Resumo
A proximidade da Atenção Primária à Saúde dos territórios onde vivem as pessoas a torna estratégica no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Nesta pesquisa, analisou-se a gestão do cuidado em uma unidade básica de saúde no contexto da Covid-19 em um município da Zona da Mata de Pernambuco. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso, realizada de agosto a novembro de 2020, por meio de entrevistas semiestruturadas com sete profissionais de saúde. Os dados foram analisados com o uso da técnica da análise de conteúdo. Definiram-se três categorias terminais: organização do processo de trabalho, envolvendo o cancelamento de atividades grupais e a marcação de consultas, bem como o repensar do acolhimento e a educação permanente; tecnologias utilizadas, com predomínio de tecnologias leves para a reorganização do cuidado; e maiores dificuldades para a gestão do cuidado, em que se abordou desde o problema das fake news até a escassez de equipamentos de proteção individual. É necessário investir no fortalecimento da Atenção Primária à Saúde com ênfase na utilização de ferramentas de gestão do cuidado como acolhimento, educação em saúde, educação permanente e tecnologias digitais com a finalidade de ampliar sua resolutividade em cenários de crise como a pandemia pela Covid-19.
Palavras-chave:
Covid-19; cuidados primários à saúde; continuidade da assistência ao paciente; integralidade
Abstract
The proximity of Primary Care to the territories where people live makes it strategic in fighting the COVID-19 pandemic. In this research, care management in a basic health unit was analyzed in the context of COVID-19 in a municipality in the Zona da Mata of Pernambuco, Brazil. It is a qualitative research identified as a case study, carried out from August to November 2020 through semi-structured interviews with seven health professionals. Data was analyzed using the content analysis technique. Three terminal categories were defined: organization of the work process, involving the cancellation of group activities and the scheduling of appointments, as well as the rethinking of reception and continuing education; technologies used, with a predominance of light technologies for the reorganization of care; and greater difficulties in the management of care, which ranged from the problem of fake news to the lack of personal protective equipment. It is necessary to invest in the strengthening of Primary Health Care with an emphasis on the use of care management tools such as reception, health education, continuing education and digital technologies in order to increase its resolution in crisis scenarios such as the COVID-19 pandemic.
Keywords:
Covid-19; primary health care; continuity of patient care; integrality
Resumen
La proximidad de la atención primaria a los territorios donde viven las personas la hace estratégica para hacer frente a la pandemia de Covid-19. En esta investigación, analizamos el manejo de la atención en una unidad básica de salud en el contexto de la Covid-19 en un municipio de la zona de Mata, Pernambuco, Brasil. Se trata de una investigación cualitativa, tipo Estudio de Caso, realizada entre agosto y noviembre de 2020, a través de entrevistas semiestructuradas con siete profesionales de la salud. Los datos fueron analizados con el uso de técnica de análisis de contenido. Se identificó tres categorías de terminales: organización del proceso de trabajo, involucrando la cancelación de actividades grupales, y citas, así como un replanteamiento del anfitrión, y la educación a lo largo de la vida; las tecnologías que se utilizan, con la mayoría de las tecnologías leves para la reorganización del cuidado, y la mayor dificultad en la gestión del cuidado, que se ha abordado desde fake news hasta la escasez de equipos de protección personal. Es necesario invertir en el fortalecimiento de la Atención Primaria de Salud con énfasis en el uso de herramientas de gestión asistencial como la recepción, la educación sanitaria, la educación continua y las tecnologías digitales para ampliar su resolutividad en escenarios de crisis como la pandemia de Covid-19.
Palabras clave:
Covid-19; atención primaria de salud; continuidad de la atención al paciente; integralidad
Introdução
Em dezembro de 2019, registrou-se o primeiro caso da síndrome respiratória aguda grave causada pelo coronavírus 2 (SARS-CoV-2) na cidade de Wuhan, na China, a qual a Organização Mundial da Saúde (OMS) nomeou de Covid-19, doença de coronavírus 2019 (They, 2020THEY, Ng H. Uma breve linha do tempo. 2020. Disponível em: https://www.ufrgs.br/coronaviruslitoral/uma-breve-linha-do-tempo . Acesso em: 12 set. 2020.
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). Por ser uma doença viral de alto poder de transmissão, em março de 2020 a OMS declarou tratar-se de uma pandemia, pois já acometia vários países em todo o mundo (Oliveira e Morais, 2020OLIVEIRA, Erivan S.; MORAIS, Arlandia C. L. N. Covid-19: uma pandemia que alerta a população. InterAmerican Journal of Medicine and Health, v. 3, p. 1-7, 2020. DOI: 10.31005/iajmh.v3i0.80. Disponível em: https://www.iajmh.com/iajmh/article/view/80 . Acesso em: 12 fev. 2021.
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).
A Covid-19 apresenta uma baixa taxa de letalidade, cerca de 0,6% dos casos confirmados vão a óbito. No entanto, a velocidade de transmissão do vírus é um dos grandes desafios enfrentados em todo o mundo, em razão da potencialidade que esse fato tem de causar o adoecimento de grande número de pessoas ao mesmo tempo, levando os sistemas de saúde ao risco de colapso (They, 2020THEY, Ng H. Uma breve linha do tempo. 2020. Disponível em: https://www.ufrgs.br/coronaviruslitoral/uma-breve-linha-do-tempo . Acesso em: 12 set. 2020.
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).
Muitos pesquisadores têm ressaltado a relevância da Atenção Primária à Saúde (APS) no enfrentamento dessa pandemia, visto que a maior parte dos casos confirmados de Covid-19 é considerada leve e, portanto, de possível manejo por equipes que atuam nesse nível assistencial. Além disso, as equipes que atuam na APS podem ser o recurso mais estratégico para prevenir, manejar e controlar outros tipos de agravos/doenças que permanecem gerando demanda sobre os sistemas de saúde, desenvolver a vigilância da Covid-19 e dar suporte a grupos vulneráveis (Giovanella et al., 2021GIOVANELLA, Ligia et al. ¿Es la atención primaria de salud integral parte de la respuesta a la pandemia de Covid-19 en Latinoamérica?Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 19, e00310142, 2021. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00310. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/CJX9Rs5gSBJmsMrfwhkdJrL/?lang=es . Acesso em: 20 jul. 2021.
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; Medina et al., 2020MEDINA, Maria G. et al. Atenção Primária à Saúde em tempos de Covid-19: o que fazer? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 8, e00149720, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00149720. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/csp/2020.v36n8/e00149720/pt /. Acesso em: 12 jan. 2021.
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).
A APS é espaço privilegiado para a ação coletiva, na informação e no envolvimento da sociedade, no cuidado comunitário durante medidas de isolamento, na promoção da saúde, nos cuidados iniciais e na contenção da transmissão. Assim, contribui para a ampla mobilização em torno desse enfrentamento, como única forma de incluir toda a população e não deixar ninguém para trás (Giovanella et al., 2021GIOVANELLA, Ligia et al. ¿Es la atención primaria de salud integral parte de la respuesta a la pandemia de Covid-19 en Latinoamérica?Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 19, e00310142, 2021. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00310. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/CJX9Rs5gSBJmsMrfwhkdJrL/?lang=es . Acesso em: 20 jul. 2021.
https://www.scielo.br/j/tes/a/CJX9Rs5gSB...
; Basile, 2020BASILE, Gonzalo. El gobierno de la microbiología en la respuesta al SARS-CoV-2.Salud Problema, n. 27, p. 14-35, 2020. Disponível em: https://www.clacso.org/wp-content/uploads/2020/11/Revista-Salud-Problema-2020-El-Gobierno-de-la-microbiologi%CC%81a-en-la-respuesta-SARS-CoV-2.pdf . Acesso em: 14 jan. 2021.
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).
As equipes que atuam na APS podem realizar diagnóstico precoce, tratamento, acompanhamento, monitoramento de casos e contribuir para a promoção do isolamento social por meio de ações de educação em saúde e mobilização comunitária (Barbosa e Silva, 2020BARBOSA, Simone P.; SILVA, Ana V. F. G. A prática da Atenção Primária à Saúde no combate da Covid-19.APS em Revista, Belo Horizonte, v. 2, n. 1, p. 17-19, 2020. DOI: 10.14295/aps.v2i1.62. Disponível em: https://apsemrevista.org/aps/article/view/62 . Acesso em: 16 abr. 2021.
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). Contudo, a pandemia chegou em um momento de mudanças na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). Essas mudanças compreendem as apresentadas na versão da PNAB de 2017, a criação da Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS) e da Carteira de Serviços da Atenção Básica, que define uma ‘cesta básica’ de ações e serviços a serem ofertados, as últimas criadas em 2019. Importa destacar a flexibilização da inserção dos agentes comunitários de saúde (ACSs) nas equipes de Saúde da Família (eSFs) e equipes de Atenção Básica (eABs), indo na contramão dos princípios de territorialização, caráter comunitário e de promoção à saúde da Estratégia Saúde da Família (ESF). Além disso, a criação da ADAPS constitui uma brecha legal para o crescimento do setor privado na rede de atenção básica nacional (Giovanella, Franco e Almeida, 2020GIOVANELLA, Ligia; FRANCO, Cassiano M.; ALMEIDA, Patty F. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 4, p. 1.475-1.482, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020254.01842020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/TGQXJ7ZtSNT4BtZJgxYdjYG/?lang=pt . Acesso em: 11 set. 2020.
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; Morosini, Fonseca e Baptista, 2020MOROSINI, Márcia V. G. C.; FONSECA, Angélica F.; BAPTISTA, Tatiana W. F. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 36, n. 9, e00040220, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00040220. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/Hx4DD3yCsxkcx3Bd6tGzq6p/?lang=pt&format=html . Acesso em: 31 mar. 2021.
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).
O Previne Brasil, lançado em novembro de 2019, estabeleceu um novo modelo de financiamento da Atenção Básica, que passou a vigorar em 2020, quando foi extinto o Piso de Atenção Básica (PAB) fixo e variável, eliminando o repasse de recursos per capita e estabelecendo o repasse de recursos com base no cadastramento da população, na avaliação de desempenho das equipes e na adesão a programas específicos, definidos pelo Ministério da Saúde (Morosini, Fonseca e Baptista, 2020MOROSINI, Márcia V. G. C.; FONSECA, Angélica F.; BAPTISTA, Tatiana W. F. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 36, n. 9, e00040220, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00040220. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/Hx4DD3yCsxkcx3Bd6tGzq6p/?lang=pt&format=html . Acesso em: 31 mar. 2021.
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). O atual financiamento fragiliza os princípios da universalidade e integralidade em saúde, reforçando a compreensão reducionista de trabalho em equipe ao priorizar algumas profissões como medicina, enfermagem e odontologia, em detrimento de outras que compõem as equipes do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB), que teve seu financiamento específico extinto pelo Previne Brasil.
Essa série de transformações implementadas no âmbito da gestão federal da APS no Brasil corrobora fortemente a fragilização da perspectiva universal e ampliada e a dimensão familiar e comunitária da PNAB. Nesse cenário político, o país atravessa, desde o início de 2020, uma crise social e sanitária provocada pela pandemia da Covid-19, que agigantou os desafios já enfrentados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pelas equipes que atuam no âmbito da APS.
Agrega-se à situação nacional a prevalência internacional da opção pelo modelo de resposta com ênfase na intervenção individual e hospitalar em detrimento do fortalecimento de uma rede de enfrentamento da pandemia a partir da APS e de estratégias comunitárias intersetoriais, o que tem sido apontado por vários estudos, desde o início da pandemia de Covid-19 (Basile, 2020BASILE, Gonzalo. El gobierno de la microbiología en la respuesta al SARS-CoV-2.Salud Problema, n. 27, p. 14-35, 2020. Disponível em: https://www.clacso.org/wp-content/uploads/2020/11/Revista-Salud-Problema-2020-El-Gobierno-de-la-microbiologi%CC%81a-en-la-respuesta-SARS-CoV-2.pdf . Acesso em: 14 jan. 2021.
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; Medina et al., 2020MEDINA, Maria G. et al. Atenção Primária à Saúde em tempos de Covid-19: o que fazer? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 8, e00149720, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00149720. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/csp/2020.v36n8/e00149720/pt /. Acesso em: 12 jan. 2021.
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; Giovanella et al., 2021GIOVANELLA, Ligia et al. ¿Es la atención primaria de salud integral parte de la respuesta a la pandemia de Covid-19 en Latinoamérica?Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 19, e00310142, 2021. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00310. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/CJX9Rs5gSBJmsMrfwhkdJrL/?lang=es . Acesso em: 20 jul. 2021.
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; Souza et al., 2020SOUZA, Wayner V. et al. Cem dias de Covid-19 em Pernambuco, Brasil: a epidemiologia em contexto histórico. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 36, n. 11, e00228220, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00228220. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/9fftqsXHZwBPhCZs6jf448q/?format=html⟨=pt . Acesso em: 13 set. 2020.
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).
O enfrentamento da pandemia, nesse contexto, tem exigido muito esforço técnico, afetivo e criativo dos profissionais da saúde para reorganizar ou inovar as práticas e rotinas desenvolvidas nos serviços de saúde, especialmente na APS. Com isso, foi e é necessário desenvolver um conjunto de intervenções efetivas para a APS, expandindo a educação permanente dos profissionais da ESF, tendo em vista a tensão que vivenciam no contexto de enfrentamento da pandemia e as necessidades de manutenção de suas atividades no território onde atuam (Facchini, 2020FACCHINI, Luiz A. Covid-19: nocaute do neoliberalismo? Será possível fortalecer os princípios históricos do SUS e da APS em meio à pandemia?APS em Revista , Belo Horizonte, v. 2, n. 1, p. 3-10, 2020. DOI: 10.14295/aps.v2i1.73. Disponível em: https://www.apsemrevista.org/aps/article/view/73 . Acesso em: 8 jan. 2021.
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).
Nesse conjunto de mudanças do ‘fazer em saúde no contexto da pandemia’, também é preciso implementar ferramentas de gestão do cuidado que possam apoiar o desenvolvimento de práticas integrais de cuidado em saúde (Santos e Giovanella, 2016SANTOS, Adriano M.; GIOVANELLA, Ligia. Gestão do cuidado integral: estudo de caso em região de saúde da Bahia, Brasil. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 32, n. 3, e00172214, 2016. DOI: 10.1590/0102-311X00172214. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/Cv8VccfnPcZSq7dsvsqDHhS/?lang=pt&format=html . Acesso em: 21 mar. 2021.
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). Especificamente na APS, existem algumas ferramentas que podem ser utilizadas para gerir o cuidado, tais como: Projeto Terapêutico Singular (PTS), apoio matricial, acolhimento e clínica ampliada, que vinham sendo implementadas de forma mais potencializada pela atuação das equipes do NASF-AB (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. 116 p. (Cadernos de Atenção Básica, n. 39).).
A gestão do cuidado deve ser realizada a partir da implementação de diversas tecnologias classificadas por Merhy (2002MERHY, Emerson E. Em busca de ferramentas analisadoras das tecnologias em saúde: a informação e o dia a dia de um serviço, interrogando e gerindo trabalho em saúde. In: MERHY, Emerson E.; ONOCKO-CAMPOS, Rosana T. (orgs.). Agir em saúde: um desafio para o público. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2002. p. 113-150. ) como: leves, referentes às relações sociais; leves-duras, relacionadas aos saberes estruturados, tais como as teorias; e duras, que são referentes aos recursos materiais.
A utilização das tecnologias referentes às relações sociais presentes nos processos gerenciais - como o acolhimento, o vínculo, a autonomização e a responsabilização - pode intervir na produção do cuidado. Essas tecnologias são provenientes das relações humanas com o intuito de satisfazer as necessidades dos usuários e valorizar os envolvidos (trabalhador e usuário de saúde) visando ao fortalecimento da concretização do cuidado (Silva et al., 2019SILVA, Naélia V. N. et al. Tecnologias em saúde e suas contribuições para a promoção do aleitamento materno: revisão integrativa da literatura. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, p. 589-602, 2019. DOI: 10.1590/1413-81232018242.03022017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/RG9dKm34fMFyLFXpQswv7Rv/abstract/?lang=pt . Acesso em: 21 maio 2021.
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).
Para uma gestão efetiva do cuidado devem-se articular todos os tipos de tecnologias em saúde, pois os sujeitos têm necessidades complexas, desde uma escuta qualificada no acolhimento, seguindo protocolos, até um procedimento de maior densidade tecnológica (Grabois, 2011GRABOIS, Victor. Gestão do cuidado. In: GONDIM, Roberta; GRABOIS, Victor; MENDES, Walter (orgs.). Qualificação dos gestores do SUS. 2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz/ENSP/EAD, 2011. p. 153-197.). Esse processo se torna particularmente relevante no enfrentamento de contextos complexos, como é o caso do enfrentamento da pandemia da Covid-19.
No entanto, é importante destacar que não há uma única forma de organizar essa rede de cuidados, principalmente em um país com realidades tão diversas como o Brasil. Assim, cada município tem desenvolvido um processo de reorganização do trabalho das equipes que atuam na APS, com vistas a implementar as melhores estratégias de cuidado de acordo com a necessidade e a realidade local de cada território (Geraldo, Farias e Sousa, 2021GERALDO, Sineide M.; FARIAS, Shirlley J. M.; SOUSA, Fabiana O. S. A atuação da Atenção Primária no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil. Research, Society and Development, v. 10, n. 8, p. e42010817359, 2021. DOI: 10.33448/rsd-v10i8.17359. Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/17359 . Acesso em: 20 jul. 2021.
https://rsdjournal.org/index.php/rsd/art...
).
Nesse sentido, estudos aprofundados sobre a realidade de cada território e a análise das estratégias de gestão do cuidado empreendidas no âmbito da APS são relevantes para a construção de conhecimento que subsidie os serviços de saúde cenários semelhantes ao da pandemia de Covid-19. Este estudo teve, portanto, como objetivo analisar a gestão do cuidado em uma unidade básica de saúde no contexto da pandemia de Covid-19 em um município da Zona da Mata de Pernambuco.
Percurso metodológico
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso. Foi realizada no período de agosto a novembro de 2020, em uma unidade básica de saúde de um município de grande porte da Zona da Mata de Pernambuco.
O referido município está localizado a 46 quilômetros da capital pernambucana e tem uma população estimada de 140.389 habitantes em 2021 (IBGE, 2021INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/pe/vitoria-de-santo-antao.html . Acesso em: 27 set. 2021.
https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estado...
). A rede de APS do município é composta por 38 unidades básicas de saúde, cinco equipes de NASF-AB, uma equipe de atenção domiciliar e duas academias da saúde.
Para a realização deste estudo, escolheu-se uma unidade básica de saúde que atendesse ao critério de ser referência na formação de novos profissionais de saúde, onde vários trabalhadores da eSF e do NASF-AB atuassem como preceptores de estudantes de graduação ou programas de residência multiprofissional. A unidade selecionada possui duas eSFS, totalizando dois enfermeiros e um enfermeiro residente, três técnicos de enfermagem, dois médicos, dois dentistas, dois auxiliares de saúde bucal (ASBs), 16 ACSs, um auxiliar de serviços gerais e um vigilante. Além disso, é apoiada pela equipe do NASF-AB, composta por um profissional e dois residentes de educação física, um profissional e um residente de psicologia, dois fisioterapeutas, um nutricionista, um profissional e um residente de fonoaudiologia, um sanitarista residente e um assistente social.
Realizaram-se entrevistas com cinco profissionais da eSF e dois do NASF-AB, de forma a contemplar uma variedade de funções/profissões atuantes nesse âmbito. Assim, foram dois profissionais de nível médio e cinco de nível superior. Incluíram-se os profissionais que, voluntariamente, aceitaram participar da pesquisa e que atenderam ao critério de inclusão de ter, pelo menos, um mês de experiência na eSF ou no NASF-AB durante o processo da pandemia.
O método de coleta de dados foi a entrevista semiestruturada, realizada com base em um roteiro que contemplava questões sobre organização do funcionamento da unidade básica de saúde, mudanças implementadas no processo de trabalho das equipes, atividades realizadas, uso de tecnologias e principais dificuldades enfrentadas pelos profissionais durante a pandemia.
Todas as entrevistas foram realizadas em dia e horário de acordo com a disponibilidade de cada participante. Considerando-se que no período da coleta de dados o município estudado ainda apresentava alto número de casos confirmados de Covid-19, optou-se por realizar as entrevistas de modo remoto. Utilizou-se a ferramenta Google Meet, com solicitação da autorização para gravação da entrevista para posterior transcrição e análise. As entrevistas variaram entre 15 e 60 minutos.
As entrevistas foram transcritas e validadas por dois pesquisadores. Analisaram-se os dados por meio da técnica da análise de conteúdo seguindo uma sequência cronológica de pré-análise, exploração do material, tratamento e interpretação, que permitiu a identificação de categorias de análise emergentes ou terminais, aquelas definidas de acordo com a análise das entrevistas (Bardin, 2000BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2000.). Tal análise permitiu a identificação de três categorias analíticas terminais: organização do processo de trabalho; tipos de tecnologias utilizadas; e maiores dificuldades para a gestão do cuidado no contexto da pandemia.
Esta pesquisa foi aprovada por um Comitê de Ética em Pesquisa.
Organização do processo de trabalho das equipes
Os trabalhadores relataram dificuldades no início da pandemia, principalmente pela falta de informações e de equipamento de proteção individual (EPI). Uma profissional informou que as equipes tiveram apenas uma reunião com a gestão municipal, em que se explanou, de modo superficial, todo o cenário pandêmico, assim como foram dadas informações sobre o funcionamento do serviço.
A definição e pactuação de um novo fluxo de funcionamento das unidades básicas de saúde e a reorganização das atividades só foram possíveis após algumas reuniões realizadas pelas equipes e a publicação de notas técnicas pelas secretarias municipal e estadual de saúde, conforme a fala de um profissional da ESF:
Na verdade, tivemos só uma reunião, logo quando começou. E aí, nesta reunião, foi repassado tudo. Como é que ia ser, de maneira assim, bem geral. Como é que a gente ia trabalhar. Porque a gente tinha dúvida quanto à estrutura, a gente tinha dúvida em relação às outras consultas rotineiras, como é que a gente ia atender essas pessoas, a gente tinha dúvida como é que a gente ia trazer esse público que tinha sintomas de síndrome gripal, sem se misturar com as outras pessoas que estavam ali. Então, assim, logo no ápice, foi bastante difícil. Aí depois melhorou mais, porque saíram notas técnicas, saíram vários decretos e foi norteando a gente. (ESF4)
A dificuldade relatada pelos profissionais para a organização interna do processo de trabalho e o frágil direcionamento da gestão municipal para a orientação das equipes nos primeiros meses da pandemia podem refletir a opção que muitos governos assumiram por um modelo de intervenção individual e hospitalar, em detrimento do fortalecimento de uma rede de enfrentamento da pandemia a partir da APS e de estratégias comunitárias intersetoriais (Basile, 2020BASILE, Gonzalo. El gobierno de la microbiología en la respuesta al SARS-CoV-2.Salud Problema, n. 27, p. 14-35, 2020. Disponível em: https://www.clacso.org/wp-content/uploads/2020/11/Revista-Salud-Problema-2020-El-Gobierno-de-la-microbiologi%CC%81a-en-la-respuesta-SARS-CoV-2.pdf . Acesso em: 14 jan. 2021.
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; Medina et al., 2020MEDINA, Maria G. et al. Atenção Primária à Saúde em tempos de Covid-19: o que fazer? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 8, e00149720, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00149720. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/csp/2020.v36n8/e00149720/pt /. Acesso em: 12 jan. 2021.
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; Giovanella et al, 2021GIOVANELLA, Ligia et al. ¿Es la atención primaria de salud integral parte de la respuesta a la pandemia de Covid-19 en Latinoamérica?Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 19, e00310142, 2021. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00310. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/CJX9Rs5gSBJmsMrfwhkdJrL/?lang=es . Acesso em: 20 jul. 2021.
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; Souza et al., 2020SOUZA, Wayner V. et al. Cem dias de Covid-19 em Pernambuco, Brasil: a epidemiologia em contexto histórico. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 36, n. 11, e00228220, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00228220. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/9fftqsXHZwBPhCZs6jf448q/?format=html⟨=pt . Acesso em: 13 set. 2020.
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).
Os trabalhadores refletem as incertezas e as dificuldades em definir como a APS deveria atuar, como fica explícito na fala a seguir:
Não voltou 100% ainda, só está com 50% do serviço. (...) No início, a orientação que a gente tinha era pra cuidar primeiro da vida da gente pra poder cuidar dos outros. Mas a gente se organizou, revezou, evitou aglomeração, mas o pessoal do posto trabalhou normalmente, só diminuiu 50%, até chegarem as informações e a Secretaria de Saúde fazer reuniões com a gente para orientar melhor. (ESF1)
A gente deixou de mão essa... a gente deixou à mercê da sorte essa comunidade logo no início... aí uma coisa que eu fiquei muito assim... frustrado... foi... minha sensação era de frustração... eu queria fazer alguma coisa, e... você está de mãos atadas. (NASF2)
Os resultados deste estudo revelaram o sofrimento dos trabalhadores com dúvidas sobre como deveriam enfrentar a pandemia e a dificuldade que os gestores apresentaram em orientar e apoiar as equipes que atuam na unidade básica de saúde estudada na reorganização de seu processo de trabalho.
Dentre as mudanças implementadas, elencam-se: o revezamento de profissionais presentes na unidade básica de saúde para não gerar aglomeração; a mudança da sala de vacina para um local mais isolado; o agendamento com hora marcada para alguns usuários; e a definição de locais de atendimento para usuários sintomáticos respiratórios distintos dos demais. Esse processo demandou muito diálogo entre os profissionais e a gestão municipal.
A gente conseguia fazer algumas reuniões para tentar organizar isso, e a gente recebia o palpite de um e de outro, e assim foi reorganizando. Conversava também com o pessoal da secretaria. Teve uma tarde mesmo que a gente ficou até fora do nosso horário, marcando o chão com fita, colocando papéis nas cadeiras para poder demarcar, para direcionar onde era [sic] as pessoas da vacina, em que corredor a gente ia colocar os demais. (ESF4)
Reduzimos o número de atendimentos, construímos um protocolo de como seria essa volta, quais cuidados nós teríamos, o uso de EPIs, a quantidade limitada de atendimentos, marcar pacientes por hora, para não chegar tudo de uma vez e aglomerar no posto. (NASF1)
Contudo, esse processo de organização foi diferente para as eSFs e para o NASF-AB. Durante os primeiros meses da pandemia, os profissionais do NASF-AB não atuaram de forma direta na APS, porque foram remanejados pela gestão do município para trabalharem na fiscalização de barreiras sanitárias nas estradas de acesso ao município. Essa decisão reflete a pouca clareza da equipe gestora em relação ao potencial do trabalho interprofissional para garantia de intervenções mais eficazes na atenção à saúde da população que vive com condições ou doenças crônicas, por exemplo.
Uma coisa que a gente não fez e que deveria, era sentar e conversar todo mundo. Dizer assim: “oh, pessoal, a gente está vivendo isso, o que a gente pode fazer?” (NASF2)
A gente do NASF-AB foi deslocada para outras atividades, outras ações de conscientização da população nas barreiras sanitárias, então tivemos que mudar realmente toda nossa forma de trabalho que a gente vinha fazendo. (NASF1)
Para cumprir o papel da APS no enfrentamento da pandemia e no cuidado regular com a saúde da população, as eSFs precisaram reorganizar todo o seu processo de trabalho para atender à população em cenário de pandemia. Com isso, veio o desafio de se pensar em conjunto novas formas de atendimento e desenvolvimento das atividades, respeitando os protocolos de biossegurança (Maciel et al., 2020MACIEL, Fernanda B. M. et al. Agente comunitário de saúde: reflexões sobre o processo de trabalho em saúde em tempos de pandemia de Covid-19. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, supl. 2, p. 4.185-4.195, 2020. DOI: 10.1590/1413-812320202510.2.28102020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/XsyXgfVksPRS38tgfYppqBb/?lang=pt . Acesso em: 27 abr. 2021.
https://www.scielo.br/j/csc/a/XsyXgfVksP...
).
Foi possível identificar neste estudo que, mesmo com o frágil direcionamento da gestão municipal no início da pandemia, as equipes de saúde demonstraram esforço e diálogo entre si para a construção e manutenção das atividades no município estudado. Contudo, chamou a atenção o frágil direcionamento para o trabalho da equipe do NASF-AB, indicando uma dificuldade de se reconhecer o papel que essa equipe poderia desenvolver no enfrentamento da pandemia. Isso pode ser decorrente de vários aspectos, como: pouco reconhecimento da gestão sobre a importância do NASF-AB; frágil consolidação do processo de trabalho do NASF-AB antes da pandemia; e predominância do modelo curativista para enfrentamento da crise sanitária com enfoque, apenas, nos serviços de urgência, emergência e hospitalar, além da incerteza de futuro da estratégia NASF-AB, considerando a extinção de seu custeio federal (Nascimento e Cordeiro, 2019NASCIMENTO, Arthur G.; CORDEIRO, Joselma C. Núcleo ampliado de saúde da família e atenção básica: análise do processo de trabalho. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, e0019424, 2019. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00194. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/tWS99FwJwhn55N9jGLSNDhR/abstract/?lang=pt . Acesso em: 17 jan. 2021.
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; Giovanella, Franco e Almeida, 2020GIOVANELLA, Ligia; FRANCO, Cassiano M.; ALMEIDA, Patty F. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 4, p. 1.475-1.482, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020254.01842020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/TGQXJ7ZtSNT4BtZJgxYdjYG/?lang=pt . Acesso em: 11 set. 2020.
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).
Com o objetivo de evitar aglomerações, as atividades grupais e consultas eletivas foram canceladas. Logo, a ênfase do trabalho das equipes passou a ser o atendimento de pessoas com sintomas de Covid e a população considerada de risco. Todavia, os atendimentos de pré-natal e puericultura continuaram sendo realizados, mas com dia e horário agendados, evitando assim aglomeração na unidade básica de saúde. A realidade de algumas pessoas que ficaram desassistidas desde o início da pandemia, principalmente os doentes crônicos, por não indicação de frequentar o serviço de saúde, deve ser revertida com busca ativa para acompanhamento e monitoramento.
O que a gente conseguiu fazer logo nesse ápice eram atendimentos urgentes, eram aqueles casos que tinham realmente aquelas visitas de idoso frágil, que a gente não tinha de maneira nenhuma deixar esperar. Tudo que tinha atividade de grupos, tudo foi cancelado porque não podia ter essa aglomeração. A gente fazia muita consulta de pacientes com sintoma de coronavírus, com síndrome gripal. Questão de pré-natal não parou [...] só que a gente marcava um horário separado. [...] Muitos ACSs tentavam ajudar pessoas e passar informações via WhatsApp, grupos que eles tinham com as mães. (ESF4)
A gente tá atendendo demanda espontânea, dando preferência para os pacientes que têm de certa forma uma urgência no atendimento. Então, eu aproveito esses pacientes que chegam pra mim com uma demanda de renovação de receita, com alguma outra queixa pra perguntar também sobre os problemas de base dele, sobre outras questões, pra tentar organizar eles quanto a isso. Depois da pandemia, muitos pacientes ficaram sem acompanhamento nenhum. (ESF5)
Há relatos internacionais exitosos que mostram a eficiência do uso da telemedicina como um instrumento importante para a garantia de assistência à saúde em contextos de emergências e crises (Binda Filho e Zaganelli, 2020BINDA FILHO, Douglas L.; ZAGANELLI, Margareth V. Telemedicina em tempos de pandemia: serviços remotos de atenção à saúde no contexto da Covid-19.Humanidades & Tecnologia (FINOM), Paracatu, v. 25, n. 1, p. 115-133, 2020. Disponível em: http://revistas.icesp.br/index.php/FINOM_Humanidade_Tecnologia/article/view/1290 . Acesso em: 29 dez. 2020.
http://revistas.icesp.br/index.php/FINOM...
). No contexto da pandemia pela Covid-19, em que é fundamental evitar aglomerações nas unidades de saúde e ao mesmo tempo garantir atendimento e acompanhamento não só às pessoas suspeitas de Covid-19 ou com Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), mas também às pessoas com doenças crônicas que necessitam de um monitoramento contínuo, os recursos tecnológicos para atendimento a distância também foram muito utilizados (Caetano et al., 2020CAETANO, Rosângela et al. Desafios e oportunidades para telessaúde em tempos da pandemia pela Covid-19: uma reflexão sobre os espaços e iniciativas no contexto brasileiro.Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 5, p. e00088920, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00088920. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/csp/2020.v36n5/e00088920 /. Acesso em: 20 jan. 2021.
https://www.scielosp.org/article/csp/202...
; Geraldo, Farias e Sousa, 2021GERALDO, Sineide M.; FARIAS, Shirlley J. M.; SOUSA, Fabiana O. S. A atuação da Atenção Primária no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil. Research, Society and Development, v. 10, n. 8, p. e42010817359, 2021. DOI: 10.33448/rsd-v10i8.17359. Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/17359 . Acesso em: 20 jul. 2021.
https://rsdjournal.org/index.php/rsd/art...
). Contudo, algumas unidades básicas de saúde do Brasil têm dificuldade de acesso à internet e possuem um número mínimo de computadores, fazendo-se necessária a aquisição destes para melhor atendimento à comunidade (Cabral et al., 2020CABRAL, Elizabeth R. M. et al. Contributions and challenges of the Primary Health Care across the pandemic Covid-19. InterAmerican Journal of Medicine and Health, v. 3, p. 1-12, 2020. DOI: 10.31005/iajmh.v3i0.87. Disponível em: https://iajmh.emnuvens.com.br/iajmh/article/view/87/130 . Acesso em: 21 jan. 2021.
https://iajmh.emnuvens.com.br/iajmh/arti...
).
Uma modificação importante foi a interrupção das atividades dos ACSs diretamente no território. Tais profissionais ficaram trabalhando em escala de rodízio na unidade básica de saúde. Essa é uma mudança também relatada em outros estudos (Fernandez, Lotta e Corrêa, 2021FERNANDEZ, Michelle; LOTTA, Gabriela; CORRÊA, Marcela. Desafios para a Atenção Primária à Saúde no Brasil: uma análise do trabalho das agentes comunitárias de saúde durante a pandemia de Covid-19.Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 19, e00321153, 2021. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00321. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/qDg6fnxcSZbgtB9SYvnBK8w/?format=html . Acesso em: 9 maio 2021.
https://www.scielo.br/j/tes/a/qDg6fnxcSZ...
), que pode ter interferido negativamente no acesso da população a algumas informações e ações de prevenção importantes nesse momento.
No início, começamos a trabalhar com o sistema de rodízio, tinha os dias da gente ir e os dias de ficar em casa. Os dias que a gente ia, era só recebendo a população, não ia pra área, não tinha contato nenhum com o pessoal da área. Só quando tinha caso para encaminhar para o hospital, a gente tava encaminhando e orientando as pessoas. Quando era um caso mais leve, uma coisa que a gente via que não tinha necessidade do hospital, a gente resolvia. (ESF2)
No momento em que foram realizadas as entrevistas, já haviam sido liberadas consultas eletivas, mas com uma quantidade limitada por turno, tanto para eSF como para NASF-AB, tendo em vista o expressivo aumento de demanda por nutricionista e psicólogo.
Há alguns meses que nós estamos retomando nossas atividades: atendimentos, visitas domiciliares, só os grupos que ainda continuam de forma on-line (dois grupos), mas existe grande dificuldade da população em lidar com a tecnologia. Nosso educador físico tem uma relação muito boa com os comunitários e chegou a ir na casa deles, visitar durante essa pandemia. Então alguns que ele conseguiu contato, ele conseguiu manter esse vínculo. Visita domiciliar a gente só está fazendo uma por dia, aos acamados e casos de urgência, usando os EPIs necessários e trocar se por acaso for fazer outra visita naquela mesma manhã. Aumentou bastante a demanda por psicologia e nutrição. (NASF1)
Em Salvador, Bahia, houve uma experiência semelhante para a classificação da população. O Ambulatório da Comunidade, unidade docente-assistencial da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, é um lócus de cuidado e prática para o Programa de Residência em Medicina de Família e Comunidade que realiza atendimentos à população descoberta pela ESF. Após discussão para a reorganização do processo de trabalho no decorrer da pandemia, fez-se uma revisão da lista dos pacientes acompanhados no ambulatório. Em seguida, a equipe entrou em contato, por meio de um aplicativo, com os prioritários para atendimento, fazendo agendamento das pessoas com mais necessidade de exame físico e demais orientações presenciais (Santos, França e Santos, 2020SANTOS, Andreia B. S.; FRANÇA, Marcus V. S.; SANTOS, Juliane L. F. Atendimento remoto na APS no contexto da Covid-19: a experiência do ambulatório da comunidade da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública em Salvador, Bahia. APS em Revista , Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 169-176, 2020. DOI: 10.14295/aps.v2i2.120. Disponível em: https://www.apsemrevista.org/aps/article/view/120 . Acesso em: 9 jul. 2020.
https://www.apsemrevista.org/aps/article...
).
Tipos de tecnologias utilizadas
Os entrevistados relataram fazer mais uso da tecnologia leve, como diálogo, acolhimento, reuniões, educação e promoção em saúde, como orientações e atividade física e apoio matricial.
Na unidade básica de saúde, principalmente, a gente utiliza mais tecnologia leve, questão de diálogo, de conversa, o acolhimento das pessoas. Então, assim, isso foi algo muito importante durante a pandemia. Eu sinto que a questão do acolhimento é algo que precisa muito trabalhar. [...] (ESF4)
A tecnologia leve-dura, como o instrumento feito para a categorização dos grupos de atividade física, e os protocolos e decretos estaduais para liberação e operacionalização das atividades econômicas também foram bastante utilizados pelas equipes.
“A gente fazia chamada de vídeo com a comunidade e ministrava aula a distância pelo WhatsAppcom o pessoal do grupo que tinha mais vínculo. A gente criou uma ferramenta pra filtrar essa população, tipo um semáforo. O vermelho era o grupo idoso que a gente ia ligar a cada 15 dias pra perguntar como é que estava o isolamento e passar orientações; o grupo amarelo, que era um grupo que a gente fazia chamada de vídeo, dava orientações e fazia um alongamento, que é uma atividade um pouco mais leve; e o grupo verde, que é um grupo que não tem hipertensão, nem diabetes [...] (NASF2)”
Apesar de não terem sido citadas, sabe-se que na APS existem algumas ferramentas que podem ser utilizadas para a gestão do cuidado, tais como: Projeto Terapêutico Singular, apoio matricial, acolhimento e clínica ampliada. O NASF-AB oferta retaguarda assistencial às equipes, por meio do apoio multiprofissional, e potencializa o uso dessas ferramentas (Santos et al., 2016SANTOS, Jaciara A. D. et al. Ferramenta de abordagem familiar na atenção básica: um relato de caso. Journal of the Health Sciences Institute, v. 34, n. 4, p. 249-252, 2016. Disponível em: https://repositorio.unip.br/wp-content/uploads/2020/12/V34_n4_2016_p249a252.pdf . Acesso em: 20 jan. 2021.
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). Com todo esse leque de instrumentos, a eSF e o NASF-AB devem pensar coletivamente em estratégias motivacionais para que a população continue ativa nessas práticas de promoção à saúde. Cabe à equipe da Secretaria Municipal de Saúde se reunir aos trabalhadores da APS e planejar como ‘gerir’ essas ferramentas para construir ou implementar um cuidado integral e resolutivo.
Como tecnologia dura, o software WhatsApp e o aparelho celular foram e estão sendo largamente utilizados pelos profissionais para a realização de atividades grupais e para dar orientações e sanar dúvidas, muito pelo empenho pessoal dos trabalhadores. Todavia, com o passar do tempo, a adesão dos usuários às atividades grupais virtuais foi diminuindo. Alguns profissionais acreditam que essa dificuldade de manter a participação está relacionada tanto ao acesso da população aos aparelhos celulares e à conexão com internet quanto ao estímulo de participar das atividades sem a mesma interação que tinham presencialmente.
A gente utilizou o aparelho celular pra fazer a comunicação com os comunitários que conseguiam, porque a maioria deles não consegue, muitos não têm acesso também, então teve essa dificuldade. (NASF1)
É mais usada a internet. Porta a porta a gente faz as orientações. A gente fez muito chamada de vídeo. Os meus comunitários que são diabéticos e hipertensos, eu fiz um grupo e dava orientações. Mas depois que voltou o ‘porta a porta’, serve só para algumas dúvidas que eles têm pra tirar. (ESF1)
No Brasil, alguns municípios desenvolveram estratégias locais para utilizar tecnologias digitais no atendimento da população (Geraldo, Farias e Sousa, 2021GERALDO, Sineide M.; FARIAS, Shirlley J. M.; SOUSA, Fabiana O. S. A atuação da Atenção Primária no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil. Research, Society and Development, v. 10, n. 8, p. e42010817359, 2021. DOI: 10.33448/rsd-v10i8.17359. Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/17359 . Acesso em: 20 jul. 2021.
https://rsdjournal.org/index.php/rsd/art...
). No entanto, não houve um investimento ou estratégia coordenada pelo governo federal para ampliar o teleatendimento ou atendimento remoto. Em Florianópolis, Santa Catarina, as equipes de APS também foram orientadas a realizar busca ativa telefônica por meio de WhatsApp de usuários em situações clínicas de maior risco ou vulnerabilidade. A ligação para os pacientes com risco moderado era feita em forma de atendimento a distância como fosse possível, e o atendimento presencial funcionou para os demais pacientes (Silveira e Zonta, 2020SILVEIRA, João P. M.; ZONTA, Ronaldo. Experiência de reorganização da APS para o enfrentamento da Covid-19 em Florianópolis. APS em Revista , Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 91-96, 2020. DOI: 10.14295/aps.v2i2.122. Disponível em: https://apsemrevista.org/aps/article/view/122 . Acesso em: 14 jun. 2021.
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).
Na orientação das práticas dos ACSs durante a pandemia, inclui-se o monitoramento dos casos, mas não há uma indicação de como esse recurso será garantido (Brasil, 2020aBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Orientações gerais sobre a atuação do ACS frente à pandemia de Covid-19 e os registros a serem realizados no e-SUS APS. Brasília: Ministério da Saúde , 2020a.). Estudo de Fernandez, Lotta e Corrêa (2021FERNANDEZ, Michelle; LOTTA, Gabriela; CORRÊA, Marcela. Desafios para a Atenção Primária à Saúde no Brasil: uma análise do trabalho das agentes comunitárias de saúde durante a pandemia de Covid-19.Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 19, e00321153, 2021. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00321. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/qDg6fnxcSZbgtB9SYvnBK8w/?format=html . Acesso em: 9 maio 2021.
https://www.scielo.br/j/tes/a/qDg6fnxcSZ...
) sobre a situação dos agentes comunitários de saúde na pandemia relata ainda a dificuldade de incorporação de uso dessas tecnologias no dia a dia desses profissionais.
Maiores dificuldades para a gestão do cuidado no contexto da pandemia
Os insumos para controle e prevenção e os EPIs foram grandes desafios para todos os serviços de saúde no início da pandemia. Em Belo Horizonte, Minas Gerais, por falta de informação e pelo medo de contágio, houve um grande aumento no consumo desses produtos. Não demorou muito para a capital ter dificuldades de encontrar fornecedores, fazendo com que a área técnica desenvolvesse uma agenda para a aquisição dos insumos de forma ágil (Guimarães et al., 2020GUIMARÃES, Fabiano G. et al. A organização da Atenção Primária à Saúde de Belo Horizonte no enfrentamento da pandemia Covid-19: relato de experiência. APS em Revista , Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 74-82, 2020. DOI: 10.14295/aps.v2i2.128. Disponível em: https://apsemrevista.org/aps/article/view/128 . Acesso em: 12 fev. 2021.
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).
Até o dia das entrevistas, alguns entrevistados relataram que ainda estavam com dificuldade de acesso a EPI, pois a oferta desses equipamentos era irregular. Mesmo com a percepção da importância do EPI, um nó crítico elencado foi de que a própria população é resistente em relação às medidas de prevenção e controle do vírus, como usar máscaras, lavar as mãos e manter o isolamento quando não precisar sair para serviços essenciais.
A própria população está achando que esse vírus acabou e que é brincadeira. Às vezes, a gente vai orientar, e não aceitam. Tem muita gente que chega sem máscara e quer ser atendido de todo jeito. Têm cabeça fechada, acham que é uma gripezinha. Tá matando muita gente, só na minha área faleceram cinco, no início. Está precisando de mais EPIs, pois uma semana tem, outra semana não tem, aí dificulta o trabalho. (ESF1)
A não adesão da população tem fundamento, em parte, nas fake news. Portanto, uma estratégia a ser priorizada na APS nesse momento é a educação em saúde, combatendo as fakes news, tendo em vista a grande quantidade de informações trazidas pelas mídias sociais com informações inverídicas e anticientíficas, para que a população compreenda e siga as orientações. Os ACSs podem potencializar essa prática, pois são os profissionais que mais conhecem a realidade de cada família, suas culturas e as singularidades de cada microárea do território (Cabral et al., 2020CABRAL, Elizabeth R. M. et al. Contributions and challenges of the Primary Health Care across the pandemic Covid-19. InterAmerican Journal of Medicine and Health, v. 3, p. 1-12, 2020. DOI: 10.31005/iajmh.v3i0.87. Disponível em: https://iajmh.emnuvens.com.br/iajmh/article/view/87/130 . Acesso em: 21 jan. 2021.
https://iajmh.emnuvens.com.br/iajmh/arti...
).
Os profissionais relataram a necessidade de melhorar o processo de acolhimento, as ações de educação em saúde e educação permanente.
A gente tem que crescer no acolhimento em relação à população. Eu vou percebendo que a gente tem que passar mais informações sobre a Covid, a pandemia, trabalhar mais nessa questão de promoção e educação em saúde. A gente vai percebendo que as pessoas vão se deparando com situações da pandemia, mas ainda tem muita gente sem máscara, mesmo a gente orientando, andando como se tivesse tudo normal. [...] Eu acredito que nós precisamos crescer na educação permanente de toda a equipe e primordialmente dos ACSs, que estão na ponta, e a gente trabalhar esse processo de conscientização mesmo. (ESF3)
Acho que o maior desafio é aproximação com os ACS, com a estratégia, o vínculo com a comunidade... A comunidade tá muito longe, entendeu? Tem que trazer mais, tem que participar mais de reunião. (NASF2)
Vê-se uma fragilidade das estratégias de educação em saúde e de mobilização comunitária. Mesmo que sejam atribuídas na fala dos entrevistados aos ACSs, em virtude de sua histórica ação como educadores em saúde, ações nesse sentido são de responsabilidade de toda a equipe de saúde. É possível buscar justificativas para essa frágil capacidade de mobilização comunitária nas últimas revisões da PNAB, bem como no pouco direcionamento dado a esse tipo de ação pelos órgãos da política de saúde durante a pandemia.
As mudanças da PNAB têm indicado um redirecionamento das ações educativas. Se antes estavam relacionadas ao desenvolvimento do território e à mobilização da comunidade, na versão da PNAB de 2011 já se identifica que as ações educativas passam a estar associadas às doenças e à prevenção e ao controle de riscos (Morosini, Fonseca e Lima, 2018MOROSINI, Márcia V. G. C.; FONSECA, Angélica F.; LIMA, Luciana D. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate, São Paulo, v. 42, n. 116, p. 11-24, 2018. DOI: 10.1590/0103-1104201811601. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/sdeb/2018.v42n116/11-24/pt/# . Acesso em: 18 jan. 2021.
https://www.scielosp.org/article/sdeb/20...
).
Estudos indicam que o trabalho dos ACSs tem atendido à racionalidade gerencialista. É comum ver os agentes comunitários de saúde desenvolverem atividades mais relacionadas com tarefas de apoio administrativo e burocráticas (Nogueira, 2019NOGUEIRA, Mariana L. Expressões da precarização no trabalho do agente comunitário de saúde: burocratização e estranhamento do trabalho. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 28, n. 3, p. 309-323, 2019. DOI: 10.1590/S0104-12902019180783. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/3p3Hn8ywngS9GWL76FNW7TF/?lang=pt&format=html . Acesso: 17 jan. 2021.
https://www.scielo.br/j/sausoc/a/3p3Hn8y...
).
Na pandemia, os documentos do Ministério da Saúde para guiar as práticas de saúde na Atenção Básica, particularmente aquelas indicadas aos ACSs, priorizaram ações de vigilância em saúde e administrativas no interior dos serviços. A esses profissionais eram indicados a organização do fluxo de acolhimento, o apoio nos atendimentos por meio do fast track e o auxílio na campanha de vacinação. No que se refere à orientação da população quanto à doença, aos sinais e sintomas, os protocolos do Ministério da Saúde não apresentam um detalhamento de como essas ações educativas poderiam ser desenvolvidas (Brasil, 2020aBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Orientações gerais sobre a atuação do ACS frente à pandemia de Covid-19 e os registros a serem realizados no e-SUS APS. Brasília: Ministério da Saúde , 2020a., 2020bBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Recomendações para adequação das ações dos agentes comunitários de saúde frente à atual situação epidemiológica referente ao Covid19. Brasília: Ministério da Saúde , 2020b. (Versão 1). ).
As repercussões da pandemia trazem sérias implicações na saúde mental. O receio de adoecer ou morrer, ficar desempregado, o isolamento social, o estresse e a incerteza do futuro, tudo isso resulta no crescimento ou agravamento de condições crônicas e mentais. As pessoas que estão mais propensas a isso são as idosas, as com doença crônica e mental, os profissionais de saúde e as que vivem sozinhas (Lima et al., 2020LIMA, Sonia O. et al. Impactos no comportamento e na saúde mental de grupos vulneráveis em época de enfrentamento da infecção Covid-19: revisão narrativa. Revista Eletrônica Acervo Saúde, São Paulo n. 46, e4006, 2020. DOI: 10.25248/reas.e4006.2020. Disponível em: https://acervomais.com.br/index.php/saude/article/view/4006 . Acesso em: 12 fev. 2021.
https://acervomais.com.br/index.php/saud...
).
Tem-se formulado a compreensão da crise sanitária como uma sindemia, e que os sistemas de saúde vão ser impactados pela ‘terceira onda da Covid-19’, que representa as necessidades de saúde apresentadas pelas condições crônicas negligenciadas pelos serviços de saúde, bem como pelas sequelas decorrentes da Covid-19 (Mendes, 2020MENDES, Eugênio V. O lado oculto de uma pandemia: a terceira onda da Covid-19 ou o paciente invisível. 2020. Disponível em: https://redeaps.org.br/wp-content/uploads/2021/03/Livro-Terceira-Onda-por-Euge%CC%82nio-Vilac%CC%A7a-Mendes.pdf . Acesso em: 21 maio 2021.
https://redeaps.org.br/wp-content/upload...
).
Portanto, é importante ressaltar a importância das equipes NASF-AB, permeando a rede horizontalizada, fazendo uso de estratégias para a gestão do cuidado em todos os pontos das linhas de cuidado.
Muitos pacientes meus estão com problemas psicológicos de ansiedade, depressão, e eu tenho certeza que se a gente conseguisse formular o grupo de saúde mental na unidade, várias coisas seriam resolvidas. [...] Essa questão de contato próximo, de você se aproximar ainda mais da população, ela fica prejudicada porque os próprios pacientes têm medo de vir até a gente. Até de reconhecimento do território mesmo, com isso de não ter tanta visita, até a quantidade de reuniões fica uma pouco prejudicada. Então, essas questões, elas dificultam um pouco na resolutividade da Atenção Primária à Saúde. [...] Uma coisa que eu acho que falta lá na unidade, que a gente ainda não consegue fazer tanto, são as práticas integrativas, infelizmente a gente não tá conseguindo fazer muita coisa ainda. (ESF5)
A gente está com muita dificuldade agora de nutrição, de psicologia, porque a demanda tá muito grande. Eu acho que a AB agora precisa fortalecer a aproximação com outros pontos de saúde porque a rede não funciona realmente como rede, é uma rede fragmentada, cada um faz o seu: a AB faz o seu, o CAPS faz o seu, a policlínica faz o seu. (NASF2)
A APS desempenha papel fundamental no combate à pandemia. É responsável pela abordagem de problemas decorrentes ou agravados com o isolamento social e a instabilidade da vida social e financeira, como os transtornos mentais, a violência doméstica, o etilismo, o tabagismo e a agudização de agravos crônicos como diabetes, hipertensão arterial ou o desenvolvimento de doença crônica. Desse modo, é imprescindível o uso de ferramentas que proporcionem um cuidado integral e longitudinal (Sarti et al., 2020SARTI, Thiago D. et al. Qual o papel da Atenção Primária à Saúde diante da pandemia provocada pela Covid-19? Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, v. 29, n. 2, e2020166, 2020. DOI: 10.5123/S1679-49742020000200024. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/ress/2020.v29n2/e2020166 . Acesso em: 26 fev. 2021.
https://www.scielosp.org/article/ress/20...
).
É sabido que a procura do serviço de primeiro contato na APS para acompanhamento rotineiro ou alguma necessidade específica facilita a formação de vínculo e coordenação do cuidado. Todavia, o trabalho isolado desse nível de atenção não produz a efetividade desejada, uma vez que a população tem problemas de saúde que também necessitam de outros níveis assistenciais de maior densidade tecnológica para garantir a integralidade do cuidado. Com isso, deve-se sustentar a lógica de trabalho em rede como sendo fundamental para superar a fragmentação e potencializar a APS como porta de entrada preferencial e centro ordenador das ações e serviços de saúde (Cecilio e Reis, 2018CECILIO, Luiz C. O.; REIS, Ademar A. C. Apontamentos sobre os desafios (ainda) atuais da atenção básica à saúde.Cadernos de Saúde Pública, v. 34, n. 8, p. e00056917, 2018. DOI: 10.1590/0102-311X00056917. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/csp/2018.v34n8/e00056917/pt /. Acesso em: 8 jan. 2021.
https://www.scielosp.org/article/csp/201...
).
Considerações finais
A ausência de uma coordenação nacional na resposta à pandemia, em contexto de mudanças na Atenção Primária à Saúde, acarretou inúmeras dificuldades para as equipes de Saúde da Família, principalmente pela baixa clareza quanto ao papel desse nível assistencial, pela fragilidade nas orientações e educação permanente, bem como pela não garantia plena de EPIs.
A gestão municipal do serviço de saúde investigado também demonstrou fragilidade quanto à organização do processo de trabalho na APS, o que se expressa no pequeno número de reuniões com as equipes para orientação sobre reorganização do processo de trabalho e o pouco conhecimento sobre a importância da equipe NASF-AB no enfrentamento da Covid-19, revelado no fato de terem remanejado os profissionais para outras atividades distantes das equipes de referência e do território onde atuavam.
É significativo que, de forma geral, tenha sido relatado o uso de diversas tecnologias com predomínio das leves no processo de cuidado durante a pandemia, considerando que estas dependem mais da condução pessoal dos trabalhadores do que de estrutura da política de saúde, como no caso das tecnologias leves-duras e duras. A ferramenta WhatsApp foi largamente utilizada para orientações gerais, acompanhamento e realização de atividades físicas. Contudo, o aumento da adesão ao uso do celular expressa, além de maior estímulo ao uso, a necessidade de investimentos estruturantes para a rede.
Os achados conduzem a duas observações principais, no caso estudado: em primeiro lugar, a APS não foi valorizada como espaço de enfrentamento da pandemia; e em segundo, muito do que foi realizado pode ser creditado ao esforço pessoal de trabalhadores mais engajados. Apesar de atores estratégicos e fundamentais ao sistema de saúde, o desenho institucional de resposta a uma situação de crise não deve se fundamentar apenas a partir da ação comprometida de parte dos trabalhadores em seus espaços específicos. Mais que isso, o Brasil é chamado a debater que APS deverá ser desenvolvida para manter o SUS universal, integral e equânime, e as experiências desses e de outros profissionais na organização do processo de trabalho expressam a capacidade de gestão ampliada e fomentam o debate que deve orientar a política nacional.
Alguns problemas se destacam no processo de trabalho das equipes: a permanência da dificuldade de acesso ao EPI; a fragilidade no desenvolvimento de ações educativas e de mobilização comunitária; a fragmentação da rede de atenção à saúde; o não reconhecimento da potencialidade da atuação do NASF-AB. Esses aspectos podem ser superados com a estruturação de estratégias de atuação de base comunitária, fortalecendo a APS e revertendo o caminho atual com foco na intervenção individual e hospitalar, no enfrentamento da pandemia.
Considerando-se os princípios da APS, a unidade básica de saúde selecionada não fez uso integral de ferramentas de gestão do cuidado à comunidade durante a pandemia que se pautam em tecnologias leves-duras e na direcionalidade da APS abrangente. Portanto, torna-se premente a realização de discussões entre a Secretaria de Saúde e os profissionais sobre a gestão de ferramentas de gestão do cuidado como acolhimento, educação em saúde, educação permanente, PTS, clínica ampliada e integração entre todos os pontos da rede, tendo a APS como porta de entrada principal e coordenadora do cuidado. Esses pontos são necessários para ampliar a efetividade do cuidado no contexto da pandemia. Do ponto de vista da gestão municipal, a não apropriação do potencial da APS no enfrentamento da pandemia pode ser relacionada ao contexto nacional de mudanças na PNAB e à fragilidade de uma orientação conjunta tripartite no enfrentamento da crise sanitária que viesse a fortalecer a própria atenção primária e sua dimensão comunitária.
Apesar das dificuldades relatadas, os trabalhadores da APS têm demonstrado seu potencial de se reinventar para cuidar da população. Ao mesmo tempo, as incertezas quanto ao futuro da APS em contexto de descaracterização da política e redução do financiamento, num cenário de pandemia, nos levam a uma indesejada questão: podemos nos dar ao luxo de abrir mão da Atenção Primária à Saúde e, mais amplamente, do SUS?
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Não se aplica.
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Publicação nesta coleção
12 Nov 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
25 Jun 2021 -
Aceito
15 Set 2021