Open-access Resolutividade no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena no Brasil: revisão de escopo

Resolubility in the Indigenous Health Care Subsystem in Brazil: scope review

Resolución en el Subsistema de Atención de la Salud Indígena en Brasil: revisión del alcance

Resumo

A resolutividade relaciona-se à capacidade de solução dos problemas de saúde nos serviços. Em 1999, o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena foi integrado ao Sistema Único de Saúde no Brasil, passando a seguir os seus princípios e diretrizes. Este estudo teve por objetivo identificar e mapear os desafios ou problemas relacionados às práticas em saúde para a resolutividade no Subsistema de Saúde Indígena após a integração. Trata-se de uma revisão de escopo que utilizou seis bases de dados nacionais e internacionais. Os estudos elegíveis tiveram como critério base o mnemônico PCC (P: população indígena; C: desafios ou problemas para a resolutividade; C: subsistema de saúde indígena brasileiro). Foram encontrados 1.748 estudos e selecionados 33, com predomínio de estudos qualitativos. Os desafios ou problemas sensíveis para o processo da resolutividade foram encontrados nos aspectos que tangem à educação em saúde, à interculturalidade, ao acesso universal e aos recursos em gestão. O saber tradicional é pouco valorizado pelo sistema de saúde. A deficiência de recursos humanos e materiais, a falta de efetiva educação permanente e de capacitações para trabalhar no contexto intercultural produzem barreiras de acesso e comprometem a resolutividade nos serviços, aumentando assim as iniquidades em saúde.

Palavras-chave: saúde de populações indígenas; assistência à saúde; serviços de saúde; resolução de problemas

Abstract

Resolubility relates to the ability to solve health problems in services. In 1999, the Indigenous Health Care Subsystem was integrated into the Brazilian Unified Health System, following its principles and guidelines. The objective of this study was to identify and map the challenges or problems related to health practices for solving in the Indigenous Health Subsystem after integration. This is a scope review that used six national and international databases. Eligible studies were based on mnemonic PCC (P: indigenous population; C: challenges or problems for resolution; C: Brazilian indigenous health subsystem). A total of 1,748 studies were found and 33 were selected, with predominance of qualitative studies. The challenges or problems that are sensitive to the resolution process were found in the aspects that are related to health education, interculturality, universal access and management resources. Traditional knowledge is underrated by the health system. The deficiency of human and material resources, the lack of effective permanent education and capacitations to work in the intercultural context, produce barriers to access and compromise the resolubility in services, thus increasing the inequities in health.

Keywords: health of indigenous peoples; delivery of health care; health services; problem solving

Resumen

La resolución se refiere a la capacidad de resolver problemas de salud en los servicios. En 1999, el Subsistema de Atención de Salud Indígena se integró en el Sistema Único de Salud de Brasil, siguiendo sus principios y directrices. El objetivo de este estudio fue identificar y mapear los desafíos o problemas relacionados con las prácticas de salud para resolver en el Subsistema de Salud Indígena después de la integración. Esta es una revisión de alcance que utilizó seis bases de datos nacionales e internacionales. Los estudios elegibles se basaron en PCC mnemónicos (P: población indígena; C: desafíos o problemas para la resolución; C: subsistema de salud indígena brasileño). Se encontraron 1.748 estudios y se seleccionaron 33, con predominio de estudios cualitativos. Los desafíos o problemas que son sensibles al proceso de resolución se encontraron en los aspectos que están relacionados con la educación en salud, la interculturalidad, el acceso universal y los recursos de gestión. El conocimiento tradicional es subestimado por el sistema de salud. La deficiencia de recursos humanos y materiales, la falta de educación permanente efectiva y de capacitaciones para trabajar en el contexto intercultural, producen barreras para acceder y comprometer la solubilidad en los servicios, aumentando así las desigualdades en salud.

Palabras clave: salud de las poblaciones indígenas; atención de salud; servicios de salud; resolución de problemas

Introdução

Após a Declaração de Alma-Ata, em 1978, muitos países readequaram suas agendas priorizando a Atenção Primária à Saúde (APS) como foco das ações de saúde para a população (Organização Mundial da Saúde, 1986). No Brasil, a APS, a partir da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), torna-se a porta principal de entrada dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), caracterizado por um conjunto de ações coletivas e individuais para a promoção da saúde, proteção e prevenção de agravos, diagnósticos, recuperação e tratamento da saúde (Brasil, 2012).

A partir de 1999, o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI) integrou-se ao SUS, passando a seguir os princípios e diretrizes deste sistema e adequando as ações de saúde de acordo com as necessidades e especificidades dos povos tradicionais. O SASI-SUS estruturou-se por meio de 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) em todo o país, estabelecendo uma rede de serviços de saúde nas terras indígenas para a oferta de ações da APS (Brasil, 2002).

A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), criada em 2002, trouxe orientações acerca do cuidado em saúde dessas populações, considerando os aspectos culturais, epidemiológicos, geográficos e sociais, ao inserir o conceito da ‘atenção diferenciada’ (Brasil, 2002). Apesar de avanços no cenário da saúde indígena, nas aldeias evidenciam-se condições desfavoráveis, que são pautas de reivindicações dos povos indígenas no Brasil, juntamente com o tema da atenção diferenciada (Dias-Scopel, 2018).

As desigualdades sociais, econômicas e culturais se apresentam de maneira diferenciada no processo de adoecer das populações tradicionais. Para os povos indígenas, a saúde está intimamente relacionada com a disponibilidade da terra, seus hábitos, sua relação com a natureza e integridade dos ecossistemas específicos, por isso a saúde deve estar a serviço da cultura e das formas de organização. As políticas de saúde voltadas aos povos indígenas no Brasil reconhecem os saberes tradicionais relativos ao processo saúde-doença, ao aspecto geossociocultural de cada etnia e sua importância no manejo dos problemas de saúde do cotidiano. Entretanto, as políticas públicas reproduzem uma “imagem caricatural e estereotipada” dessa medicina tradicional (Dias-Scopel, 2018, p. 22).

Como um dos princípios da lei orgânica do SUS no Brasil, a resolutividade relaciona-se à capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de atenção (Brasil, 1990). Para Turrini, Lebrão e Cesar (2008), a resolutividade é entendida como um conceito amplo que circunda o acesso dos usuários aos serviços de saúde, a integralidade da assistência, o contexto social e suas demandas que influem no percurso de solução dos problemas de saúde das populações. Na APS, maior resolutividade na assistência prestada permite reduzir o número de encaminhamentos para consultas especializadas e exames, o que diminui os gastos desnecessários. Nesse nível de atenção, a resolutividade abrange o conhecimento técnico dos profissionais, o acolhimento, o vínculo, a relação profissional-usuário, enfim, o sentido de atuar no campo da saúde que surge entre os sujeitos (Franco e Magalhães Júnior, 2004).

Contribui ainda para uma baixa resolutividade o modelo hegemônico centrado no médico voltado para a solução de problemas. Porém, esse cenário tem passado por transformações, caminhando para um modelo integral de saúde em que se valoriza a efetividade do processo, ou seja, o impacto que as ações de saúde têm em relação ao indivíduo e seu entorno.

Nesse sentido, a relação entre resolutividade e satisfação do usuário é uma importante ferramenta para avaliar a qualidade da atenção à saúde, pois permite analisar o trabalho efetivado, readequando os serviços de saúde (Rosa, Pelegrini e Lima, 2011).

Em maio de 2023, a Organização Mundial da Saúde (OMS), na 76ª Assembleia Mundial da Saúde, aprovou a resolução que assegura o desenvolvimento do pacto internacional em defesa da saúde dos povos indígenas, colocando-a como questão prioritária e demandando ações que promovam a identificação das necessidades e lacunas no acesso e cobertura, medida de abordagem intercultural e redução das desigualdades (Brasil, 2023).

Em revisão de estudos brasileiros a respeito das pesquisas que avaliam a resolutividade na atenção básica, constatou-se que a resolutividade e a efetividade estão interligadas à avaliação positiva das ações desenvolvidas pelos serviços de saúde. Além disso, verificou-se que a melhoria da resolutividade dos serviços de saúde se deve à implementação de programas de avaliação, como o Programa de Melhoria de Acesso e Qualidade da Atenção Básica (PMAQ) (Vasconcelos et al., 2018), por exemplo. Porém, apesar de a PNASPI enfatizar a necessidade de monitoramento das práticas de saúde na atenção à saúde do indígena, percebe-se uma escassez de estudos científicos acerca dos desafios relacionados às práticas em saúde para a resolutividade. Os desafios neste estudo são compreendidos como situações que requerem soluções que dependem de compromisso, esforço, planejamento e ações dos envolvidos, tanto profissionais quanto usuários do sistema de saúde. E os problemas foram compreendidos como contextos que estão além da capacidade de solução dos profissionais e usuários do SUS nos diversos contextos da saúde indígena.

Portanto, este estudo teve como objetivo identificar e mapear os desafios ou problemas relacionados às práticas na saúde indígena para a resolutividade no SASI-SUS.

Método

O método adotado foi a revisão de escopo, pois permite mapear uma temática pouco explorada, clarificando os conceitos e identificando as lacunas do conhecimento (Arksey e O’Malley, 2005). Percebe-se que há amplas publicações da temática com a população não indígena, porém a análise desse princípio do SUS nas populações tradicionais é um fator pouco explorado. O procedimento para a revisão de escopo envolveu cinco etapas: elaboração da pergunta de pesquisa; identificação dos estudos relevantes; seleção dos estudos; registro dos dados e; sumarização dos resultados (Arksey e O’Malley, 2005).

O levantamento dos estudos abrangeu as publicações a partir de 2010, ano em que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) assumiu a gestão federal (lei n. 12.314/2010) até junho de 2022. A revisão foi norteada pela questão “Quais são os desafios ou problemas relacionados à resolutividade no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena brasileiro?”, pautando-se na estratégia de busca ‘PCC’ (P - população; C - conceito; C - contexto), para se chegar à classificação: P - população indígena; C - desafios ou problemas para a resolutividade; C - Subsistema de Saúde Indígena Brasileiro.

As bases de dados e interfaces selecionadas para a busca de publicações foram Scopus, Embase, Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature (CINAHL), PubMed Central® (PMC), Virtual Health Library (VHL/BVS) e Google Acadêmico. Para as duas últimas bases de dados, foram usados os seguintes descritores de saúde (DECS) estruturados com os operadores booleanos: (resolutividade OR “cuidado em saúde”) AND “saúde indígena”. Já para as demais bases, aplicaram-se os seguintes DECS: ‘health of indigenous peoples’ AND (healthcare OR ‘health care’ OR ‘problem solving’) AND Brazil.

Foram incluídos artigos publicados na íntegra, nos idiomas inglês, espanhol e português, e artigos científicos com dados primários, estudos de revisões e estudos teórico-reflexivos que trazem a percepção dos diversos atores que trabalham na saúde dos povos indígenas. Excluíram-se pesquisas feitas em outros países, visto que o SASI-SUS é um sistema de saúde brasileiro; artigos duplicados nas bases de dados; protocolos de revisão e literatura cinzenta, pois o objetivo da revisão está voltado para os desafios ou problemas das práticas de saúde e não para a normatização e a teorização que envolvem o tema resolutividade.

A seleção dos estudos foi desenvolvida por dois revisores de forma independente. Após essa etapa, compararam-se as seleções; diante das situações de dúvidas e discordâncias, acionou-se um terceiro revisor para resolução. A seleção envolveu as seguintes etapas: leitura do título; leitura do resumo; e leitura do artigo na íntegra, de acordo com o fluxograma representado na Figura 1.

Figura 1
Fluxograma de seleção dos artigos da revisão Prisma-ScR

Com base nos estudos selecionados, os temas foram elencados segundo as temáticas identificadas, efetuando-se a categorização por eixos estruturais e de acordo com a pergunta norteadora da revisão. Durante a leitura e a releitura dos artigos, extraíram-se as seguintes informações: autores e ano de publicação, local do estudo, tipo do estudo, população, foco e desafios ou problemas para a resolutividade. Foram adotadas as recomendações do Prisma-ScR para a elaboração deste relatório de revisão de escopo (Moher et al., 2015).

Resultados

A pesquisa levantou 1.748 estudos nas bases de dados. Após o percurso do processo de seleção, 33 artigos satisfizeram os critérios de elegibilidade e foram incluídos na presente revisão (Figura 1).

A maioria dos artigos refere-se a estudos qualitativos ou etnográficos (21 estudos), desenvolvidos no Amazonas (seis estudos) e publicados nos anos de 2015 e 2021 (Quadro 1). Quanto ao local de desenvolvimento do estudo, dos 26 estados brasileiros e o Distrito Federal, 15 possuíam pelo menos um estudo, e dentre as regiões brasileiras, a região Norte apresentou o maior quantitativo (11), seguida das regiões Sul e Centro-Oeste (seis), Nordeste (quatro) e Sudeste (três). Dois estudos apresentaram dados nacionais.

Quadro 1
Síntese de estudos realizados sobre os desafios ou problemas para a resolutividade no SASI-SUS, janeiro de 2010 a junho de 2022

O contexto socioeconômico, cultural e ambiental foi tema recorrente e se entrelaça de modo indissociável aos resultados da atenção à saúde aos povos indígenas. Quanto aos aspectos para o alcance da resolutividade na saúde dos povos indígenas, destacaram-se: resolução de problemas de saúde por meio de práticas tradicionais; (re)conhecimento da equipe de saúde sobre os aspectos culturais; conjugação de saberes tradicionais e biomédicos para a obtenção dos melhores resultados em saúde; promoção da saúde; acesso e acessibilidade aos serviços de saúde; identificação de determinantes sociais que transversalmente comprometem a eficácia das ações em saúde; controle social efetivo; educação permanente em saúde indígena no processo de trabalho da equipe; e gestão de recursos humanos e materiais para viabilizar as ações em saúde que constituem o foco de discussão.

A amplitude do conceito de resolutividade dos serviços incluiu todo o percurso no subsistema de saúde indígena, que abrangeu o tratamento de enfermidades até sua cura, amenização ou controle, incluindo os fatores intervenientes e os impactos gerados pelas ações de saúde. Com foco nessa abrangência conceitual e nos aspectos da resolutividade apresentados anteriormente, os achados foram dispostos em quatro eixos estruturais: interculturalidade nos cuidados de saúde; gestão e recursos; educação em/na saúde e; acesso aos serviços de saúde (Quadro 1).

Discussão

A produção científica sobre os desafios ou problemas relacionados às práticas em saúde para a resolutividade no SASI-SUS após a SESAI assumir a gestão é oriunda das cinco regiões brasileiras, com predominância para a região Norte, e representa populações indígenas de 58% dos estados brasileiros. Os estudos apresentam resultados que indicam os desafios ou problemas com base na avaliação e satisfação dos usuários indígenas e dos profissionais que atuam na área, sendo o método qualitativo o predominante. Possivelmente esses resultados são justificados pelo fato de a Norte ser a região com a maior quantidade de indígenas do país (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2012), e a predominância de métodos qualitativos empregados sugere a relação da cultura indígena com a valorização do diálogo.

Interculturalidade nos cuidados de saúde

A interculturalidade no âmbito da saúde refere-se à capacidade dos profissionais em desenvolver um olhar sensível às práticas, aos saberes e singularidades sobre os usuários atendidos (Diehl e Pellegrini, 2014). A partir do momento em que o profissional optou em atuar na saúde indígena, ele necessita assumir uma conduta que considere a interculturalidade, pois caso contrário colocará em risco a adesão ao tratamento dos usuários e a qualidade dos serviços prestados (Dantas et al., 2023).

Essa falta de compreensão relacionada à atuação profissional considerando as singularidades pode ter suas origens ligadas à deficiência na formação intercultural dos trabalhadores na área da saúde indígena, o que impacta diretamente a capacidade resolutiva dos problemas de saúde dos povos tradicionais (Lima e Sousa, 2021; Landgraf, Imazu e Rosado, 2020; Freitas et al., 2021).

No Brasil, apesar dos princípios e diretrizes da PNASPI, a desvalorização cultural dos povos indígenas se faz presente nos serviços de saúde que atendem essas populações, tal como observado na Casa de Saúde Indígena (Casai) no Pará e em São Paulo, acerca dos desafios na oferta de alimentos tradicionais e barreiras linguísticas (Silva et al., 2016; Macedo, 2021). As Casais são responsáveis em alojar o paciente vindo da aldeia para resolver o problema de saúde, no município mais próximo ou nos grandes centros, e são responsáveis, dentre outras funções, pela articulação com a rede de saúde do SUS (Brasil, 2002). Porém, antes de o indígena ser encaminhado para outros serviços fora da aldeia, há a tentativa de resolver o problema dele por meio de dispositivos locais de saúde.

Pontes, Rego e Garnelo (2015), em seu estudo no DSEI Alto Rio Negro no Amazonas, mencionam que os indígenas dessa localidade buscam primeiramente o uso de plantas medicinais, dietas, automedicação com remédios industrializados, além de terapeutas tradicionais indígenas e dos agentes indígenas de saúde (AISs), apresentando assim um pluralismo médico no território desse distrito.

Sobre os AISs, eles fazem parte da Equipe Multiprofissional de Saúde Indígena (EMSI) e são considerados essenciais para o alcance do princípio da atenção diferenciada, de modo a contribuir na oferta de serviços sensíveis ao pluralismo médico presente nas aldeias indígenas (Diehl, Langdon e Dias-Scopel, 2012). No entanto, na prática, as rotinas dos AISs pouco se diferenciam das tarefas padronizadas para a APS no contexto urbano, ainda sujeitas à hierarquização do trabalho (Pontes, Rego e Garnelo, 2015).

Segundo os mesmos autores, contribui para o cenário apresentado o fato de na PNASPI não estar definido claramente o conceito sobre a atenção diferenciada e de essa política nacional sobrevalorizar a responsabilidade do AIS em implantar esse modelo, focar a formação do AIS na qualificação biomédica e creditar o sucesso do modelo à presença do indígena no sistema de saúde (Pontes, Rego e Garnelo, 2015). Além disso, a desvalorização dos AISs pelos membros da EMSI e profissionais da rede do SUS dá-se, entre muitos fatores, pela natureza hierárquica apresentada nos serviços médicos e o não reconhecimento do papel deles como profissionais (Diehl, Langdon e Dias-Scopel, 2012). Entre os AISs Munduruku do Amazonas, há uma ambiguidade de seu papel, pois eles são capazes de realizar articulação entre diferentes formas de atenção, indo além da representação do modelo biomédico (Scopel, Dias-Scopel e Langdon, 2015).

Ressalta-se a importância de se buscar a valorização e de clarificar as potencialidades da atuação dos AISs, de modo a contribuir no que tange ao reconhecimento das práticas dos povos indígenas, sendo a ponte entre os saberes tradicionais e o biomédico na atenção à saúde dessas populações. Nesse sentido, esse profissional é um facilitador para a efetivação dos princípios e diretrizes do SUS e da política de saúde indígena para o alcance da atenção diferenciada.

Vale destacar que a atenção diferenciada é uma das diretrizes do SASI-SUS, que busca adequar os serviços de saúde por meio da preparação dos profissionais em um contexto intercultural, articulando assim suas ações com as práticas tradicionais, porém sua concretização ainda é um desafio nos DSEIs (Pontes, Garnelo e Rego, 2014).

Outro aspecto que tange à interculturalidade é a comunicação. Barreiras a esse aspecto comprometem o processo de cuidado à saúde, a confiança e o entendimento entre usuários e profissionais. Em uma revisão integrativa a respeito da APS entre indígenas na América Latina, autores trazem a realidade na Bolívia e no Brasil, que demonstra que a falta de comunicação efetiva entre indígenas e profissionais é uma problemática na adesão aos serviços de saúde entre esses povos (Sandes et al., 2018). Em estudos feitos no Peru, situações de comunicação ineficientes entre os atores envolvidos estão relacionadas a aspectos linguísticos, à necessidade de intérpretes e a visões de mundo distantes, o que causa desentendimentos inclusive nos diagnósticos (Williamson, Ramirez e Wingfield, 2015; Palma-Pinedo e Reyes-Vega, 2018).

A comunicação vai além do aspecto linguístico; trata-se também da compreensão do processo saúde-doença dos usuários de maneira intercultural. Há situações em que a interculturalidade é pensada de acordo com o conceito daqueles que a operam, sem se importarem com a noção de cultura das populações tradicionais; nesse caso, promove-se o multiculturalismo, em que diversas culturas coexistem na ótica de uma hierarquia, com a supremacia branca (Grosfoguel, 2007; Ferreira, 2015).

Na tentativa de assumir estratégias para melhorar a comunicação em práticas de cuidado, negociações foram ajustadas entre profissionais e indígenas da etnia Mbyá-Guarani, onde o cuidado é compreendido entre “o mundo Mbyá ou o mundo dos juruás (homens brancos)”, porém essa forma de classificar os dois mundos intensifica a fragmentação dos saberes na perspectiva intercultural (Falkenberg, Shimizu e Bermudez, 2017, p. 7). A combinação das culturas envolvidas deve se dar em associação, sem que haja a coexistência de diversas culturas em que uma se sobreponha à outra (Ferreira, 2015).

Diante disso, é preciso estar atento às tensões existentes nas práticas de cuidado, de forma a contribuir para a fluidez na dinâmica intercultural nas práticas de ações nos serviços de saúde indígena. O avanço desse processo permite identificar as necessidades da comunidade e da equipe para o alcance da compreensão sobre o fazer saúde em seu conceito mais amplo.

Gestão e recursos

Diversas realidades da saúde indígena no Brasil apresentam desafios ou problemas no contexto da gestão do SASI-SUS, que comprometem a resolutividade nos serviços de saúde, tais como: escassez de medicamentos e de insumos, demora na marcação de consultas e exames, precarização da infraestrutura das unidades de saúde, recursos financeiros deficitários e atenção à saúde fragmentada (Scopel, Dias-Scopel e Langdon, 2015; Pontes, Rego e Garnelo, 2018; Barbosa, Cabral e Alexandre, 2019; Macedo, 2021; Nóbrega et al., 2013; Ribeiro, Fortuna e Arantes, 2015; Ahmadpour et al., 2016; Oliveira, Aquino e Monteiro, 2012).

Além desses aspectos mencionados, outro desafio encontrado em diferentes cenários na saúde indígena relaciona-se à rotatividade de profissionais de saúde, o que se reflete principalmente na descontinuidade dos serviços (Maia et al., 2021; Pontes, Rego e Garnelo, 2018; Ribeiro et al., 2017). O sistema de ‘rodízio’ é reforçado pela fragilidade das relações trabalhistas, o que compromete as construções dos vínculos e a continuidade da assistência ao usuário (Santos et al., 2021).

A descontinuidade da presença de profissionais e das ações desenvolvidas nas comunidades também afeta a capacidade da EMSI em oferecer ações sensíveis à cultura local e construir uma relação de confiança com os indígenas, como retratado no DSEI Rio Tapajós (Maia et al., 2021). Isso enfraquece significativamente o escopo para uma resposta rápida, apropriada e eficaz às questões identificadas, um dos pontos fortes do modelo da APS descentralizada e participativa do SASI-SUS (Scalco, Nunes e Louvison, 2020).

Entre indígenas Munduruku do estado do Amazonas, os desafios e problemas supracitados fazem parte do cotidiano dos trabalhadores, o que traz incertezas e improvisação na APS. Essas problemáticas são discutidas entre as lideranças e assembleias locais (Scopel, Dias-Scopel e Langdon, 2015). Em estudo efetuado na comunidade indígena de Pankararu, os autores evidenciam pouca resolutividade e ações de saúde descontínuas, além do exercício do controle social fragilizado (Oliveira, Aquino e Monteiro, 2012).

Educação em/na saúde indígena

Capacitações dos trabalhadores da EMSI e dos que atuam nos serviços de referência do SASI-SUS aparecem como um tema sensível nos estudos no que tange à melhoria das ações nos serviços de saúde indígena. Quem oferta essas capacitações para os profissionais são os DSEIs de cada território (Brasil, 2002). Porém, na prática, percebem-se inconsistências dessas atividades em diversas realidades, o que compromete a qualidade da assistência para esses povos (Lima e Sousa, 2021; Scopel, Dias-Scopel e Langdon, 2015; Maia et al., 2021).

Além disso, a formação em saúde para o atendimento às populações indígenas está muito aquém das necessidades desses povos, o que é evidenciado pela formação biologicista de profissionais médicos no DSEI Yanomami, e leva à necessidade, por parte desses profissionais, de estudos principalmente na área da antropologia no contexto da saúde indígena (Freitas et al., 2021).

Em estudo realizado na Casai de Cuiabá, a maioria dos profissionais de saúde recebeu algum tipo de capacitação na área de antropologia, ação precedida de diversas discussões acerca da necessidade de capacitações dos trabalhadores da Casai para uma atuação em perspectiva intercultural (Gomes e Esperidião, 2017).

A relação ensino-serviço na formação acadêmica de futuros profissionais de saúde e a inserção de disciplinas como a saúde indígena e o internato rural nos currículos acadêmicos nesses territórios são caminhos para o entendimento sobre o SASI-SUS. Experiências de acadêmicos da área da enfermagem descrevem a vivência no estágio em área indígena como uma experiência única em sua formação, destacando a aprendizagem interdisciplinar para a compreensão do processo saúde-doença entre as populações indígenas (Silva, Gonçalves e Neto, 2003).

Espaços de educação permanente no cotidiano do trabalho dos profissionais demonstram grandes potencialidades na arte do encontro, o que permite o reconhecimento das diferenças, a reorganização do processo de trabalho e a interculturalidade no fazer-saúde (Landgraf, Imazu e Rosado, 2020). Essas atividades na atenção à saúde do indígena possibilitam compreender que os sistemas de conhecimento são múltiplos e podem ser complementares no planejamento das ações em saúde para os povos tradicionais (Landgraf, Imazu e Rosado, 2020).

É preciso que a promoção da saúde esteja fortemente incluída nos movimentos indígenas para a formulação de políticas públicas. Segundo Oliveira, Aquino e Monteiro (2012), é necessário que o sistema de saúde alicerce suas ações em atividades de promoção da saúde para que a atenção à saúde dos povos indígenas seja mais resolutiva.

Acesso aos serviços de saúde

Embora o acesso universal consista em um dos princípios do SUS, considerado primordial para a efetivação da PNASPI, de modo a superar as deficiências de cobertura, encontram-se problemas relacionados à fragmentação dos serviços de saúde e às barreiras geográficas (Nóbrega et al., 2013; Lima e Sousa, 2021).

Em relação às barreiras geográficas, as realidades são diferenciadas de acordo com cada contexto, considerando a heterogeneidade dos municípios existentes no país. Para as áreas de difícil acesso, como no caso da maioria das comunidades indígenas da região Norte e parte da região Centro-Oeste, os municípios enfrentam, dentre muitos problemas, aqueles relacionados ao transporte, que trazem grandes entraves na organização dos serviços de saúde (Nóbrega et al., 2013) e são um dos principais pontos de grande insatisfação entre profissionais da Casai de Cuiabá (Gomes e Esperidião, 2017). Na região do DSEI Tapajós, por exemplo, o acesso à maioria das aldeias é por meio fluvial ou aéreo e, em alguns casos, terrestre (Maia et al., 2021), contudo, o mesmo problema não é observado nas comunidades das regiões Nordeste, Sudeste e Sul, em que a malha de estradas constitui a principal via de locomoção entre as regiões, o que favorece o acesso às comunidades indígenas dessas localidades (Barros e Baggio, 2022).

Além dos desafios de acesso quanto ao transporte, encontram-se barreiras organizacionais, geográficas e culturais, como a ausência de intérprete para melhor comunicação dos povos indígenas nos serviços de saúde, por exemplo (Gomes e Esperidião, 2017).

Em revisão realizada sobre o acesso aos serviços de saúde entre indígenas da América Latina, foi exemplificado o Programa Mais Médicos (PMM) como forma de superação dos desafios ou problemas relacionados a esse princípio do SUS no Brasil. Foi uma iniciativa governamental que trouxe avaliações positivas entre as populações indígenas (Sandes et al., 2018).

Conclusão

O estudo apresenta algumas características possíveis de serem identificadas por meio de pesquisas, principalmente de dados primários, quanto às barreiras para o alcance da resolutividade. Em sua maioria, as publicações encontradas que tratam da temática do presente estudo constatam que o cuidado em saúde, em uma perspectiva cultural, é essencial para a qualidade dos serviços de saúde. Contudo, embora presente na política de atenção à saúde indígena, observou-se que o saber tradicional e o biomédico ainda são vistos como entidades incompatíveis, principalmente pelos profissionais de saúde, e pouco valorizadas pelos sistemas de saúde.

O principal fator limitante do estudo foi o termo central da revisão, ‘resolutividade’, por não apresentar descritor e consequente padronização do termo. Essa ausência de linguagem única dificultou as buscas nas bases de dados e a localização dos estudos.

A desvalorização dos AISs, a baixa capacitação dos profissionais no contexto intercultural e a formação em saúde de caráter biologicista parecem ser pontos sensíveis que comprometem a qualidade da assistência à saúde dos povos indígenas. Além disso, barreiras de acesso aos serviços de saúde, atenção à saúde fragmentada, gestão descompromissada e alta rotatividade dos profissionais são fatores que ampliam os desafios ou problemas no contexto da saúde dos povos indígenas, diminuem a resolutividade nos serviços e aumentam as iniquidades em saúde. Portanto, faz-se necessário discutir os problemas e desafios não apenas entre os atores nos serviços de saúde, como os profissionais de saúde e usuários, mas também entre os gestores em diferentes setores que contribuem para o alcance da resolutividade no SASI-SUS.

Referências

  • Financiamento
    O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - Brasil - Código de Financiamento 001.
  • Apresentação prévia
    A pesquisa é fruto da tese de doutorado de Bahiyyeh Ahmadpour, intitulada A resolutividade no subsistema de atenção à saúde indígena em uma unidade de referência no estado do Amazonas, defendida no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem na Saúde do Adulto da Universidade de São Paulo, em 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2023
  • Aceito
    30 Jun 2023
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