mar. 2023.
  • 4
    Adoto a designação Estudos Críticos do Discurso (ECD), proposta por Van Dijk (2015), em vez de Análise de Discurso Crítica (ADC), apesar de essa ser mais amplamente utilizada. Conforme o autor, os ECD não são um método de análise do discurso e se utilizam de qualquer método que seja relevante para se atingir os objetivos de pesquisa. A análise de discurso também não é um método, “constitui um domínio de práticas acadêmicas, uma transdisciplina distribuída por todas as ciências humanas e sociais” (Van Dijk, 2015, p. 11).
  • 5
    Valores-notícia são critérios jornalísticos que influenciam na decisão sobre quais fatos e assuntos serão tratados nos jornais, ou seja, quais se tornarão um produto noticioso.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2023
  • Aceito
    20 Jul 2023
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