Open-access Cuidado de si: trabalhadoras da saúde em tempos de pandemia pela Covid-19

Self-care: health workers in times of pandemic by COVID-19

Cuidado de sí: trabajadoras de la salud en tiempos de pandemia de COVID-19

Resumo

A pandemia pela Covid-19 não é apenas um problema de saúde, ela é considerada um choque profundo para nossas sociedades e economias, colocando em evidência uma crise de prestação de cuidados na qual os profissionais de saúde, em especial as mulheres, estão no centro dos esforços de atendimento e respostas. Assim, este artigo teve como objetivo problematizar as práticas de cuidado durante a pandemia da Covid-19 com foco no direito à proteção das mulheres profissionais da saúde, de acordo com as concepções de Michel Foucault sobre cuidado de si, considerando o eixo poder-saber. O estudo avança na indagação sobre a crise do cuidado e visibiliza o cuidado de si de trabalhadoras da saúde especialmente durante a pandemia da Covid-19 como caminho possível para a reversão de práticas de dominação por meio da criação de práticas de liberdade, afirmando a produção do cuidado como criadora de valor e respeito pela vida de todas e todos.

pandemias; Covid-19; mulheres trabalhadoras; cuidado de si; biopolítica

Abstract

The COVID-19 pandemic is not just a health problem, it is considered a profound shock to our societies and economies, highlighting a care crisis in which health professionals, especially women, are at the center of service and response efforts. Thus, this article aimed to problematize care practices during the COVID-19 pandemic with a focus on the right to protection for women health professionals, according to Michel Foucault’s conceptions of self-care, considering the power-knowledge axis. The study goes on to question about the crisis of care and makes self-care of health workers visible especially during the COVID-19 pandemic as a possible way for the reversion of domination practices through the creation of freedom practices, affirming the production of care as a creator of value and respect for the life of all.

pandemics; COVID-19; working women; self-care; biopolitics

Resumen

La pandemia por el COVID-19 no es solo un problema de salud, sino que se la considera también un choque profundo en la sociedad y en la economía, poniendo en evidencia una crisis en la prestación de cuidados en la cual los profesionales de la salud, especialmente las mujeres, están en el centro de los esfuerzos de atención y respuestas.Así es que, este artículo tuvo como objetivo problematizar las prácticas de cuidado durante la pandemia de COVID-19 poniendo el enfoque en el derecho a la protección de las mujeres profesionales de la salud, según la concepción de Michel Foucault sobre cuidado de sí, considerando el eje poder-saber. El estudio avanza en la indagación sobre la crisis del cuidado y visibiliza el cuidado de sí de trabajadoras de la salud especialmente durante la pandemia de COVID-19 como un posible camino a la reversión de práticas de dominación por medio de la creación de práticas de libertad, que afirmen la producción del cuidado como creadora de valor y respeto por la vida de todas y todos.

pandemias; COVID-19; mujeres trabajadoras; cuidado de sí; biopolítica

Introdução

A nova doença do coronavírus (COronaVIrus Disease-19), causada pelo vírus SARS-CoV-2, manifestada mundialmente a partir de 2019, não é apenas um problema de saúde. A pandemia pela Covid-19 é considerada um choque profundo para nossas sociedades e economias, colocando em evidência uma crise de prestação de cuidados, na qual os profissionais de saúde, em especial as mulheres, estão no centro dos esforços de atendimento e respostas (United Nations Women, 2020a).

Antes mesmo da pandemia, o mundo já enfrentava uma crise de prestação de cuidados em razão dos impactos do envelhecimento da população, dos cortes em serviços públicos e sistemas de proteção social e dos efeitos das mudanças climáticas, sendo que as mulheres compõem dois terços da força de trabalho envolvida em atividades de cuidado remuneradas (Oxfam, 2020). Nesse contexto, a pandemia pela Covid-19 vem intensificar a situação e aumentar o ônus que recai sobre as mulheres, principais trabalhadoras de cuidado.

Cuidar é um trabalho duro, árduo, emocionalmente exigente, tenso, que em nossa sociedade é primordialmente delegado às mulheres e assim influenciado por questões de gênero. Em sociedades patriarcais e racistas, ele é sistematicamente desvalorizado e sua contribuição para a manutenção do sistema capitalista é invisibilizada, embora fundamental para a manutenção do status quo (Goes, Ramos e Ferreira, 2020).

À medida que avança a pandemia, os impactos atingem, de forma substancial, a ocupação das mulheres. Ao mesmo tempo que perdem o emprego remunerado, é intensificado o cuidado não remunerado das mulheres, resultante do fechamento de escolas e creches e do aumento das necessidades dos idosos (United Nations Women, 2020b), aumentando a base da pirâmide econômica, em que as mulheres, principalmente as pobres e pertencentes a grupos marginalizados, de acordo com a Oxfam (2020, p. 5), “dedicam gratuitamente 12,5 bilhões de horas todos os dias ao trabalho de cuidado e outras incontáveis horas recebendo uma baixíssima remuneração por essa atividade”.

Nessa atual crise do cuidado intensificada pela pandemia, é preciso olhar para quem cuida do quê, de quem e em que condições, além de questionar como está o cuidado de quem cuida nessa pandemia. Profissionais de saúde na linha de frente da pandemia estão sendo infectados em massa, obrigados a se afastar do trabalho, com indicativos de alto sofrimento mental, e muitos perdendo suas vidas. Tal panorama configura-se como uma crise do cuidado no cenário da pandemia. Apesar das inúmeras palmas, manifestações de apoio e reconhecimento, isso por si só não tem evitado a sensação de desrespeito institucional e governamental, o assédio moral, nem a violação dos direitos à autoproteção por parte dos profissionais da saúde – porque a resposta imediata e principal para conter a propagação do novo coronavírus é o distanciamento e o isolamento social, na tentativa de proteger principalmente aqueles(as) que têm a saúde mais vulnerável ou precária. Porém, na prática, ou as mulheres continuam trabalhando e expostas ao risco, ou trabalham sem remuneração, evidenciando assim a limitação do direito a sua proteção. Portanto, o gênero também é um marcador de desigualdades, que deve ser considerado na forma como homens e mulheres se comportam diante da pandemia.

Dentre os trabalhadores da saúde, são principalmente as mulheres que ocupam as funções de cuidado na pandemia, fazendo emergir a sobrecarga feminina e o reforço da crise de cuidado gerada pelas relações entre capitalismo e dominação de gênero, que corroboram a naturalização e subalternização do papel da mulher no cuidado.

A perspectiva de cuidado abordada aqui aponta para uma ética do cuidado como prática de liberdade, que implica uma reinvenção de si diante das configurações que a contemporaneidade apresenta (Foucault, 2004a, 2004b, 2004c, 2005, 2010, 2014). No contexto da pandemia, essa questão reafirma sua importância, particularmente na análise do trabalho em saúde, ao se considerar a superposição do trabalho remunerado e não remunerado para perpetuação dos mecanismos de exploração das mulheres, denunciando como a ideologia de gênero e, correlatamente, a naturalização da divisão sexual do trabalho obscurecem a consciência dessas trabalhadoras sobre a exploração a que estão submetidas.

Nesse contexto, a proposta deste artigo é problematizar as práticas de cuidado durante a pandemia da Covid-19, com foco no direito à proteção das mulheres profissionais da saúde, segundo as concepções de Michel Foucault sobre cuidado de si, considerando o eixo poder-saber.

A crise do cuidado relacionada à prática eminentemente feminina e à pandemia pela Covid-19

“Adaptar-se ao inadaptável: essa é a demanda, impossível de ser cumprida, que hoje vivemos em muitas situações cotidianas” (Rauter, 2005, p. 67).

O Conselho Federal de Enfermagem divulgou, em 21 de abril de 2020, dados que evidenciaram 995 profissionais de enfermagem brasileiros confirmados com a Covid-19, sendo 83% do sexo feminino, a maioria na faixa etária entre 31 e 41 anos. O cotidiano de trabalho desses profissionais de saúde, em contato 24 horas por dia com casos suspeitos e confirmados, inclui jornadas exaustivas, falta de protocolo, infraestrutura e equipamentos de proteção, aumentando os riscos de contágio pela Covid-19 (Conselho Federal de Enfermagem, 2020).

Ressalta-se que as históricas e discriminatórias diferenças entre as funções públicas e privadas são atravessadas pela perspectiva de gênero, fazendo com que as mulheres desempenhem majoritariamente os papéis de responsáveis pelo cuidado de pessoas, tanto profissional quanto informalmente (Persegona, Oliveira e Pantoja, 2016). Portanto, entende-se que a crise do cuidado está relacionada ao controle sobre os corpos femininos, engendrado pelo capitalismo e seu sistema de exploração. O cuidado, que é uma necessidade ontológica do ser social, acabou assumindo o sentido de atribuição feminina, tornando-se parte dos comportamentos que devem ser ensinados e reproduzidos pelas mulheres (Passos, 2017).

Esses fatores fazem com que a atual crise vivenciada na pandemia seja também considerada uma crise do cuidado, em que as mulheres em situação de pobreza e que sofrem preconceito em decorrência de sua raça, etnia, nacionalidade e sexualidade são as principais cuidadoras (Oxfam, 2020). Essa afetação também coloca em evidência problemas crônicos existentes na saúde, em que as mulheres trabalhadoras da saúde estão cada vez mais expostas ao risco de contaminação e à perda de meios de subsistência (United Nations Women, 2020a).

No cenário da pandemia, riscos têm sido potencializados decorrentes das extensas e exaustivas jornadas, ritmo intenso de trabalho, desvalorização profissional, conflitos interpessoais, desgastes físicos e emocionais, espaços de repouso desumanos nas estruturas dos serviço de saúde, insuficiência quantitativa e qualitativa de equipamentos de proteção individual (EPIs), limitação de distanciamento social nas emergências, o que amplia o risco de infecção e adoecimento no trabalho (Miranda et al., 2020).

Na equipe de enfermagem, por exemplo, Araújo dos Santos e colaboradores (2018) apontam que, entre as enfermeiras, as condições de trabalho como a falta de insumos e condições insalubres representam 46,8% das causas de precarização do trabalho, enquanto para técnicos e auxiliares de enfermagem o ritmo e a pressão da atividade correspondem a 51,2% das causas de precarização. Tal cenário, até muito recentemente invisibilizado, ganha novos contornos com a explosão da pandemia e convoca a se pensar o trabalho em saúde, especialmente no modo de inserção das mulheres no mercado de trabalho, marcado pela naturalização e pela generificação das atividades vinculadas ao cuidado, que corroboram a manutenção das opressões cotidianas e incluem as mulheres nos grupos que “padecem de uma especial vulnerabilidade que precede a quarentena e se agrava com ela” (Santos, 2020).

Historicamente, os movimentos feministas da segunda metade do século XX, inspirados na teoria marxista, tinham entre seus principais objetivos tornar visível como a divisão do trabalho estava na raiz da opressão sofrida pelas mulheres. Assim, a divisão sexual do trabalho e a dominação de gênero contribuem para a naturalização e subalternização do papel da mulher no cuidado, o qual não pode ser analisado dissociadamente dos processos de desigualdade de gênero, classe e raça, sendo este último incorporado pelo feminismo negro e pelos estudos das interseccionalidades (Biroli e Miguel, 2015).

Estudos populacionais realizados no Brasil entre 2009 e 2015 registram mais de 71 milhões de famílias com 42% de mulheres responsáveis pela casa, a maior parte delas solteiras e com renda familiar per capita inferior às famílias chefiadas por homens. Quando se comparou o percentual de mulheres que se encontram na chefia familiar com as variáveis de renda e raça, as diferenças foram significativas entre as mulheres negras e brancas. Em 2015, em domicílios chefiados por mulheres brancas, a renda domiciliar per capita é 47,3% maior do que naqueles chefiados por mulheres negras – e 40% maior do que nos domicílios chefiados por homens negros (Ipea, 2015).

Com todas as transformações que ocorreram nas últimas décadas, as mulheres continuam a dedicar mais tempo às tarefas domésticas e a ter rendimentos médios menores do que os homens pelo trabalho desempenhado fora de casa. Isso se dá mesmo quando as mulheres têm mais tempo de ensino formal que os homens e são a maior parte dos indivíduos que completam o ensino superior. A ampliação do acesso à educação e as transformações no padrão ocupacional não permitiram a superação das desigualdades entre mulheres e homens nos rendimentos e nas relações de trabalho (Biroli, 2016).

A divisão de gênero e a inserção desigual das mulheres no mercado de trabalho reforçam o papel do cuidado atribuído a elas como uma atividade eminentemente de caráter privado e que as distancia cada vez mais da esfera produtiva. Assim, o cuidado passa a ser visto como uma atribuição feminina, sem valor de troca e com um status de atividade subalterna, uma vez que o seu objetivo é possibilitar a reprodução dos modos de vida social (Passos, 2016).

O cuidado, construído e enraizado na sociedade patriarcal, atribui às mulheres a efetiva participação na manutenção da vida de sua família por meio de diversos cuidados dispensados aos seus membros, como amamentar, cozinhar, lavar e passar as roupas, arrumar a casa, educar as crianças, cuidar de sua higiene, cuidar de deficientes e idosos, ser boa esposa etc. Isso implica a construção de uma possível identidade feminina ligada ao papel de mãe, em que cabem às mulheres as funções sociais únicas, exclusivas e possíveis de cuidadoras e reprodutoras (Passos, 2016).

Portanto, é de acordo com abordagens que atribuem às mulheres uma ‘natureza feminina para o cuidado’ que se expõe a inclusão desigual das mulheres nas relações de trabalho no capitalismo, evidenciando as relações entre vida doméstica e as conexões entre as formas de exploração do trabalho das mulheres – dentro e fora de casa – ocupadas com o cuidado (Biroli e Miguel, 2015).

Apesar da recomendação da Organização Mundial da Saúde de se manterem em isolamento social, as mulheres estão na linha de frente da pandemia, ocupando as funções de cuidado, em especial a equipe de enfermagem, enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem, com a média de seis mulheres para cada homem, espelhando a feminização nesse setor e afirmando-se como o maior contingente no campo da saúde (Miranda et al., 2020).

Acrescentam-se a essa condição as equipes de atenção primária à saúde, especialmente agentes comunitárias da saúde, categoria composta em sua grande maioria por mulheres e com atuação de alta capilaridade no território nacional. Vale destacar a expressiva exposição ao risco dessas trabalhadoras, devido às suas condições de vida e trabalho, tais como falta de equipamentos de proteção individual (EPIs), treinamentos, redução de serviços complementares, apoio social e emocional, bem como mobilização nas comunidades. A atividade na atenção primária a saúde precisa “ser fortalecida e estruturada como uma das principais respostas do setor saúde à epidemia” (Sarti et al., 2020, p. 2).

Além disso, valores associados ao gênero feminino, como solidariedade, compromisso, cuidado, afeto, apego e envolvimento, estão fortemente relacionados ao trabalho de agente comunitário de saúde (ACS), dando sustentação ao acúmulo de encargos extratrabalho, tais como o cuidado de pessoas em situações de risco social, idosos que vivem sozinhos, doentes e deficientes que demandam cuidados especiais, por exemplo. Para essas mulheres, submeter-se e permanecer nesse trabalho mal remunerado e precário justifica-se pela vantagem de estar perto de casa e poder cuidar do lar, dos filhos e da comunidade (Barbosa et al., 2012).

Ao discutir a crise do cuidado no trabalho de mulheres, afirma-se que o ato de cuidar é uma ação eminentemente feminina que transcende o espaço de trabalho e configura-se como regulador de corpos femininos em todos os âmbitos da vida. Assim, somente as mulheres devem aprender a cuidar, e são principalmente os cuidados de manutenção da vida que alimentam essa justificativa (Lopes e Leal, 2005). Salienta-se que esse é um trabalho extremamente exigente, sem férias, sem horário para descanso, 24 horas por dia, sete dias por semana, sem horário de almoço, entre outras características.

Nesse cenário, a pandemia configura-se como um momento extremo, em que desigualdades se acentuam e se escancaram, e a pesada e desigual responsabilidade pelo trabalho de cuidado perpetua as desigualdades de gênero e econômicas, prejudicando a saúde e o bem-estar das mulheres. Além disso, as mulheres que assumem essa responsabilidade têm pouco tempo para si mesmas, portanto não conseguem satisfazer suas necessidades básicas ou participar de atividades sociais e políticas (Oxfam, 2020).

Dessa forma, a pandemia como acontecimento convoca a afetar-se pelas injustiças sociais que ocorrem todos os dias, para que sejam evidenciadas, visibilizadas, discutidas e transformadas. Assim, se constitui um convite para a discussão acerca da biopolítica e do biopoder sobre os corpos femininos, o que nos leva a (re)pensar as práticas de cuidado em saúde para que se possa evitar o sequestro da subjetividade do trabalho feminino.

O cuidado de si como um imperativo fundamental

“Não digo que a ética seja o cuidado de si, mas que na antiguidade a ética como prática racional da liberdade girou em torno deste imperativo fundamental: ‘cuida-te de ti mesmo’” (Foucault, 2004a, p. 268).

Quando se fala de sequestro da subjetividade do trabalho feminino, é imperativo pensar em outras formas de cuidado, que escapem a essa captura. Dessa forma, Foucault nos fala da ética do cuidado de si, portanto é preciso entender o que significa ética, entre outros conceitos, para esse autor.

A pandemia pela Covid-19 traz de volta o tema da ética para os debates contemporâneos, e é comum se ouvirem especialistas referindo-se à questão da ética como uma crise de valores que seria resolvida com o retorno de regras mais rígidas, aparentemente suficientes para moralizar a sociedade. Quando esse debate incide sobre a saúde, é preciso ressaltar que não nos referimos à ética identificada como códigos de conduta da profissão, muito menos à obediência ou não às normas, aos parâmetros legais do que se deve ou não fazer. Esse entendimento que produz um apelo para enrijecimento dos códigos de conduta frustra a possibilidade de se pensar em outras formas de ser/estar no mundo, impedindo o acolhimento das diferenças e apagando as singularidades, em vez de colocar em análise a crise provocada pela restrição e pelo controle.

Ao se pensar a ética desse ponto de vista – como verdade absoluta contida em códigos de conduta –, a resposta para a crise ética da pandemia da Covid-19 seria a mesma utilizada em outras situações de instabilidade, tais como busca pelos culpados, intensificação da fiscalização e criação de novas normas, o que não resultaria em produção de respostas aptas para lidar com a peculiaridade do cenário atual (Andrade, Givigi e Abrahão, 2018). Para Foucault, a ética é a forma refletida assumida pela liberdade, sendo sua condição ontológica. No mundo greco-romano, o cuidado de si constituiu-se a partir da liberdade individual e cívica, pensada como ética. Para a civilização antiga, sobretudo a grega, a liberdade individual era extremamente importante e estava relacionada à condução de si mesmo, a cuidar de si, ao mesmo tempo que se buscava se conhecer melhor, a fim de superar as mazelas que pudessem dominá-la. Assim, a ética era uma prática racional do exercício da liberdade que tinha o cuidado de si como preocupação central. Para cuidar de si, então, faz-se necessário conhecer a si mesmo (Foucault, 2004a).

Contudo, o cuidado de si, em certo momento, foi deturpado, tomando a ideia de amor exacerbado, egoístico e individualizado, sendo, portanto, condenado pelas práticas moralizantes, sobretudo pelo Cristianismo, que mesmo entendendo que a salvação é uma forma de cuidar de si, pregava a renúncia a si mesmo, o que gera um certo paradoxo (Foucault, 2004a).

Passos (2016) aponta a premissa de que o cuidado é uma necessidade ontológica do ser social, portanto, necessário à coexistência social, por ser permeado pelos aspectos culturais, sociais, políticos e econômicos de cada época. Com base nisso, o projeto societário burguês incidiu sobre os modos de vida dos indivíduos tendo como objetivo a perpetuação da espécie e a reprodução do modo de produção capitalista e os modos de sociabilidade compatíveis com seus preceitos.

Importante ressaltar que a liberdade para os gregos não tinha a mesma concepção adotada nos dias de hoje. A liberdade grega está associada a uma concepção política e à ideia de governo de si, em que o indivíduo não é escravo do outro, nem de si ou de suas paixões. A arte de governar, para Foucault, tem uma concepção mais ampla e envolve a autogestão das condutas dos indivíduos e dos grupos. Para o autor, os corpos estão imersos em um campo político e não apenas produzem relações, mas são produzidos por elas, o que implica uma relação de força e, portanto, uma relação de poder. Desse modo, as relações são marcadas, investidas, dirigidas, sujeitadas e sinalizadas nos corpos, gerando respostas, reações, efeitos e invenções possíveis (Foucault, 2005, 2010).

Nesse sentido, o cuidado de si traz essa dimensão ética que pode ser entendida também como o cuidado do outro, uma vez que o cuidado de si implica uma relação com o outro. Contudo, “não se deve fazer passar o cuidado dos outros na frente do cuidado de si; o cuidado de si vem eticamente em primeiro lugar na medida em que a relação consigo mesmo é ontologicamente primária” (Foucault, 2004a, p. 271).

O cuidado de si, nessa ótica, cria um ethos problematizador de si, que interroga os códigos preexistentes, propondo uma atitude crítica de reinvenção de si mesmo nas relações. Assim, o cuidado de si pode ser definido como a prática do governo de si, ou seja, é uma apropriação do conhecimento sobre si mesmo, que permite uma vivência de liberdade que regula a relação com o outro, na medida em que o poder pode ser exercido por todos.

Segundo essa concepção de governamentalidade, em que o poder não está mais centralizado no Estado e nas suas instituições, “não sendo mais entendido como domínio de uma classe, passa então a ser pensado como exercício nas relações entre os seres humanos, relações de poder cotidianas, condução de conduta perpassada por todo um campo de gestos” (Andrade, Givigi e Abrahão, 2018, p. 70).

Dessa forma, o poder tomou posse da vida, já que coexiste em toda relação social, dando origem a uma preocupação com o controle dos processos biológicos da vida, no mecanismo de fazer viver ou deixar morrer. No poder soberano, o que reativava o poder era o mecanismo de fazer morrer e deixar viver, uma ação ordenadora sem corpo. No poder disciplinar, por sua vez, o controle era centrado no corpo. O que surge, agora, no que chamamos de biopoder, é uma ação reguladora da vida, de corpos em massa, um poder que intervém no como da vida. A biopolítica nasce desse mecanismo de ação e intervenção do biopoder, como forma de estatização do biológico, produzindo efeitos em massa (Foucault, 2005).

A biopolítica tem como alvo o conjunto dos indivíduos – a população – e contrasta com modelos tradicionais de poder baseados na ameaça de morte. Ela representa uma ‘grande medicina social’ que se aplica à população a fim de controlar a vida: a vida faz parte do campo do poder. Para isso, dentre as principais estratégias biopolíticas do Estado, insere-se a formação da família nuclear burguesa baseada na hierarquização social e sexual do trabalho, ficando a cargo dos homens a esfera da produção (por meio do trabalho e do provimento), e das mulheres a esfera da reprodução (exercendo o trabalho doméstico e da educação dos filhos), em que se firma uma hierarquia de atividades. Nessa lógica, para que os homens possam exercer suas respectivas funções, exige-se qualificação profissional, enquanto para as mulheres a qualidade é que compõe o trabalho feminino (Foucault, 2005).

Dessa forma, ao fazer uma análise a partir do eixo saber-poder das políticas de trabalho feminino apostando naquilo que Foucault denominou ‘ética do cuidado de si’, é possível dar passagem a uma concepção de cuidado que “escape aos processos de dominação da vida, produtores de padecimentos tanto de quem cuida quanto de quem é cuidado” (Andrade, Givigi e Abrahão, 2018, p. 68). Por conseguinte, quando não há cuidado de si, entendido como governo de si, o indivíduo corre o risco de se tornar escravo de seus desejos e consequentemente exercer sobre os outros um poder indevido. Por isso o cuidado de si inclui uma dimensão política e ética, na medida em que nossas escolhas/atitudes interferem no meio em que vivemos (Foucault, 2004a).

Do ponto de vista de uma ética foucaultiana, é possível pensar o cuidado em duas perspectivas que divergem entre si: uma que toma a ética como padrões estabelecidos e moralizantes e que pensa a saúde com base em verdades homogeneizantes que acabam por produzir indivíduos assujeitados; e outra que entende a ética como reflexão crítica da realidade e acolhe a diversidade produzindo indivíduos com autonomia e capacidade crítica para se conduzirem práticas de cuidado de si criativas e inovadoras (Andrade, Givigi e Abrahão, 2018).

Trabalho como reinvenção de si e ampliação do poder de agir

“Um trabalho, quando não é ao mesmo tempo uma tentativa de modificar o que se pensa e mesmo o que se é, não é interessante. (...) Ora, trabalhar é pensar uma coisa diferente do que se pensava antes” (Foucault, 2004c, p. 240).

O trabalho constitui-se como uma produção eminentemente humana, é atividade e movimento fundamental na manutenção da vida e estruturação das sociedades. Trabalhar é doar, conceder energia psíquica e física para a construção do mundo e da vida. Em sua dimensão coletiva, o trabalho é um modo de agenciar-se como grupo, no qual o funcionamento do coletivo grupal influi diretamente sobre a dinâmica de uma organização do trabalho (Nogueira et al., 2015).

As distintas dinâmicas que se impõem às relações com o trabalho também expõem com clareza a contradição entre ser trabalhador(a) de saúde e não receber atenção à sua própria saúde, além de demonstrar os padrões hierárquicos nas relações sociais, ativando restrições e desvantagens que produzem uma posição desigual para as mulheres. Essas hierarquias de gênero agregam vulnerabilidades segundo a posição de classe e raça, impactando as mulheres de forma diferenciada. Ao analisar esses dados, Biroli (2016, p. 736) aponta que eles afastam “a possibilidade de se compreender a vulnerabilidade relativa das mulheres como uma questão feminina. Em vez disso, parece necessário compreender a vulnerabilidade relativa de determinadas mulheres” (destaques das autoras). Dessa forma, é preciso um esforço para a realização de uma análise que enfatiza as singularidades ao mesmo tempo que considera a pluralidade das experiências femininas no trabalho.

Nessa ótica, como fica o cuidado com a saúde de quem cuida da saúde dos outros? Ou seja, como pensar uma ética do cuidado de si mediante as transformações e reconfigurações do trabalho de determinadas mulheres nesse momento de pandemia, sobretudo das profissionais de saúde? A perspectiva de saúde proposta por Canguilhem (2006) entende que saúde não é conceito científico-ideal e abstrato, mas um conceito empírico que fala da relação do sujeito humano com o meio. O corpo, por sua vez, é analisado como uma realidade biopolítica (Foucault, 2014), considerando as dimensões biológicas e do poder e questionando a apropriação do corpo como princípio para o controle social e disciplinar dos indivíduos no sistema capitalista de produção.

Quem sabe assim a saúde possa ser recusada como mais um bem de consumo, da ordem de um luxo, de um excedente, defendida então, nestes tempos de biopoder, como um capital não negociável, não passível de mercantilização, mas um bem público inalienável, um grito de resistência e de poder instituinte que, longe de se deixar formatar, longe de se deixar seduzir, recuse por completo esta instauração de um capital (neo)liberal e se institua como liberdade de si, no sentido foucaultiano (Maia e Osorio, 2004, p. 77).

Nesse sentido, no contexto de uma pandemia, o corpo como realidade biopolítica torna-se alvo da extensão das ‘vidas nuas’, ou seja, vidas indignas de serem vividas, em potencial que “habita o corpo biológico de cada ser vivente” (Agamben, 2007, p. 146), segundo o qual as práticas de ‘deixar morrer’ tomam contornos exponencialmente imprecisos e letais, especialmente quando nos referimos àquelas que se ocupam do trabalho de cuidar, seja nos serviços de saúde, seja no âmbito doméstico.

O trabalho feminino é atravessado por relações de saber-poder que atribuem às mulheres uma ‘vocação’. Além disso, quando o trabalho profissional está relacionado ao cuidado, passa a ser desvalorizado e mal pago, e majoritariamente exercido por mulheres negras, como por exemplo o trabalho da enfermagem (Goes, Ramos e Ferreira, 2020). Com o avanço da pandemia, as muitas mortes que ocorrem no hospital impactam o cotidiano dos profissionais de saúde, envolvendo escolhas difíceis de serem realizadas, gerando estresse adicional (Kovács, 2010).

O afastamento de suas famílias, a que muitos profissionais de saúde foram submetidos para evitar a contaminação de seus entes queridos, somado à sobrecarga emocional, gera uma mistura de angústia e solidão. Enquanto isso, no Hospital de Campanha do Maracanã, no Rio de Janeiro, enfermeiros e técnicos de enfermagem denunciam condições precarizadas de trabalho, que os levam a dormir no chão frio, em condições insalubres, enquanto médicos têm camas e quartos com ar-condicionado e TV, evidenciando desigualdades nas condições de vida e trabalho (Dondossola, 2020).

O cenário de afastamentos, adoecimentos e óbitos é lamentável do ponto de vista humano. E no que diz respeito às vidas em risco, é preocupante a dimensão da dissociação da experiência do cuidado vivida pelas mulheres trabalhadoras, que implica uma renúncia de si para cuidar do outro. A esse respeito, Foucault (2004b) nos alerta que o cuidado de si deve vir em primeiro lugar, uma vez que constitui uma dimensão ontológica do ser. Afirma-se, portanto, sobretudo nesse contexto de pandemia, que se tornou inadiável priorizar o cuidado de si, como condição que antecede a possibilidade do cuidar do outro no contexto da Covid-19 e da manutenção da vida.

Acerca dessas conexões entre gênero e trabalho no contexto neoliberal, é possível trazer as reflexões sobre a mudança das relações de trabalho em saúde que dependem principalmente da produção de saúde que se dá na micropolítica da organização do trabalho, no âmbito das relações, nos vínculos entre os diferentes atores. Para garantir que todas as condições de trabalho em saúde sejam atendidas, o modelo assistencial deve contar com os recursos tecnológicos e conhecimentos específicos; contudo, o cuidado deve ter como foco principal o ‘trabalho vivo’. O trabalho vivo refere-se ao trabalho em ato, campo de tecnologias relacionais, e deve ocupar lugar central no cuidado. Por sua vez, o trabalho morto se refere ao núcleo tecnológico, em que não há mais atos criativos e inventivos (Merhy e Franco, 2003). Dessa forma, o cuidado de si estaria intimamente relacionado ao trabalho vivo em ato, uma vez que cuidar de si implica cuidar do outro, num campo relacional inventivo.

Em meio ao acirramento dos processos que insistem em relegar às mulheres o lugar de descuidado de si em prol do outro, temos uma tensão permanente entre a força do trabalho vivo (Merhy, 1997), com seu potencial de criação, e os modelos que buscam, ao cristalizar os processos de trabalho, conformar os atores a determinados papéis. Dessa contradição, afloram possibilidades pedagógicas de reprodução ou de criação de outros saberes, práticas e poderes (Ceccim, 2004).

Pode-se discutir a questão de a atividade ser tudo aquilo que transborda o que está organizado a se fazer no trabalho. Nesse sentido, pode-se abordar o cuidado de si na atividade de trabalho de mulheres com base naquilo que não fazem, não podem fazer, tentam fazer sem conseguir, querem, pensam e sonham fazer. Isso é um paradoxo frequente da atividade de trabalho, gerado pela tensão do trabalho prescrito e trabalho real (Clot, 2006). No caso das mulheres, o paradoxo se instaura quando, consideradas e legitimadas como cuidadoras, são desapropriadas do cuidar de si, gerando assim uma dissociação do cuidado.

Pensar o trabalho pela ética do cuidado de si à luz de Foucault demarca uma aposta política de construção de territórios de análise a partir de como se vive, escapando de perspectivas homogeneizantes e de aspectos dicotômicos como bem e mal, bom ou ruim, mas efetivamente foca-se na existência, no quanto e como se vivem intensamente os encontros, visando às singularidades nos modos de viver.

Nessa perspectiva, as ações de cuidado passam pela ressignificação do cotidiano em sua produção intensiva de vida. O cuidado de si é possível quando os trabalhadores da saúde se colocam na aposta que os sujeitos fazem no seu dia a dia, nas singularidades que se deslocam, redistribuem-se, transformam-se umas nas outras, reinventam-se no trabalho de si sobre si e sobre o outro, um corpo em atividade relacional (Foucault, 2004b).

É importante frisar a discussão de que a atividade de trabalho não se reduz a situações dadas, mas implica também variabilidade, imprevisibilidade, enfim, mobilização subjetiva para lidar com imprevistos, buscar ideias e soluções. Tal potência inventiva não é observável diretamente, mas imprime um sentido de valorização de quem trabalha, em face das mudanças das condições e da organização do trabalho.

Assim, a complexidade e a multidimensionalidade do trabalho refletem a natureza do humano, já que não há trabalho sem que haja uma intenção humana individual ou coletiva (Souza e Silva e Faita, 2002). O trabalho está carregado de sentidos inscritos no encontro entre a complexidade da experiência e a situação de trabalho. Portanto, afirma-se a análise do trabalho como elemento central na vida das mulheres trabalhadoras, bem como na sociedade contemporânea e em campos de estudo em expansão, especialmente no que tange ao trabalho e saúde.

Nesse sentido, seja para pensar políticas de cuidado em saúde nos diferentes tipos de organização do trabalho; seja para ordenar estratégias assistenciais no campo da Rede de Atenção à Saúde do Trabalhador; ou ainda para contextualizar as práticas de cuidado voltadas para os profissionais de saúde, faz-se necessário enfatizar a produção de saúde numa perspectiva que coloca em análise os modos de vida na atualidade, buscando uma (re)apropriação do conhecimento de si pela prática da liberdade que se materializa por meio de uma governamentalidade descentralizada e pautada numa ética do cuidado de si.

Considerações finais

“Partir exige um dilaceramento que arranca uma parte do corpo (...). Quem não se mexe, nada aprende” (Serres, 1993, p. 35).

O presente artigo procurou analisar e problematizar as práticas de cuidado trazendo para a cena o cuidado de si das mulheres profissionais de saúde durante a pandemia da Covid-19. O estudo avança na indagação sobre a crise do cuidado à luz do conceito de cuidado de si em Foucault e busca contribuir para pensar tal realidade, elucidando que o cuidado de si, entendido como prática ética da liberdade, possibilita uma resistência à escravidão ao outro manifestada por meio do governo de si. Além disso, o cuidado de si foucaultiano convoca a uma relação com o outro que é diferente da concepção ensinada às mulheres, pois estas são capturadas por uma ideia deturpada de cuidado que implica a renúncia de si mesma para que não pareça egoística. Contudo, uma vez que não existe cuidado ao outro sem que haja o cuidado de si, é preciso que essas mulheres se (re)apropriem do conhecimento sobre suas próprias vidas, para que possam exercer o direito ao cuidado e proteção como liberdade e, assim, encontrar formas de escape das capturas estruturadas tanto pelo sistema capitalista quanto pelas paixões pessoais que produzam relações de poder desiguais e adoecidas.

As mulheres trabalhadoras da saúde vivem esse dilema, um limiar móvel, que transita do sofrimento pelo que as aprisiona e também as impele a transbordar os próprios limites e experimentar novos possíveis para as forças que as atravessam. Afinal, o trabalho não pode ser a negatividade da vida, mas sim a sua expressão. Assim, se por um lado o trabalho as impede, por outro as potencializa como criadoras de novos mundos e novas possibilidades de vida. No real do trabalho, na atividade em curso, está contida uma ação inventiva de produção de si que perpassa pelo conhecimento de si, permite enfatizar a singularidade e potência dos encontros na compreensão e, principalmente, na transformação do trabalho por aqueles que o fazem, resultando na efetivação do cuidado de si.

Aponta-se a luta histórica societária e civilizatória, não só das mulheres, para romper com práticas naturalizadas e estigmatizantes nas relações. Para ultrapassar essa barreira, faz-se necessário desmistificar a glamourização do cuidado como ‘coisa’ de mulher, um sacerdócio que inclui sacrifícios e renúncias, de anjos de branco, sempre dispostas ao outro e cujo trabalho não tem valor e reconhecimento. Um desafio de rompimentos estruturais que encontra empecilhos na atualidade, em especial num momento histórico em que há banalização do conhecimento científico e especificamente nas ciências sociais e da saúde é incentivada e reproduzida.

Reconhece-se que o presente estudo pode apresentar limitação decorrente da utilização de dados secundários, pelo risco e impossibilidade de se alcançarem dados primários no momento. Outrossim, discute-se um acontecimento em curso, o que permite um debate em construção, vinculado ao período histórico e social. Recomenda-se que ele seja utilizado não a título de generalização, mas como uma aposta singular, que apresenta rigor e relevância para a produção científica, além da possibilidade de criar diálogos entre a saúde e outras áreas do conhecimento, oferecendo uma ampliação das perspectivas que atravessam o trabalho das mulheres em tempos de pandemia.

Nessa perspectiva, o artigo procura problematizar, a partir da crise do cuidado, o corpo feminino mergulhado em um campo político, entendido como efeito-instrumento em uma rede de relações que o designam e o encerram. Os corpos que (se) trabalham são marcados e marcadores de (in)visibilidades sociais que, problematizados aqui, mobilizam e trans-formam. A estratégia de regulamentação da vida direciona a que e a quem? Rastrear essas dissociações no cuidado de si de mulheres trabalhadoras da saúde, durante a pandemia da Covid-19, configura-se como um exercício ético de produção de modos de vida por outra estética de existência que afirma e opera relações de poder-saber centradas no direito à vida e à proteção.

Por fim, a problematização da crise do cuidado, da pandemia e de seus efeitos na vida de mulheres, especialmente das profissionais de saúde, à luz do cuidado de si em Foucault, aponta evidências que direcionam a ir além das necessidades, adequações ou adaptações; encaminham para a construção de respostas provisórias, soluções possíveis que perpassam a ampliação do poder de agir de trabalhadoras da saúde, por um acionamento de forças que encontra na experiência o sentido, na realidade o ‘a-com-tecer’, e se configuram como armas para o travamento de lutas e resistências. A aposta desafia a busca do entendimento e problematização do que vem acontecendo como posicionamento ético, que implica uma mutação subjetiva de si e do mundo. Dito de outra forma, o estudo visibiliza o cuidado de si de trabalhadoras da saúde como caminho possível para a reversão de práticas de dominação, por meio da criação de práticas de liberdade, afirmando a produção do cuidado como criadora de valor e respeito pela vida de todas e todos.

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  • Aprovação da versão para publicação: GBMS; RCDL; JPMB; MCS; MACA.
    Financiamento Não houve.
  • Aspectos éticos Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2020
  • Aceito
    10 Jul 2020
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