Open-access As parcelas (in)visíveis da saúde do anônimo trabalhador: falas operárias sobre trabalho, saúde e doença (1890-1920)

The (in)visible slice of the health of the anonymous worker: worker speech on labor, health and disease (1890-1920)

MEMÓRIA MEMORY

As parcelas (in)visíveis da saúde do anônimo trabalhador: falas operárias sobre trabalho, saúde e doença (1890-1920)

The (in)visible slice of the health of the anonymous worker: worker speech on labor, health and disease (1890-1920)

Anna Beatriz de Sá Almeida1

Introdução

"A civilização atual multiplica as possibilidades industriais e cria a cada instante novas formas de trabalho. O gozo humano se deleita como fruto desse trabalho, cujas minúcias a humanidade desconhece, e no uso de qualquer simples utensílio da vida quotidiana nós ignoramos a soma de esforço anônimo que nele se concretizou. Nem sempre esse esforço é dado sem outro ônus além da fadiga, muitas vezes no objeto que contemplamos e de que usamos prazerosos, está uma parcela invisível da saúde do anônimo trabalhador, que lentamente conquistou com o pão quotidiano a morbidez que o há de matar"

(Medeiros apud Azevedo, 1927, p. 5, grifo nosso).

As palavras do médico Maurício de Medeiros, citadas por Azevedo (1927), denunciavam claramente o quanto o trabalho podia "matar" a vida e a saúde dos "anônimos trabalhadores". Enfocaremos, ao longo do texto, experiências e percepções dos trabalhadores, acerca das suas condições de vida, trabalho e saúde, desde fins do século XIX até as primeiras décadas do século XX. Os trabalhadores, no período estudado, como pretendemos demonstrar, incluíam as más condições de trabalho como um dos pontos da sua agenda de angústias e reivindicações, o que, de certa forma, fundamentou a ação do Estado no pós-1930 (Almeida, 2004).

Em texto dedicado aos 'excluídos' da história (operários, mulheres e prisioneiros), Perrot (1988), ao analisar as diferentes percepções dos operários acerca da moradia ao longo dos séculos XIX e XX, aponta as necessidades sociais como historicamente construídas. Da mesma forma compreendemos as diferentes percepções operárias acerca da relação trabalho, saúde e doenças como necessidades sociais históricas.

Consideramos o movimento operário na Primeira República um palco marcante do processo de constituição da classe trabalhadora no Brasil, isto é, do seu viver e das suas experiências culturais (Gomes, 1988). Por este palco não harmônico, a palavra operária esteve com os próprios trabalhadores, os quais atuaram em grupos com diferentes propostas políticas, organizaram pequenas e grandes lutas e realizaram diversos congressos, encontros e manifestações. Concordamos com Cláudio Batalha quando este afirma que, "a despeito de todas as condições desfavoráveis e dos elementos de divisão e diferenciação da classe operária, a história da Primeira República permanece como um momento de extraordinária mobilização coletiva e de forte organização de classe" (Batalha, 2000, p. 14).

As experiências de organização dos trabalhadores nestas primeiras décadas do século XX resultaram em diversas tentativas de criação de partidos, de sindicatos e de agremiações operárias. Diferentes correntes e tendências, anarquistas e socialistas em especial, disputavam a direção de greves, manifestações e congressos. A imprensa operária distribuía uma razoável quantidade de periódicos, a maioria de curta existência. Buscando analisar elementos desta 'mobilização coletiva', tomamos os congressos, os partidos e os periódicos operários como importantes veículos de divulgação das percepções dos trabalhadores sobre as suas condições de trabalho, enfocando, no caso da nossa análise, a relação trabalho e saúde2.

Os trabalhadores tinham consciência dos possíveis danos que o trabalho podia causar à sua saúde? De que formas manifestavam tais percepções? Tinham propostas concretas? Apontavam responsáveis pelos danos à sua saúde? Estas e outras questões norteiam a análise de um breve conjunto de fontes do movimento operário que iniciamos a seguir.

Trabalho, saúde e doença nos partidos e congressos operários

O Partido Socialista Brasileiro, fundado em 1890 e dirigido por Luiz da França e Silva, apresentava no seu programa, entre outras questões, a reivindicação de habitações operárias mais higiênicas e a demanda pela organização de montepio dos operários para o amparo na doença, invalidez e velhice (Programa do Partido Socialista Brasileiro, 1890 apud CMSB, 1980). Apesar de demonstrar, de certa forma, atenção com a questão da doença e da invalidez, a proposta de "montepio dos operários" acabava por responsabilizar o próprio trabalhador pelo cuidado com a sua saúde e com a sua aposentadoria.

De forma diferente, o programa do Partido Operário Brasileiro de 1893, cuja plataforma fora discutida e aprovada durante o Congresso Operário Nacional de 1892, buscava responsabilizar o poder público e os empresários, além de apontar mais claramente a relação entre as condições de trabalho e a saúde dos trabalhadores. Entre outras reivindicações, o partido lutava pela garantia de subsistência aos menores desprotegidos e adultos inválidos, bem como pela responsabilização de governos e patrões pelos acidentes ocorridos durante o trabalho. Com relação ao tema da jornada de trabalho, pleiteava a fixação das oito horas de trabalho, a redução da jornada nas indústrias nocivas à saúde e o estabelecimento da jornada noturna de cinco horas. Mais diretamente vinculada às condições de trabalho, defendia-se a rigorosa inspeção higiênica nas fábricas, oficinas e estabelecimentos industriais públicos e privados (Programa do Partido Operário Brasileiro apud CMSB, 1980).

Como podemos observar, diferentemente da linha do Partido Socialista Brasileiro, que não responsabilizava diretamente o Estado e os patrões, o Partido Operário Brasileiro buscava responsabilizá-los diretamente pelos acidentes e pelas condições de trabalho, além de colocar em discussão temas mais específicos, como o trabalho de menores e a redução da jornada em indústrias insalubres.

Já o programa do Partido Operário Socialista, de 1895, reivindicava a proibição do trabalho às mulheres na indústria, quando este fosse considerado incompatível com a moral e a higiene. Caberia também a uma comissão eleita de operários introduzir, nos estabelecimentos industriais e nos ateliês, efetivas condições de higiene e segurança. Quanto aos acidentes de trabalho, estes seriam de responsabilidade dos patrões (Programa do Partido Operário Socialista apud CMSB, 1980). Cabe ressaltar alguns aspectos bastante diferenciados desta proposta com relação as já apresentadas: uma comissão eleita de operários como responsável pelas mudanças nas condições de trabalho, a proibição do trabalho das mulheres em função das condições de higiene e de "moral" e a responsabilização direta dos empresários pelos acidentes.

Como temos podido observar, os acidentes, as doenças e a invalidez, realidades que atingiam muito diretamente a um grande número de trabalhadores e que diziam respeito à sua sobrevivência - daí a importância de garantir a obrigatoriedade da assistência - , eram pontos centrais da agenda de reivindicações dos operários. Esta mesma agenda esteve presente nos debates ao longo 1 Congresso Operário, efetuado nos dias 15 a 20 de abril de 1906 no Rio de Janeiro3. A criação da Confederação Operária Brasileira foi a mais importante deliberação do congresso que, entre outras teses, aprovou a luta pela jornada de oito horas e pela prevenção dos danos causados à saúde pelas condições de trabalho. A tese dedicada ao tema dos acidentes no trabalho afirmava que:

"Considerando que o responsável dos acidentes no trabalho é sempre o patrão; e considerando que as leis decretadas em prol dos trabalhadores sobre esta matéria não têm nunca execução, são letra morta; o Congresso aconselha aos sindicatos que, sempre que qualquer desastre se verifique, eles arbitrem a indenização que o patrão deve pagar, forçando-o a isso pela ação direta. Para melhor prevenir tais acidentes devem os sindicatos participar aos patrões as deliberações tomadas pelo Congresso sobre este particular" (Resoluções do 1 Congresso Operário apud Pinheiro e Hall, 1979, p. 54).

No processo de organização do 2 Congresso Operário Brasileiro, de 1913, foi solicitado às associações operárias que fornecessem um relatório sobre as condições de vida e trabalho, especificando o aspecto das condições de higiene. O "Relatório do Sindicato dos Trabalhadores em Fábricas de Tecidos" apresentou uma descrição detalhada sobre as péssimas condições de higiene e de trabalho das fábricas:

"E quanto à higiene nas fábricas, é péssima, ou por outra não se conhece essa coisa chamada higiene, isso nas fábricas é uma hipótese. Imagine-se uma casa onde trabalham centenas de operários e que não tem janelas, o que acontece em quase todos, e se as tem não se abrem porque os patrões não querem que os seus escravos percam tempo a olhar para a rua; se o ar não estivesse impuro com o pó que necessariamente fazem as máquinas ao manufaturarem a fazenda, não seria tão prejudicial à saúde dos operários ainda que não fosse higiênico; mas com o ar viciado com o pó que a matéria prima expele ao ser manufaturada, e com a respiração de centenas de operários que acaba de envenenar pois que não se pode refazer, e junte-se a isso a sujidade da oficina que nunca foi lavada, e ainda mais as lançadeiras que os tecelões são obrigados a chupar" (Relatório do Sindicato dos Trabalhadores em Fábricas de Tecidos para o Segundo Congresso Operário Brasileiro apud Pinheiro e Hall, 1979, p. 137).

Superlotação, falta de janelas, janelas trancadas, operários-escravos, sujeira, ar impuro e "viciado" e uso das "lançadeiras de chupar"4: retratos claros e precisos da percepção destes trabalhadores do quanto eram precárias as condições de trabalho e de higiene responsáveis diretas pelo "envenenamento", pelas doenças e pelos acidentes que os acometiam.

Os debates neste 2 Congresso reafirmavam as decisões do congresso anterior com relação à redução da jornada de trabalho e aconselhavam as organizações a utilizarem-se de todos os meios na instrução dos trabalhadores acerca das questões de higiene e segurança do trabalho, como forma de conscientização para a luta por melhores condições de vida. Interessante observarmos que enfatizavam tanto a necessidade de criar organismos sindicais fortes, quanto o conhecimento sobre os temas de higiene e segurança do trabalho, como armas fundamentais na luta por melhores condições de trabalho e de vida (Relatório da Confederação Operária Brasileira apud Pinheiro e Hall, 1979).

Com relação ao segmento do movimento operário ligado à corrente trade-unionista, de orientação trabalhista, selecionamos as resoluções de um congresso operário realizado em 1912, o qual recebeu a denominação de 4 Congresso Operário Brasileiro5. O Congresso apresentou, entre suas resoluções, a questão da indenização das vítimas de acidentes de trabalho, o seguro aos trabalhadores contra prejuízos decorrentes de doenças e desocupações forçadas e a necessidade de habitações para operários e trabalhadores.

A principal resolução do congresso foi criar a Confederação Brasileira do Trabalho, a qual deveria lutar pela limitação do trabalho das mulheres e dos menores, pela proibição do trabalho aos menores de 14 anos, pelo estabelecimento de seguros obrigatórios contra doença, indenização para os acidentes de trabalho e redução da jornada de trabalho. A relação entre o excesso de trabalho e a deterioração da saúde esteve presente na fala dos congressistas:

"Longos horários de trabalho contribuem, de um modo preponderante, para diminuir a perfeição das obras pela depressão física e moral, oriunda do cansaço e, o que é mais importante, para debilitar e deteriorar o organismo dos trabalhadores, especialmente num país de clima quente e exaustivo como o Brasil" (Anais do 4 Congresso Operário Brasileiro apud Dacorso, 1987, p. 63).

Estava em foco a preocupação com o ´futuro da raça brasileira' e urgia que se cuidasse do corpo/saúde do operário. Inseria-se neste contexto a preocupação com a questão da jornada e também com o trabalho feminino e de menores, fatores que poderiam "deteriorar o organismo dos trabalhadores". Com relação às condições de trabalho, os participantes exigiam a melhoria das instalações: ambientes mais arejados e ventilados e mais seguros aos trabalhadores. Criticava-se a permanência do uso das lançadeiras de chupar, instrumento utilizado pelos tecelões e já condenado como anti-higiênico e transmissor de moléstias contagiosas.

A segurança no trabalho foi ainda objeto de análise mais detalhada nos Anais quando se discutiu a questão dos acidentes de trabalho. Criticava-se a preocupação maior dos capitalistas com as máquinas enquanto os operários ficavam sem receber assistência, e apresentava-se a seguinte resolução:

"A Comissão Central da Confederação Brasileira do Trabalho promoverá ativamente a decretação de uma lei que garanta às vítimas do trabalho uma pronta indenização que deverá ser suficiente para compensar, com a possível equidade, as perdas em dinheiro que a vítima venha sofrer e os sofrimentos conseqüentes do desastre quando, especialmente, se verifique a deformação ou a ruína permanente do organismo" (Anais do 4 Congresso Operário Brasileiro apud Dacorso, 1987, p. 65).

Mais uma vez aponta-se para a importância de garantir compensações frente aos "desastres", à "deformação" ou à "ruína dos organismos". De uma maneira geral, como observamos pelas resoluções dos congressos e pelas propostas dos partidos operários analisadas, esta era uma questão relevante para os trabalhadores: suas reivindicações pela diminuição da jornada de trabalho e por melhorias salariais estavam diretamente relacionadas com a defesa da própria saúde, na medida em que o trabalho poderia "arruinar", "deformar", deteriorar, adoecer o organismo.

Consideramos bastante ilustrativo desta percepção o seguinte trecho do já citado "Relatório do Sindicato dos Trabalhadores de Tecidos do Rio de Janeiro", quando do 2 Congresso Operário Brasileiro, em 1913:

"(...) os operários, para poder pagar suas despesas, são obrigados a privar-se do estritamente necessário, aniquilando-se pouco a pouco até morrer tuberculosos ou anêmicos por trabalhar mais do que permitem suas forças e comer menos do que exige o seu organismo" (Relatório do Sindicato dos Trabalhadores em Fábricas de Tecidos para o Segundo Congresso Operário Brasileiro apud Pinheiro e Hall, 1979, p. 137).

Este relatório resume, de forma bastante clara, as principais questões e reivindicações apresentadas pela maioria das fontes que analisamos até o momento: salários baixos, longas jornadas, péssimas condições de saúde e de higiene, ambientes insalubres, elementos que agiam diretamente na saúde do trabalhador, causando inúmeras doenças (tuberculose, anemias...) e acidentes. Passaremos agora a trabalhar com alguns textos publicados em jornais operários.

Trabalho, saúde e doença nos periódicos operários

Uma interessante análise que encontramos sobre a relação trabalho e saúde pelos próprios trabalhadores no período de 1890-1920 foi a pesquisa realizada por Wanda D'Acri Soares (1985), que utilizou, entre outras fontes, jornais e congressos operários. Concordamos com a argumentação central da autora de que a noção de saúde destes trabalhadores estava presente direta e indiretamente nas reivindicações por melhores condições de trabalho e de vida. A relação entre as precárias condições de trabalho e seu reflexo na saúde aparece de forma clara na fala destes operários:

"(...) vê-se por isto quão importante não é o problema da fadiga nas suas relações com a vida de trabalho do operário. Descobre-se a verdadeira causa da mortalidade precoce do trabalhador e dos acidentes de trabalho, no auto-envenenamento em que se encontra, resultante do excesso de trabalho" (A Voz do Trabalhador apud Soares, 1985, p. 43).

A imagem do auto-envenenamento é por si só bastante forte para expressar a percepção clara que estes trabalhadores tinham sobre os prejuízos que o excesso de trabalho e a fadiga advinda do mesmo causavam aos operários.

Outro estudo importante para a nossa pesquisa foi o de Leila Dacorso (1987) sobre a questão do infortúnio do trabalho na indústria têxtil no período da República Velha. Ao analisar as condições de trabalho nas fábricas de tecido e a ocorrência dos acidentes de trabalho, a autora destacou os problemas produzidos pelas poeiras tóxicas, pelo ambiente saturado, pela umidade, pelo adensamento de operários, pela jornada prolongada como os fatores que mais concorriam para o enfraquecimento progressivo das funções orgânicas dos operários, acarretando acidentes e doenças profissionais.

Dacorso recorreu a uma série de artigos da imprensa operária que destacavam as péssimas condições de trabalho e de saúde dos operários. Um desses artigos, publicado na Gazeta Operária, em 1902, terminava com a seguinte consideração: "(...) pois que apesar de tanto trabalharem, esses operários vivem quase sempre mal alimentados, mal vestidos e quando enfermos, a vida torna-se então, uma grande tortura" (Gazeta Operária apud Dacorso, 1987, p. 155).

Do ponto de vista dos trabalhadores, o foco da preocupação era a fragilidade da saúde em decorrência do trabalho e, nesse sentido, não havia distinção entre acidentes e doenças, mas sim o destaque para a perda da saúde. Os jornais denunciavam as péssimas condições de trabalho existentes, as longas jornadas, como no caso de um artigo do Correio da Manhã, de 1906, que dizia: "É sabido que o excesso de trabalho é prejudicial, deixa o organismo esfalfado e enfraquecido, preparando-o para a proliferação dos germes de todas as doenças" (Correio da Manhã apud Dacorso, 1987, p. 69).

Ao analisar a formação da indústria têxtil algodoeira em São Paulo, Maria Alice Rosa Ribeiro (1998) recorreu a um amplo conjunto de fontes, dentre as quais os periódicos operários. Ao descrever o ambiente fabril, a autora analisou artigos que denunciavam as condições insalubres a que estavam condenados, indicando o total desinteresse dos industriais em proteger a saúde do trabalhador. Reproduziremos aqui trecho de um artigo de 1905 do periódico La Battaglia, no qual buscam-se culpados pela deterioração da saúde do operário têxtil: "(...) o respirar toda poeira que se eleva na fábrica, que ataca e deteriora todo o sistema respiratório, que causa tuberculose a 10, 50 operários, quem direta ou indiretamente é responsável de tal desgraça?" (La Battaglia apud Ribeiro, 1998, p. 130).

Esta mesma "desgraça" tão comum aos operários têxteis também grassava entre outras categorias de trabalhadores, com destaque para tipógrafos e gráficos. Abordando as visões de mundo dos tipógrafos no Rio de Janeiro, no período de 1880-1920, Marialva Barbosa (1991) enfatizou o cotidiano e o universo de trabalho destes operários, utilizando diversos artigos acerca das condições de higiene das oficinas. Um dos objetivos principais da autora foi perceber de que forma as práticas do cotidiano fornecem os elementos indispensáveis para os tipógrafos pensarem-se como grupo.

Ao discutir de que forma o tema da higienização dos locais de trabalho estava presente no universo dos tipógrafos, Barbosa aponta que, em um primeiro momento, reivindicava-se um espaço claro e limpo, condizente com o novo ideal de progresso, mas já na década de 1910, a linha de argumentação do grupo passa a relacionar mais diretamente o acometimento por doenças à falta de higiene (Barbosa, 1991, p. 183). Dentre essas doenças, destacava-se a tuberculose, descrita pelos tipógrafos como a "implacável dizimadora", "a cruel enfermidade", objeto de diversas notas e artigos nos periódicos da categoria. Em artigo publicado em 1916, os tipógrafos criticam a ação pública e reivindicam políticas efetivas no campo da higiene e saúde dos trabalhadores:

"Quanto aos médicos da Higiene, nada falo, porque não os conheço, nunca os vi e nem sei se existem. E é assim que a tuberculose vem levando aos lares o desespero, o sofrimento e o luto e conduz as famílias à miséria. Enquanto não houver por parte do Governo uma ação eficaz, a tuberculose continuará ceifando lentamente um povo, que já por si é anêmico e acessível a todas as enfermidades" (O Gráfico apud Barbosa, 1991, p. 193).

Essas péssimas e insalubres condições de higiene que transformavam as gráficas, nas palavras dos operários, em "pocilgas", também foi alvo de críticas e denúncias da Associação Gráfica do Rio de Janeiro à Diretoria de Higiene Pública, em 1917:

"(...) é imensamente triste e vergonhoso que, na primeira cidade do país, existam oficinas que são verdadeiros ninhos ao bacilo de Koch, nesta cidade outrora tida como uma maravilha de higiene, recebendo do inesquecível Oswaldo Cruz, seu saneador, primeiro prêmio da Exposição realizada na Alemanha" (O Gráfico apud Barbosa, 1991, p. 193).

Crítica clara ao descaso do poder público com o combate à tuberculose e com as condições de trabalho nas oficinas, as falas dos tipógrafos demonstram acompanhar os acontecimentos do seu tempo, em especial nos campos da saúde pública e da ciência no país, vide as referências a Oswaldo Cruz, à Exposição na Alemanha e ao bacilo de Koch. Esses trabalhadores tinham um perfil muito mais claro de cobrar a solução dos poderes públicos e menos de buscar soluções de caráter mais interno, tal como vimos em algumas propostas dos têxteis que pensavam em criar grupos de operários responsáveis pelas condições de higiene ou que faziam as cobranças exclusivamente aos empresários.

Conclusão

Tomando o conjunto das fontes analisadas, podemos inferir que, mesmo com percepções e posicionamentos diversos, os trabalhadores percebiam que, em virtude das precárias condições de vida e de trabalho às quais estavam sujeitos, a doença e o acidente do trabalho não eram um acaso, algo fortuito, mas sim uma 'sina', uma resposta, conseqüência direta das péssimas condições de trabalho e, portanto, uma realidade passível de transformação.

A exteriorização da idéia da não saúde, dos acidentes e das doenças para além do indivíduo, relacionando-os com as condições de trabalho, foi parte do processo de formulação da idéia de percebê-los como uma "injustiça causada" que aumentava a miséria humana, como um fato social, como uma "necessidade historicamente construída" (ver Perrot, 1988) e não como um dado "natural". Eram determinadas condições de trabalho que causavam esses acidentes e doenças e, portanto, eles eram passíveis de serem evitados e, quando não fossem, os trabalhadores atingidos por esses danos deveriam ser "indenizados". Segundo Barrington Moore (1987, p. 30), "as percepções humanas do sofrimento e suas causas mudam historicamente junto com a capacidade de lidar com a miséria, capacidade esta que reflete recursos culturais, sociais e tecnológicos específicos".

É nesse sentido que buscamos trabalhar o processo de constituição dos saberes direcionados ao tema saúde/acidente/doença do trabalho. O fato dos acidentes, das doenças e das condições de trabalho tornarem-se objetos de discursos e de políticas indica-nos um processo anterior de desnaturalização desses problemas e de criação de demandas que buscavam evitá-los ou compensá-los (ver Thompson, 1984). Em outras palavras, era a percepção desses trabalhadores de que tais acidentes e doenças eram frutos de "injustiças" e não do destino que quisemos aqui ressaltar.

Notas

Referências bibliográficas

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  • PERROT, Michelle. 1988. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • PINHEIRO, Paulo Sérgio; HALL, Michael M. 1979. A classe operária no Brasil: 1889-1930 São Paulo: Editora Alfa-Omega. (v. 1: O movimento operário).
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  • THOMPSON, Edward P. 1984. Tradición, revuelta y conciencia de clase: estudios sobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelona: Crítica.
  • 1
    Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). <
  • 2
    É importante esclarecer que utilizaremos ao longo da nossa análise fontes primárias disponibilizadas ora em trabalhos de coletâneas de fontes (como, por exemplo, o livro de Pinheiro e Hall, 1979, ora em trabalhos de cunho analítico que reproduziram as fontes utilizadas (como a dissertação de mestrado de Dacorso, 1987).
  • 3
    A literatura que analisa o movimento operário no Brasil é unânime em reconhecer este congresso como um marco simbólico da ascensão dos anarquistas, os quais, mesmo considerando-se todas as oscilações ocorridas no movimento, foram a corrente dominante, no período de 1906 a 1919/20 (Gomes, 1988, p. 85).
  • 4
    "Lançadeira era uma ferramenta de tear que continha um cilindro pelo qual se passavam os fios. Nessa época, chamava-se 'lançadeira de chupar' em alusão à forma pela qual se acionava o seu movimento. Domingos Marques de Oliveira, médico da Fábrica Bangu, calculou que cada operário dava de 550 a 650 'chupões' diariamente. Cada operário manejava oito lançadeiras e estas mesmas eram usadas por outros operários. Além do desgaste pela natureza da operação, eram aspiradas poeiras de algodão. Antonino Ferrari, médico estudioso da questão, chamava-as de 'lançadeiras de matar'" (ver Nascimento, 2002, p. 47).
  • 5
    Os organizadores denominaram-no 4 Congresso Operário Brasileiro, dado que consideraram os congressos socialistas de 1892 e de 1902 como congressos trabalhistas e o 1 Congresso Operário de 1906 como o terceiro (ver Dulles, 1977, p. 31-32).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Out 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2006
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