Open-access DELIBERAÇÃO COLETIVA: UMA CONTRIBUIÇÃO CONTEMPORÂNEA DA BIOÉTICA BRASILEIRA PARA AS PRÁTICAS DO SUS

COLLECTIVE DELIBERATION: A CONTEMPORARY CONTRIBUTION OF BRAZILIAN BIOETHICS TO THE SUS' (UNIFIELD HEALTH SERVICE) PRACTICES

DELIBERACIÓN COLECTIVA: UNA CONTRIBUCIÓN CONTEMPORÁNEA DE LA BIOÉTICA BRASILEÑA PARA LAS PRÁCTICAS DEL SUS (SISTEMA ÚNICO DE SALUD)

Resumo

Este ensaio teve por objetivo analisar a necessidade de nova excelência profissional pautada na deliberação coletiva, debatendo a ética aplicada às questões de saúde nas experiências de Brasil e Espanha. O funcionamento prático dos comitês de bioética na Espanha avança na constituição do método deliberativo como participação coletiva na decisão profissional, discutindo a importância da democracia deliberativa para a construção de nova civilidade ética. No Brasil, após as primeiras décadas de construção do Sistema Único de Saúde, amplia-se o leque de participação dos profissionais, primeiramente nos conselhos de saúde e, com a resolução CNS n. 196/96, também nos comitês de ética em pesquisa envolvendo seres humanos, aprimorando novas ações afirmativas, de organização e comprometimento coletivo com ampliação da responsabilidade na construção e efetivação das políticas públicas. A deliberação ética adquire centralidade: a decisão profissional que era paternalista e privada em ato é, paulatinamente, ampliada como deliberação coletiva e socialmente ativa, o que sugere a necessidade de uma nova excelência profissional, além do meramente técnico e clínico-individual. A bioética brasileira adquire papel preponderante na transformação da excelência profissional pautada numa solidariedade crítica e no comprometimento com o público-social, em coletivos de deliberação que considerem a qualidade de vida da população.

Palavras-chave bioética; deliberação; excelência profissional; democracia deliberativa; solidariedade crítica

Abstract

This essay aimed to analyze the need for new professional excellence guided by collective deliberation, debating the ethics applied to health issues in the Brazilian and Spanish experiences. The practical functioning of the bioethics committees in Spain is making progress in constituting the deliberative method as collective participation in professional decisions, discussing the importance of deliberative democracy to build new ethical civility. In Brazil, after the first decades of the construction of the Unified Health System, the professionals’ participation has widened, primarily in the health councils and, with CNS resolution No. 196/96, also in the ethics committees for research involving human subjects, improving new affirmative, organization and collective commitment actions aiming to expand responsibility in the construction and execution of public policies. Ethical deliberation becomes a central feature: professional decisions that were paternalistic and private in act have gradually expanded to collective and socially active deliberation, suggesting the need for a new professional excellence, beyond the merely technical and clinical–individual one. Brazilian bioethics takes on a leading role in the transformation of professional excellence guided by critical solidarity and commitment to public-social matters in deliberation collectives that take the population's quality of life into account.

Keywords bioethics; deliberation; professional excellence; deliberative democracy; critical solidarity

Resumen

Este ensayo tuvo por objetivo analizar la necesidad de nueva excelencia profesional orientada en la deliberación colectiva, debatiendo la ética aplicada a las cuestiones de salud en las experiencias de Brasil y España. El funcionamiento práctico de los comités de bioética en España avanza en la constitución del método deliberativo como participación colectiva en la decisión profesional, discutiendo la importancia de la democracia deliberativa para la construcción de una nueva civilidad ética. En Brasil, tras las primeras décadas de construcción del Sistema Único de Salud, se amplía el abanico de participación de los profesionales, primeramente en los consejos de salud y, con la resolución CNS n. 196/96, también en los comités de ética en investigación involucrando seres humanos, mejorando nuevas acciones afirmativas, de organización y compromiso colectivo ampliando la responsabilidad de la construcción y concreción de las políticas públicas. La deliberación ética cobra centralidad: la decisión profesional que era paternalista y privada en los hechos, se amplía paulatinamente hacia una deliberación colectiva y socialmente activa, lo que sugiere la necesidad de una nueva excelencia profesional, más allá de lo meramente técnica y clínico individual. La bioética brasileña adquiere un papel preponderante en la transformación de la excelencia profesional orientada en una solidaridad crítica y en el compromiso con lo público y social, en colectivos de deliberación que consideren la calidad de vida de la población.

Palabras clave bioética; deliberación; excelencia profesional; democracia deliberativa; solidaridad crítica

Introdução

A garantia constitucional do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil foi guiada pelo ideal do ‘bem-estar social’. Entretanto, o movimento democrático que conquista a saúde como direito universal e dever do Estado acontece tardiamente, já nas décadas de 1970 e 1980, confrontando a construção do SUS, desde o princípio, à s políticas neoliberais de austeridade do Estado. Por meio das privatizações e do enxugamento da máquina estatal, acompanhados de insuficiente financiamento e dualidade de interesses público-privados, são estimulados o crescimento do mercado de planos e seguros de saúde e o financiamento público de serviços e assistência privada. Um cenário hegemonizado pelo modelo biomédico liberal de atenção à saúde que transgride a assistência e a gestão-administração públicas como referencial de qualidade, repercutindo como problema ético na consolidação do SUS (Gomes e Ramos, 2014).

O investimento num novo modus operandi na lógica das necessidades sociais como política de Estado, com primazia das tecnologias relacionais sobre as de maquinário em articulação com os avanços tecnológicos, acolhimento, melhoria dos ambientes de cuidado, condições de trabalho e cogestão dos profissionais, ocorre na última década, para transformar a qualidade desse atendimento público gratuito (Brasil, 2004). Na formação profissional, as mudanças efetuadas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) no final da década de 1990, incorporadas nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para os cursos da área da saúde na primeira década de 2000, estão voltadas à adequação do perfil profissional à s necessidades sociais. Com o sentido de formar recursos humanos para o SUS, são suscitadas novas competências profissionais, por meio das quais o estudante deve cultivar uma nova relação de atenção, confiança, respeito e cuidado para com o paciente/usuário e sua comunidade, atuando de acordo com princípios éticos na perspectiva da integralidade da atenção e assistência à saúde, desenvolvendo um senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania (Stella e Puccini, 2008). Entretanto, essa política pública humanizadora ainda permanece como desafio, pois novos modos intersubjetivos de saber e fazer exigem novo posicionamento ético-político do corpo acadêmico e profissional.

Um desafio que chama a bioética brasileira a ampliar as fronteiras da comunicabilidade com potencial epistemológico transformador com a saúde coletiva, com sentido de suplantar os procedimentos tipo biomédicos da perspectiva principialista — neutro e positivistas — que reduzem o objeto de estudo e métodos à relação clínica profissional-paciente ou pesquisador-participante da pesquisa. Para além desta perspectiva principialista considerada asséptica, individualizada, associada ao mercado e focada nas práticas curativas ou acessórias na regulação das falhas nos códigos deontológicos, procura-se assumir temas como: justiça, igualdade, equidade e vulnerabilidades sociais. A bioética brasileira, então, se transforma numa ética aplicada de perfil autóctone que se aproxima dos problemas concretos do cotidiano e da ação real das pessoas, passando a englobar a dimensão social da promoção e proteção à saúde da população. Trata-se de uma visão multidisciplinar sobre alocação de recursos, gerenciamento, financiamento e políticas públicas, além de uma dimensão subjetiva pautada nos direitos humanos, pluralidade moral e ação do Estado como garantidor de cidadania (Junges e Zoboli, 2012; Porto e Garrafa, 2011).

Apoiada na noção coletiva de pertencimento a uma mesma sociedade e em políticas cidadãs participativas que privilegiam a maioria, resultando o bem comum, a bioética basileira volta-se à retomada de conceitos como qualidade de vida, problematizando a relação sociedade-indivíduo e valorizando o sujeito como copartícipe do processo saúde-doença, com base em uma autonomia como princípio não absoluto, mas como possibilidade construída na relação clínico-sistêmica; na aliança interpessoas consideradas iguais em sua humanização; e no comprometimento profissional como beneficência alicerçada na solidariedade crítica para com o outro vulnerado (Gomes e Ramos, 2014). Ao deslocar o eixo do ato clínico para as necessidades/interesses sociais, encampa problemas como o comprometimento profissional; a relação entre deliberação na prática clínica, pluralismo moral e equipes de saúde; a adequação à realidade de atuação; e a competência ética, entre outros. Destaca, ainda, a centralidade da participação social em movimentos pela garantia dos direitos humanos; a inserção comunitária; a implementação de políticas afirmativas; a busca de empoderamento, libertação e emancipação autônoma; e a proteção do Estado (Junges e Zoboli, 2012; Porto e Garrafa, 2011).

Em realidades como a brasileira e a latino-americana, além de objetivar a educação permanente da ética e a possível avaliação coletiva da moralidade relacionada às intervenções na vida humana, a bioética é instigada a dar respostas aos conflitos morais advindos de políticas públicas — como as neoliberais — que aprofundam as imensas desigualdades sociais historicamente configuradas. Passa, então, a questionar a real contribuição dessa nova realidade de funcionamento prático do debate contemporâneo da ética para o melhoramento das práticas em saúde; a construção de uma ética cívica e de proteção ao outro vulnerado; o reforço da dialogicidade entre paciente/usuário-profissional-serviço de saúde; bem como o sentido mais amplo de proteção à própria existência humana e planetária.

Nesse novo enfoque são construídas outras formas de se compreender o debate bioético: bioética da proteção — advoga a importância do Estado protetor como garantia de qualidade de vida, priorizando os vulnerados como pessoas que não dispõem de meios que os capacitam para realizar sua vida, em que a equidade é percebida como condição sine qua non para efetivação do próprio princípio de justiça com alcance de igualdade (Schramm, 2008); bioética da intervenção — reconhece o conjunto social como campo legítimo de estudos e intervenção bioéticos, debatendo as relações de poder entre indivíduos, grupos e segmentos, e os padrões éticos que regulam tal relação (Porto e Garrafa, 2011); bioética clínica ampliada — nasce do insuficiente debate bioético voltado à atenção primária em saúde, em que se opera a densidade das relações intersubjetivas em contraposição à hegemonia do referencial principialista, voltado à assistência terciária e à biotecnologia (Zoboli, 2009).

Esse novo enfoque bioético social nascido da intersecção prática entre bioética e saúde coletiva desencadeia no Conselho Nacional de Saúde (CNS) a construção e a consolidação dos comitês de ética em pesquisa com seres humanos (CEPSHs), por meio da resolução CSN n. 196/1996, aperfeiçoada pela resolução CNS n. 466/2012. Tal enfoque representa um processo exitoso de mudança positiva do debate da ética na saúde, quando amplia a organização e a divulgação da produção científica e serve como mecanismo pedagógico e reflexivo (Brasil, 2014). No entanto, configura-se a necessidade de um avanço ainda maior na contribuição da bioética como prática aplicada em novos espaços deliberativos e organizacionais, na organização e consolidação de comitês clínico-assistenciais nos ambientes hospitalares e, também, numa ação coadjuvante à saúde coletiva na atenção primária à saúde. Ressalta-se, assim, a importância de processos de deliberação coletiva como potenciais espaços de transformação da excelência profissional, para incorporação do ético-político e do saber conviver a partir de uma solidariedade crítica e libertária, além do meramente técnico prescrito da tradicional relação clínico-individual.

Com o intuito de contribuir para o debate contemporâneo sobre a formação profissional, este ensaio procurou pautar uma análise crítica ao mesmo tempo construtiva das experiências na organização da saúde e do campo da bioética em países como Brasil e Espanha, observando a contribuição fundamental de bioeticistas espanhóis na consolidação do método deliberativo nas práticas em saúde, em especial por meio dos comitês de bioética. Ambos os países apresentam similaridades no que concerne ao caráter recente dos seus processos de redemocratização e nos marcos legais que fundaram seus sistemas públicos de saúde, uma vez que os dois seguiram o modelo da seguridade social, sendo comuns as diretrizes ético-filosóficas de universalidade, equidade e integralidade; e as diretrizes operacionais de descentralização, regionalização e participação social (Franco e Hernaez, 2013), bem como rápido crescimento, difusão e institucionalização da bioética.

Em âmbito nacional espanhol, foram fundados institutos, fundações, comissões e cátedras de bioética em diferentes universidades; websites e portais na internet de dimensão nacional voltados às questões bioéticas; além de associações de caráter regional ou autônomo e grupos de investigação em bioética. Nas diferentes comunidades, existem redes de comitês de ética para atenção sanitária e investigação clínica. Os diversos comitês clínico-assistenciais foram constituídos por meio de diferentes decretos desde 1993, respeitando a autonomia das comunidades, e abrangem assistência básica e hospitalar. São organizados nos ambientes hospitalares de cada distrito sanitário e englobam a atenção primária e a secundária. Já os comitês de ética em pesquisa (investigación clínica) foram estabelecidos a partir do Real Decreto n. 223/2004 e implementados autonomamente pelas diferentes comunidades (Comitê de Bioética…, 2011).

Trata-se de uma realidade de funcionamento prático dos comitês de bioética e de debate da ética aplicada à saúde que avança na constituição do método deliberativo como participação coletiva na decisão profissional e seu papel na construção de uma nova civilidade ética. Uma experiência de construção dos sistemas universais de saúde concomitante aos espaços de debate bioético em Brasil e Espanha que impulsiona a análise da deliberação coletiva como potencial construtora de nova excelência profissional, assim como da necessidade de uma nova excelência profissional voltada ao melhoramento ético das práticas em saúde.

A metodologia deliberativa na Espanha

Ao ser concebida a ideia dos comitês de bioética na Espanha, surge inevitavelmente a questão da participação coletiva e seu poder de decisão. A deliberação passa, então, a ser retomada como metodologia de reflexão e debate sobre problemas éticos, apontando um ‘que fazer’ num grupo de pessoas reunidas em ação prática e intersubjetiva para aprofundamento do estado ético de uma questão. Adota-se o caminho da problematização de possibilidades que fujam de extremos dilemáticos — alternativas ambíguas em dois polos distintos —, procurando identificar um curso ótimo recomendado de ação, em que pesam valores, condutas individuais e sociais. A deliberação como metodologia pode formular políticas de atuação de governos, normatizações e legislações ou, em se tratando de comitês para debate das questões de caráter ético-profissional, um leque de possibilidades para decisão profissional, baseadas em fatos médicos, bem como valores e deveres bioéticos de proteção ao paciente.

Ao recuperar modernamente a teoria aristotélica da deliberação, Diego Gracia (2011) aponta a deliberação moral sobre meios como necessária à realização dos fins — ‘bens em si’ possuidores de ‘valores intrínsecos’ —, ou seja, sobre características concretas da ação. Fugindo-se da ideia clássica que concebia princípios absolutos como leis morais de obrigado cumprimento, autoevidentes à mente humana e intuídos de modo imediato, constrói-se uma ética aplicada em direção ao dever real e efetivo como dever concreto, que não se identifica necessariamente com o dever idealmente puro. Uma forma de reflexão que quebra os pronunciamentos autoevidentes e absolutos à mente humana, de mais fácil execução por serem construídos como uma heteronomia moral que exige submissão e obediência, e que elege um caminho mais complexo, longo e difícil da autonomia humanamente construída e conquistada, como objeto central da ética aplicada e irrenunciável ao processo deliberativo.

Muito já se avançou no entendimento da deliberação como processo de argumentação em direção à prudência nas decisões, uma deliberação racionalmente consubstanciada que tem por objetivo determinar o que devemos fazer prudentemente, em situações concretas, em que o único juízo está na avaliação da situação. Uma prudência que pode ser entendida como saber conviver ou saber discutir sobre o que é bom e conveniente para viver bem em toda a plenitude, deliberando bem sobre um amplo leque de possibilidades práticas, analisando distintas alternativas possíveis consideradas entre o particular e o universal (Siurana-Aparisi, 2011). Um saber viver em comum educado e educando em um ambiente coletivo de deliberação, que segue os quatro pilares da educação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e é percebido como um dos maiores desafios da educação. Pois esse conviver que visa à participação e à cooperação para resolução de conflitos contradiz a prioridade dada no mundo moderno ao espírito de competição e sucesso individual para a ascensão profissional. Por meio do respeito mútuo como consequência da descoberta progressiva do outro, passa-se à valorização do que é comum e, consequentemente, transformam-se por meio da experiência e do prazer do esforço comum as tensões existentes em solidariedade (Cabral, 2007).

Segundo Diego Gracia (2011), uma deliberação coletiva que deve seguir passos distintos como metodologia:

  1. Num primeiro momento, faz-se a análise dos fatos, que no mundo moderno é tudo aquilo produzido por nossa atividade e os dados extraídos da ciência e da técnica, sempre mediados por múltiplos fatores educacionais, históricos, culturais e pessoais, o que não nos permite esgotá-los ou considerá-los de caráter absoluto — mesmo as proposições científicas —, pois cada pessoa reúne um ponto de vista único sobre cada fato. A deliberação assume, então, um caráter individual ao mesmo tempo que coletivo, em que o juízo dos fatos é caracteristicamente dialético, o que diminui a incerteza sobre seus limites de razoabilidade e prudência. Nesse sentido, parte-se primeiro da apresentação do caso para, depois, deliberar sobre os fatos do caso: diagnóstico (o que se passa), prognóstico (como vai evoluir) e tratamento (o que se pode fazer).

  2. Num segundo momento, se procura fazer a identificação dos valores como um momento autônomo da técnica, muito confundidos na modernidade com a própria técnica. Na tradição platônica, os valores são realidades objetivas que o ser humano tem que aceitar, evidentes por si mesmas, impositivas e beligerantes. No pluralismo, os valores não se devem impor, tampouco devem ser tolerados, mas sobre eles se deve deliberar, tanto individual quanto coletivamente, procurando se chegar a uma pactuação de normas públicas. Para tanto, se faz a identificação dos problemas morais do caso, a eleição do problema moral a discutir e a explicitação dos valores em conflito.

  3. No momento terceiro, acontece a deliberação propriamente moral, construída sobre a análise de valores e fatos. A deliberação sobre deveres sempre é uma decisão sobre o que se fará no futuro; assim, além de levar em conta fatos e valores, é necessário analisar as circunstâncias concretas em que se vai tomar a decisão (espaço e tempo) e fazer a previsão das consequências relevantes, pautando princípios morais universalizantes. Em perspectiva teleológica, o viver humano tem uma dimensão de fim em si e uma dimensão enriquecida na experiência cultural das diferentes tradições. Existem críticas filosóficas que perguntam não somente pelas condições das estruturas a priori do sujeito, como também pelas condições materiais e sociais que fazem possível ou impossível a vida digna, o respeito à s pessoas e o reino dos fins nos diferentes contextos:

    hoy ningún principio es primero em cuanto tal; solo es primero desde una determinada perspectiva que se adopte. La primacía de los principios es relativa a los contextos y a las metas individuales o sociales (Hortal, 2000, p. 110).

    Nesse ponto, deve-se levar em conta não somente os valores em jogo, mas também os conflitos entre eles, pois a opção por um curso extremo de ação leva à lesão completa do outro extremo oposto, e o que deveria ser um processo deliberativo se converte em uma discussão que impossibilita enxergar os cursos intermediários. Então deve-se identificar os cursos extremos de ação buscando os cursos intermediários (as possibilidades de atuação em cada momento), para se eleger um curso ótimo.
  4. O passo seguinte é provar a consistência da decisão por meio da prova de sua legalidade, publicidade e tempo.

Bioética social brasileira e democracia deliberativa

Como os referenciais bioéticos apontam para as exigências dos contextos em que se inserem — uma conjuntura de profunda desigualdade social e de falta de garantias mínimas de direitos humanos encontrada nos países em desenvolvimento como os latino-americanos —, proporcionam um campo fecundo para a construção da denominada bioética social brasileira. Trata-se de um amplo campo de debate da bioética que acaba por influenciar novas concepções de princípios bioéticos, muito além da bioética principialista, efetivando-os, especialmente, com a aprovação da Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos da Unesco, em 2005. Esse novo olhar bioético é conduzido por constitutivas solidário-libertárias que procuram contextualizar os problemas bioéticos onde eles ocorrem e numa ótica defensora dos direitos humanos e sociais, o que assume como características principais a justiça social e a cidadania, a equidade na efetivação das políticas públicas como a saúde e o reconhecimento da finitude dos recursos naturais (Helmann e Verdi, 2012).

O recente processo de redemocratização brasileiro tem significado uma constante batalha pela mudança de fatores socioculturais históricos, como falta de tradição participativa e cultura cívica, além de uma cultura política dominante de tradição autoritária e de Estado centralizador. A ampliação de espaços de participação democrática dos cidadãos e da sociedade civil organizada segue um sentido de concretização paulatina rumo à utopia de uma democracia participativa que vai além do formal e puramente representativo. Entretanto, ao se reposicionar a importância dos espaços coletivos de deliberação com perspectiva transformadora das práticas dos profissionais da saúde e da vida social em geral, percebe-se que o desempenho da participação desses atores tem sido dificultado por fragilidade do associativismo, problemas de comprometimento, impermeabilidade à participação e defesa de interesses corporativos e clientelistas (Oliveira, Ianni e Dallari, 2013).

Mesmo assim, amplia-se o leque de discussões e participações, mais propriamente nos conselhos de saúde e comitês de bioética, aprimorando novas ações afirmativas, de organização e comprometimento para aumentar a responsabilidade coletiva na construção e efetivação das políticas públicas — o que faz a deliberação coletiva sobre problemas éticos adquirir centralidade. A decisão profissional que era paternalista e privada em ato é paulatinamente amliada como deliberação coletiva e socialmente ativa, o que sugere a necessidade de uma nova excelência profissional, além do meramente técnico e clínico individual. Na procura por caminhos opostos ao modo de ser e agir contratual, a bioética amplifica o debate sobre a necessidade de nova dialogicidade que reconheça a reciprocidade entre seres dotados de competência comunicativa, pautada na ideia do comum como motor da ação; da responsabilidade na decisão que pressupõe necessidade de convencimento recíproco; e da atuação com sentido e legitimidade social.

Nesse ponto, a bioética brasileira adquire papel preponderante para transformação da excelência profissional em coletivos de deliberação pautados numa solidariedade crítica — que considere a qualidade de vida da população — e no comprometimento com o público-social. Em especial quando a potência criativa, participativa e dialógica de coletivos profissionais esbarra na condição pós-moderna de subjetivação e sociabilidade (Harvey, 2011), que nega a alteridade pelo narcísico individual e a solidariedade pela autossuficiência (Cortina, 2001). Uma condição que é acrescida, no Brasil e na América Latina, de um forte componente de desigualdade social que sustenta, na prática, um separatismo socioeconômico e cultural refletido na saúde como uma duplicidade de sistemas, para pobres e para ricos. Um separatismo naturalizado quotidianamente em relações instrumentais profissional-paciente hegemonizadas pelo ideal privatista e de mercado, pela fragmentação das especializações e novas tecnologias, hierarquias arraigadas e gerenciamentos que dificultam o espírito em equipe (Gomes e Ramos, 2015). Uma realidade sustentada num forte corporativismo, construído pelas categorias profissionais, em especial a categoria médica, que privilegia o capital em detrimento das reais necessidades da população e que desconsidera o outro diferente ou vulnerado como igual, e a si mesmo como sujeito-participativo-ativo de novos paradigmas democratizantes propostos pela bioética e saúde coletiva.

Guiados pelo desejo de identidade ou corporação, as comunidades profissionais desenvolveram, na sua origem, uma solidariedade grupal que pressupunha maior prestígio social e ascenso econômico, em que os próprios profissionais desenharam regras morais da profissão para evitar seguir, por meio dessas regras, interesses egoístas não solidários no sentido de manutenção do espaço comum e de elevação da moral da sociedade no seu conjunto. A profissão médica compartilhava, então, com o sacerdote e o jurista, um comprometimento identitário juramentado, que transcendia a profissão em si mesma: representava uma vocação que separava esse conjunto de profissionais do restante da sociedade. Pelo bem social grandioso e, ao mesmo tempo, divino, atribuído a essas três profissões, elas deveriam ser exercidas com excelência: busca por vencer a si mesmo na luta pela perfeição, como um comprometimento paternalista beneficente (Gracia, 2011).

Por meio dessa socialização é construída uma identidade que tradicionalmente diferencia profissão de ofício, mas que nas sociedades modernas perde a capacidade de gerar e fortalecer redes sociais e potencializar virtudes sociais de excelência, ante a mediocridade do burocratismo e da mera legalidade. Assim, a excelência moral acaba compreendida de forma hegemônica e distorcida como corporativismo: o entendimento da ética restrito à aplicação de um código condizente com a defesa corporativa, em que boas intenções e bons exemplos parecem suficientes para assegurar o caráter ético das ações profissionais. Uma mentalidade individualista associada ao paternalismo hipocrático, da excelência profissional como comprometimento beneficente, que ainda é apreendida desde a formação, mas que entra em crise como:

Descrédito social. Quando as corporações formam uma solidariedade grupal de defesa de privilégios ante a sociedade, a ética do dever ser perde espaço para relações dificilmente preenchidas por laços sociais fraternos e solidários, tornando-as presa fácil do corporativismo. Assim, são enfatizadas as responsabilidades profissionais com enfoque estritamente jurídico, ressaltando aspectos técnicos em detrimento dos humanos, o que acaba construindo sentimentos de desconfiança, insegurança e receio no restante da sociedade (Gracia, 2011).

Traço empresarial de compromisso. Tanto os ofícios como as profissões parecem imbuídos da busca de uma excelência com traço empresarial de compromisso, uma excelência associada ao saber-fazer técnico e competitivo, ‘necessária’ ao sucesso profissional e identificada com o capital, mais do que com o trabalho.

Perda da capacidade de compartilhamento de valores. Os coletivos profissionais resultantes do processo de divisão social do trabalho e especialização tecnocientífica perdem a capacidade de compartilhamento de valores sociais ligados a uma experiência comum — sindical, política ou profissional —, em especial na reestruturação produtiva, em que a fragmentação hiperindividualizante vulnerabiliza no trabalho e relativiza a ética (Gomes e Ramos, 2014).

Alteração de paradigmas. Mudanças no conceito de beneficência atestam alteração de paradigma, quando ampliam o sentido do respeito à autonomia do paciente e engajamento para alcançá-la, incluindo uma prática solidária de proteção e cálculo social que destaca a obrigação moral de agir em benefício de outros, quando estão em jogo necessidades/interesses sociais.

Novo enfoque da ética na formação. A incorporação dos princípios da Reforma Sanitária Brasileira e do SUS no ensino formal da ética. Para ultrapassar um dever ser deontológico em direção ao ser, em que o profissional assumiria uma postura ética vinculada à capacidade autônoma de percepção, reflexão crítica e decisão prudente com relação às condutas humanas, concorre com forte tendência à persistência de práticas arraigadas meramente legalistas e burocráticas, percebidas como resistência do corpo acadêmico e profissional às mudanças propostas (Finkler et al., 2010).

Na atualidade, o limite cada vez menos nítido entre profissão e ofício significa não somente a quebra da distinção aristocrática e religiosa das profissões, mas também o rebaixamento da identificação profissional com a responsabilidade moral, com perda evidente da identidade moral profissional, para algo como bem de consumo. A profissionalização passa a ser compreendida pelo senso comum como característica de um trabalhado qualificado ou possuidor de habilidades técnicas, encontrado igualmente nos ofícios, fugindo do ideal de compromisso forjado em longa e complexa formação, caracterizado por uma competência técnica e humana. A responsabilidade moral deixa de ter ampliado o seu caráter social, ao mesmo tempo que o corporativismo amplia certa impunidade jurídica em novos saberes e práticas, desencadeando complexos problemas morais que colocam em xeque a incapacidade de formulação da moral clássica deontológica, o que define a necessidade da bioética (Hortal, 2000).

A bioética brasileira, ao questionar o poder tanto nas relações entre profissionais e usuários da saúde quanto na dimensão social nos aspectos concernentes às políticas públicas destinadas a promover qualidade de vida, aponta valores de dimensão pública, coletiva e participativa, necessários à responsabilização e ao envolvimento do profissional com comunidades, sujeitos e processos. Ao repensarem o ato relacional-clínico profissional-paciente como ato de responsabilidade para com seus beneficiários diretos, os cidadãos, que desfrutam das decisões profissionais cotidianas ou sofrem com elas, apontam a necessidade de calibração nas consequências das decisões, em razão de uma meta social. Uma convivência com novo formato de participação democrática que, mesmo limitado ao espectro clínico-organizacional, pode fugir do meramente normativo, ampliando os interesses sociais como pauta na singularidade da relação profissional/paciente (Gomes e Ramos, 2014). Tal raciocínio desencadeia nova indagação: A deliberação coletiva pode existir dentro de uma concepção liberal de associativismo?

Um modelo de associativismo segundo a concepção liberal de pessoa descuida dos seus vínculos constitutivos quando ignora um sentido de identidade, em que os interesses dos indivíduos são estabelecidos nas suas relações com os outros, o que lhes vincula de forma estreita e profunda à comunidade a que pertencem. No associativismo liberal clássico ou neoliberal, a união e a cooperação em sociedade somente existem como possibilidade, quando os indivíduos não podem continuar vivendo sem a interferência dos outros, como se o ser humano pudesse existir como átomo social e o Estado pudesse funcionar de forma neutra, sem interferir na vida das pessoas, pautado numa concepção de bem e de justiça social (Mulhall e Swift, 1996).

O engajamento profissional na metodologia deliberativa nesse modelo neoliberal parece frustrante, quando é quotidianamente confrontado com uma ideologia que aposta na perda da cidadania e no interesse por instâncias participativas, impulsionando a substituição de uma ação pública pela defesa de interesses pessoais, no ambiente restrito da vida privada (Kottow, 2014). Trata-se de uma concepção ‘moderna’ e hegemônica de ser humano e de Estado mínimo que impõe restrições à saúde como direito, enfraquecendo a consolidação dos sistemas universais de saúde e a participação ativa dos cidadãos como seres sociais. O que significa pensar que não basta debater a metodologia deliberativa no formato coletivo-participativo como ideal, quando seus participantes, incluindo o profissional da saúde, devem se engajar coletivamente na construção de produtos ético-políticos singulares, ao mesmo tempo que socialmente comprometidos.

Ao seguir a concepção de democracia radical nos estados de bem-estar social defendida por Adela Cortina (2001), o ‘liberal’ estaria subsumido a uma dimensão pública, de convivência com outros, que seguiria a lógica da liberdade e da igualdade (autonomia e beneficência como máximos), em que o ser humano não estaria restrito somente ao âmbito do privado. A construção coletiva de mínimos morais garantiria esta convivência, pois enquanto o princípio da não maleficência é o elemento básico que assegura os mínimos na intervenção sanitária com sentido individual, o princípio da justiça reforça os mínimos na dimensão social (Grande, 2009, grifos nossos). São mínimos morais consubstanciados por uma unanimidade possível, quando se consideram todos como iguais — humanos —, contrapondo-se aos modernos máximos hedonistas.

Uma afirmativa que remete a uma segunda questão interligada: a democracia deliberativa seria a melhor via para resolução dos conflitos e tomada de decisões, pautada em mínimos morais, em contextos de extrema desigualdade socioeconômica e cultural, como no caso do Brasil e da América Latina, sem reproduzir um status quo injusto?

A crítica de que a democracia deliberativa como concepção formal, normativa de inclusão, participação e legitimação democrática, seria fechada, excludente e impraticável em contextos contemporâneos de desigualdade social estrutural injusta — e que, além disso, guardaria uma distância intransponível entre teoria deliberativa e práxis — deve ser trazida ao debate quando a bioética brasileira pauta a questão da solidariedade crítica e libertária. Haveria necessidade de um parâmetro mínimo de justiça social e igualdade como precondições à legitimidade dos procedimentos deliberativos para resultados justos?

As respostas parecem passar por uma conduta política que, guiada a um cenário de legitimidade deliberativa, não pode renunciar às manifestações e a outros meios estratégicos possivelmente considerados disruptivos para resolução dos problemas, tampouco perceber a deliberação como único meio de resolução de conflitos ético-políticos. Mesmo que a democracia deliberativa tenha como ideal mudanças fundamentais nas bases da tomada de decisão política, esse ideal continua requerendo condições políticas, sociais e econômicas mais igualitárias que as que existem em qualquer sociedade contemporânea — o que mantém a distância entre real e ideal em qualquer contexto dado, sem inviabilizar, necessariamente, a deliberação. Ao contrário, um comportamento cooperativo do coletivo em deliberação, assumindo caráter normativo não excludente, pode servir como critério de avaliação de contextos políticos estruturalmente injustos e excludentes, que conflituam com a justiça e a legitimidade dos procedimentos deliberativos coletivos e seus resultados. Nesse sentido, o ideal deliberativo se converte também em uma teoria avaliativa da própria democracia, expondo as estruturas sociais injustas que tornam contraproducente a instrumentação de esquemas deliberativos (Marey, 2012, grifos nossos).

Como o valor da deliberação como fenômeno social depende, em grande medida, do contexto social — da natureza do processo e dos seus participantes —, postula-se certa igualdade e autonomia aos participantes na tomada de decisões (não meramente formais), com uma comunicação deliberativa que possa neutralizar possível relação de dominação e hierarquia, para que não haja vulneração de direitos e interesses da cidadania como coletividade e, também, de qualquer minoria. Ao contrário, deve existir inclusão de suas vozes, pois o princípio normativo da política deliberativa se fundamenta na ideia de que democracia implica a participação efetiva de todos os afetados. A participação política deliberativa assume dever de civilidade e pode ser eficaz para se conseguir maior equidade social em contextos injustos, se fugir de uma concepção meramente descritiva da ação política — não normativa ou avaliativa —, o que exige, para tanto, uma ampla ideia de participação e capacidade de atuar ético-politicamente em contextos concretos (Marey, 2012).

No campo da saúde, buscar soluções para os problemas reais pautando a vontade comum, situado numa realidade histórica e vital de comunidades e pessoas, faz a ética assumir uma feição política, pois se torna ato de comprometimento e participação social ativa. Para Volnei Garrafa (2012), o controle democrático de todas as ações que sejam planejadas e executadas no campo da saúde torna-se indispensável. Assim, os bioeticistas comprometidos com a democracia e o direito à saúde como conquista social não devem incorporar o discurso ascético da despolitização dos conflitos morais; ao contrário, devem engajar-se numa ação capaz de transformar a práxis social, ficando explicitada a imprescindibilidade da bioética brasileira na transformação de paradigmas e na construção de nova excelência profissional. A participação cidadã precisa ser constantemente reinventada, em novas versões tanto dos comitês de bioética — que ampliem o debate clínico-organizativo no sentido público-social — quanto de educação prática do deliberativo-coletivo em equipes de saúde, pautado numa nova civilidade que sirva à sociedade de maneira geral.

Deliberação coletiva como práxis profissional

A deliberação sem relação única com a ética aplicada já acontece no campo individual, quando um sujeito projeta a ação, propondo e pesando, conectando e inter-relacionando as partes decompostas ou fatores que interferem nessa ação; do contrário, seria um ato instintivo, automático e inconsciente. A imaginação deliberativa é própria dos animais dotados de razão, diferenciando-se da imaginação sensitiva que existe também nos outros animais, por ser seletiva, valorativa, comparativa e discriminatória, segundo um cálculo prático de conjunto que aponta quais ações seriam mais indicadas para se chegar a um determinado fim. Deliberamos, então, não sobre os fins, mas sobre os meios que nos conduzem a esses fins (Cattanei, 2009).

A deliberação, ao antecipar e projetar uma ação, possibilita a adaptação humana e sua sobrevivência como espécie, mas significa, além de uma simples adaptação ao meio natural, uma responsabilidade, tendo em vista a consequência dessas ações, o que eleva os humanos a seres morais. Ao transformar a natureza por meio do trabalho, damos origem ao mundo da cultura. Assim, a deliberação não se pauta somente no egoísmo biológico como gerador do egoísmo moral, mas também no altruísmo, que considera em favor da espécie (Gracia, 2011).

Para o ser humano como ser social, o universo da compreensão e o da interpretação são essenciais à deliberação e sempre acontecem em comunidade, na comunicação com os outros. A lógica dialética (método) de primeiro apresentar o problema ou questão a tratar, seguido da formulação das objeções pelo defensor e dos contra-argumentos apresentados, com esgotamento de todos os argumentos, pode possibilitar a compreensão e a interpretação dos problemas com perspectiva de análise, discussão e posterior determinação do curso ótimo de ação. Esse marco de apresentação de prós e contras e de sintetização de assuntos relevantes faz uma aproximação problemática e não dilemática à bioética, em que o reconhecimento dos problemas morais e o de suas ambiguidades são tão significativos quanto sua própria resolução (Have, 2011).

Uma deliberação que segue uma estrutura lógica, mediante um raciocínio dialético não apoiado em verdades absolutas, mas em opiniões racionais — diferentes ou até mesmo opostas —, se converte em intercâmbio por meio do diálogo. Mesmo o monólogo, como um diálogo consigo mesmo, é atado à condição de sociabilidade do ser humano e tende a ser compartido, a ser transformado em coletivo. Entretanto, no coletivo, o diálogo pode alcançar toda a sua plenitude, e as decisões alimentadas pela interdisciplinaridade podem ser consideradas realmente prudentes. A deliberação coletiva alcança a perfeição ontológica, moral e lógica porque a vida propriamente humana não acontece fora de uma comunidade ou à sua margem. É no interior da comunidade que os indivíduos desenvolvem a sua humanidade e moralidade, possibilitando o discernimento sobre justiça e virtudes: “la deliberacion es por su propia naturaleza dialógica, y por ello mismo colectiva” (Gracia, 2011, p. 114).

No Brasil, a participação ativa dos profissionais em fóruns coletivos e públicos de debate e deliberação ético-política acontece como cerne do sistema de saúde, desde a carta constitucional de 1988, assumindo um sentido de descentralização da deliberação do âmbito meramente clínico-hospitalar para a área de políticas públicas, alocação de recursos, empoderamento social e atenção integral à saúde. Entretanto, uma das dificuldades da implantação da deliberação nas sociedades ocidentais modernas consideradas liberal-democráticas como a brasileira diz respeito ao grave problema relacionado à falta de cidadãos autônomos e responsáveis, em lugar de súditos normalizados, uma vez que segue imperando a ideia de que é correto o que se ajusta à lei e que um bom cidadão é o obediente a ela, não questionando, propriamente, a eticidade do agir e suas consequências (Gracia, 2011).

Os sistemas educacionais modernos não formam para a deliberação; ao contrário, ainda se educa para o triunfo, para sobressair sobre os demais, com um fanatismo e um narcisismo que sobrevalorizam sempre o ponto de vista desse indivíduo, de que suas ideias são as melhores e suas crenças e valores não devem ser contestados. Uma postura que, por princípio, anula o outro, não lhe concedendo ‘competência comunicativa’, que é um passo essencial à deliberação (Gracia, 2011). Ver os demais como seres humanos que vivem em sociedade ultrapassa a ideia dos outros como objetos, o que propõe uma nova educação para a cidadania. Quando a imaginação, a criatividade e o pensamento crítico perdem terreno para o fomento de capacidades utilitaristas e práticas voltadas à geração de renda a curto prazo (empreendedorismo), constrói-se uma crise educacional que pode significar uma crise da própria democracia (Naussbaum, 2012).

Ao ampliar ainda mais esse fosso educacional, o Brasil não incluiu o conteúdo bioético nos currículos dos ensinos fundamental e médio, nem em muitos casos no ensino superior, como preconizado pelo artigo 23 da Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos da Unesco:

com vista a promover os princípios enunciados na presente Declaração e assegurar uma melhor compreensão das implicações éticas dos progressos científicos e tecnológicos, em particular entre os jovens, os Estados devem esforçar-se por fomentar a educação e a formação em matéria de bioética a todos os níveis, e estimular os programas de informação e de difusão dos conhecimentos relativos à bioética (Unesco, 2005).

Acresce-se a essa realidade educacional no Brasil a ascensão social como desigualdade: os seres humanos não são considerados em suas relações de igualdade uns com os outros, mas separados e cada vez mais segregados por aquilo que têm, tornando ainda mais crucial ao profissional da saúde a construção de uma autonomia moral condizente com a deliberação. Questões como hierarquia e desigualdade de classe acabam assumindo relevância na educação em saúde, pois a busca da unanimidade para definição de um curso ótimo de ação na metodologia deliberativa não pode se dar num ambiente onde ainda são enaltecidas posturas profissionais centralizadoras e autoritárias, que assumem feitio corporativo ligado ao capital. O conflito entre o velho e o novo modo de entender a ética, pautado na interdisciplinaridade como forma de produção coletiva e solidária, ainda persiste, ancorado em um saber/poder instituído para ganho pessoal, corporativo ou empresarial, reprodutor de uma ideologia da ética restrita e de mercado, como um código predefinido ao qual o profissional se submete.

Uma discriminação negativa das populações que não podem pagar pela saúde conforme o modelo liberal de atenção, configurada no tratamento desigual profissional-paciente/usuário e na diferença no acesso e decisões, mesmo coletivas, transparece na cultura perpetuada na saúde de que a vida de uns adquire mais valor que a vida de outros. Trata-se de uma discriminação negativa camuflada pelo caráter formal e abstrato do direito legalista que marca como estigma, numa instrumentalização da alteridade convertida em fator de exclusão, o que contradiz os princípios democráticos e republicanos de cidadania. Novos guetos, quase imperceptíveis à primeira vista, solidificam uma divisão entre categorias da população, em que os excluídos se encontram completamente apartados do jogo social porque não têm direitos, atributos e recursos necessários reais e efetivos para participar da vida coletiva. Formalmente há uma cidadania para todos, entretanto, a pobreza material acompanhada de uma identidade cultural irreal de classe média possuidora mantém e enaltece um tratamento diferenciado que desqualifica o outro e qualquer relação (Castel, 2010).

Em sentido contrário, o controle do próprio inconsciente e do narcisismo, acompanhado de uma capacidade reflexiva, possibilita ao profissional assumir uma postura de humildade intelectual e comprometimento social ante as desigualdades socioeconômicas e singularidades relacionais — individuais e coletivas. Isso evidencia, cada vez mais, a necessidade de o ensino universitário formar o aluno para reflexão crítica e autocrítica, com a compreensão ética sobre a realidade instituída e novas formas de existência coletiva e cidadã, quando a decisão profissional de engajamento na construção de instâncias deliberativo-participativas e o tipo de engajamento ao qual esse profissional está disposto a fazer transformam-se numa decisão ético-política que incrementa a pauta da bioética brasileira. A racionalidade instrumental heterônoma que camufla relações de saber-poder ainda hegemônicas na biomedicina precisa ser superada por uma postura profissional que possibilite a transformação de si mesmo e do mundo, não pelo caminho da simulação ou coerção, mas como comunidade de deliberação que busque condições justas de cooperação, numa atitude favorável a uma interação construtiva entre pessoas.

Trata-se de uma necessidade que se reflete como possibilidade em mudanças nos processos educacionais, iniciada na implantação de novos projetos políticos pedagógicos nos cursos da saúde a partir das DCNs de 2002, que preconizam a articulação das transformações do modelo de atenção à saúde com a formação profissional num sentido público prioritário. Aliadas às propostas do Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde) e do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), do Ministério da Saúde, as mudanças vão no sentido de uma excelência profissional que abarque o aprimoramento ético-humanístico dos estudantes. Apesar desse esforço, a formação ética dos profissionais da saúde ainda clama pelo ensino da bioética nos novos currículos e por uma formação no serviço para a construção de uma ética civil que valorize os direitos humanos com liberdade, igualdade e solidariedade, pautado no diálogo e na participação social como o melhor meio de lidar com os conflitos morais (Finkler et al., 2010).

A necessidade de competência ética acaba se entrelaçando com a competência deliberativa na ideia de que a discussão política e a prática democrática devem conviver juntas no ensino universitário e não ser mantidas fora da universidade, como preconiza o pensamento ainda hegemônico do meramente técnico. Para se viver numa democracia com busca de ampliação dos espaços democráticos, se requer praticar a democracia — uma prática democrática que pode e deve ser estimulada na formação universitária, desenvolvendo capacidades para lidar com as diferenças, dialogar, ouvir o outro, reconhecendo o direito do outro de ser e pensar de acordo com suas convicções. Trata-se de uma mudança paradigmática da formação profissional que significa romper com a lógica da memorização, conhecimento fragmentado e separação entre teoria e prática no desenvolvimento de uma competência ética e deliberativa, que requer novos mecanismos de socialização profissional, interativos e participativos. Desenvolver no aluno atitudes e valores orientados para a cidadania — consciência crítica, autonomia e consciência social — significa uma educação libertadora, em ações concretas para a construção de nova excelência técnico-humanizada (Rego, 2009).

Nesse sentido, o debate bioético sobre situações reais do cotidiano profissional ou temas transversais vividos pela sociedade parece ser mais eficaz do que o ensino baseado em hipóteses dilemáticas estanques, absorvidas da literatura (Finkler et. al., 2010). Elma Zoboli (2013) aponta que o desenvolvimento de hábitos, habilidades e competências deliberativas se torna importante instrumento da bioética clínica, fundamental para o aumento da qualidade da atenção à saúde, vista a deliberação como um “meio de discussões e decisões feitas por um diálogo interpessoal que visa soluções pendentes e não a decisão ideal certa ou que maximiza resultados” (Zoboli, 2013, p. 393). Para tanto, seria necessário incorporar essa competência deliberativa por meio de uma formação contínua dos profissionais, com uma nova abordagem pluralista da ética. O formato de cursos e disciplinas pautados nas teorias éticas, valores e princípios na atitude profissional em relação com usuários e equipe desperta, além do contexto técnico, uma capacidade clínico-reflexiva do profissional, incluindo os âmbitos ético e político (Zoboli e Soares, 2012).

Dois sentidos assumidos pela bioética acompanham a democracia deliberativa: quando se coloca além de uma ferramenta para resolver conflitos relacionados à saúde e à vida, como reflexão racional transformada em ética civil, com melhora da comunicação coletiva na busca de soluções transpostas ao interesse de todos e em consideração aos vulnerados, o que faz trespassar no debate de mínimos morais a questão do poder, desigualdade e política; e num sentido clínico, no desenvolvimento das capacidades dialógicas e narrativas: capacidade linguística e interpretativa, para entender o relato do paciente; capacidade crítica, para situar as ações dentro de um marco mais amplo de sentido; capacidade reflexiva, para considerar e valorizar as múltiplas narrativas; e capacidade de comunicação, para escutar, expressar e negociar no terreno da relação clínica (empatia, observação e outras capacidades interpessoais) (Moratalla e Grande, 2013).

A perspectiva narrativa que considera a igualdade-identidade humana com base nos relatos de uma história particular, concreta e singular, e não redutora da dimensão política — que tem a ver com o discurso e o intercâmbio de opiniões em um espaço público comum —, possibilita articular universalidade, cultura e comunidade sem prescindir da defesa dos direitos dos mais vulneráveis por questões socioeconômicas, de enfermidade ou gênero. Assim, a ética não está limitada aos mínimos, em uma perspectiva de obrigações legais, mas tem que se referir também aos máximos numa perspectiva singular de vida, acordando um equilíbrio entre ambos. A atenção ao relato do paciente desde a sua própria vivência contextualizada promove uma versão mais humanizadora da prática com construção de sentidos, que não significa somente explicitar valores, mas promovê-los, difundi-los, configurá-los (Moratalla e Grande, 2013).

Um diálogo verdadeiramente significativo na relação profissional-paciente/usuário-comunidade e entre profissionais da saúde, experts de diversos campos éticos, juristas, teólogos e público afetado, constitui um papel conceitual-estratégico, intersubjetivo e cooperativo das deliberações bioéticas. A unanimidade sugerida nas deliberações como mínimos morais compartidos em direção, também, aos máximos conforme as singularidades relatadas transforma a ação e a interação dos sujeitos que deliberam num problema de primeira magnitude, pois muitos dos ganhos intelectuais e práticos dessa deliberação se devem às tarefas desenvolvidas por esses sujeitos (Cortina, 2003). Assim, a construção de um diálogo em espaços de reunião e deliberação tem que ser assumida como nova postura profissional. Trata-se de uma nova excelência pautada numa práxis solidária diferenciada, voltada à ação e reflexão qualificada na utopia da justiça social e no autogoverno do profissional em seu processo de trabalho vivo, intelectual e artesanal, ao mesmo tempo que intersubjetivo-relacional e coletivo-social.

Construindo uma nova excelência profissional no e para o serviço

O desenvolvimento dessa excelência deliberativa como nova excelência profissional sugere para a educação em saúde a necessidade de a formação fazer-se na e além da sala de aula, engajando o estudante e o profissional em serviço numa participação efetiva em fóruns de debate bioéticos, democráticos e cidadãos, para que de maneira prática seja significativo o comprometimento ético dos profissionais com o público, o coletivo e o social. Em via de mão dupla, a capacitação para a deliberação bioética no ensino formal é fundamental para o aperfeiçoamento da democracia, ao mesmo tempo que a participação cidadã efetiva em fóruns bioéticos de deliberação coletiva é significativa para a formação profissional.

Autores como Guedert (2012), Zoboli (2013), Junges e colaboradores (2014), Gomes e Ramos (2014), Vidal e colaboradores (2014), Zoboli e Soares (2012) têm problematizado a questão da ética no cotidiano de trabalho dos profissionais que atuam no SUS, apontando a necessidade de novos espaços de debate bioético para a construção de uma nova prática mais humana e cidadã, tanto nos ambientes hospitalares quanto na atenção primária-saúde da família. Ao se considerar a relação entre qualidade e financiamento-gestão do sistema, a elucidação dos problemas éticos nas práticas do SUS pode ser problematizada: nas relações ético-políticas da intersetorialidade estruturagestão do sistema (organização); nas relações entre os profissionais/trabalhadores e usuários da saúde (profissional-usuário/comunidade); e nas relações no âmago da equipe de saúde (interprofissionais/trabalhadores). Indica-se assim que novos espaços bioéticos de educação permanente são necessários para dirimir dificuldades teóricas e práticas, removendo-os da sua invisibilidade ao conjunto dos profissionais. Tal raciocínio nos leva a questionar se a bioética brasileira pode efetivar o debate de problemas crônicos das práticas em saúde do SUS sem passar pela deliberação coletiva em novos formatos de comitês atrelados às equipes de saúde; sem envolver o corpo de pacientes/usuários e profissionais/trabalhadores no debate bioético voltado à qualidade nas práticas cotidianas e administração-gestão do SUS; e sem conceber a deliberação em coletivos, quando a formação ainda está aquém do desenvolvimento de capacidades dialógicas e deliberativas.

O fortalecimento de ações e associações da sociedade civil como fonte de moralização social e de novos espaços dialógico-relacionais-interdisciplinares mantém a ética como utopia de um novo sujeito-profissional. O processo contemporâneo crescente de hiperindividualização, indiferença e dessolidarização social precisa ser quotidianamente combatido por uma prática deliberativa como formação bioética continuada, pautada na solidariedade crítica, na equidade como disposição de reconhecer igualmente o direito de cada um com base em suas diferenças, e na ação democrática participativo-ativa, em uma concepção de saúde e justiça como direito social. Nesse sentido, as deliberações coletivas no formato dos comitês, conselhos ou equipes de saúde podem adquirir importância não somente como espaços de debate e deliberação ética, mas também como movimento de transformação das práticas dos profissionais e suas excelências.

A construção de espaços bioéticos que perpassam a clínica como publicização real de problemas éticos na relação profissional-paciente-comunidade — até então privada em ato — e a formação permanente na práxis pública e coletiva podem potencializar valores como a solidariedade crítica e a cooperação entre indivíduos e grupos sociais, demonstrando a capacidade humana de transcender e superar interesses particulares e egoístas, por um indivíduo como ser-sujeito social. Certamente, a decisão de deliberar coletivamente contradiz a tese de que a motivação ética se reduz ao cálculo estreito das vantagens e benefícios pessoais, reposicionando uma visão amplificada de moralidade com sentido de pertencimento coletivo-social, o que supera a moralidade como mera consciência individual (Vázquez, 2007).

Uma nova excelência profissional pautada na metodologia de deliberação coletiva chama a bioética brasileira a assumir seu papel protagonista no debate da ética na formação permanente do profissional da saúde. As experiências em processos deliberativos podem ser transformadas em ferramenta pedagógica, prática que amplia o sentido de justiça social e da proteção ao outro vulnerado, transpondo as fronteiras da relação profissional-paciente/usuário pelo sentido indivíduo-todo. Uma práxis e uma moralidade em que está em jogo a responsabilidade pelas consequências das decisões morais, reposicionando o profissional como agente de mudança nas suas relações com o mundo, mediante novas lealdades aos sujeitos do diálogo, reforçadas por laços entre humanos como pessoas em coletivo e comunidade.

A prática da deliberação faz o indivíduo adquirir o hábito e a consciência de qualidades de caráter necessárias para deliberar, especialmente sendo uma forma de agir que rompe paradigmas estabelecidos. Revitalizar as profissões a partir de um novo profissional que compete consigo mesmo para oferecer uma produção de qualidade em saúde, sem se conformar com a postura medíocre de apenas fugir de acusações legais de negligência e sem se limitar à burocracia, mantendo um compromisso fundamental de benefício com pessoas, respeitando a autonomia dos afetados pelas decisões a partir da solidariedade e responsabilidade (Cortina, 2001), sustentando novo horizonte relacional: com o cidadão usuário dos serviços de saúde, a sociedade e, principalmente, interpares e interdisciplinar.

No diálogo intercoletivo, as possíveis mudanças individuais conseguidas por meio do esforço empregado para a compreensão dos diferentes argumentos, pautada numa vontade de entendimento para a busca de possíveis soluções razoáveis do conflito, auxilia na construção de uma relação mais humana de respeito e escuta recíprocos e enriquece os participantes da deliberação, ao mesmo tempo que os transforma. Posturas arrogantes, centralizadoras e hierárquicas na relação com outras profissões e cidadãos, como acontece ainda de forma hegemônica na atualidade, devem ser ultrapassadas pelo comprometimento com o diálogo-relacional de troca e construção de novos saberes como produtos de cooperação solidária.

Na deliberação coletiva, a excelência e as competências profissionais devem ser afirmadas deixando-se de lado o medo da decisão em conjunto. A formação do profissional além dos conhecimentos teóricos e habilidades técnicas não pode exilá-lo na própria especialidade, mas deve ser capaz de relacionar umas ciências às outras, contribuindo para a humanização de todos. Se realmente seguras, as diferentes posições e visões não competem entre si, porém passam a se respeitar como iguais na diferença e a assumir uma postura de acordo e cooperação para a proteção do paciente e construção do bem comum. A argumentação dialética, ao exilar a facilidade das certezas absolutas, constrói a autonomia e a responsabilidade necessárias à deliberação, o que torna tão mais difícil atuar sob argumentos dialéticos. Se as condições de incerteza que ocupam o lugar do absoluto são mal manejadas, elas podem gerar angústias como sentimentos inconscientes que, por sua vez, repercutem como mecanismos de defesa de negação, agressão etc., configurando uma postura que impossibilita a deliberação. Por isso é fundamental ter o inconsciente oxigenado, um treinamento e exercícios de autocrítica aos próprios valores e crenças, com enfrentamento das próprias debilidades argumentativas (Gracia, 2011).

O esforço do exercício coletivo antes do/e de forma permanente no serviço requer a construção, a reconstrução e a valorização dos espaços de debate bioético nas práticas de saúde e o desenvolvimento de estratégias de educação deliberativa com participação ativa, possibilitando a incorporação de habilidades de intervenção por parte do profissional. Ao se considerar a interlocução de sujeitos autônomos e participativos, mas também realidades socialmente condicionadas e vulnerabilidades estabelecidas, são colocados em xeque o formato hegemônico da formação bancária e voltada ao mercado, e a postura hostil ou indiferente de profissionais à existência dessas instâncias coletivas de deliberação. Conselhos, equipes de saúde e novos formatos de comitês de bioética se transformam em espaços de aperfeiçoamento profissional, de conhecimentos e técnicas de domínios profissionais diferenciados e de satisfação de mínimos morais na construção de vínculos sociais e comunicação (inter-)humanizante, com sentido de aproximação possível aos máximos singulares. Profissionais que alimentam a intercomunicação em saúde se autoalimentam da intersubjetividade para uma excelência moral solidária e crítica.

Considerações finais

A bioética brasileira precisa se debruçar de forma transformadora sobre os problemas éticos do cotidiano do trabalho em saúde, na relação profissional-paciente, na interprofissional/trabalhador ou numa forma mais ampla inclusiva da gestão-administração do sistema, na busca por qualidade de vida relacionada à qualidade na atenção à saúde. Uma possibilidade de mudança de postura do profissional no sentido de uma deliberação a partir de uma convivência coletiva parece passar pela configuração de uma nova excelência profissional que englobe a solidariedade crítica e o comprometimento com o outro em novas formas (conselhos, comitês e equipes de saúde), rompendo hierarquias arraigadas pela biomedicina, separatismos de classe e interesses privados sobrepostos aos públicos.

Reconstruir permanente e quotidianamente uma ética civil, considerada laica e com respeito aos direitos humanos, que valorize a liberdade, a igualdade, a solidariedade crítica e que negue a intolerância e a tolerância passiva, significa uma ética alicerçada na competência deliberativa como meio de se lidar com os conflitos morais. O que nos aponta como desafios na formação:

  • incorporação dos conteúdos bioéticos pelas escolas brasileiras no ensino fundamental e médio, e ampliação da disciplina de bioética nos novos currículos acadêmicos, como uma abordagem inter e transdisciplinar para resolução de problemas éticos cotidianos;

  • ampliação do potencial dos comitês de bioética existentes e em construção, reforçando a dialogicidade entre profissional-paciente/usuário-comunidade-serviço de saúde-sociedade;

  • fomento de novos comitês clínico-organizacionais na atenção primária e estímulo à deliberação coletiva como método incorporado aos debates de problemas éticos nas equipes de saúde, para ampliação do debate bioético no sistema público de saúde brasileiro. São alternativas para deliberações sobre conflitos éticos vivenciados pelo profissional tanto na clínica quanto na organização do sistema e em espaços de deliberação coletiva, com sentido mais amplo de formação sobre princípios de justiça e de proteção ao indivíduo, à sociedade e à própria existência humana e planetária.

  • contribuição prática do método deliberativo para a construção de uma nova excelência profissional técnico-humanizada junto à formação acadêmica e em novas realidades e práticas de trabalho, direcionada a soluções transformadoras por qualidade de vida, saúde e civilidade ética e num movimento contra-hegemônico ante as injunções individualizantes do modelo contemporâneo de uma sociedade atomizada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2017
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2015
  • Aceito
    11 Maio 2016
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