Resumos
Desde os anos 1880, a arqueologia dos remanescentes humanos no Brasil esteve quase restrita aos estudos osteométricos, osteológicos ou dentários em laboratório. Atualmente, a bioarqueologia avança por abordagens mais complexas, que iniciam na interpretação de estruturas funerárias e deposicionais contendo ossos humanos. Metodologias aplicáveis não apenas pelo especialista, mas também por arqueólogos generalistas, vêm sendo testadas com sucesso em campo e laboratório, auxiliando na identificação, documentação, resgate e interpretação de deposições de ossos humanos em sítios arqueológicos. Por outro lado, houve mudança nos paradigmas que dizem respeito à interpretação arqueológica dos sítios com remanescentes humanos. A interpretação dos gestos e processos que antecedem, acompanham e sucedem a deposição do morto e seus remanescentes requer leituras arqueológicas e bioarqueológicas integradas. Apenas ossos in situ são capazes de informar sobre como remanescentes humanos foram manejados em antigos atos e gestos, e sobre o modo como os sítios arqueológicos foram construídos e transformados ao longo do tempo e em torno deles. Aqui discutimos o porquê e como os ossos in situ podem ser mais informativos sobre os sítios arqueológicos do que sobre as vidas passadas que representam, e porque é importante que os arqueólogos os interpretem em campo.
Arqueologia funerária; Metodologia de campo; Bioarqueologia; Tafonomia
Since the 1880s the archaeology of human remains in Brazil was most limited to the laboratory osteometric, osteologic and dental techniques. Currently, bioarchaeology progresses through more complex approaches, which start in the interpretation of funerary and depositional structures containing human remains. Methodologies that can be used not only by specialists but also by archaeologists are available, both in the field as in the laboratory, helping to identify, document, recover and interpret human bone deposition in archaeological sites. On the other side, there were changes in the paradigms concerning the interpretation of sites containing human remains. The interpretations of the processes and attitudes that preceded, followed and succeeded the funerals or deposition of the human remains require more integration between archaeology and bioarchaeology in the field. Bones in situ are the only evidences able to tell us about the way the remains were manipulated in past acts and gestures, and how the archaeological sites were built and changed around them along the time. Here we discuss why and how bones in situ may be more informative about the archaeological sites themselves than about the lives they represent, and why it is important for the archaeologists to know how interpret them still in the field.
Funerary archaeology; Field methods; Bioarchaeology; Taphonomy
DOSSIÊ METODOLOGIA DA PESQUISA ARQUEOLÓGICA
'Ossos no chão': para uma abordagem dos remanescentes humanos em campo
'Buried Bones': for a further discussion about human skeletal remains in the field
Sheila Mendonça de SouzaI; Claudia Rodrigues-CarvalhoII
IFundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Claudia Rodrigues-Carvalho Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Arqueologia Departamento de Antropologia - Setor de Antropologia Biológica Quinta da Boa Vista CEP 209040-040. Rio de Janeiro, RJ, Brasil claudia@mn.ufrj.br
RESUMO
Desde os anos 1880, a arqueologia dos remanescentes humanos no Brasil esteve quase restrita aos estudos osteométricos, osteológicos ou dentários em laboratório. Atualmente, a bioarqueologia avança por abordagens mais complexas, que iniciam na interpretação de estruturas funerárias e deposicionais contendo ossos humanos. Metodologias aplicáveis não apenas pelo especialista, mas também por arqueólogos generalistas, vêm sendo testadas com sucesso em campo e laboratório, auxiliando na identificação, documentação, resgate e interpretação de deposições de ossos humanos em sítios arqueológicos. Por outro lado, houve mudança nos paradigmas que dizem respeito à interpretação arqueológica dos sítios com remanescentes humanos. A interpretação dos gestos e processos que antecedem, acompanham e sucedem a deposição do morto e seus remanescentes requer leituras arqueológicas e bioarqueológicas integradas. Apenas ossos in situ são capazes de informar sobre como remanescentes humanos foram manejados em antigos atos e gestos, e sobre o modo como os sítios arqueológicos foram construídos e transformados ao longo do tempo e em torno deles. Aqui discutimos o porquê e como os ossos in situ podem ser mais informativos sobre os sítios arqueológicos do que sobre as vidas passadas que representam, e porque é importante que os arqueólogos os interpretem em campo.
Palavras-chave: Arqueologia funerária. Metodologia de campo. Bioarqueologia. Tafonomia.
ABSTRACT
Since the 1880s the archaeology of human remains in Brazil was most limited to the laboratory osteometric, osteologic and dental techniques. Currently, bioarchaeology progresses through more complex approaches, which start in the interpretation of funerary and depositional structures containing human remains. Methodologies that can be used not only by specialists but also by archaeologists are available, both in the field as in the laboratory, helping to identify, document, recover and interpret human bone deposition in archaeological sites. On the other side, there were changes in the paradigms concerning the interpretation of sites containing human remains. The interpretations of the processes and attitudes that preceded, followed and succeeded the funerals or deposition of the human remains require more integration between archaeology and bioarchaeology in the field. Bones in situ are the only evidences able to tell us about the way the remains were manipulated in past acts and gestures, and how the archaeological sites were built and changed around them along the time. Here we discuss why and how bones in situ may be more informative about the archaeological sites themselves than about the lives they represent, and why it is important for the archaeologists to know how interpret them still in the field.
Keywords: Funerary archaeology. Field methods. Bioarchaeology. Taphonomy.
INTRODUÇÃO
A pesquisa arqueológica envolvendo a escavação e o estudo de remanescentes diretos humanos é motivo de crescente interesse nas últimas décadas, apesar das complexas ponderações éticas e de aspectos legais em diferentes países do mundo (Marquéz-Grant e Febiger, 2010). Impedimentos, forte regulação, restrições de diferentes naturezas e, até mesmo, a forçosa devolução para reinumação de materiais humanos existentes em acervos, bem como a dificuldade de acesso aos sítios funerários, não desestimulam a pesquisa em arqueologia funerária e bioarqueologia, com extraordinário potencial explicativo para desvendar o passado (Larsen, 1999; Souza, 1999, 2003; Walker, 2009). Talvez, como propõe Roberts (2009), nossa forte identificação com os remanescentes dos corpos de nossos semelhantes certamente justifica a popularidade dos estudos envolvendo a bioarqueologia e a arqueologia funerária.
No Brasil, apesar das condições desfavoráveis de preservação e do predomínio de práticas culturais redutoras dos corpos e ossos (Souza, 2010a; Metraux, 1947), temos sítios arqueológicos ricos em vestígios humanos e o estudo deles tem trazido algumas das mais importantes contribuições à pré-história da América. Aqui também se observa um crescente interesse pelo estudo de tais testemunhos. A formação de um número maior de profissionais vem expandindo o campo e provendo especialistas em uma escala nunca alcançada no país.
Por outro lado, ao contrário de países onde a formação antropológica é mais sólida e onde houve grande investimento em bioarqueologia, como os Estados Unidos, a Argentina, a Inglaterra e Portugal, a história da bioarqueologia no Brasil e a pequena massa crítica de profissionais atuantes até duas décadas atrás (Souza, 2010a; Souza e Guichon, 2012) resultaram em relativa estagnação e pouco desenvolvimento da relação bioarqueologia/arqueologia. Com efeito, observa-se que a abordagem de sítios com remanescentes de corpos humanos, tais como cemitérios arqueológicos, não apresentou crescimento significativo nas outras décadas. Em relação a esse tipo de pesquisa, tanto nos aspectos teórico-metodológicos quanto nos aspectos pragmáticos do trabalho empírico em campo, avançou lentamente. O número de escavações com retirada de esqueletos humanos é proporcionalmente menor hoje do que foi nas décadas finais do século XX.
Considerando o aumento do efetivo profissional e de estudantes em campo, e o crescimento extraordinário das pesquisas arqueológicas no Brasil, essa afirmativa surpreende. Ainda que o interesse pela bioarqueologia tenha crescido, e a produção científica brasileira relacionada aos estudos de remanescentes humanos expresse isso claramente (Souza, 2011), algumas circunstâncias sustaram, pelo menos temporariamente, o crescimento das coleções de ossos humanos nos museus e repositórios, como ocorrido, por exemplo, no Museu Nacional do Rio de Janeiro, o que mais recentemente parece se reverter.
A crescente percepção da necessidade de profissionais especializados, que apenas agora começam a se multiplicar no país, ou a crescente diversificação e especialização dos arqueólogos, cada vez mais envolvidos com as tecnologias e as metodologias atuais, podem ser fatores que contribuíram para isso.
Embora reconhecendo o esforço de alguns profissionais para assegurar a retirada de esqueletos em boas condições para estudo laboratorial, de um modo geral, o registro em campo foi modesto. As informações pertinentes às estruturas funerárias na literatura nacional são restritas, e poucos trabalhos recentes, como o de Vergne (2007), dedicaram-se a discutir os achados funerários, ainda que a partir de observações genéricas. As tentativas de reconstituir ou desenvolver interpretações a partir de dados publicados esbarram frequentemente nos limites teóricos e metodológicos que nortearam os trabalhos em campo, e na dificuldade acarretada pelo distanciamento entre quem escava e quem analisa, como demonstram os trabalhos de Montardo (1995), Silva (2005) e Simon et al. (1999). Soma-se a essas questões a limitação na disponibilização de dados arqueográficos mais detalhados, em especial, mas não exclusivamente, daqueles referentes às áreas funerárias.
A ausência de uma parte significativa dos achados, principalmente no que se refere aos remanescentes de lactentes e crianças, já tem sido discutida em diferentes trabalhos nacionais e internacionais (Fischer, 2012); muito embora se explique pela tafonomia diferencial e pelas dificuldades de reconhecimento de remanescentes esqueléticos imaturos (Guy et al., 1997), ela não justifica a ausência de informações de campo. Muito material considerado como 'mal preservado' tem sido referido em relatórios ou publicações como tendo sido deixado em campo, sem motivar maiores investimentos para sua documentação ou resgate. A concepção de que apenas os materiais em condições de serem retirados e levados eram portadores de informação relevante levou à perda de muitas estruturas, que nem chegam a ser contabilizadas nas publicações e nos demais registros. Especialmente na Amazônia, esta condição certamente explica a baixíssima frequência de referências a estruturas funerárias, já que a má conservação ou redução dos despojos é constante (Souza, 2010b), além do principal enfoque das pesquisas ser voltado para artefatos como a cerâmica.
Mudanças nos paradigmas da arqueologia funerária e arqueologia da morte já vêm sendo discutidas no Brasil (Ribeiro, 2007). É sabido que os paradigmas vigentes no início do século XX justificavam, por exemplo, que urnas fossem esvaziadas de seu conteúdo cinerário, ou que ossos friáveis fossem considerados de pouco valor científico, em uma rotina segundo a qual apenas crânios em bom estado eram coletados. O que surpreende é que em escavações da segunda metade do mesmo século, estruturas funerárias ainda fossem deixadas sem registro, proporcionando uma lacuna da informação arqueológica, que infelizmente não se justificava apenas pela falta de recursos para o trabalho, mas pela persistência de uma pequena valorização ou do não reconhecimento de muitos indícios funerários como elementos relevantes de informação arqueológica.
Um dos aspectos importantes a serem considerados hoje, por exemplo, é o universo representado pelos remanescentes de corpos humanos em um cemitério, o qual está longe de retratar todos os enterros efetuados, sendo que grande parte do que percebemos em campo não chegará ao laboratório (Waldron, 1994; Souza, 1999). Ainda assim, o esforço de registrar deve ir muito além do que se pode retirar ou analisar em laboratório. Para isso, é claro, a disponibilidade atual de recursos analíticos para a coleta de amostras vem a contribuir significativamente, além da maior disponibilidade de recursos para registro fotográfico, proporcionada pelos meios digitais cada vez mais popularizados e baratos (Liryo e Lima, 2013). Ainda assim, com todos os recursos e a mudança nas perspectivas teóricas que norteiam o trabalho em arqueologia, as estruturas funerárias constituem um desafio com o qual muitos evitam lidar.
Com a imensa expansão do mercado de trabalho em arqueologia no Brasil, cresce também o número de profissionais interessados em bioarqueologia e arqueologia funerária. Por outro lado, a menor endogenia das suas formações acadêmicas e o contato com novas perspectivas teórico-metodológicas, favorecidas pelas cooperações internacionais e nacionais, areja e revigora o campo. Nesse cenário, a busca por maior integração entre os trabalhos arqueológicos e bioarqueológicos (há longo tempo esperada) começa finalmente a dar frutos, e a abordagem dos sítios com remanescentes humanos começa a ser feita de modo mais detalhista, interdisciplinar e eficaz. Desse modo, embora a abordagem científica dos achados funerários não seja nova, com certeza vem mudando a perspectiva e o paradigma, passando os achados funerários a uma posição muito mais relevante enquanto testemunhos bioculturais capazes de iluminar a pesquisa arqueológica. Soma-se a isso, nos últimos anos, a disponibilidade crescente de novas técnicas e métodos, além da 'glamourização' da antropologia forense, contribuindo para o apelo que os estudos de remanescentes humanos parecem exercer sobre novas gerações.
Não se deve esquecer que uma pioneira nesse campo foi Lilia Cheuiche Machado, uma quase exceção em seu tempo, como bioarqueóloga que também escavou seus próprios materiais de estudo (Machado, 1983, 1990). Sem dúvida, foram os resultados de grandes projetos de escavação em sambaquis que aceleraram a busca por novas perspectivas teóricas, além de terem oportunizado a abordagem de áreas com enterramentos humanos em situações-problema desafiadoras e a exploração mais detalhada de seu potencial informativo (Gaspar, 1994-1995; Gaspar et al., 1994, 2008; Fish et al., 2000; Klokler e Gaspar, 2013; Lopes et al., 2013; Sianto et al., 2013; Souza et al., 2013; Wesolowski, 2013).
Contrariando o que se pensou anteriormente, essas novas abordagens permitem evidenciar que os sambaquis brasileiros guardam grande complexidade de arquitetura e utilização. Em tais sítios, hoje reconhecidos como de estratigrafia intrincada, observa-se a associação de diferentes fatores tafonômicos a um processo construtivo menos casual do que se concebeu anteriormente. Soma-se o desafio de uma matriz arqueológica, cujos componentes (ossos, conchas, carvão, areia, argila etc.) são também culturalmente relevantes, podendo ocorrer em estruturas funerárias em disposição especial e, portanto, dotada de significado. Um exemplo recente foi o achado de conchas fechadas de bivalve (Lucina sp.), contendo ossículos de peixe em seu interior, associado a sepultamentos do sambaqui do Amourins, Guapimirim, Rio de Janeiro (Gaspar e Souza, 2013). Embora anteriormente descrito pelo menos em uma publicação (Emperaire e Laming, 1956), este tipo de achado pode ter passado despercebido em outras escavações de sambaquis, onde conchas e ossículos de peixe formam a maior parte da matriz.
Esse tipo de achado em sambaquis reforça a necessidade de um olhar mais refinado, que leve em conta o caráter mimético do que é culturalmente relevante, no pano de fundo da matriz arqueológica. O pressuposto de que pequenos testemunhos representados por alimentos podem estar presentes nas estruturas funerárias nunca foi ignorado das pesquisas em sambaquis, mas o olhar mais metódico para a ordem e a relação espacial dos materiais indicativos de gestos específicos, sem dúvida, vem sendo refinado. Como sinalizadoras para o que pode ser ou não relevante, as estruturas funerárias, facilmente identificáveis por ossos ou cinzas in situ, tornam-se uma espécie de guia para campo.
Ainda na mesma pesquisa citada, a retirada dos sepultamentos humanos (Gaspar et al., 2013; Souza et al., 2013), durante a revisão estratégica no testemunho remanescente daquele sítio1, reafirmou a importância da observação dos remanescentes humanos in situ e da integração de sua interpretação com estruturas, feições e com os detalhes da estratigrafia. Esse procedimento denunciou a construção/preparação da área funerária e do local dos sepultamentos, e também a construção que se sucedeu, incluindo o uso posterior e recorrente da mesma área e seus reflexos sobre a estrutura funerária. Esses dados auxiliaram não apenas as inferências sobre o funeral, mas a interpretação do sítio enquanto arquitetura intencionalmente associada aos mortos, e depois modificada sob ações naturais e antrópicas posteriores.
Levando em conta que a construção funerária em nossos sítios pré-históricos incorpora muitos elementos que podem ser arqueologicamente discretos, quase imperceptíveis (Villagran et al., 2010), a escavação adequada de um esqueleto humano completo é tarefa delicada, podendo exigir alguns dias. É recomendado, na literatura (Roberts, 2009), e por motivos de conservação, que a retirada de um esqueleto seja feita o mais rápido possível, idealmente em uma única jornada, o que pode levar a perdas significativas em alguns dos nossos sítios. Sabemos que a exposição prolongada torna os ossos cada vez mais friáveis, prejudicando análises posteriores. Por outro lado, em sítios pré-históricos nos quais as evidências são sutis, os indícios fugazes, presentes na estrutura funerária, podem ser perdidos em um manejo rápido. Assim sendo, estratégias são recomendáveis para a exposição das estruturas funerárias que preservem ossos, sem prejudicar a documentação e interpretação das suas relações com o entorno imediato. Ao propor que a interpretação dos ossos 'no chão' inclua mais informações sobre a relação entre os remanescentes de corpos humanos e os materiais que os contêm, assim como sobre a matriz arqueológica em torno, é necessário redimensionar o trabalho. A retirada rápida dos ossos poderá prejudicar a observação e inferência, pois, ainda que o propósito de um trabalho seja bioarqueológico, os cuidados necessários com os remanescentes devem ser conjugados com a interpretação do sítio.
Além dos aspectos bioarqueológicos que impactam diretamente a identificação dos remanescentes, permitindo caracterizar ou estimar o seu estado de preservação, sexo, idade biológica, sinais de doenças, traumas e anomalias, características métricas e não métricas, entre outras, temos que ampliar o olhar e o cuidado para além dos ossos, exatamente porque, quando in situ, expressam informações que vão além da morfologia.
Não se trata aqui do dilema escavar ou não uma área com sepultamentos, mas de assumir quanto uma área com sepultamento informa, em níveis detalhados sobre o sítio e as atividades nele desenvolvidas, mesmo porque a finalidade de uma pesquisa arqueológica vai muito além de recolher materiais. Os remanescentes humanos - entendidos como interferentes no corpo estratigráfico do sítio, mas também como elementos sujeitos às interferências do contexto - são tanto norteadores da construção como identificadores dos processos subsequentes de transformação, e como tal devem ser tratados. Sinalizadores de eventos, pontuais e sistêmicos, os remanescentes de corpos humanos ajudam a 'ler' o sítio em detalhes, que podem não ser percebidos de outra forma (Souza, 2003). Por isso, sua exposição, registro e interpretação, ainda em campo, não deve ser dissociada do conjunto de práticas e métodos que norteiam a escavação (Souza et al., 2013).
Finalmente, o trabalho em lugares onde é possível encontrar remanescentes de corpos humanos, feito com olhar apurado e integrador, parece equilibrar a importância desses remanescentes em relação às outras evidências arqueológicas, apaziguando a polaridade manifestada frequentemente por escavadores em relação às estruturas funerárias e demais componentes do sítio arqueológico.
ALGUNS PRESSUPOSTOS PARA O TRABALHO DE CAMPO: BIOARQUEOLOGIA E ARQUEOLOGIA DOS LUGARES COM REMANESCENTES HUMANOS
O trabalho de campo, com foco na recuperação dos remanescentes de corpos humanos e voltado para a análise dos ossos, parte do pressuposto de que ossos, dentes e outros materiais biológicos restantes da decomposição parcial de um corpo humano são fontes relevantes de informação científica por si. Embora isso seja verdade, os ossos representam em sua matriz um nível diferente de leitura arqueológica, a ser buscado em campo. Permitem aumentar a dimensão de informação oferecida pelos testemunhos dos corpos e ajudam a construir uma interpretação mais detalhada, ou mesmo correta, para o próprio sítio.
Embora não haja incompatibilidade entre a retirada tecnicamente adequada dos remanescentes dos corpos e a realização das observações necessárias para sua interpretação no contexto arqueológico, deve-se dimensionar o trabalho e buscar estratégias, em campo ou em laboratório, para que as perdas materiais e as restrições de tempo não sejam limitantes. Por outro lado, enquanto o lugar a ser escavado for considerado apenas o 'lugar onde estava o morto', e não o testemunho de cenas e gestos funerários, parte da informação se perderá. Uma variedade de pistas associadas aos ossos pode não ser registrada quando o foco do trabalho for a 'retirada' do esqueleto. Pensar na variedade de evidências que apontam para gestos e atos do funeral dá uma oportunidade de inferência e documentação que não se repetirá após o desmonte da estrutura. Uma multiplicidade de pequenos gestos, que resultam em sequências construtivas, pode iluminar diferenças culturais locais ou entre sítios, assim como levar a pensar sobre tempo, energia e recursos econômicos investidos em preparar ou homenagear os mortos, elementos relevantes para uma interpretação arqueológica.
Essa opção de abordagem, é claro, decorre da maneira como os funerais são visualizados na pesquisa arqueológica. É recorrente, no nosso imaginário sobre o funeral, um ato pontual, o que certamente não corresponde ao que sabemos para diferentes grupos humanos. A fraca motivação etnográfica e a formação antropológica, quando insuficiente, contribuem para isso. Por outro lado, nossa própria postura cultural hegemônica, de crescente distanciamento em relação à morte, talvez favoreça uma visão dos funerais como um 'quase descarte', pouco contribuindo para pensar sobre a morte cerimonializada.
Assim, abrindo mão das simplificações, é preciso trabalhar com a hipótese de que os cemitérios, mesmo quando dissociados das áreas com outras funções, como as habitações, eram frequentados e modificados, sofrendo intervenções, tal como exemplificam Metraux (1947), Vilaça (1992), Cunha (1978) e outros. É preciso trabalhar também com a hipótese de que os sepultamentos pudessem ser eventos prolongados, em etapas sucessivas, que modificavam ou afetavam a cena funerária, para, então, ampliar possibilidades de busca e identificação de impacto nos lugares dos mortos, evidência que poderia ir além dos 'ossos no chão'. Bons exemplos arqueológicos desses achados no Brasil estão relatados para o sambaqui de Jabuticabeira II (Fish et al., 2000; Villagran et al., 2010). A cultura da morte, portanto, pode estar expressa no sítio arqueológico por diferentes indícios, devendo ser buscada em associação com o funeral, indo além do corpo e de seus acompanhamentos mais óbvios. Em sítios arqueológicos onde a construção de lugares para os mortos é evidente, os funerais podem ter durado longos períodos e ter sido associados a diferentes eventos de preparação do terreno. Os gestos e atos realizados em momentos distintos e em sequência devem ser elucidados em relação ao morto ali depositado.
Ossos humanos, portanto, não são apenas testemunhos absolutos, mas também relativos, e como tal devem ser lidos antes de saírem de sua localização original no sítio arqueológico. In situ, ossos humanos testemunham eventos relacionados a eles próprios, assim como aos corpos e aos fardos aos quais pertenceram e aos lugares onde foram depositados. Tais informações podem ser essenciais à interpretação arqueológica. A posição dos corpos, os deslocamentos, as modificações, os processos tafonômicos cadavéricos ou as modificações do terreno são elementos importantes, cujo registro deve ser feito em campo e o estudo complementado em laboratório. A elevação dos corpos para a retirada controlada, em bloco, proporciona o tempo e as condições necessárias quando o trabalho em campo tem prazo curto e a escavação pode prosseguir em laboratório.
Outra mudança de olhar diz respeito à ideia de que os processos pós-deposicionais tafonômicos causam perda de informação. Processos tafonômicos são uma moeda de dois lados. Perda de integridade material ou mudanças da ordenação espacial em uma estrutura funerária são indícios de processos, direções e agentes de transformação, e isso se torna ainda mais importante quando eles forem antrópicos. Sua observação pode trazer informações preciosas sobre a condição de deposição original. Por exemplo, certos movimentos de ossos só ocorrerão se houver espaço na estrutura; certas quebras só ocorrem se a base de apoio ceder; certas posições só permanecem se houver resistência ou efeito-parede. Dessa forma, é possível saber não apenas a partir do que vemos, mas também do que não vemos.
Modificações são percebidas a partir do conhecimento prévio de posições e relações físicas. Um esqueleto em inumação primária, ao perder conexões entre ossos, registra indiretamente áreas de perturbação, e até suas possíveis causas (Souza, 2003), do mesmo modo que objetos quebrados, cuja forma original seja bem conhecida, como urnas de cerâmica ou estruturas arquitetônicas. O mesmo não ocorre com a maior parte dos restos de materiais já depositados em partes ou fragmentos misturados nas camadas arqueológicas. A literatura disponível sobre tafonomia cadavérica e arqueológica ajuda nesse sentido, incluindo desde clássicos, como Ubelaker (1978) e Dudday et al. (1990), até as contribuições mais recentes, como Roksandic (2001). Trabalhos mais especializados sobre cremação, canibalismo e outros temas também orientam o registro e a interpretação (White e Folkens, 2005; Botella et al., 2000), já expressando as experiências acumuladas no Brasil (Müller, 2008; Fernandes, 2002).
Em um terreno tropical, no qual os materiais mais perecíveis são rapidamente perdidos, é necessário ser mais atento aos detalhes e indícios funerários deixados na forma de partes mais resistentes, como ossos e dentes, ou diretamente associados a elas. Olhar os 'ossos no chão', em seus detalhes, antes de proceder à retirada, ainda que demande mais tempo de análise, pode resultar em informação complementar. Isso será importante principalmente se levarmos em conta a dificuldade em achar evidências indiretas da existência dos fardos funerários, da relação entre a decomposição dos fardos e a decomposição do próprio corpo, dos sinais de acomodação do terreno e do tipo de preparação do local do enterro; muitas vezes, os sinais de perturbações posteriores ao enterro podem ser as únicas evidências que restam.
Apenas uma parcela do potencial informativo dos achados funerários é encontrada na análise laboratorial. Como já foi explicitado, o olhar atento ao contexto arqueológico durante a escavação é insubstituível e a preocupação com o resgate do material em boas condições deve levar em conta o registro cuidadoso da sepultura, o entorno, suas características e a espacialidade.
Na modesta e dispersa literatura etnográfica brasileira sobre morte e práticas funerárias consta a prática frequente de procedimentos de desmonte dos corpos e enterros secundários, conhecidos para culturas, lugares e tempos diferentes. Quadros sintéticos dessa literatura e a diversidade de práticas funerárias podem ser encontrados em Sylvia (2006) e Santos (2009). Essas práticas parecem ser características das chamadas Terras Baixas, opondo-se aos procedimentos para a preservação de corpos, ou mesmo mumificações, encontrados nas regiões andinas e na costa do Pacífico. Outras práticas também estão descritas, como a abertura intencional de sepulturas para a retirada de objetos e a verificação do avanço da decomposição. Tempos de luto e de cuidado em relação ao lugar do sepultamento, alguns dos procedimentos/atos perpetrados e o uso póstumo do espaço funerário supostamente deixarão pistas na sutileza do contexto arqueológico, podendo ser investigados.
Portanto, possíveis intervenções posteriores em sítios onde foram depositados corpos devem ser verificadas sempre. Uma verdadeira semiologia das evidências em estruturas funerárias deve guiar a busca e identificação de pistas relevantes, a fim de direcionar a coleta de amostras e materiais para análise, assim como a interpretação de indícios que conduzam à reconstituição de gestos e processos relacionados ao funeral. A matriz arqueológica na qual se insere o corpo, ou seus despojos - anteriormente interpretada como elemento circunstancial descartável, uma espécie de cenário a ser removido - , ganha outra forma de abordagem e passa a ser ressignificada. Em alguns sítios, como os sambaquis, torna-se componente arquitetônico sofisticado, delicadamente escolhido e construído em torno do corpo (Villagran, 2008; Villagran et al., 2010), ganhando status de elemento cultural relevante. Sua relação com os remanescentes dos corpos, suas diferentes partes e posicionamento podem ser fonte de padrões e regularidades antes não percebidos. Outro exemplo desta semiótica vem de recentes escavações do Projeto "Sambaquis grandes, médios e monumentais" no Sernambetiba, município de Guapimirim, Rio de Janeiro, onde foi possível fazer convergir construções funerárias primárias e secundárias, ligadas pelas similaridades observadas na construção da matriz. Lentes alternadas, compostas por diferentes tipos de materiais, receberam e depois recobriram os despojos de maneira similar em ambos os casos.
A possibilidade de recompor cenas funerais como elementos culturais relevantes passa, dessa forma, pela possibilidade de registrar a espacialidade dos conjuntos que formam áreas e pacotes funerários, mas também pelo olhar minucioso que registra a fina arquitetura dos lugares de deposição dos mortos, representada pelo que parece ser apenas 'matriz arqueológica'. O reconhecimento de associações, ou da perda de associações, é parte desta leitura. Deposições de materiais distintos, assim como soluções de continuidade, vazios/espaços, movimentos e quebras, tonalidades, compactações, arqueofácies, constituem esta semiótica das estruturas com remanescentes humanos e seu entorno imediato. Ao registro de variáveis, tais como orientação da cabeça, face, eixo do esqueleto etc., somam-se outras que também podem indicar padrões culturais.
A recorrência de processos de colapso ou presença de espaços pode oferecer pistas para a forma como o morto teria sido envolvido, antes de ser depositado, por exemplo. A tafonomia diferencial, identificada a partir dos sepultamentos menos preservados e suas relações com características do lugar (distribuição no sítio, relação espacial com outras feições ou estruturas etc.), das formas de preparação (presença de vazios, posição dos esqueletos, enterros primários ou secundários etc.) e das características biológicas (idade, sexo, estado de saúde etc.), também pode auxiliar na reconstituição das práticas funerárias.
A retirada dos objetos que supostamente apresentam associação com os remanescentes humanos, especialmente nos sítios de matriz pouco homogênea, como os sambaquis, merece cautela pela subjetividade das associações, muitas vezes resultantes dos processos tafonômicos. Essa busca deve ser mais completa. Indícios indiretos de objetos podem ser buscados in situ durante coletas pontuais e oportunísticas, por controles bem realizados e por análises laboratoriais especializadas. A concepção de 'acompanhamento funerário' como algo simples - objetos encontrados junto ao morto - reverte-se em alguns quantitativos e descrições que nem sempre representam a realidade dos testemunhos materiais associados ao morto, e nem são suficientes para a caracterização e interpretação dos achados. Por isso, deve ser melhorada a partir de uma compreensão mais fundamentada em teoria antropológica, no que concerne ao conhecimento da riqueza simbólica dos ritos funerários e à observação mais instrumentalizada.
A prática de retirar blocos com remanescentes humanos não é nova. Foi utilizada, ainda que parcimoniosamente, nas cinco décadas anteriores em arqueologia brasileira (Rohr, 1968; Simões, 1981). A maior parte das retiradas foi feita para fins didáticos, baseada na proposta de revalorização dos espaços museográficos com 'testemunhos arqueológicos', sendo que poucos remanescentes foram utilizados posteriormente em uma análise científica. Um exemplo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) resultou, inclusive, em contribuições para a mudança de uma interpretação clássica da literatura arqueológica sobre tupi-guarani no Brasil. A escavação tardia da urna-testemunho do sítio Fonseca (Pallestrini, 1975), feita por Silvia Piedade (Morais et. al., 1997), confirmou se tratar de enterro primário, e não secundário, como se supunha.
A abordagem de estruturas funerárias (Gaspar e Souza, 2013), principalmente em situações de salvamento arqueológico, já vem incluindo a opção pela retirada em bloco para posterior escavação e análise. Um exemplo de esforço nesse sentido é o trabalho feito por Vergne (2005) em Xingó, seguido pela escavação e análise tafonômica, bioarqueológica e de acompanhamentos funerários de grande parte do material (Carvalho, 2007). Urnas funerárias já são removidas regularmente para escavação em laboratório, o que proporciona diferentes aportes à inferência arqueológica (Souza et al., 2002; Müller e Souza, 2012). Novos materiais e técnicas permitem hoje a construção de blocos e de elevação de estruturas, juntamente com o solo arqueológico adjacente, com muito menos esforço e mais segurança, facilitando, assim, o trabalho. Isso torna a retirada em bloco para escavação em laboratório uma boa opção, dependendo do achado e das questões a serem esclarecidas pela pesquisa.
A retirada em bloco exige conhecimento adequado da estrutura a ser levantada, pois o corte da base ou do pedestal do bloco sempre implica risco de perda, por atingir um segmento estratigráfico não visualizável. Por essa razão, geralmente, era praticada após a escavação de outras estruturas semelhantes. Assim, foram retirados, entre outros, fogões e sepultamentos, hoje exibidos em museus no Brasil. Conhecendo a estratigrafia do sítio e os padrões que acompanham as estruturas, a retirada dos blocos pode ser feita com mais segurança, desde que acompanhada da retirada e peneiragem de todo o material em torno. A retirada também deve ser seguida da escavação sistemática da base remanescente do pedestal. Os dados de campo deverão ser comparados com os resultados da escavação da matriz arqueológica, que constitui o próprio bloco, permitindo o reconhecimento dos aspectos construtivos que precedem e acompanham a deposição do morto, assim como alguns aspectos da transformação pós-deposicional associada (Souza et al., 2013).
Todo o esforço, portanto, converge para a leitura de indícios antes não percebidos ou valorizados, por meio de uma semiologia que permite o reconhecimento dos gestos funerários. Nessa ressignificação dos 'ossos no chão', busca-se: 1) enfatizar as relações da estrutura funerária com a estratigrafia fina junto aos ossos, indicativos da construção e/ou desconstrução que relaciona o morto ao sítio; 2) estabelecer cronologias mais precisas, considerando a datação direta dos ossos humanos que ajudem a entender o uso e a arquitetura do sítio; 3) quantificar achados in situ perturbados, buscando esclarecer os processos de transformação contemporâneos e subsequentes ao uso do sítio; 4) identificar todas as crianças e imaturos, essenciais à estimativa de natalidade e crescimento populacional, ou confirmar sua inexistência e um padrão cultural possível; 5) reconhecer os componentes bioarqueológicos relevantes no contexto funerário e seu entorno, e documentá-los antes da retirada do solo, realizando medidas, registrando modificações patológicas e/ou tafonômicas, ausência de partes anatômicas, presença de ossos avulsos, intencionalmente colocados ou decorrentes de processos tafonômicos; 6) identificar todos os elementos culturais associados aos remanescentes diretos, não apenas pela presença de artefatos, mas de padrões identificáveis em formas, posições, componentes da matriz, relações verticais e horizontais com outras estruturas, espaços preservados, movimentos de material e assim por diante; 7) realizar coletas oportunísticas especiais para análise, inclusive antes do desmonte das estruturas, assegurando a situação adequada das amostras e seus controles.
Ao abrir mão do pressuposto de que os ossos/remanescentes dos corpos dos mortos são apenas objetos a mais, configurando-se como testemunhos derradeiros a serem analisados na busca de informações sobre pessoas/grupos que representam, o olhar se refaz e os testemunhos bioarqueológicos são ressignificados. Assume-se que os 'ossos no chão' são evidências-chave, capazes de orientar a leitura e a interpretação dos lugares onde estão depositados e da sua relação com o sítio como um todo. Assume-se que são capazes de ajudar a reconstituir tanto os gestos humanos quanto os processos decorrentes da passagem do tempo. Declara-se também que, funcionando como guias, orientam a melhor forma de proceder à amostragem e coleta oportunísticas, o que deve ser feito antes da sua retirada do solo. Assume-se, enfim, que os 'ossos no chão' podem ser mais eloquentes do que fora dele, já que, depois de retirados, perdem a capacidade de responder a tantas perguntas colocadas a partir dos novos paradigmas.
RECAPITULANDO... OU: QUE PERGUNTAS FAZER PARA OS OSSOS IN SITU?
IN SITU? REDEPOSITADO?
Essas perguntas continuam a confundir os achados e pregam peças em campo. A questão é: se o material está em sua deposição original, seja um sepultamento primário ou secundário, se está no lugar em que foi originalmente depositado. Enterros primários, com ossos ainda conectados, podem estar completos ou parcialmente perturbados, e parte dos ossos pode estar redepositada, próximo ou longe da sepultura original. A quantidade de ossos perturbados ou redepositados, assim como a distância entre o local do achado e os sítios primários de onde se originam, dão uma medida da perturbação do sítio e dos fatores que causaram tal condição.
ORIGINAL OU MODIFICADO?
O achado de modificações é esperado quando se trata de sepultamentos secundários, nos quais geralmente são adotados procedimentos para a desconexão, descarne, redução e outras modificações do corpo ou dos próprios ossos (White e Folkens, 2005; Botella et al., 2000). A procura por tais indicações inicia-se em campo, e a suspeita desse tipo de intervenção aponta para estratégias mais cuidadosas na retirada ou na escavação das estruturas contendo ossos, e no olhar para a vizinhança da estrutura, em busca de evidências culturais de gestos relacionados às modificações encontradas.
COMPLETO OU FALTANDO?
Os achados funerários nunca são completos, mas os elementos ausentes podem variar de acordo com a condição dos ossos, o tipo de terreno, o padrão funerário, a idade do indivíduo, entre outros aspectos. A perda seletiva de partes pode relacionar-se a fatores específicos e localizados de perturbação, à exposição diferencial ao ambiente e, inclusive, à ação antrópica. O registro, ainda em campo, de partes faltantes e a localização delas ajuda a interpretar a perda, que deixa de ser apenas um número/nome de osso e passa a ser uma localização, uma associação com o contexto e com prováveis fatores tafonômicos para a estrutura em questão (camadas estratigraficamente íntegras ou perturbadas, sinais de queima ou calor, compressão, ação de animais, crescimento vegetal, proximidade de outras estruturas e assim por diante).
PERTENCE OU NÃO PERTENCE?
Uma vez que proximidade não significa relação biológica obrigatória, a presença de ossos justapostos não significa que pertençam ao mesmo indivíduo. O contato entre ossos e entre esqueletos, assim como a proximidade de sepultamentos, têm sido muitas vezes interpretados como agrupamentos intencionais (por exemplo, enterros coletivos). Isso foi descrito em alguns trabalhos sobre sambaquis, como o de Faria (1952). Mas, para verificar se realmente pertence ou não, indicadores como a existência ou não de camadas intermediárias de matriz, contatos/coerências e conexões anatômicas entre ossos, falta de ossos ou partes ósseas devem ser cuidadosamente verificados antes de a estrutura ser desmontada. As alterações, por vezes mínimas, podem ser suficientes para indicar a perturbação de um sepultamento mais antigo, e assim por diante. Isso pode ser mais desafiador em sítios onde não apenas a construção, mas também o desmonte da matriz acompanha um funeral. As relações finas com a estratigrafia e as descontinuidades que podem ser percebidas geralmente permitem, em um exame mais detalhado, distinguir associações acentuadas, por exemplo, pela compressão de camadas de matriz.
MOBILIZADO? POR QUÊ?
Elementos das estruturas podem sofrer movimentos de diferentes naturezas e por diferentes agentes. Cabe verificar se e por que se moveram. São os casos de ossos que afundam e colapsam sob o peso de camadas ou pela formação de uma depressão sob o corpo, na medida em que a matriz abaixo se dissolve; que se quebram e se afastam, empurrados por raízes, deslocados pela fauna terrícola; daqueles que compõem parte da estrutura e que são arrancados por desmoronamentos, água em movimento ou pela ação de mãos humanas; daqueles que se movimentam empurrados pela fase líquida ou pela fase gasosa da decomposição. Diversas são as causas dos movimentos observados nos materiais que compõem uma cena funerária. Os movimentos, facilmente verificáveis nos enterros primários, podem ser mais difíceis de perceber nos secundários, mas devem ser buscados e interpretados, ou pelo menos questionados.
Essas movimentações podem ser recuperadas, mesmo no caso de esqueletos já escavados e integrantes de acervos, desde que possuam documentação fotográfica detalhada do processo de exposição e escavação. Andrade (2009), utilizando-se do acervo fotográfico existente para o sambaqui do Moa, em Saquarema, Rio de Janeiro, pôde verificar alterações na deposição original dos corpos, decorrentes de vários fatores entre os anteriormente citados.
ESPAÇOS VAZIOS: COMO SE EXPLICAM?
A presença de espaços dentro das estruturas funerárias é frequente, já tendo sido descritos na literatura. Tais espaços afetam áreas como o interior dos crânios, onde a proteção da calota, em contraste com a fácil e rápida decomposição do encéfalo, deixa uma ampla câmara, que pode ou não ser lentamente preenchida pela matriz, mas que poderá permanecer vazia por milhares de anos. Este 'vazio' é um dos elementos que sinaliza sonoramente a presença de uma estrutura funerária para um escavador experiente. Este espaço, tal como outros em vasilhames ou em cavidades resultantes da decomposição de outros tipos de evidências (estacas, por exemplo), podem reter uma história e uma estratigrafia peculiar, pós-deposicional. De significado diferente serão as cavidades resultantes da ação de fauna fossorial e ninhos de insetos. Os espaços decorrentes de materiais que protegiam ou envolviam os corpos também devem ser considerados, pois, dependendo da sua natureza física (palha, madeira, fibras etc.), a decomposição desses materiais pode levar mais tempo do que a do corpo, criando, antes de desaparecerem, espaços protegidos/arcabouços que permanecem 'vazios' por tempo suficiente para permitir, por exemplo, movimentos de partes do corpo ou de materiais durante a decomposição (Wesolowski, 2013). Tais espaços podem se manter ou ser preenchidos tardiamente pela progressiva sedimentação, criando uma feição diferencial. Assim, ossos podem ficar em posições inesperadas, cuja interpretação deve ser cuidadosa. Diferentes manchas de solo, texturas especiais, depósitos diferenciados dentro da estrutura, assim como espaços adjacentes aos ossos, devem ser cuidadosamente investigados (Klokler e Gaspar, 2013; Souza et al., 2013).
FANTASMAS?
O desaparecimento de muitos materiais perecíveis deixará traços, alguns deles microscópicos ou apenas reconhecíveis quimicamente. O achado de DNA antigo, concentrações maiores de elementos, como fósforo e nitrogênio, a presença de ovos de parasitos e outros achados confirmam materiais antes presentes, mas que se perderam visualmente. Em alguns casos, marcas sutis de coloração ou textura permitem inferir formas, volumes, posições inusitadas dos materiais visíveis e outros aspectos, os quais nos levam a pensar e buscar o que teria se perdido (Sianto et al., 2013; Lopes et al., 2013).
TODOS OS MORTOS, ALGUNS MORTOS?
Sabemos que nada do que achamos em um sítio arqueológico corresponde à totalidade da realidade. Em um sítio arqueológico, especialmente em uma área de funerais, a tafonomia diferencial deve ser continuamente verificada, pois a parcela do que se acha mal conservado pode ser estimada (Waldron, 1994; Souza, 1999). Outra questão relevante refere-se à preservação dos remanescentes extremamente friáveis, que não passam de 'sombras cadavéricas'. Tais remanescentes são visíveis apenas em campo, tal o estado precário de conservação. Somente uma fina camada cortical mantém-se e, uma vez exposta, fragmenta-se em milhares de pequenas porções. Apenas em poucos casos, as práticas de consolidação e estabilização em campo são capazes de manter íntegros os remanescentes. Nesses casos, é fundamental realizar toda a análise bioarqueológica ainda no campo, sabendo que observações anatômicas e patológicas macroscópicas não poderão ser realizadas em laboratório.
CONTEMPORÂNEOS OU NÃO?
Entre as questões mais intrincadas ao estudo dos 'ossos no chão' talvez esteja a da cronologia. Ainda que a estratigrafia ofereça bons guias, o uso diferencial e setorizado do sítio/cemitério pode mimetizar estruturas e oferecer uma noção de contemporaneidade que não corresponde à realidade. A dinâmica de construção e expansão do sítio pode criar diferenças temporais consideráveis em áreas próximas, e nem sempre maior profundidade relativa significa maior antiguidade. É preciso um entendimento cuidadoso das etapas de construção e transformação das áreas arqueológicas para fazer inferências, que sempre devem ser testadas por meio de métodos de datação, preferencialmente utilizando-se amostras de remanescentes biológicos humanos.
COLOCADOS NA FOGUEIRA?
Outro grande desafio a ser superado em relação à documentação e interpretação dos 'ossos no chão' é a sua relação com outras estruturas, na medida em que parte delas precede apenas acidentalmente a deposição do morto, enquanto outras fazem parte da construção/preparação do lugar ou da área funerária e, ainda, outras podem pertencer a tempos posteriores e até a outros eventos antrópicos, mesmo que estejam contíguas ou aparentemente relacionadas aos remanescentes funerários. Igualmente, com relação aos materiais que podem apenas aparentemente aproximar-se dos remanescentes e das estruturas ligadas ao morto, a interpretação de feições e outras estruturas deve ser testada na tridimensionalidade da arquitetura do lugar funerário, sendo que, muitas vezes, apenas um olhar microscópico esclarece as aparências.
A descrição de associações entre lentes de carvão ou fogueiras com os esqueletos, por exemplo, é recorrente. A comprovação das evidências de queima em ossos nem sempre é consistente. Algumas questões devem ser elucidadas: a preparação do lugar para o corpo é feita com a queima de materiais sobre o piso? Com a deposição de materiais queimados? Com a deposição, em lugares especiais, de materiais queimados? Provenientes de antigas lareiras ou fogões contendo restos de alimentos? etc. O corte e a exposição de níveis escurecidos por antigas fogueiras ou o uso de superfícies anteriormente ocupadas por fogueiras ou fogões podem ser preferenciais para a colocação do corpo, sem que isso implique queima dos despojos, por exemplo. Por outro lado, a colocação do corpo sobre pequenas fogueiras, ou sobre fogueiras feitas com materiais que se queimam rapidamente e depois se extinguem (folhas de palmeira, gravetos etc.), por exemplo, pode não deixar traços sobre os ossos, mas apenas no nível abaixo deles, na forma de resíduos retidos entre os ossos e a matriz. Esse aspecto pode ser verificado durante a retirada de sedimentos, carvão e outros materiais, em associação com despojos e objetos funerários.
No encontro de ossos com sinais de queima, é igualmente relevante buscar indícios que demonstrem se a queima se processou in situ ou se os remanescentes queimados/carbonizados foram apenas depositados no local, como discutido por Souza et al. (1998).
EM COVA OU AFUNDADO?
O imaginário predominante sobre funerais sempre aponta para o ato de inumar em buracos abertos no chão. Por outro lado, o uso de conceitos não muito claros, como o de 'cova rasa', tem levado a inferências pouco críticas no que se refere às modalidades de disposição do morto no solo. Embora a abertura de covas predomine nas descrições dos funerais, há diferentes modalidades de enterro, mesmo quando consideramos apenas a história ou a etnografia sul-americana (Metraux, 1947): buracos de tamanhos e formas variadas, desde circulares até retangulares, pequenos ou grandes, comunitários ou individuais, para a colocação do morto, ou de seus despojos, indo desde enterros verticais, nos quais o corpo é colocado de pé, até as valas comuns, usadas até o século XIX para pobres e escravos na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro (Pereira, 2007), onde corpos ou ossos de diferentes indivíduos foram depositados. Diferentes possibilidades têm sido descritas, incluindo aberturas que ligam o túmulo ao exterior, covas abertas para encaixe apenas de parte do recipiente que contém o morto/despojos, covas interconectadas, assim por diante. Da mesma forma, a associação entre cova e estrutura de proteção para o corpo ou os despojos (jiraus, tetos, superestruturas de ossos, folhas ou madeiras etc.) consta da literatura etnográfica americana.
A colocação direta sobre o nível do piso, com subsequente cobertura por diferentes materiais, incluindo a construção de montículos, embora pouco testemunhada pela literatura, tem sido cada vez mais verificada em sítios arqueológicos, predominantemente em sítios do tipo sambaqui, como observado por Silveira (2001) no sambaqui do Moa, em Saquarema, Rio de Janeiro. Em tais casos, os processos pós-deposicionais podem levar à formação de depressões associadas do corpo, que muitas vezes são interpretadas como indícios de covas (Gaspar e Souza, 2013). Por outro lado, a intensa e frequente compressão dos esqueletos, das camadas arqueológicas, bem como a formação de solo e outros tipos de mascaramento da matriz, podem reduzir, modificar e até mesmo apagar o contorno de uma cova, trazendo dificuldade adicional à interpretação. Com o passar dos anos, o colapso progressivo do que era o volume original de um fardo/corpo em um enterro primário fica reduzido à quarta ou à quinta parte de sua espessura, o que se reflete em achados rasos de ossos sobrepostos, onde o que restou de um crânio não passa, por vezes, de 3 cm de espessura. Essa perspectiva, mais acentuada em sítios nos quais o solo pode ter estado sujeito à terraplenagem, ao pisoteio ou a outros fatores de compressão, pode levar, por exemplo, à interpretação de 'cova rasa'. Da mesma forma, a retirada, seguida pela redeposição por processos alternados de erosão e sedimentação, da matriz à volta dos ossos pode levar à redução da espessura original do pacote funerário, deixando apenas indícios de sua condição original. O processo de formação de solo na área do sepultamento, modificando a estratigrafia, pode deixar o sepultamento em áreas de transição ou inserido em duas camadas arqueológicas distintas.
CONSTRUÍDO PARA O MORTO OU COM O MORTO?
Muito do que se considera acompanhamento funerário é denominado desse modo por sua associação direta com o sepultamento, geralmente imaginado como oferenda de objetos pessoais e/ou rituais. É sabidamente impossível reconstruir todos os significados de objetos e elementos associados aos remanescentes humanos. Difícil também é recuperar sua cronologia e contemporaneidade com o momento da morte. Fatores como a redução da espessura do pacote arqueológico ao longo do tempo podem criar a ilusão de que tudo o que se encontra associado ao morto remete ao momento do sepultamento. Uma verificação cuidadosa da estratigrafia fina das áreas de sepultamento é fundamental para auxiliar nessas questões.
Se nem tudo o que está associado a uma estrutura funerária pode remeter ao momento do sepultamento, é importante considerar também que, em algumas áreas do sítio, mesmo sem ossos ou despojos, pode haver sinais de práticas funerárias. A oposição entre áreas funerárias e não funerárias em um sítio, entendendo-se as primeiras como os locais para funerais e as demais como áreas para outros usos, pode levar a interpretações equivocadas sobre a própria dinâmica de ocupação do sítio. Vazios sepulcrais podem corresponder a áreas de preparação dos sepultamentos, áreas ritualísticas associadas às práticas mortuárias e cerimônias de revisitação dos espaços sepulcrais, embora este aspecto seja ainda pouco explorado pela arqueologia pré-histórica no Brasil. É necessário também pensarmos em sítios multifuncionais, com áreas de uso cotidiano e uso funerário, tal como descrito na literatura etnográfica, onde consta que cerca de metade dos grupos documentados realizava enterros em áreas domiciliares (Metraux, 1947). Um bom exemplo é o sítio Jacaré, no Pantanal matogrossense, no qual áreas domésticas e funerárias foram evidenciadas, inclusive com áreas diferenciais para o sepultamento de adultos e crianças (Migliacio, 2006). Novos olhares e abordagens são ainda necessários para ampliar o entendimento da trama espacial que envolve os ossos in situ, seu entorno imediato e o sítio como um todo. O espaço dos mortos pode se limitar às sepulturas, mas o espaço para a 'convivência' entre vivos e mortos pode estar além dos limites sepulcrais.
A arqueologia é uma ciência indiciária e, mais do que isso, uma ciência do efêmero. Efêmero pelo que o tempo nos rouba continuamente; efêmera porque, sendo analítica de um testemunho único, desmonta seu objeto implacavelmente; efêmera pela velocidade com que reconstrói o conhecimento produzido e seu corpo teórico-metodológico. É dessa natureza efêmera que tratamos. Só temos uma chance de olhar e reconhecer nos ossos in situ as pistas necessárias para reconstituir um passado fugaz.
AGRADECIMENTOS
Ao Programa de Pós-graduação em Arqueologia do Museu Nacional/UFRJ e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo apoio, por meio de bolsa de produtividade nível 2 à segunda autora. As autoras também agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), pelo financiamento do Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (PRONEX) às pesquisas nos últimos três anos, apoiando investigações sobre o tema.
Recebido em 11/12/2012
Aprovado em 29/10/2013
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Jan 2014 -
Data do Fascículo
Dez 2013
Histórico
-
Recebido
11 Dez 2012 -
Aceito
29 Out 2013