Open-access O SENTIDO DE COMUNIDADE EM UMA EQUIPE MULTIPROFISSIONAL HOSPITALAR: HIERARQUIA, INDIVIDUALISMO, CONFLITO

THE MEANING OF COMMUNITY IN A MULTIPROFESSIONAL HOSPITAL TEAM: HIERARCHY, INDIVIDUALISM, CONFLICT

EL SENTIDO DE COMUNIDAD EN UN EQUIPO MULTIDISCIPLINARIO HOSPITALARIO: JERARQUÍA, INDIVIDUALISMO, CONFLICTO

Resumo

A trajetória profissional ocupa espaço significativo na vida das pessoas na atualidade. Com base nesta premissa, procurou-se compreender o sentido de comunidade no contexto de trabalho de uma equipe multiprofissional hospitalar. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, realizada por meio de entrevistas semiestruturadas, das quais participaram oito profissionais do ambulatório de hematologia e oncologia pediátrica de um hospital público do sul do Brasil, de abril a junho de 2015. As entrevistas foram analisadas à luz das Práticas Discursivas. Estabeleceram-se quatro categorias, decorrentes dos componentes teóricos do sentido de comunidade. Os resultados indicam que os elementos pertencimento; influência; integração e satisfação das necessidades; e ligações emocionais compartilhadas estavam presentes nos discursos da equipe. Houve proximidade entre as narrativas das participantes e o conceito de comunidade para a caracterização do contexto de trabalho e das relações desenvolvidas. Contudo, também foram notados indícios de tensionamento hierárquico nas relações, a valorização de práticas individualistas, o conflito não externalizado e a dificuldade de lidar com as diferenças. Conclui-se que há necessidade de maior investimento na valorização e integração dos diferentes profissionais implicados no processo de promoção de saúde e no fomento do sentido de comunidade nas equipes hospitalares.

sentido de comunidade; promoção da saúde; saúde ocupacional

Abstract

The career path plays a significant role in the lives of people nowadays. Based on this premise, we sought to understand the meaning of community in the work context of a multiprofessional hospital team. The qualitative research was conducted through semi-structured interviews with eight professionals of the outpatient hematology and pediatric oncology services at a public hospital in the Southern region of Brazil, from April to June 2015. The interviews were analysed using Discursive Practices. We established four categories, which originated from the theoretical components of the meaning of community. The results indicate that the elements of belonging; influence; integration and satisfaction of needs; and shared emotional bonds were present in the discourses of the team. There was a proximity among the narratives of the participants and the concept of community in order to characterize the contexts of the work and of the relationships developed. However, we also noticed signs of hierarchical tensions in the relationships, the validation of individualist practices, non-externalized conflicts, and the difficulty to deal with differences. We concluded that there is a need for higher investments in the validation and integration of the different professionals implicated in the process of promotion of health and of the meaning of community among Brazilian teams.

meaning of community; promotion of health; occupational health

Resumen

La trayectoria profesional ocupa un espacio significativo en la vida de las personas en la actualidad. Con base en esta premisa, se buscó comprender el sentido de comunidad en el contexto de trabajo de un equipo multidisciplinario hospitalario. Se trata de una investigación cualitativa, realizada por medio de entrevistas semiestructuradas, de las cuales participaron ocho profesionales del servicio de hematología y oncología pediátrica de un hospital público del sur de Brasil, entre abril y junio del 2015. Las entrevistas se analizaron a la luz de las Prácticas Discursivas. Se establecieron cuatro categorías, derivadas de los componentes teóricos del sentido de comunidad. Los resultados indican que los elementos pertenencia; influencia; integración y satisfacción de las necesidades; y vínculos emocionales compartidos, estaban presentes en los discursos del equipo. Se constató semejanza entre los relatos de los participantes y el concepto de comunidad para la caracterización del contexto de trabajo y las relaciones desarrolladas. Sin embargo, también se observaron indicios de tensión en las relaciones jerárquicas, la valoración de prácticas individualistas, el conflicto no exteriorizado y dificultad de lidiar con las diferencias. Se concluyó que es necesario invertir con más fuerza en la valoración e integración de los diferentes profesionales involucrados en el proceso de promoción de la salud y en el fomento del sentido de comunidad en los equipos hospitalarios.

sentido de comunidad; promoción de la salud; salud ocupacional

Introdução

Este estudo apresenta como tema central o sentido de comunidade em uma equipe multiprofissional de saúde, em que se buscou compreender a construção das relações que se estabelecem no ambiente de trabalho. Ainda que se considere um conceito polissêmico, comunidade pode ser entendida como um lugar de semelhantes, com quem se pode compartilhar valores e visões de mundo, proporciona segurança e proteção, bem como apoio para os problemas ( Mocellim, 2011 ).

A diferenciação entre comunidade e associação também representa um aspecto que favorece a compreensão do sentido de comunidade. Vidal (2007) explica que comunidade e associação são formas opostas de organizações sociais. Na primeira, predomina o afeto, as experiências compartilhadas e as relações espontâneas, frutos que se originaram de objetivos comuns que transcendem os particulares. Já na segunda, a agregação deriva de uma ação deliberada e racional de seus integrantes com base em sua utilidade, estabelecida por um consenso expresso ou tácito de seus membros. Contudo, alguns grupos que se formam com características típicas de associação podem, com o passar do tempo, desenvolver laços comunitários ( Vidal, 2007 ).

O conceito ‘sentido de comunidade’ foi inicialmente usado por Saranson, em 1974, que o definiu como o sentimento de ser parte de uma rede de relacionamentos de suporte mútuo, sempre disponível e da qual é possível depender ( Silva, 2012 ). Esta interdependência possibilita construir expectativas em relação aos outros, idênticas às que se pensa terem sido construídas sobre si. O sentido de comunidade consiste na percepção das semelhanças com os outros, identidade social compartilhada, interdependência, influência, coesão e união de um grupo, relação de afeto, fazendo pelos outros o que eles fariam por você, compartilhando sentimentos e responsabilidade ( Marante, 2010 ). McMillan e Chavis (1986) propõem que o sentido de comunidade se constitui por quatro elementos: pertencimento - diz respeito ao sentimento de pertencer, tornar-se membro, por se identificar com o grupo social; influência - relaciona-se a um sentimento de importância para o grupo ao mesmo tempo em que o grupo assume também um papel de relevância; integração e satisfação de necessidades - é um sentimento de que as necessidades dos membros serão alcançadas pelos recursos inerentes à sua posição de membro através de um comprometimento, de uma união; e ligações emocionais partilhadas - abarca o compartilhamento das emoções, cumplicidade e intimidade.

Ao se traçar um paralelo das vivências de uma equipe multiprofissional hospitalar, entende-se que o convívio diário entre os profissionais pode ocupar espaço significativo da vida em comum e pode ser o fator catalisador para o desenvolvimento do sentido de comunidade neste contexto. Além da convivência profissional diária, o compartilhamento de situações da vida pessoal, de objetos, de alimentos, de objetivos e de ideias pode interferir no grau de comprometimento dos membros de uma equipe de trabalho, tornando os laços mais estreitos e solidários. Esta experiência pode vir a despertar em cada um dos que compõem o grupo, um sentido de comunidade tanto maior quanto maiores as afinidades que esses laços evidenciam.

Pesquisas qualitativas apontam que profissionais se consideraram beneficiados pela atuação em equipe multiprofissional em diversos aspectos: acolhimento, negociação e processo de comunicação ( Graciolli et al., 2017 ); possibilidade de humanização do profissional na mesma medida que humaniza o serviço prestado ( Magliozzi, 2012 ); estratégia coletiva de enfrentamento do estresse ( Lamb et al, 2017 ); e diminuição dos níveis de burnout ( Guirardello, 2017 ). Além de beneficiar o profissional, pesquisas indicam que o trabalho em equipe multiprofissional favorece o processo de tratamento e recuperação dos pacientes, quando envolvem a escuta qualificada e a integralidade do atendimento ( Suguyama, Buzzo e Oliveira, 2016 ; Pereira et al., 2013 ).

Por outro lado, também se sabe que as relações de equipes multiprofissionais são atravessadas pela hierarquização dos saberes e fazeres que conduzem às relações de poder características da cultura biomédica, ainda hegemônica em grande parte das instituições hospitalares. Este aspecto, por sua vez, pode interferir nas relações, dificultando ou mesmo impedindo a construção de um sentido de comunidade entre os membros da equipe e na qualidade das relações de trabalho. Tais aspectos foram encontrados em Carvalho et al. (2013) , ao mencionarem a rigidez hierárquica, concentração de poder e competição entre os profissionais. Outros estudos encontraram a valorização do trabalho em equipe, sem que as relações conseguissem transformá-lo em realidade ( Peiter et al., 2016 ; Santana, 2016 ; Silva e Ramos, 2014 ). Assim, este aspecto merece consideração de profissionais e gestores preocupados tanto com a saúde quanto com a formação e qualificação de pessoal no contexto hospitalar.

As terminologias adotadas para referir sentido de comunidade são citadas por diversos autores como: sentimento de comunidade ( Moura, 2013 ); sentimento psicológico de comunidade ( Morais, 2010 ); sentido psicológico de comunidade ( Martins e Esgalhado, 2013 ) e sentido de comunidade ( Silva, 2012 ). Todos estes termos são usados para definir o mesmo conceito; o último, sentido de comunidade, é o mais comum entre os autores e adotado no presente estudo.

O sentido de comunidade em relação ao contexto de trabalho tem sido foco de estudos nos últimos anos. Entre as publicações sobre o tema, destaca-se a avaliação da sua associação ao sentimento de integração, união e solidariedade como fundamental para o sucesso no local de trabalho ( Barry, 1995 ). Pretty e McCarthy (1991) e também Lambert e Hopkins (1995) buscaram identificar os fatores promotores do sentido de comunidade no local de trabalho, considerando as relações entre gênero e raça. Mais recentemente, as influências do ambiente de trabalho e a qualidade da liderança foram investigadas por Vidal, Ramos e Jariego (2014) como relações capazes de produzir um sentido de comunidade entre trabalhadores das artes cênicas em diversas organizações desse setor.

A análise em conjunto de tais publicações ressalta que o conceito tem sido investigado majoritariamente em estudos de metodologia quantitativa, nos quais os construtos operacionais do conceito são medidos por meio de escalas e associados a fatores tais como: bem-estar, qualidade e satisfação de vida, suporte e apoio social, entre outros. Já no presente estudo, pretendeu-se abordar o sentido de comunidade por meio de metodologia qualitativa, baseada na perspectiva construcionista social, a qual reconhece que a linguagem não apenas explicita a realidade, mas a constitui ( Spink e Medrado, 2004 ). O construcionismo social ocupa-se em explicar os processos pelos quais as pessoas descrevem, explicam ou entendem o mundo em que vivem, articulando formas compartilhadas de entendimento ( Souza, 2014 ).

A escolha metodológica com base no construcionismo social ocorreu em virtude de ser uma proposta reflexiva que busca a voz dos participantes da pesquisa, no entendimento do processo de construção de sentido de equipe, no caso específico deste estudo, entre os profissionais de uma equipe multiprofissional hospitalar. Outro aspecto considerado é que o construcionismo social entende que a construção de sentido não é individual e tampouco do grupo isolado, pressupõe o compartilhamento entre diferentes comunidades de origem, valorizando aspectos sociais das comunidades de formação dos diferentes profissionais envolvidos.

Em face do panorama exposto, o objetivo geral desta pesquisa foi o de compreender o sentido de comunidade no contexto de trabalho para uma equipe de saúde multiprofissional hospitalar.

Metodologia

O estudo adotou a metodologia qualitativa, descritiva e exploratória, que compreende uma interpelação ampla, dinâmica e contextual, onde se procura compreender ou interpretar a construção de conhecimento com base na participação das pessoas em práticas discursivas sociais, históricas e culturalmente situadas ( Prodanov e Freitas, 2013 ).

A pesquisa foi realizada em um hospital público no sul do Brasil, no serviço ambulatorial de hematologia e oncologia pediátrica, indicado pela coordenadora da instituição por ter em seu quadro funcional profissionais de diferentes áreas destinados para atendimento exclusivo neste setor. O serviço funciona em uma casa anexa ao hospital e atende em dois turnos de seis horas de trabalho. Fez parte da pesquisa, executada entre abril a junho de 2015, a equipe de saúde multiprofissional do período da manhã.

Foram entrevistadas oito profissionais do sexo feminino que tiveram seus dados pessoais e funções laborais mantidas em sigilo. Adotou-se a letra ‘P’ e os números de 1 a 8 para identificação de suas falas. O grupo de participantes foi composto por: uma médica (P6), uma enfermeira (P1), uma assistente social (P8), uma professora (encarregada de auxiliar as tarefas escolares dos pacientes internados, P7), duas técnicas de enfermagem (P2 e P4) e duas auxiliares de enfermagem (P3 e P5). A idade variou entre 28 e 55 anos, e o tempo de serviço de 1 a 9 anos no mesmo setor.

As informações foram coletadas por meio de entrevista semiestruturada, com base em um roteiro de perguntas previamente estabelecidas, que abordou as seguintes temáticas: a rotina de trabalho da equipe; o sentido de comunidade com referência aos quatro elementos que subsidiam o conceito: o pertencimento; a influência, a integração e satisfação de necessidades e as ligações emocionais partilhadas; e a relação entre o sentido de comunidade para si e para o trabalho em equipe.

Após a aprovação do Comitê de Ética da Sociedade Evangélica Beneficente de Curitiba, obtida sob parecer número 35665814.1.0686.0138, em 18/09/2014e, da instituição hospitalar, onde a pesquisa foi realizada, com a indicação do setor constituído por equipe multiprofissional, foi estabelecido o contato com a coordenadora do ambulatório para a apresentação da pesquisa. Em seguida, realizou-se o esclarecimento dos objetivos e o convite formal à equipe para participar do estudo. Todos os profissionais contatados aceitaram colaborar prontamente.

No momento da entrevista foi assinado um termo de consentimento livre e esclarecido pelos participantes. As entrevistas foram realizadas individualmente em uma sala de reuniões do referido ambulatório, entre os meses de maio e junho de 2015, e tiveram uma média de 50 minutos de duração, sendo gravadas em áudio. Os dados foram coletados no período de trabalho dos entrevistados, sem maiores prejuízos para o serviço, pois foram previamente agendados, observado o horário de menor atividade dos mesmos.

Na análise dos dados desta pesquisa utilizou-se o método da Análise de Práticas Discursivas ( Spink e Medrado, 2004 ), com a perspectiva do construcionismo social. De acordo com esta proposta, os passos da análise constituíram-se em: transcrição na íntegra de todas as entrevistas realizadas; leituras flutuantes, reflexivas e exaustivas das transcrições das entrevistas, visando à identificação das categorias estabelecidas a priori com base na literatura; construção de mapas dialógicos com o objetivo de metodizar a análise das práticas discursivas, além de uma tabela contendo nas colunas os participantes, e nas linhas as categorias e as falas correspondentes ao tema de cada entrevistado; e análise vertical e horizontal dos mapas: na primeira, buscou-se a identificação dos discursos – considerados como a linguagem institucionalizada – correspondentes a cada uma das categorias definidas com base nos elementos que constituem o sentido de comunidade, e a segunda teve como objetivo demonstrar as práticas discursivas – o dinamismo do processo de produção de sentidos – nas quais os repertórios são usados para explicar-se, posicionar-se ou justificar-se durante o discurso. Mais do que um agrupamento daquilo que se repetiu nos dados, o objetivo foi valorizar também os diferentes posicionamentos dos profissionais nas relações estabelecidas com os membros da equipe.

Resultados e discussão

Pertencimento

O pertencimento, concebido por McMillan e Chavis (1986) como o sentimento de fazer parte e identificar-se com o grupo social, foi identificado nas seguintes narrativas:

Elas dependem da gente e a gente depende delas, né?... eu acho até que como a gente fica o dia inteiro junto e é tudo muito corrido, se uma não ajuda a outra o trabalho não flui, não é?... Faz toda a diferença elas ajudarem a gente assim. (...) Então, acho que justamente essa parte assim, de ver que sem mim aqui no serviço as coisas não funcionam, é, mas como eu falei, sem elas também não funciona (P6).

Para P7 sua satisfação se expressa por ser reconhecida e respeitada por todos os outros profissionais que com ela trabalham:

Hoje, médicas, o pessoal da enfermagem, sabem qual é o trabalho da professora aqui (...) Então, quando eu trabalhando com uma criança, então as pessoas chegam: ‘Professora, dá licença?’ Mesmo as enfermeiras, as médicas quando vão atender, então elas sabem qual é o trabalho da professora (P7).

Por outro lado, no sentido inverso do relatado até aqui, a participante P5 menciona que está no local de trabalho apenas aguardando para se aposentar e aparentemente não demonstra apego ao lugar:

A gente só vem mesmo porque chegando perto da aposentadoria e tem que se aposentar. Eu ia para qualquer outro lugar que fizesse seis horas, mas o meu plano mesmo era trabalhar em seis horas. (P5)

Com base nas narrativas das participantes, pôde-se identificar a produção do sentido de pertencer à equipe apontada principalmente pela capacidade de os profissionais trabalharem conjuntamente, respeitarem o lugar do outro, e, principalmente, por perceberem a sua importância para o grupo e sentirem-se membros dele. Da mesma forma, as narrativas sobre o reconhecimento de que o trabalho ou o setor funciona e que o profissional faz parte desta equipe e dos resultados alcançados se mostraram um elemento significativo para manter as pessoas integradas em um mesmo propósito, elemento fundamental para o sentido de comunidade como descrito em Marante (2010) e Morais (2010) .

Os dados remetem à valorização dos aspectos relacionais, do fazer conjunto e do respeito mútuo entre os profissionais. Estando presentes nas narrativas, considera-se que os aspectos citados indicam as construções sociais sobre o trabalhar em equipe. Neste sentido, pode-se supor que o pertencer a uma equipe afirma aspectos da identidade do profissional e de sua autoestima e, recursivamente, ampliam os aspectos valorizados nas relações profissionais e a realidade que buscam construir para si e para os demais. Do mesmo modo, Graciolli et al. (2017) assinalaram que os profissionais se percebem beneficiados pela atuação em equipe quando se sentem acolhidos e existe a possibilidade de comunicação e negociação das práticas. Neste entendimento, o pertencimento não pode ser compreendido de forma estática ou como um fato em si, mas como algo que se almeja no e para o cotidiano da equipe.

Por outro lado, é possível pensar que em uma equipe de trabalho cada pessoa vive um momento específico de sua vida e que, em alguns momentos, as demandas de outros contextos interacionais tenham um peso maior para o profissional, diminuindo sua capacidade de contribuir plenamente com o grupo, como no caso da participante que mencionou pouca disposição para o trabalho em função de sua aposentadoria próxima. Cabe ressaltar que a construção de uma equipe não congrega apenas consensos, pois é importante abrir espaço para a compreensão dos posicionamentos dissonantes.

Influência

Os principais aspectos relacionados à capacidade de exercer influência na equipe foram: envolvimento afetivo/emocional entre colegas; envolvimento profissional entre colegas; e envolvimento profissional com os pacientes.

A participante P4 ilustra como pode exercer influência nas rotinas de trabalho a partir dos vínculos afetivos construídos entre as colegas:

Venho tranquila. Brigo quando tenho que brigar, me acerto com quem tenho que me acertar, sim... A partir do momento que eu conheço você, vai desenvolvendo essa intimidade e vai me permitindo também acessar algumas coisas das pessoas (P4).

Pode-se identificar a construção da mútua influência quando a entrevistada P2 faz lembrar a interdependência entre as profissões e como isso é importante para o trabalho em equipe, ao afirmar:

Não dá pra trabalhar sem os colegas. Eu acho, um dia sozinha nesse setor, ficar aqui, atender todas as crianças em todas as alas, em todos os setores, não. Ah, não! Até pode falar: ‘Ah, consigo!’ Porque o ego vai lá em cima, mas eu acho que não. Não tem, porque você não ia apresentar um serviço de qualidade. Cada um aqui faz uma parte para alcançar tudo que precisa ser feito pra atender bem (P2).

A influência também foi narrada nas relações entre profissionais e pacientes/familiares, uma vez que os efeitos desta influência também eram reconhecidos pela equipe, pela habilidade ou disposição de o profissional dar encaminhamento ou resolver as questões do tratamento ou proporcionar bem-estar à clientela atendida, como na narrativa de P1:

Eu peguei a criança no colo, entrei dentro de uma ambulância que estava estacionada na frente do meu serviço e obriguei o motorista (...) com aquela criança no colo, sabe? E os residentes foram tudo correndo atrás. Lógico, fizeram contato com o plantão lá no pronto atendimento da pediatria e eles estavam nos esperando. Ela tinha sete, seis anos quando isso aconteceu, então hoje ela já tem 14, 15 anos, ela tem 15 anos, e ela que me faz lembrar disso cada vez que ela vem aqui no ambulatório. Ela que fala: ‘A minha mãe diz que eu viva porque você sequestrou uma ambulância’ (P1).

Para P7, seu envolvimento com os pacientes está presente nas vozes das crianças, quando estas, mesmo estando ali para tratamento de saúde, para realização de exames, punções e outros procedimentos que possam causar dor, sentem vontade de participar das atividades que ela desenvolve como professora. A narrativa a seguir ilustra a fala de uma criança que recebera alta médica:

‘Porque eu gosto daqui, porque tem a professora, tem as brincadeiras. Eu acho que o lado bom do ambulatório é a professora’. Nossa, é tão gostoso ouvir isto, as crianças, na verdade, as crianças aqui dentro veem a professora de uma outra maneira (P7).

Para a participante P4, agilizar o atendimento minimizaria o sofrimento dos pacientes, contribuindo para melhoria da qualidade do atendimento:

Minha única intenção, assim, é que a criança e a mãe fiquem o menor tempo possível aqui. É uma coisa assim que é muito (...) Porque, como eles vêm do interior, ficam muito tempo fora de casa, então eu sempre acho que, se eles saírem meia hora mais cedo, é bom pra eles, entendeu? Então no sentido de agilizar, mas sempre o meu objetivo é a mãe e a criança (P4).

As narrativas apresentadas ilustram a produção de sentidos quanto à importância de se construírem práticas a partir de sua formação que valorizem o bem-estar do paciente e da família decorrentes da ação conjunta, uma vez que se reconhecem como parte necessária para a efetivação do trabalho. É possível supor que, por se tratar de uma equipe com baixa rotatividade de pessoal e estar destinada a atender crianças com doenças crônicas, as quais, por sua vez, também permanecem longo tempo em tratamento, as participantes identificam mais claramente o alcance das suas ações para o público atendido e para a equipe, o que contribui para dar sentido às suas ações e para a influência que exercem neste contexto. Pesquisadores também apuraram que nas ocasiões em que a equipe exercita a escuta qualificada e a integralidade favorece a recuperação dos pacientes em outras especialidades e faixas etárias ( Suguyama, Buzzo e Oliveira, 2016 ; Pereira et al., 2013 ).

Por outro lado, foi possível notar que as participantes tendem a narrar mais a influência exercida por meio de suas práticas profissionais com pacientes e familiares, que descrevem a qualidade da assistência oferecida pelo serviço como um todo, do que as práticas exercidas com outros profissionais. Isto quer dizer que, por mais que a importância do trabalho interdisciplinar faça parte do discurso da equipe, as narrativas acabam indicando que as práticas individualizadas e não centradas na construção da relação entre profissionais ainda estão bastante presentes nas rotinas hospitalares. Este aspecto também foi apontado por Peiter et al. (2016) e Santana (2016) ao discutirem que, muitas vezes, os profissionais valorizam a prática interdisciplinar, mas não sabem como exercitá-la nas relações com os membros de sua equipe.

Este aspecto assume contornos mais evidentes quando se analisa o envolvimento pessoal entre os membros da equipe, para além de questões do trabalho, o que mereceu posicionamentos diferenciados entre si e será abordado mais adiante nesta pesquisa.

Integração e satisfação das necessidades

As entrevistadas P1 e P2 encontram satisfação no trabalho:

É o reflexo das minhas ações neste turno de trabalho que vai delinear o fechamento de todas as ações desse dia. Então, eu saio daqui feliz porque eu consigo deixar as coisas resolvidas (P1).

Eu me sinto bem em saber que estou fazendo isso e mais aquilo, então eu me sinto bem (...) porque mesmo quando você sente que está fazendo um pouco mais, é porque você consegue fazer um pouco mais (P2).

As falas das entrevistadas indicam que se sentem satisfeitas quando conseguem integrar os diferentes serviços e fazer algo a mais pela equipe, bem como romper limites e atender as necessidades dos outros. Pode-se pensar que, desta forma, busquem construir relações com vistas a alcançar um objetivo comum.

O fazer bem ao outro e ser reconhecido por seu trabalho têm como consequência a valorização pessoal, resultante de um processo de construção da identidade profissional e pessoal, possível pelas trocas linguísticas e materiais que se estabelecem nas relações de trabalho. Os aspectos presentes nas narrativas vão ao encontro da concepção de trabalho humanizado, conforme definido por Alves, Deslandes e Mitre (2009) como o cuidado recebido pelo paciente resultante do somatório de um grande número de pequenos cuidados que vão se complementando entre os vários cuidadores que circulam e produzem a vida do hospital. Para Benjumea (2004) , entre os elementos que constituem uma relação de cuidado, encontram-se o sentimento de implicação ativa, a disposição genuína para responder, presenciar, interagir e promover o bem-estar do outro, implícitos nas narrativas transcritas.

Com respeito e confiança no trabalho que cada profissional desempenha e divisão de tarefas para que todos se sintam como partícipes efetivos da equipe, a entrevistada P3 explica:

A gente sabe o que cada um tem que fazer e não tem grandes problemas nesse sentido. Eu vejo que a colega apurada [ sic ], eu vou lá ajudar ... ‘ aqui pra o que você precisar’ (...) não precisa nem falar nem nada, que o pessoal já se organiza. (P3)

O respeito ao outro, mediante o reconhecimento do valor do trabalho de cada um e a busca para integrar e agregar o conhecimento de cada profissão, deveria ser inerente a todas as equipes de saúde, o que propiciaria o atingimento do objetivo final. O trabalho de uma equipe multiprofissional se constitui por meio de uma relação recíproca, em que cada componente e todos, de forma compartilhada, façam um investimento na articulação das ações, para se alcançar um objetivo comum ( Bergamin e Prado, 2013 ; Peduzzi, Norman, Germani, Silva e Souza, 2013 ). Ainda que, com base nos dados desta pesquisa, não se possa afirmar que a equipe tenha alcançado este patamar de funcionamento, as narrativas apontam para o entendimento da importância deste aspecto e para a disposição a agir neste sentido. O construcionismo social parte do pressuposto de que as práticas discursivas geram sentidos, abrindo espaço para novos repertórios interpretativos, que farão parte de um conjunto de repertórios que possibilitam o surgimento de novos conhecimentos e ações ( Spink e Medrado, 2004 ).

Ligações emocionais partilhadas

Das oito participantes, cinco demonstraram valorizar as relações interpessoais com as pessoas da equipe, tanto dentro como fora do setor. Uma delas se esforçava para que dentro do setor existisse o melhor clima possível, mas não entendia que as relações além do trabalho fossem benéficas (P1); outra (P5) demonstrou desagrado quanto às relações estabelecidas dentro e fora do setor, e ainda houve uma narrativa dúbia neste sentido (P6). Alguns exemplos foram selecionados para ilustrar os diferentes posicionamentos:

A gente às vezes sai, a gente já foi viajar junto. Sai daqui e vai almoçar junto ali, daí cada um vai pra sua casa e tal. E eu acho que essa convivência é importante (...) você acaba conhecendo as pessoas não só no automático dentro do trabalho (...) é importante eu saber que você é mais quieta, você prefere trabalhar mais sozinha, mas tem momentos que você vai precisar de ajuda, tem aquela que já não consegue trabalhar tanto sozinha assim, que precisa ter alguém do lado (...) e só com esse tipo de convivência você conhece as pessoas (P3).

Quando um membro da equipe apoia o outro emocionalmente, qualifica-o como pessoa, pois, ao expressar que o bem-estar do outro importa, reconhece-o como alguém importante naquele contexto de trabalho. O apoio e os vínculos relatados pelas participantes desta pesquisa expressam a qualidade da relação que se tem buscado imprimir nesta equipe por alguns de seus membros. Boa parte das profissionais que atuavam na equipe disse que procuravam e valorizavam o estar junto em outros momentos ou gostariam de poder compartilhar outras situações, além da laboral, o que denota a valorização de vínculos afetivos e de apoio entre elas, mesmo que não fosse prática tão frequente. As expressões de afeto e proximidade presentes nos comportamentos narrados, como sair juntas, visitar, mandar mensagem de aniversário, foram demonstrações dos elos que buscavam estabelecer entre elas, o que dava sustentação para o trabalho coletivo e reafirmava os aspectos discutidos nas categorias anteriores: pertencimento, influência e integração e satisfação das necessidades.

A formação destes vínculos é o elo entre as pessoas nas comunidades tradicionais. Neste sentido, Amaro (2007) afirma que as ligações emocionais são sentimentos de calor e intimidade que decorrem do compromisso compartilhado, e que, assim, os membros da comunidade dividem histórias, lugares comuns, tempo juntos e experiências análogas. No caso aqui estudado, pode-se dizer que para alguns participantes há a compreensão de que o exercício profissional é beneficiado quando os vínculos afetivos são fortalecidos entre as profissionais, o que as move neste sentido. Este aspecto coincide com os dados de Graciolli et al. (2017) , ao discutirem a importância do acolhimento entre os membros da equipe, e com os de Lamb et al. (2017) e Guirardello (2017) , quando afirmam que a proximidade entre os membros da equipe os protege do estresse e diminui níveis de burnout .

Em contrapartida, constatou-se na fala de uma das entrevistadas que esses momentos de compartilhamento, em que a cumplicidade estava mais presente, suscitavam outras colocações, como a dubiedade implícita na narrativa quando a participante manifestou sua opinião:

Eu confiaria nelas, assim, se eu precisasse de algo. Ou algum parente passando mal, ou que eu precisasse de alguém pra ir comigo em algum lugar. Eu acho que elas se disponibilizariam, assim, e eu não teria problema de pedir também (P6).

Houve também discordância quanto a manter relações mais próximas com colegas:

Eu não me reúno com as pessoas porque eu não gosto de ficar reunida com ninguém (...) porque sai muita fofoca (...) eu não gosto. É mais ou menos assim, eu chegando, elas estão saindo e pronto. Porque aqui você conversa muito sobre problema particular e esquece a obrigação (...) eu prefiro que, assim, se você não está bem, se você quer falar alguma coisa pra mim, você chega e fala. Não você ficar, assim, como se intrometendo na vida da pessoa (...) invadindo a privacidade dos outros. (P5).

Também se identificou similaridade de sentimentos quando a P1 falou que, para algumas pessoas, um relacionamento mais íntimo traria prejuízo no desenvolvimento do trabalho:

Eu acho que isso [sair com colegas] prejudica a relação de trabalho. Pra mim, eu acho, assim, que seria bem tranquilo de sair com o pessoal e voltar aqui como se não... [manteve-se pensativa e completou] mas eu sei que para a maioria das pessoas as coisas não funcionam dessa forma. A partir do momento em que você abre essa porta, você, então, dizendo que somos todos amigos, e amigo, as concepções de amigo são... [reflete novamente] Infelizmente, a que mais serve é aquela que te dá mais conforto. Amigo tem que ser pau pra toda obra, e eu não concordo com isso (P1).

A diversidade de respostas permite supor que nem todas as entrevistadas partilhavam ou valorizavam momentos de interação e envolvimento afetivo, nos quais está implicada a horizontalidade nas relações. O posicionamento das participantes elucida as construções identitárias no jogo de relações e de poder dentro equipe ( Spink e Medrado, 2004 ).

Esta questão leva a pensar na possibilidade de expressão do conflito na equipe, pois a narrativa de P5 explicita a presença de conflito entre ela e outras pessoas da equipe, que não é discutido, mas sim evitado. Já P1 verbalizou a sua discordância por maior aproximação, discorrendo veladamente sobre as diferenças existentes entre ela e as colegas de trabalho que não são conciliáveis, ou seja, ou são amigas ou são colegas – o exercício destes dois papéis simultaneamente prejudicaria o trabalho. P5, por mais que diga que buscaria esta proximidade, pelo tempo verbal escolhido para sua narrativa, dá a entender que isto não acontece de fato, ou que ela não precisa disto no presente e que, se ocorresse, limitaria a algumas circunstâncias práticas e pontuais. Cabe salientar que P5 é a médica da equipe e P1 a coordenadora e, por mais que não tenhamos informações sobre o perfil destas profissionais e suas habilidades de relacionamento interpessoal, são as representantes do poder instituído na equipe. As demais participantes que valorizaram a proximidade afetiva estão no mesmo patamar hierárquico no grupo. Portanto, estas narrativas indicam que o convívio em equipe não ocorre sem tensionamentos e abrem espaço, mesmo que sutilmente, para que se questione como se dá o exercício de inclusão das diferentes vozes e saberes e em que medida isto é possível frente a hierarquia hospitalar preexistente às relações.

Sentido de comunidade

Foram lançadas às participantes as seguintes perguntas: “O que você entende por comunidade? E, partindo desse entendimento, você considera a equipe de que você faz parte uma comunidade?” Estes questionamentos permitiram construir, junto com as participantes, reflexões acerca do sentido de comunidade no contexto de trabalho, bem como as relações que se estabelecem como equipe de trabalho.

Por comunidade eu acho que é o pessoal mesmo que vive junto, que compartilha o mesmo dia a dia, né? Que o que vai dificultar pra um vai dificultar pro outro, como que se fosse mesmo um bairro. Deu uma enchente, daí é todo mundo. Aí tem que se unir e se ajudar, não é? É uma família mais abrangente (P2).

A comunidade eu acho que é um lugar comum, né? Um lugar comum onde as pessoas possam ter os mesmos objetivos, assim. Então elas estão naquela comunidade com os mesmos objetivos, visando toda... trabalhando, tentando trabalhar de uma melhor forma possível com integração e tudo. Eu acredito que isso seja comunidade (P8).

É um grupo de pessoas que compartilham o mesmo espaço que é o mesmo sentido de sociedade, só que num micro, né? Um microespaço, uma microrregião. E aí, com o tempo, com o conhecimento, as pessoas vão compartilhando coisas mais elevadas daí: sentimento, emoção (P4).

Os relatos das participantes indicaram a presença de um sentido de comunidade com aproximação aos conceitos utilizados por Mocellim (2011) e Vidal (2007) . Encontram-se, nos relatos das entrevistadas, referências à união de todos em torno de um objetivo comum, ao convívio e ao compartilhamento de costumes, espaço e intimidades entre seus membros. O lugar diferenciado onde funciona o ambulatório (uma casa anexa ao hospital) e a integração entre a equipe também foram mencionados como forma de entender comunidade, assim como a interação entre seus componentes para atingir metas comuns.

Esse envolvimento, porque é tudo muito grudado aqui, né? E por ser uma casa, ele sai um pouco desse ambiente de hospital e acaba que as pessoas compartilham mais intimidades, eu acho assim. Porque não tem aquele peso da instituição, por exemplo (...) uma das coisas, assim, que eu valorizo, que é muito bom pra criança, as pessoas no geral são de muito boa vontade, às vezes meio atrapalhadas, mas sabe? Um querendo se impor com o outro, mas no final o objetivo é alcançado. Então, isso que é importante, a criança tem um espaço, os pais ficarem um pouco longe do hospital. Eu acho que isso é o mais importante (P4).

Nas relações comunitárias, nem sempre os relacionamentos são cordiais ou amistosos, deve haver espaço para embates e tensionamento, já que são pessoas com diferentes origens e formações, mas são embates com vistas a um objetivo comum. A participante P2 considera que a equipe, da qual faz parte, pode ser considerada uma comunidade, pois se refere ao tempo que passam juntos, à convivência diária com as colegas, e isso, para ela, remete à concepção de comunidade. Diz:

Com certeza! E eu sempre falo que, às vezes, a gente convive muito mais com eles do que alguns deles com a família, né? Porque a gente está todos os dias juntos, seis horas por dia. Com certeza, é uma comunidade, é uma família, a gente não está junto por acaso, né? (P2).

A entrevistada P8 entende a equipe em que trabalha como uma comunidade. Considera o tempo de convivência como facilitador para que se possa compreender a equipe como tal, pois, com o passar do tempo, no ambiente laboral, sentiu-se integrada, íntima das pessoas com quem trabalha para expor suas ideias e certa de que seria aceita por eles, pois a confiança nas pessoas e o grau de intimidade a levaram a explicitar assim:

Hoje em dia, sim. Hoje em dia, eu acredito que sim. Porque foi todo um processo, né? Desde que eu cheguei... eu já trabalhei 15 anos em outro setor e tudo, e eu aqui há pouco tempo. Mas hoje em dia sim, eu me vejo bem integrada com a equipe, sentir à vontade pra propor ideias, pra propor trabalho, e eu acho que por isso a gente pode ver como uma comunidade (P8).

Quando questionada sobre a equipe ser considerada uma comunidade, a participante P5 foi bem sucinta: “Ah, eu acho que sim, né?”, mas também fez referência às mães dos pacientes para exemplificar uma comunidade, relatando que elas vêm falar de seus problemas, contam suas histórias e a equipe deve estar pronta para tentar ajudar. A entrevistada P3 refere que, considerando a união de todos para se alcançar o objetivo maior, vê a sua equipe como uma comunidade:

É uma comunidade, com certeza é uma comunidade... Tem que ter união, porque normalmente você até pode conseguir fazer sozinha, mas tem certas coisas que não existe individualidade, você precisa do outro pra poder chegar a um objetivo maior ou até resultado melhor do que você fazer sozinho (P3).

Corroborando o que foi explicitado, autores como Silva (2012) , Marante (2010) , Morais (2010) , entre outros, descrevem o conceito de sentido de comunidade mediante a utilização dos mesmos elementos presentes nos significados acima descritos. A única participante que divergiu foi P7, que apresentou o seu argumento da seguinte forma:

Não sei se elas são uma comunidade. Se são tão unidas assim pra ser uma comunidade. Se elas realmente se interligam pra ser uma comunidade. Se é cada uma por si... não sei, não. Eu acho que pra ser uma comunidade as pessoas têm que estar um pouquinho mais interligadas, sabe? Que, quando se toquem, realmente a coisa tenha uma maior conexão, né? Eu acho que comunidade é isso, que quando uma toca a outra, eu acho que algumas pessoas aqui começam a formar uma comunidade. (...) comunidade tem que ter uma maior conexão entre as pessoas. Eu acho que algumas pessoas sim, umas não muito (P7).

Em dissonância com todas as outras participantes, P7 apresentou dúvidas se a equipe da qual ela faz parte pode ser considerada uma comunidade. Interessante notar os termos escolhidos para ilustrar seu entendimento, pois começou assim: “Não sei se elas são uma comunidade”, posicionando-se fora da equipe. P7 é professora, cedida pelo município para atuar na instituição e, por mais que seja onde desempenha sua prática profissional, não se incluía na equipe no momento desta reflexão e ainda levantou o questionamento sobre o quanto esta equipe tem conseguido lidar com as diferenças de seus membros e incluir as diferentes vozes. Seu relato destacou a ideia de que as relações comunitárias dependem de tempo, não são instantâneas, as pessoas vão aos poucos construindo esta possibilidade.

Considerações finais

Na atualidade, a dimensão profissional ocupa espaço significativo na vida em comum. Com base nesta afirmativa, procurou-se compreender o sentido de comunidade no contexto de trabalho de uma equipe multiprofissional hospitalar. Foi possível identificar que os elementos propostos por McMillan e Chavis (1986) estavam presentes nas narrativas das participantes e houve uma aproximação dos discursos com o conceito de comunidade, tal como proposto por Mocellin (2011) e Vidal (2007) para a caracterização do contexto de trabalho e das relações desenvolvidas.

Apesar de considerar que as práticas discursivas da equipe se direcionaram para o sentido de comunidade entre seus membros, cabe ressaltar a presença de vozes dissonantes, indicando que nem todas tinham o sentimento de pertencimento ao grupo. Da mesma forma, não foi unânime o reconhecimento da relação entre comunidade e equipe, estando implícitos os indícios do tensionamento hierárquico nas relações, a valorização de práticas individualistas, o conflito não externalizado e a dificuldade de lidar com as diferenças.

Esses dados levam a refletir que a construção de um trabalho em equipe é um processo que exige tempo e que nem sempre é alcançado, pois está sujeito não só às interações da equipe, mas também às influências da instituição e dos processos sociais e históricos. Apesar disto e com base nos dados desta pesquisa, entendemos que oferecer condições propícias para o desenvolvimento do sentido de comunidade nas equipes é também promover o pertencimento, contribuir para a constituição de identidade profissional, elevar a autoestima, satisfazer necessidades e possibilitar a construção de sentido de vida, ou seja, é promover a saúde do trabalhador.

Entende-se que o conceito teórico aqui proposto – o sentido de comunidade – pode contribuir na medida em que possibilita ir além da constatação dos benefícios e/ou dificuldades do trabalho em equipe multiprofissional. Seus quatro elementos constituintes podem ser tomados como guia orientador na construção de relações humanas no trabalho mais satisfatórias e produtivas.

Desta forma, recomenda-se que, ao se pensar em educação no campo da saúde, seja considerado não apenas os processos de educação formal, como os treinamentos e capacitações com ênfase em aspectos técnicos, mas que se invista também em mecanismos que possibilitem as equipes refletirem sobre as relações de trabalho por meio de processos que promovam a explicitação e resolução de conflitos.

Como esta pesquisa se limitou a uma equipe, espera-se que futuros trabalhos possam estender esse questionamento a outras equipes e aos gestores hospitalares, a fim de se ampliar a discussão sobre a importância do fomento do sentido de comunidade no ambiente laboral.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Ago 2018
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2017
  • Aceito
    06 Fev 2018
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