Resumo
Este estudo objetivou identificar estratégias adotadas por profissionais atuantes na atenção básica à saúde, em um município da região Sul do Brasil, e analisar suas percepções sobre fatores dificultadores e facilitadores no cuidado a pessoas com necessidades decorrentes do uso de substâncias. Tratou-se de um estudo de abordagem predominantemente qualitativa. A amostra foi composta por 32 participantes para a obtenção de dados quantitativos e 11 para a coleta de dados qualitativos. Os dados foram analisados por meio da Análise de Conteúdo Temático-Categorial, mediante o uso do software NVivo 12. Os dados indicaram que as principais estratégias e fatores facilitadores foram o atendimento a demandas espontâneas, visita domiciliar, a família e o acolhimento. Em nível de intervenção, evidenciou-se a articulação dos serviços e redes de apoio, o matriciamento, o vínculo e a multidisciplinaridade e interprofissionalidade como possibilidades e potencialidades nos processos de trabalho. Quanto aos fatores dificultadores, verificou-se excesso de demandas, fragilidade de vínculo, estigma e preconceito, baixa adesão, centralização dos serviços, insuficiência de formação profissional, ausência de matriciamento, hegemonia do modelo biomédico e institucionalizante, e divergência entre políticas e práticas de cuidado. Espera-se que esses resultados possam contribuir para a formulação e efetivação de políticas e práticas de cuidado às pessoas que usam drogas.
Palavras-chave: uso de drogas; atenção básica à saúde; prevenção; tratamento
Abstract
This study aimed to identify strategies adopted by professionals working in basic health care, in a municipality in the southern region of Brazil, and to analyze their perceptions about factors that are difficult and facilitating in caring for people with needs arising from the use of substances. This was a study with a predominantly qualitative approach. The sample consisted of 32 participants for quantitative data collection and 11 for qualitative data collection. The data were analyzed by means of the Thematic-Categorial Content Analysis, using the NVivo 12 software. The data indicated that the main facilitating strategies and factors were the attendance to spontaneous demands, home visits, family and reception. At the level of intervention, the articulation of support services and networks, matrix support, bond and multidisciplinarity and interprofessionality were evidenced as possibilities and potentialities in the work processes. As for the difficulty factors, there were excessive demands, fragility of bonds, stigma and prejudice, low adherence, centralization of services, insufficient professional training, lack of a matrix support, hegemony of the biomedical and institutionalized model, and divergence between care policies and practices. These results are expected to contribute to the formulation and implementation of policies and care practices for people who use drugs.
Keywords: drug use; primary health care; prevention; treatment
Resumen
El objetivo de este estudio fue identificar estrategias adoptadas por los profesionales que trabajan en la atención básica de salud, en un municipio de la región sur de Brasil, y analizar sus percepciones sobre factores facilitadores y dificultadores en el cuidado de personas con necesidades derivadas del uso de sustancias. Fue un estudio con un enfoque predominantemente cualitativo. La muestra estuvo conformada por 32 participantes para la recolección de datos cuantitativos y 11 para la recolección de datos cualitativos. Los datos fueron analizados mediante el Análisis de Contenido Temático-Categórico, utilizando el software NVivo 12. Los datos indicaron que las principales estrategias y factores facilitadores fueron la asistencia a demandas espontáneas, visita domiciliar, familia y acogida. A nivel de intervención, se evidenció la articulación de servicios y redes de apoyo, matriciamento, vínculo y multidisciplinariedad e interprofesionalidad como posibilidades y potencialidades en los procesos de trabajo. En cuanto a los factores dificultadores, hubo exceso de demandas, fragilidad de los vínculos, estigma y prejuicio, baja adherencia, centralización de los servicios, insuficiente formación profesional, falta de matriciamento, hegemonía del modelo biomédico y de institucionalización, divergencia entre políticas y prácticas de cuidado. Se espera que estos resultados contribuyan a la formulación e implementación de políticas y prácticas de cuidado para las personas que usan drogas.
Palabras clave: uso de drogas; atención básica de salud; prevención; tratamiento
Introdução
Problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas representam uma importante preocupação de saúde pública. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que aproximadamente 8,9% da carga global de doenças e de mortes possui relação com o uso de drogas, a maior parte relacionada a substâncias lícitas, principalmente de álcool (World Health Organization, 2018). No Brasil, o 3º Levantamento Nacional Sobre o Uso de Drogas (Lenad) apontou que aproximadamente 4,9 milhões de brasileiros apresentaram grau de dependência elevado ou muito elevado de tabaco, 2,3 milhões de dependência de álcool, e 1,2 milhão de indivíduos apresentaram indicativos de dependência de outras substâncias (Bastos et al., 2017). Em nível mundial, estima-se que em torno de 35,6 milhões de pessoas sofram com transtornos por uso de substâncias, mas que apenas uma em cada sete receba tratamento (United Nations Office on Drugs and Crime, 2021).
Diante disso, é fundamental a identificação e abordagem de demandas relacionadas ao uso de drogas nos serviços de saúde, com vistas ao diagnóstico precoce, o cuidado aos agravos e encaminhamentos qualificados para outros serviços. Essa abordagem requer uma perspectiva contextualizada, que considere a multifatorialidade e pluridimensionalidade de questões referentes ao uso de substâncias, incluindo as particularidades dos indivíduos que as usam e os fatores familiares, comunitários, sociais, políticos e econômicos relacionados ao consumo. Nesse contexto, a Atenção Básica à Saúde (AB) desempenha um papel essencial no conjunto de ações em saúde, em esfera individual e coletiva, uma vez que dentre as ofertas de cuidados aos usuários estão: identificação de riscos, necessidades e demandas de saúde; planejamento de estratégias de intervenção; e articulação dos serviços e estruturas das redes de saúde, intersetoriais, públicas, comunitárias e sociais (Brasil, 2017).
No entanto, alguns estudos avaliaram a AB como um dos serviços mais frágeis da rede em relação à atenção e cuidado às pessoas que apresentam problemas decorrentes do uso de drogas. Pesquisas indicam dificuldades relacionadas a encaminhamento de pacientes para serviços especializados, a recorrente centralização da assistência na atenção secundária ou em Comunidades Terapêuticas, a falta de capacitação de profissionais para o manejo e possíveis intervenções, bem como os desafios em estabelecer vínculos com os usuários, permeados pelo preconceito e estigma (Pinho e Siniak, 2017; Tancredo, 2013; Coelho e Soares, 2014; Paula et al., 2014).
Em vista disso, o presente estudo teve por objetivo identificar as estratégias adotadas por profissionais vinculados à AB para intervir frente a demandas relacionadas ao uso de álcool e outras drogas e analisar suas percepções sobre os fatores facilitadores e dificultadores para a implementação de estratégias efetivas de atenção e cuidado a pessoas com necessidades decorrentes do uso de substâncias.
Metodologia
Tratou-se de um estudo de abordagem predominantemente qualitativa.
Para a obtenção de dados quantitativos, levou-se em conta uma amostragem convencional e de referência em cadeia composta por 32 profissionais de saúde vinculados à AB, representando 16 das 31 unidades de um município do litoral norte de Santa Catarina, na região Sul do Brasil. Para o estudo qualitativo, contou-se com a participação de 11 profissionais de saúde, adotando-se o critério de ponto de saturação dos dados na definição do número de participantes. O critério de inclusão foi ter ao menos uma experiência de atendimento a demandas relacionadas ao uso de álcool e outras drogas. Participaram 6 profissionais agentes comunitários de saúde (ACSs), 3 de enfermagem e 2 de medicina.
Foram empregados três instrumentos elaborados pelos próprios pesquisadores: (1) ‘Questionário de dados sociodemográficos’, com o objetivo de levantar informações relacionadas a gênero, idade, escolaridade, cargo e tempo de experiência na área; (2) ‘Questionário on line’ sobre estratégias de identificação e intervenção frente a demandas relacionadas ao uso de substâncias, composto por dez itens no formato de escala Likert (nunca, raramente, ocasionalmente/às vezes, frequentemente, sempre); e (3) ‘Roteiro de entrevista semiestruturada’, contendo dez questões acerca das compreensões, percepções e estratégias de profissionais vinculados à AB para identificação, prevenção e cuidado de demandas relacionadas ao uso de álcool e outras drogas.
Inicialmente, procedeu-se a um levantamento do número total de unidades através de página oficial do município na internet. Em seguida, as coordenações de todas as unidades foram contatadas via telefone, com o objetivo de realizar o convite aos profissionais de saúde para participação na pesquisa. Foram selecionados e incluídos os profissionais que aceitaram participar voluntariamente e que confirmaram o aceite via preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os instrumentos 1 e 2 foram aplicados virtualmente a todos os profissionais participantes do estudo, por meio de um formulário on line criado na plataforma Google Forms, sendo estes da amostra quanti-quali, com um total de 32 profissionais de saúde. Destes, somente 11 participaram do estudo qualitativo, aos quais foi aplicado o instrumento 3. As entrevistas foram realizadas por telefone e pela plataforma Google Meet, com duração média de 30 minutos.
Os dados sociodemográficos (Instrumento 1) e as respostas ao Instrumento 2, obtidos por questionários com respostas previamente padronizadas, foram analisados mediante a estatística descritiva, com a adoção do programa estatístico Jamovi (versão 2.3.16). Já com os dados qualitativos foi usada a Análise de Conteúdo Temático-Categorial, composta por três etapas: ‘fase exploratória’, para delimitação do problema de investigação e dos objetivos do estudo e da exploração de campo; ‘fase de trabalho de campo’, na qual são realizados recortes e mediações dos marcos teórico-metodológicos e a realidade empírica, por meio de entrevistas, observações, levantamentos de material documental, bibliográfico etc.; e ‘tratamento de material’, que remete à interpretação dos resultados com o intuito de torná-los subjacentes ao que foi observado (Minayo, 2014).
O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), obtendo parecer favorável para sua realização (n. 5.065.605/2021). O estudo seguiu todas as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, conforme preconizado pelo Conselho Nacional de Saúde e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa.
Resultados e Discussão
Observou-se a predominância de profissionais do gênero feminino (81,30%). Dados similares foram evidenciados em outros estudos, sendo notória a discrepância na prevalência de homens e mulheres na área da saúde, o que remete às construções de gênero e sua relação com a divisão sexual do trabalho, ao protagonismo feminino, à feminização da força de trabalho no campo e ao estereótipo da mulher como figura de cuidado (Schwarz e Thomé, 2017; Borges e Cruz, 2021; Oliveira e Ceballos, 2022).
No que se refere ao nível de escolaridade, apenas profissionais de enfermagem e medicina informaram formação em nível de pós-graduação (46,90%), ACSs configuraram-se em sua maioria profissionais que dispõem como maior grau de escolaridade o ensino médio completo. Esses dados convergem com estudos de Castro et al. (2017); Andrade et al. (2018); Coelho, Vasconcellos e Dias (2018) e Morosini e Fonseca (2018), que relacionam esses aspectos com o déficit e a insuficiência de suportes institucionais, formação e educação permanente desses profissionais.
Em relação à profissão, houve maior prevalência de ACSs (50%). Quanto ao tempo de atuação, verificou-se predominância de período superior a dez anos, em consonância com um estudo realizado em um município localizado no Nordeste do país (Castro et al., 2017), porém divergente de outra amostra da região Sul do território brasileiro (Nisihara et al., 2018). Essas divergências podem estar relacionadas principalmente ao tipo de vínculo empregatício, à remuneração e à carga horária de trabalho (Castro et al., 2017; Nisihara et al., 2018).
A maioria dos profissionais (84,40%) não possuía especialização ou aperfeiçoamento na área de álcool e outras drogas. Outros estudos também apontaram a urgência de formação permanente, visto que a ausência ou insuficiência de preparo técnico pode acarretar receio em abordar o tema, além de estigma e preconceito voltados às pessoas que fazem uso de substâncias, prejudicando assim cuidados possíveis e necessários (Paula et al., 2014; Hirdes et al., 2015; Pinho e Siniaki, 2017).
Quanto às estratégias de identificação e intervenção, a maioria dos profissionais (37,50%) afirmou realizar com frequência o rastreamento de demandas relacionadas ao uso de drogas por meio da entrevista inicial, cujo objetivo é a coleta de dados referentes à identificação de pacientes, da queixa principal, da história da doença atual e de informações relacionadas ao contexto familiar, comunitário e social. Além de ser uma importante ferramenta para o levantamento de informações, a entrevista inicial possibilita o primeiro passo para a construção de vínculo com os usuários e a construção conjunta de estratégias de cuidado, tal como preconizado pela Política Nacional de Atenção Básica (Brasil, 2017).
No entanto, apesar de se reconhecer que o acolhimento e o vínculo são ferramentas cruciais na AB, essas são apenas algumas das formas de se fortalecer a atenção ao cuidado. Assim como apresentado pela Secretaria Municipal de Saúde do município do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, 2016), existem outros recursos complementares que podem subsidiar a abordagem e intervenção em situações relacionadas ao uso prejudicial de drogas. O uso de instrumentos de triagem, instrumentos de rastreamento e outros métodos podem ampliar e contribuir com o manejo e encaminhamento qualificado em relação aos usuários com problemas decorrentes do uso de substâncias. Entretanto, com base nos dados do presente estudo, foi possível observar que 78,10% dos profissionais nunca usaram instrumentos ou escalas padronizadas e validadas para triagem e diagnóstico do consumo de drogas, o que, como citado, pode estar relacionado à ausência de formação técnico-científica para atender pessoas que fazem uso de substâncias (Brasil, 2017). Além disso, 65,70% nunca ou raramente aplicavam entrevista motivacional, intervenção breve, psicoeducação ou outras estratégias interventivas para redução do uso de drogas ou das consequências associadas, embora a literatura aponte essas intervenções como significativas em termos de eficácia, efetividade e relação custo-benefício (Gomes e Vecchia, 2018; Oliveira et al., 2021).
No que diz respeito ao levantamento e à compreensão das demandas relacionadas ao consumo de drogas no território, 40,60% dos respondentes afirmaram realizar essa ação ocasionalmente/às vezes. O território, de acordo com o proposto para o sistema de saúde brasileiro, define-se em questões político-organizativas, ou seja, é uma forma de organização que possibilita reconhecer o ambiente, as condições de vida e saúde da população de determinada área, bem como o acesso da população às ações e serviços de saúde. Quando relacionado ao contexto das pessoas que usam drogas, o conhecimento do território, através da territorialização, torna-se uma ferramenta importante para programar medidas que possam assegurar o planejamento de ações em saúde, de prevenção, bem como de resolução dos agravos decorrentes do uso (Furtado et al., 2016; Caires e Santos Júnior, 2017; Faria, 2020). No que respeita à elaboração e realização de estratégias preventivas nos territórios, os resultados foram semelhantes, em que a maioria (43,80%) dos participantes afirmou fazer ocasionalmente/às vezes, enquanto 37,50% apontaram que raramente ou nunca realizavam essas ações.
A respeito da formação profissional para atuação no campo de uso de álcool e outras drogas, a maioria (53,2%) dos profissionais afirmou nunca ou raramente fazer cursos de formação continuada ou de aperfeiçoamento, além de 43,80% relatarem raramente organizar ou participar de espaços de reflexões e debates sobre o assunto. Em um relato de experiência sobre uma capacitação para profissionais de saúde e assistência social, apontou-se que orientações de cuidados nos diferentes níveis de atenção são insuficientes (Costa et al., 2015). Em outro estudo, este sobre a percepção de pessoas que fazem uso de drogas e de seus familiares sobre o cuidado em saúde mental na AB, também foram citados fatores dificultadores como a qualidade dos serviços, a falta de recursos humanos e a insuficiência de qualificação profissional (Santos et al., 2020). Nesse sentido, a capacitação representa uma ferramenta de aprendizagem cujo objetivo é fomentar e fortalecer conhecimentos, habilidades e práticas de cuidados, além da integração entre os níveis de atenção do SUS (Brasil, 2009). Visto seu grau de relevância na saúde, destaca-se a necessidade de investimentos na formação de profissionais, a fim de construir dispositivos mais efetivos de atenção ao cuidado (Militão et al., 2022).
Quanto à busca por trabalhar em uma perspectiva interdisciplinar e interprofissional, 37,50% afirmaram atuar constantemente nessa perspectiva; e 34,40% também realizavam com frequência a articulação com outros serviços da rede. Resultados de uma pesquisa efetuada por Farias et al. (2018) apontaram que a percepção dos profissionais de saúde em relação à interdisciplinaridade foi positiva, mas também que há a necessidade de ações voltadas à gestão para que possam vir a favorecer essa prática. No que tange à articulação dos serviços, um estudo desenvolvido por Siniak et al. (2019) verificou um baixo nível de interação e dificuldade em atuar de forma integrada na construção de ações conjuntas.
Em relação à integração da família e da comunidade, 56,20% responderam buscar integrar e gerar intervenções familiares e comunitárias ocasionalmente/às vezes. No entanto, 34,40% raramente ou nunca realizavam essa articulação. O acesso à informação confiável e de qualidade, o diálogo com os serviços e a construção coletiva de estratégias de cuidado, por exemplo, são demandas de cuidado com as famílias que sofrem com problemas relacionados ao uso de drogas (Figueiró e Dimenstein, 2020).
Categoria 1: Estratégias para identificar e intervir em demandas relacionadas ao uso de substâncias
A presente categoria visa discutir aspectos referentes às estratégias usadas pelos profissionais diante de demandas relacionadas ao uso de substâncias, sendo subdividida em duas subcategorias que remetem à identificação e à intervenção. A primeira apresentou predominância de duas unidades temáticas, a saber: ‘Acolhimento à demanda espontânea’ e ‘Visita domiciliar’. Na segunda, predominaram unidades temáticas codificadas como ‘Articulação dos serviços e redes de apoio’ e ‘Matriciamento’.
Estratégias de identificação em demandas relacionadas ao uso de drogas
Quando questionados sobre o processo de identificação de usuários e de seus padrões de uso de drogas, uma das estratégias mais citadas foi o ‘Acolhimento à demanda espontânea’. As falas dos profissionais suscitaram principalmente que o acolhimento à demanda espontânea atua como dispositivo de ampliação do acolhimento dos usuários e fortalece o acesso à rede de cuidados do sistema de saúde:
[...] demanda espontânea, apesar da quantidade de gente, se chegou na hora da unidade estar aberta, ela pode até esperar até o final do turno, mas ela não sai daqui sem atendimento. De uma maneira ou de outra, eu acho que o acolhimento, só da pessoa sentar e ser ouvida, já é uma grande potencialidade (P5-ENF).
Como apresentado nos Cadernos de Atenção Básica (Brasil, 2013), do Ministério da Saúde, a demanda espontânea abre espaço para outras formas de avaliar e compreender as necessidades de saúde da população atendida, uma vez que por meio dessa tecnologia de cuidado os usuários também definem, de diferentes formas e graus, o que é necessidade de saúde em sua perspectiva, podendo assim apresentá-la e legitimá-la nos serviços de saúde. Cabe ainda ressaltar que, além do mencionado, essa procura pelos serviços pode se tornar um espaço importante para a construção e fortalecimento de vínculo com os usuários, bem como considerar que, por vezes, eles podem buscar a AB pela proximidade física dos serviços e pela confiança nos profissionais.
A ‘Visita domiciliar’ da população atendida também foi mencionada como uma estratégia de identificação, como evidenciam as falas de P1-ENF e P7-ACS:
Os ACSs, como eles fazem as visitas nas casas, então eles vão identificar essas situações desses pacientes que fazem uso de substâncias e vão trazer pra equipe [...] (P1-ENF).
[...] eu vou na casa que eu faço atendimento, às vezes o pai ou a mãe trazem a queixa do adolescente ou o próprio usuário que aborda [...] então, a gente orienta né, então é encaminhado pra unidade junto com o enfermeiro, ou até em atendimento com o clínico [...] (P7-ACS).
A visita domiciliar pode ser uma ferramenta primordial para o cuidado integral à saúde e para a compreensão do domicílio como espaço permeado por aspectos intrínsecos às pessoas, incluindo suas crenças, hábitos e valores (Quirino et al., 2020), que, quando considerados, possibilitam a integralidade do cuidado, bem como protagonismo e autonomia dos usuários, além de efetivarem a garantia de direitos e a universalização (Kemper et al., 2015; Santos e Ferla, 2017).
Estratégias de intervenção frente a demandas relacionadas ao uso de drogas
A portaria n. 2.197, de 2004, redefiniu e ampliou a atenção integral a pessoas que usam drogas, no que se refere à atuação da rede em todos os níveis de atenção do SUS, seja em práticas terapêuticas, preventivas, de promoção de saúde, educativas, de reabilitação psicossocial e estímulo à sua integração familiar, comunitária ou social (Brasil, 2004). Assim, a ‘Articulação dos serviços e redes de apoio’ compõe parte da atenção integral às pessoas que fazem uso de substâncias e amplia as possibilidades de promoção de saúde, além de potencializar as práticas de cuidado.
Os usuários são encaminhados conforme suas necessidades, sempre considerando seu consentimento esclarecido. São encaminhados para UPAs [Unidades de Pronto Atendimento], CRAS [Centro de Referência de Assistência Social], CREAS [Centro de Referência Especializado de Assistência Social], CAPS AD [Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e outras Drogas], Comunidades Terapêuticas, Centro POP (P11-MED).
Além disso, alinhada aos princípios da atenção integral, a natureza multifatorial de demandas relacionadas ao uso de drogas exprime a relevância de políticas de cuidados ampliadas para atender as necessidades dessas pessoas. Nesse sentido, o ‘Matriciamento’ também desponta no presente estudo como estratégia de intervenção no atendimento ampliado às pessoas que usam drogas.
Nós temos um diferencial aqui na unidade, que é a questão do matriciamento. Nós conseguimos juntar [...] CAPS [Centro de Atenção Psicossocial], CAPS AD [Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e outras Drogas], CAPS I, CAPS II, em um grupo [...], pra que a gente pudesse compartilhar essas questões de saúde mental e também os representantes vêm uma vez por mês, presencialmente, pra [que a] gente possa discutir os casos, para que eles possam fazer essa escuta, esse acolhimento, junto com os profissionais da atenção básica (P1-ENF).
Na pesquisa realizada por Farias et al. (2018), o apoio matricial ou matriciamento foi percebido pelos profissionais como uma forma de compartilhamento de saberes e experiências para que eles se sentissem preparados para fazer uma escuta qualificada, de forma a reduzir a angústia e o sofrimento e possibilitar uma construção transversal e coletiva de trabalho. Sampaio e Silva (2022), ao elaborarem uma revisão de literatura sobre as potencialidades do matriciamento, identificaram que essa ferramenta, quando planejada, possibilita a construção de uma rede colaborativa que fomenta o cuidado compartilhado e a integralidade, bem como formação permanente dos profissionais.
Categoria 2: Facilitadores do processo de identificação e intervenção de demandas relacionadas ao uso de álcool e outras drogas
A presente categoria tem por objetivo descrever e discutir os fatores facilitadores do processo de identificação e intervenção por parte dos profissionais entrevistados para trabalhar com demandas relacionadas ao uso de drogas. Quanto aos facilitadores da identificação, foram mencionados ‘A família’ e o ‘Acolhimento’, seguidos pelo ‘Vínculo’ e ‘Multidisciplinaridade e Interprofissionalidade’ dos serviços como facilitadores de práticas interventivas.
Facilitadores do processo de identificação frente a demandas relacionadas ao uso de álcool e outras drogas
Como mencionado anteriormente, a compreensão acerca das relações e contextos socioculturais em que as pessoas que fazem uso de drogas estão inseridas é relevante para se pensar as estratégias de cuidados em saúde. Nesse sentido, a ‘família’ pode vir a desempenhar um papel importante na medida em que aparece como figura chave para identificar e comunicar demandas relacionadas ao uso de substâncias:
[...] a família toda adoece e às vezes não é ele [referência a pessoas que usam drogas] que nos procura, é o familiar dele que não sabe o que fazer [...] (P5-ENF).
[...] quando a própria família pede alguma coisa pra gente trazer pra unidade, pro médico, e pedir pra que a gente intervenha [...] (P4-ACS).
A família, ao se deparar com novos desafios, também busca e aciona sua rede de apoio, uma vez que esses recursos poderão contribuir para sua adaptação, bem como contar com uma rede de apoio pode auxiliar no manejo das crises e ser um fator de proteção (Seibel et al., 2017). Desse modo, evidencia-se a importância do ‘Acolhimento’ por parte dos profissionais e dos serviços de saúde, como uma rede de atenção ao cuidado, conforme explicitado na fala: “[...] como facilidades, eu acho que o paciente e a família têm o acolhimento [...]” (P4-ACS).
[...] os familiares de pessoas com problemas relacionados ao uso de substâncias são acolhidos por todos os profissionais da UBS [Unidade Básica de Saúde]. Além disso, são orientados quanto ao próprio serviço de saúde e a RAPS [Rede de Atenção Psicossocial] (P1-MED).
O acolhimento constitui uma tecnologia de cuidado profícua no manejo de demandas relacionadas ao uso de drogas, pois estabelece e fortalece ações interventivas, além de que a responsabilização e disponibilidade da equipe em acolher e escutar promove o vínculo e horizontaliza as relações intersubjetivas (Carvalho et al., 2019).
Facilitadores do processo de intervenção em demandas relacionadas ao uso de álcool e outras drogas
No presente estudo, o vínculo foi descrito como um fator facilitador, principalmente do processo de intervenção em demandas relacionadas ao uso de drogas: “[...] eles têm vínculo com a gente, né, eles confiam na gente [...]” (P4-ACS) e “Como facilitador, considero bom o vínculo com a comunidade” (P11-MED).
Um relato de experiência baseado em vivências em um CAPS AD [Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e outras Drogas] revelou que a prática de acolhimento pela escuta contribuiu para o fortalecimento do vínculo dos usuários com o serviço, o que ampliou a efetividade das ações, além de potencializar a participação dos usuários na elaboração de estratégias de cuidado, bem como em suas relações familiares e comunitárias. É importante ainda citar que esse cuidado, ao cooperar com a construção do vínculo, estrutura e fortalece o manejo e os encoraja no reconhecimento de suas potencialidades (Queiroz, Jardim e Alves, 2016).
Outro fator facilitador dos processos de intervenção nessas demandas é a ‘Multidisciplinaridade e Interprofissionalidade’ do serviço: “A facilidade é que temos uma equipe multi dentro da UBS” (P4-ACS).
De modo geral, quando identificamos algum caso, [...] discutimos em reunião de equipe e elaboramos uma abordagem interdisciplinar, um plano singular terapêutico. Além disso, como o caso é discutido em reunião, todos os profissionais da equipe ficam cientes e, caso o usuário busque a UBS [Unidade Básica de Saúde], os profissionais ficarão atentos às suas demandas levando em conta o uso de substância (P11-MED).
A multidisciplinaridade e interprofissionalidade produzem diferentes possibilidades de atuação prática e compõem uma das diretrizes de cuidado e organização da AB, visando garantir um trabalho horizontal entre os profissionais, na formação e compartilhamento de saberes, práticas e gestão do cuidado, de modo a maximizar as habilidades de cuidado singulares a cada um e a longitudinalidade do cuidado e da oferta de serviços à população (Brasil, 2017).
Os dados apresentados sobre a importância do vínculo e o trabalho multidisciplinar e interprofissional como fatores facilitadores corroboram o estudo realizado por Lopes (2017), que aponta o vínculo como um dispositivo crucial na qualificação das intervenções, do processo terapêutico e da adesão. Igualmente, o estudo reitera que o trabalho em equipe possibilita a diversidade de práticas, bem como o compartilhamento de informações a respeito da situação específica de cada paciente e a discussão sobre as estratégias mais apropriadas para cada caso, facilitando as práticas de intervenção nas demandas relacionadas ao uso de drogas.
Categoria 3: Fatores que dificultam o processo de identificação e intervenção em demandas relacionadas ao uso de drogas
Ainda que permeado por estratégias e fatores facilitadores, o presente estudo evidenciou que a identificação de pessoas que fazem uso de drogas é atravessada por fatores dificultadores decorrentes do ‘Excesso de demandas’, ‘Vínculo’ e do ‘Estigma e preconceito’. Em nível de intervenção, as dificuldades foram representadas pelos eixos temáticos ‘Baixa adesão’, ‘Centralização do serviço e redes de apoio’, ‘Formação profissional’, ‘Hegemonia do modelo biomédico e institucionalizante’ e ‘Divergência entre políticas e práticas de cuidado’.
Fatores que dificultam o processo de identificação em demandas relacionadas ao uso de drogas
Em estudos similares sobre a AB, o ‘excesso de demandas’ de trabalho foi um dos fatores que corroboraram a insatisfação, interferência nos processos de trabalho e na qualidade de vida de profissionais de saúde (Soratto et al., 2017), tal como relatado por P1-ENF:
Se a gente não conseguir identificar se ele não tem já um histórico levantado no sistema, ou se é um paciente novo que a gente não conhece, então é a dificuldade de reconhecer que ele faz uso de algumas coisas, pelo fato da grande demanda (P1-ENF).
Moreira et al. (2020) também evidenciaram que a baixa resolutividade dos casos estava associada, além da secundarização dos atendimentos clínicos e da baixa adesão aos grupos terapêuticos, ao excesso de demandas da unidade.
[...] a gente acaba não conseguindo dar conta de todos esses pacientes e alguns pacientes vão estar sim em sofrimento, mas não vão estar sendo assistidos, infelizmente (P1-ENF).
O excesso de demandas pode interferir ainda no tempo disponível para construção do vínculo, na escuta qualificada, no atendimento integral do paciente e na articulação da equipe e dos serviços e redes de apoio. É importante relembrar nesse ponto que o ‘vínculo’ foi mencionado anteriormente no presente estudo como sendo um fator facilitador de ações interventivas no contexto de uso de álcool e outras drogas, e o mesmo se repete nesta categoria, não mais como um facilitador, mas no sentido de que sua ausência ou fragilidade acabam por amplificar as barreiras entre usuários e o serviço para identificação do consumo de substâncias no território.
[...] a dificuldade é a gente construir um vínculo que a pessoa confie na gente, para [que] ela consiga se abrir para a gente, falar que usa uma substância (P5-ENF).
Nesse sentido, as percepções dos participantes do presente estudo expressaram que os fatores relacionados ao uso de drogas por vezes são atravessados pelo ‘estigma e preconceito’, o que inviabiliza a identificação de problemas relacionados ao uso de substâncias e ao acesso aos serviços de saúde. Tais posturas acabam por limitar as possibilidades de acolhimento e estabelecer barreiras para a busca por assistência na rede (Ronzani, Noto e Silveira, 2014).
Fatores que dificultam o processo de intervenção em demandas relacionadas ao uso de drogas
As pessoas que fazem uso de drogas, ao sofrerem com a estigmatização, restrição das interações sociais e perspectivas limitadas de recuperação, acabam por evitar a busca por tratamento, o que pode agravar suas demandas de saúde e a ‘baixa adesão’ ao tratamento e serviços de saúde (Reichert et al., 2021). Os profissionais do presente estudo, quando questionados sobre os processos de intervenção, citaram como dificultador a adesão dos usuários ao serviço: “A dificuldade [...] eu acho que mais a aderência deles” (P8-ACS) “[...] e outra dificuldade é a adesão, adesão ao tratamento” (P1-ENF).
Outra barreira averiguada no estudo foi a ‘centralização do serviço e redes de apoio’. Uma pesquisa realizada por Paula et al. (2014) apontou que, dentre as dificuldades relacionadas à assistência a pessoas que usam drogas na AB, está a centralização da assistência em serviços especializados: “[...] o ambiente ele é centralizado, então a parte periférica acaba ficando desassistida [...]” (P1-ENF).
Além disso, cabe considerar que o perfil socioeconômico de pessoas com necessidades relacionadas ao uso de substâncias e em situação de maior vulneração e vulnerabilidade social se caracteriza, em seu maior índice, pela baixa escolaridade, desemprego e situação de rua (Basso et al., 2021; Souza, Soares e Tizziani, 2021). De acordo com o estudo realizado por Cambota e Rocha (2015), quando comparados os níveis de equidade e iniquidade em regiões do Brasil, observa-se maior iniquidade horizontal em regiões como Nordeste, em relação ao Sul e Sudeste do país. Essas diferenças podem estar relacionadas à menor e fragilizada estruturação do SUS nas regiões menos desenvolvidas. Nesse sentido, ressalta-se que as pessoas em situação de vulnerabilidade social tendem a usar mais os serviços de cuidados intensivos do que de cuidados preventivos. Além da renda, a escolaridade, o local de residência e a condição das atividades que desenvolvem no mercado de trabalho influenciam nas desigualdades sociais e no acesso aos serviços de saúde (Cambota e Rocha, 2015; Basso et al., 2021).
Dentre outras fragilidades, ausência ou insuficiência de ‘formação profissional’ também dificulta ou impossibilita a compreensão da multifatorialidade do uso de substâncias, bem como a aplicação de estratégias interventivas efetivas.
Como dificuldade, acredito que seja a gente ter conhecimento para buscar estratégias no território para poder trabalhar com a prevenção e promoção de saúde [...] (P5-ENF).
Após analisar a percepção de pessoas que fazem uso de crack e seus familiares, Henriques et al. (2018) e Araujo e Corradi-Webster (2019) identificaram uma divergência entre o cuidado esperado pelos usuários e a qualidade dos cuidados prestados. Do ponto de vista dos participantes, a falta de recursos humanos e a qualificação profissional foram alguns dos dificultadores de acesso aos serviços. Profissionais da atenção primária que, a princípio, seriam responsáveis pela prevenção e promoção de saúde, ainda adotam uma prática centrada na perspectiva curativista em relação ao uso de drogas, tanto em função de limitações da formação como da cultura organizacional nas unidades de saúde brasileiras, além de outras dificuldades na abordagem aos usuários de drogas (Laport et al., 2016).
Ao analisar as falas dos profissionais, observa-se que muitos se pautam na ‘hegemonia do modelo biomédico e institucionalizante’:
[...] não cabe a nós, cabe ao médico. Nós não chegamos a ver isso aí, se acontecer ele vai falar isso aí lá no consultório [...] (P6-ACS).
[...] quando um paciente etilista vai à UBS [Unidade Básica de Saúde] [...], ele é encaminhado para atendimento médico e cuidados de enfermagem. Se necessário, o ACS faz contato com a família (P10-MED).
Uma revisão da literatura sobre concepções de profissionais da saúde quanto ao uso de drogas, realizada por Costa e Paiva (2016), constatou que, em sua maioria, o uso de drogas era compreendido como um problema de saúde pública com potenciais riscos e prejuízos, mas que os aspectos pessoais e os determinantes sociais eram desconsiderados.
A ‘divergência entre políticas e práticas de cuidado’, por vezes pautadas na lógica da busca pela abstinência total como requisito obrigatório, e em outras, pela perspectiva da redução de danos (RD), considerando a autonomia e o protagonismo dos usuários, permeia os modelos e estratégias de cuidado voltadas a pessoas que usam drogas. Dados apresentados em outra pesquisa revelaram que o hibridismo entre a RD e o paradigma moral, proibicionista-punitivo e institucionalizante atravessa as compreensões dentro dos serviços de saúde (Souza e Ronzani, 2018; Torrel e Romanini, 2022).
E como eu faço parte da triagem aqui da comunidade, eu faço o acolhimento, depois encaminho para a médica. Depois, a médica vai encaminhar ou para um centro de reabilitação ou... Aí ela vai gerir o atendimento (P9-ENF).
Normalmente, quando chega um paciente que é usuário de álcool ou droga, ele já vem no intuito de pedir uma internação, para uma clínica de reabilitação que tem esse suporte. Daí a gente passa para o médico, o médico pede os exames que ele tem que fazer para ir para essa internação (P8-ACS).
No Brasil, as políticas direcionadas às pessoas que fazem uso de drogas foram significativamente influenciadas por um modelo pautado no proibicionismo e no binômio de abstinência e repressão, com base em uma visão de ordem moral-religiosa, médico-sanitária e higienista, que fundamenta as práticas de instituições como as Comunidades Terapêuticas (Silva, Barcellos e Dalbello-Araujo, 2020). Em contrapartida, nos últimos trinta anos, em decorrência de diversos movimentos sociais, a começar pela Reforma Psiquiátrica e pela Luta Antimanicomial, o campo da saúde mental tem sido envolvido pelo debate teórico-prático e político sobre a interprofissionalidade (Oliveira e Daltro, 2020) e a RD como prática central da atenção às pessoas que fazem uso de drogas. No entanto, ainda atualmente, as contradições das políticas brasileiras voltadas para a atenção às pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas sinalizam um processo histórico pautado na discussão entre ‘questões de saúde’ e ‘questões de justiça’, hegemonicamente marcadas pelo proibicionismo, na lógica manicomial e da abstinência (Ribeiro e Minayo, 2020).
Considerações finais
O presente estudo teve por objetivo identificar as estratégias utilizadas por profissionais vinculados à AB para intervir nas demandas relacionadas ao uso de álcool e outras drogas, e analisar suas percepções sobre os fatores facilitadores e dificultadores para a implementação de estratégias efetivas de atenção e cuidado a pessoas com necessidades decorrentes do uso de substâncias.
Em relação à identificação, os dados apontaram o acolhimento à demanda espontânea, a visita domiciliar e a família como principais estratégias e fatores facilitadores. Em nível de intervenção, a articulação dos serviços e redes de apoio, o matriciamento, o vínculo e a multidisciplinaridade e interprofissionalidade dos serviços foram identificados como estratégias e fatores facilitadores. Em contrapartida, esses processos mostraram-se atravessados por fatores dificultadores, seja para identificar, seja para intervir, incluindo o excesso de demandas nas unidades de saúde, a fragilidade ou a dificuldade em estabelecer vínculo com os usuários e identificá-los em caso de uso não autodeclarado. Além desses fatores, persistem o estigma e o preconceito por parte de familiares e profissionais de saúde, a baixa adesão dos usuários aos serviços e tratamentos propostos, centralização dos serviços e redes de apoio, insuficiência de formação especializada, matriciamento fragilizado, bem como a hegemonia do modelo biomédico e institucionalizante e da divergência entre políticas e práticas de cuidado.
Apontam-se como principais limitações do presente estudo: a amostra usada para a obtenção de dados quantitativos, uma vez que ela não é representativa da população total de profissionais de saúde do município em que a pesquisa foi realizada; o método de recrutamento por conveniência na realização das entrevistas; e a diferença entre o número de participantes para cada categoria de profissionais, que não possibilita uma generalização dos dados.
É preciso atentar para os aspectos referentes à organização dos serviços no município em que o estudo foi realizado e sua realidade objetiva, de modo a evitar a universalização dos achados da pesquisa. Para tanto, faz-se necessária uma articulação com estudos em diferentes localidades, atentando para os aspectos idiossincrásicos e as vicissitudes das comunidades e territórios, bem como as nuances de diferentes formas e padrões de consumo de substâncias e sua pluridimensionalidade familiar, comunitária, social, política e econômica. Considerando a natureza multifatorial de problemas relacionados ao uso de drogas, reitera-se a relevância de políticas de cuidados ampliadas para atender as necessidades e particularidades individuais e coletivas.
Sugere-se, portanto, a realização de novos estudos com o objetivo de complementar os dados e preencher as lacunas dos presentes achados, especialmente acerca do matriciamento e das consequências que sua fragilidade ou ausência podem acarretar aos usuários, profissionais e serviços de saúde. No mesmo sentido, faz-se necessário investigar aspectos relacionados à ambiguidade do vínculo e seu papel na atenção às pessoas com problemas relacionados ao uso de substâncias, sobretudo na perspectiva dos usuários, aspecto que se apresentou na pesquisa como fator facilitador e também dificultador dos processos de identificação e intervenção.
Por fim, espera-se que os dados e discussões apresentados possam contribuir em âmbito social e político para a formulação de ações de apoio e capacitação de profissionais para atendimento voltado às pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas. O objetivo deve ser consolidar uma rede de cuidados disposta a atuar na perspectiva da transformação dos modos de atenção e cuidado a essa população, além de promover reflexão crítica acerca dos modelos institucionalizantes, as barreiras de acesso à saúde e a perspectiva de patologização e criminalização dos sujeitos.
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Financiamento
Não se aplica.
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Apresentação prévia
Este artigo foi elaborado como parte dos resultados do projeto de pesquisa intitulado “Estratégias de profissionais vinculados à Atenção Básica à Saúde para identificação e intervenção frente a demandas relacionadas ao uso de álcool e outras drogas: um estudo em um município catarinense”, como exigência parcial para obtenção do título de Bacharel em Psicologia de Beatriz de Oliveira Lavezzo, da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), defendido em 2022.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Ago 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
09 Dez 2022 -
Aceito
23 Maio 2023