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A “Flora Fluminensis” de frei Vellozo: uma abordagem interdisciplinar

Vellozo’s “Flora Fluminensis”: an interdisciplinary approach

Resumos

O artigo analisa a obra de Frei Vellozo (1741-1811) intitulada “Flora Fluminensis”, com interpretações dos campos disciplinares da botânica e da história. No período de 1783 a 1790, a equipe liderada por Frei Vellozo percorreu o território do Rio de Janeiro com objetivo de produzir um levantamento detalhado das plantas. Passados 39 anos, o trabalho de Vellozo foi publicado com 1.639 descrições de plantas em latim e 11 volumes in-folio de ilustrações botânicas. Trata-se de uma obra que tem relevância científica, sobretudo se comparada com outros livros e compêndios produzidos na mesma época na Europa. Com o fim de esclarecer as principais características de tal processo de produção e qualidade científica da obra, é feita uma interpretação com foco no modo de como a botânica era realizada no final do século XVIII.

Botânica; História do Brasil; Século XVIII; Frei Vellozo; Flora; Rio de Janeiro


We analyze the work of Frei Vellozo (1741-1811) entitled “Flora Fluminensis” from both a botanical and an historical standpoint. From 1783 to 1790, a team lead by Frei Vellozo traveled throughout the territory of Rio de Janeiro with the aim of producing a detailed survey of the plants growing in the region. Thirty-nine years later, Vellozo’s work was published with 1,639 descriptions of plants in Latin and 11 volumes in folio of botanical illustrations of these plants. This work is highly relevant scientifically, especially when compared to other books and compendia that were produced at this time in Europe. In order to elucidate the production process and the quality of the “Flora Fluminensis”, we provide an interpretation of the way botany was carried out in the late 18th century.

Botany; History of Brazil; 18th century; Friar Vellozo; Flora; Rio de Janeiro


INTRODUÇÃO

A “Flora Fluminensis” foi um empreendimento colonial do final do século XVIII que se derivou de um intenso trabalho de campo liderado por frei José Mariano da Conceição Vellozo, resultando na produção de um levantamento pioneiro das plantas da capitania do Rio de Janeiro. Dos originais datados de 1790, atualmente depositados na Biblioteca Nacional, constam os manuscritos de 1.639 descrições de plantas em latim e as correspondentes ilustrações botânicas, representadas em 11 tomos. A monumental obra destaca-se pelo emprego do sistema de classificação e da nomenclatura botânica de Lineu na identificação e descrição das espécies, em voga nas demais ‘floras’1 1 Entende-se por ‘flora’ publicação na qual consta a identificação e descrição de plantas que ocorrem em uma área delimitada, independente da amplitude de escala geográfica (flora de um país, estado etc.) e geralmente acompanhada de ilustração botânica. A outras formas mais sucintas de apresentar inventários de plantas dá-se o nome de catálogo, enumeração, lista etc. produzidas na Europa.

A publicação parcial da “Flora Fluminensis” ocorreu 39 anos depois de finalizada, o que levou à perda da prioridade de autoria da maior parte dos novos nomes de gêneros e espécies descritos por frei Vellozo. No entanto, buscamos mostrar que a “Flora Fluminensis” segue sendo uma importante referência aos botânicos que pesquisam, ainda hoje, as plantas do Rio de Janeiro, sobretudo pela qualidade diagnóstica das suas descrições e ilustrações, e deve ser analisada como uma obra do século XVIII, portanto, bastante distinta, por exemplo, da “Flora Brasiliensis”2 2 “A Flora Brasiliensis foi produzida entre 1840 e 1906 pelos editores Carl Friedrich Philipp von Martius, August Wilhelm Eichler e Ignatz Urban, com a participação de 65 especialistas de vários países. Contém tratamentos taxonômicos de 22.767 espécies, a maioria de angiospermas brasileiras, reunidos em 15 volumes, divididos em 40 partes, com um total de 10.367 páginas” (CRIA, 2005). .

Diferente da maioria das produções coloniais do final do século XVIII, que tinham um caráter utilitário, preferencialmente de retorno econômico, a “Flora Fluminensis” não se destaca como uma obra de conhecimento dos produtos naturais suscetíveis de comercialização. Em seu conteúdo, as plantas são enunciadas pelo nome científico, privilegiando informações sobre as características morfológicas e os locais onde ocorrem, com quase nenhum destaque aos usos e às nomenclaturas populares.

Apesar de ter recebido a atenção de diversos botânicos, a questão da qualidade científica da “Flora Fluminensis” ainda hoje é colocada de maneira superficial. As análises negativas baseiam-se, de modo geral, nas opiniões, ainda do século XIX, apoiadas principalmente nas avaliações dos botânicos Martius e Brotero (Martius, 1837; Fernandes, 1947FERNANDES, Abílio. Quatro cartas inéditas de Brotero para o conde da Barca. Coimbra: Tipografia da Atlântica, 1947.), bem como do naturalista brasileiro Ladislau Netto (Gama, 1869GAMA, José de Saldanha da. Biografia e apreciação dos trabalhos do botânico brasileiro frei José Mariano da Conceição Velloso. Rio de Janeiro: Tipografia de Pinheiro e Cia., 1869.). Isto tem influenciado algumas opiniões desfavoráveis sobre o trabalho do franciscano, levando alguns botânicos a colocarem em dúvida as espécies e os gêneros descritos na “Flora Fluminensis”. Em oposição a este tipo de julgamento, outros estudos têm reabilitado da sinonímia vários táxons de Vellozo, na maioria das vezes justificando as decisões com base na clareza das descrições e nos comentários sobre o habitat e a distribuição geográfica3 3 Sobre estudos validando espécies de Vellozo, ver Lima (1995), Braga (2005), Cervi e Rodrigues (2010) e Pastore (2013). .

Como um breve levantamento das publicações sobre a trajetória de frei Vellozo e seu legado bibliográfico, destacam-se, no século XIX, os trabalhos de Lagos (1840)LAGOS, Manoel Ferreira. Elogio histórico do Padre Mestre Fr. José Marianno da Conceição Velloso. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 2, p. 610-621, 1840. e Gama (1869)GAMA, José de Saldanha da. Biografia e apreciação dos trabalhos do botânico brasileiro frei José Mariano da Conceição Velloso. Rio de Janeiro: Tipografia de Pinheiro e Cia., 1869., que mostram o frade de forma laudatória e heroificado. No século seguinte, outras pesquisas buscaram esquadrinhar a vida de frei Vellozo, apresentando suas facetas de religioso/naturalista/empreendedor e, por meio de exaustivos levantamentos documentais, evidenciaram, sobretudo, as dificuldades e tensões na edição da “Flora Fluminensis”. Destacam-se, nessa tarefa, os trabalhos de Borgmeier (1961)BORGMEIER, Thomas. Introdução. In: ARQUIVO NACIONAL. “Flora Fluminensis” de frei José Mariano da Conceição Vellozo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1961. (Publicações Históricas, v. 48). p. 3-21., Ellebracht (1990)ELLEBRACHT, Frei Sebastião. Religiosos Franciscanos da Província da Imaculada Conceição do Brasil na Colônia e Império. Petrópolis: Vozes, 1990. e Stellfeld (1946STELLFELD, Carlos. A toponímia latina na “Flora Fluminensis”. Tribuna Farmaceutica, Curitiba, v. 14, n. 12, p. 246-248, 1946., 1952STELLFELD, Carlos. Os dois Vellozo: biografia de frei José Mariano da Conceição Vellozo e Padre doutor Joaquim Vellozo de Miranda. Rio de Janeiro: Editora Sousa, 1952.).

Contudo, no sentido de compreender a trajetória de frei Vellozo com análises de distintas áreas do conhecimento, tornou-se indispensável leitura do livro organizado por pesquisadores portugueses (Campos et al., 1999CAMPOS, Fernanda Maria Guedes; LEME, Margarida Ortigão Ramos Paes; FARIA, Miguel; CUNHA, Margarida; DOMINGOS, Manuela. A Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801) - bicentenário: “sem livros não há instrução”. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, Biblioteca Nacional, 1999.), que trata sobretudo do empreendimento editorial do Arco do Cego. Em relação ao tema do presente artigo, ressalta-se o capítulo de Nunes e Brigola (1999)NUNES, Maria de Fátima; BRIGOLA João Carlos. José Mariano da Conceição Veloso (1724-1811) – um frade no universo da natureza. In: CAMPOS, Fernanda Maria Guedes; LEME, Margarida Ortigão Ramos Paes; FARIA, Miguel; CUNHA, Margarida; DOMINGOS, Manuela. A Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801) – bicentenário: “sem livros não há instrução”. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, Biblioteca Nacional, 1999. p. 51-75., com contribuições valiosas nas análises das “viagens philosophicas” (Nunes e Brigola, 1999NUNES, Maria de Fátima; BRIGOLA João Carlos. José Mariano da Conceição Veloso (1724-1811) – um frade no universo da natureza. In: CAMPOS, Fernanda Maria Guedes; LEME, Margarida Ortigão Ramos Paes; FARIA, Miguel; CUNHA, Margarida; DOMINGOS, Manuela. A Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801) – bicentenário: “sem livros não há instrução”. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, Biblioteca Nacional, 1999. p. 51-75., p. 59) do frade na capitania do Rio de Janeiro, no qual analisam o papel de frei Vellozo no imaginário brasileiro, que, segundo os autores, assumiu a função de “frade-herói” com “uma auréola de mito fundador da Nação brasileira” (Nunes e Brigola, 1999NUNES, Maria de Fátima; BRIGOLA João Carlos. José Mariano da Conceição Veloso (1724-1811) – um frade no universo da natureza. In: CAMPOS, Fernanda Maria Guedes; LEME, Margarida Ortigão Ramos Paes; FARIA, Miguel; CUNHA, Margarida; DOMINGOS, Manuela. A Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801) – bicentenário: “sem livros não há instrução”. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, Biblioteca Nacional, 1999. p. 51-75., p. 74). Por fim, vale citar a síntese histórica mais recente sobre o botânico Vellozo e sua expedição no Rio de Janeiro (Silva, 2001SILVA, Maria Beatriz Nizza da. O botânico Fr. José Mariano da Conceição Veloso e sua expedição na Capitania do Rio de Janeiro. Anais. Série História, v. 7-8, p. 203-218, 2001.), em que a autora discorre sobre as realizações do frade e sua rede de relações, sobretudo nos períodos em que viveu no Rio de Janeiro.

Assim, centrado na vasta bibliografia sobre frei Vellozo e sua época e na análise de fontes primárias, entre as quais destacam-se os originais manuscritos e as ilustrações botânicas que serviram de base para a publicação da “Flora Fluminensis”, busca-se apresentar uma interpretação da obra à luz da botânica e da historiografia recente sobre o século XVIII. Neste contexto, sem incorrer no anacronismo interpretativo de algumas avaliações anteriores, o objeto da análise aqui empreendida tem o propósito de contribuir nos debates sobre a qualidade científica da obra, particularmente acerca da validade dos táxons descritos pelo frade, além de colaborar nos estudos sobre o ambiente científico no Brasil, na época. Por meio desta releitura, a intenção é ainda trazer novos argumentos para sustentar que frei Vellozo, ao viajar para Portugal com 49 anos de idade e com a “Flora Fluminensis” finalizada, era um naturalista com instrumental teórico suficiente para produzir uma obra alinhada aos cânones europeus.

A “FLORA FLUMINENSIS” E O ‘FAZER’ BOTÂNICO NO SÉCULO XVIII

Estudos de classificação de plantas – Botânica Sistemática, no senso que o termo é hoje aceito – têm a sua origem entre os séculos XV e XVI. Desde os estudos na Antiguidade de Teofrasto4 4 Filósofo grego, considerado o pai da botânica, escreveu por volta de 300 a.C. os dois grandes tratados “Historia Plantarum” e “De Causis Plantarum”. até os herbalistas5 5 Designação dos estudiosos de plantas da Idade Média, principalmente médicos, entre eles Brunfels, Fuchs e Clusius, interessados principalmente em usos e propriedades medicinais. A principal contribuição foi na preparação de catálogos com descrições e ilustrações para facilitar a comparação e a identificação das plantas. da Idade Média, as plantas eram relacionadas e categorizadas muito mais pelos usos e propriedades do que pelas características morfológicas. Botânicos da Renascença foram os pioneiros na tarefa de enumerar, distinguir e nomear as plantas de regiões próximas e, se possível, relacioná-las com aquelas já conhecidas (Morton, 1981MORTON, A. G. History of botanical Science: an account of the development of botany from ancient times to the present day. London: Academic Press, 1981.). De modo geral, ainda não havia uma ordem compreensiva de classificação, mas o reconhecimento de grupos de espécies afins permitiu um fecundo avanço nos estudos comparativos e na sistematização do inventário das plantas. O início do desenvolvimento de uma metodologia padronizada de descrição das características morfológicas também foi uma importante contribuição deste período. As ilustrações ainda incipientes quase sempre retratavam apenas o hábito e as características gerais da planta. Eram esses os procedimentos básicos para descrever e classificar plantas, acrescidos de raras inovações, ainda praticados na primeira metade do século XVIII.

Um novo estágio no estudo de plantas foi impulsionado com a publicação das obras “Systema naturae” e “Species plantarum” (Linnaeus, 1735LINNAEUS, Carolus. Systema natura, sive regna tria naturae, systematice proposita per classes, ordines, genera, & species. Leiden: Theodorus Haak, 1735., 1753LINNAEUS, Carolus. Species plantarum, exhibentes plantas rite cógnitas, ad genera relatas, cum differentiis specificis, nominibus trivialibus, synonymis selictis, locis natalibus, secundum systema sexuale digestas. Stockholm: Laurentibus Salvius, 1753. 2 v.), bem como as várias reedições posteriores, que divulgaram, pela primeira vez, o sistema de classificação e a nomenclatura binomial de Lineu. O impacto dos trabalhos do botânico e naturalista sueco, que, de imediato, promoveu grande impulso nos estudos florísticos em regiões pouco exploradas, deve-se ao aprimoramento de um sistema de classificação fundado principalmente em caracteres das flores. Não há dúvidas de que a principal inovação foi a adoção de binômios específicos que, com grande sucesso, tomaram lugar dos polinômios e providenciaram uma nomenclatura de uso universal. Lineu instituiu ainda uma padronização descritiva para gêneros e espécies, com as características diagnósticas sumarizadas. Tal modelo de descrição, privilegiando os caracteres reprodutivos fundamentais para o reconhecimento dos táxons, ampliou notadamente o intercâmbio entre os botânicos da época.

O instrumental lineano proporcionou grande avanço nos estudos de inventário e descrição de plantas, com especial influência na produção de floras regionais. Neste contexto, o modelo de flora que predominava na segunda metade do século XVIII, época da conclusão dos manuscritos da “Flora Fluminensis”6 6 Referimo-nos ao texto e às estampas originais da “Flora Fluminensis”, que se encontram atualmente na Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos. Nas Figuras 8 e 9 mais à frente, vê-se as folhas de rosto do Tomo I das ilustrações e Tomo I das descrições das plantas em texto, da versão manuscrita. , era uma relação de espécies inventariadas em uma certa região, descritas de acordo com a classificação e a nomenclatura proposta por Lineu. As espécies eram listadas pelo nome científico, via de regra ordenadas por gênero e agrupadas em classes, acompanhadas de descrições diagnósticas sumárias, às vezes acrescidas de descrições gerais e observações sobre o nome vernacular, habitat e local de ocorrência, em latim.

Na mesma época, as ilustrações passaram a ter um papel mais preponderante como elemento associado à descrição da planta. Além do emprego de técnicas refinadas, prevaleceu o uso de desenhos mais realísticos, representando, com ênfase, as características morfológicas diagnósticas. É importante ainda destacar que, com as proposições de sistemas de classificação mais aprimorados do final do século XVIII, procedentes da escola botânica francesa liderada pelos irmãos Jussieu, surgiram estudos florísticos com descrições ainda mais detalhadas, levando em conta um grande número de caracteres morfológicos. Porém, este modelo de flora só se tornou efetivamente difundido durante o século XIX, conforme constatamos na “Flora Brasiliensis” de Von Martius.

Com base nos aspectos ora delineados, o valor científico da “Flora Fluminensis” pode ser avaliado na proporcionalidade das representações das espécies, no detalhamento das descrições e ilustrações das características diagnósticas, assim como na qualidade e precisão das informações sobre distribuição e ambiente de ocorrência das plantas. De imediato, sobressai-se a quantidade expressiva de espécies representadas (1.639 espécies), as dificuldades de acesso aos locais e o longo período na preparação dos originais – 1783 a 1790.

A análise das descrições das espécies da “Flora Fluminensis” permite inferir que foram preparadas de modo muito similar à literatura de referência sobre as floras do século XVIII, particularmente com aquelas da segunda metade dos Setecentos, e consideradas de grande relevância para os trópicos americanos, tais como “Selectarum stirpium Americanarum historia”, de N. J. F. Jacquin (1758)JACQUIN, Nikolaus Joseph. Selectarum stirpium Americanarum historia. Viena: Officina Krausiana, 1758., “Histoire de plantes de La Guiane Française”, de J. B. Aublet (1775)AUBLET, Jean Baptiste C. Fusée. Histoire des plantes de la Guiane Françoise: rangées suivant la méthode sexuelle, avec plusieurs mémoires sur différens objets intéressans, relatifs à la culture & au commerce de la Guiane Françoise, & une notice des plantes de l’Isle-de-France. Londres/Paris: P. F. Didot Jeune, 1775., e “Florae Indiae occidentalis”, de Swartz (1797)SWARTZ, Olof. Flora Indiae occidentalis: aucta atque illustrata sive descriptiones plantarum in prodromo recensitarum. Erlangae: Jo. Jacobi Palmii, 1797. 4 v.. Os detalhes das descrições também sustentam esta conclusão e demonstram que frei Vellozo tomou como modelo as descrições diagnósticas sumárias preconizadas por Lineu. Entretanto, para a maioria das espécies, foi acrescentada uma descrição geral das características do hábito, das folhas e dos frutos.

Mostra-se também muito conveniente a confrontação entre a “Flora Fluminensis” e a “Florae lusitanicae et brasiliensis specimen”, de Vandelli (1788)VANDELLI, Domingos. Florae Lusitanicae et Brasiliensis Specimen et epistolae ab erudits viris. Carolo a Linné, Antonio de Haen. Coimbra: Typographia Academico-Regia, 1788., uma obra contemporânea preparada pelo botânico italiano responsável pela consolidação dos estudos de ciências naturais em Portugal e idealizador das “Viagens filosóficas”. O conteúdo do trabalho de Vandelli, embora de título audacioso, consta apenas de descrições de gêneros, seguidas da lista dos nomes científicos das espécies. Para as espécies supostamente novas, fez descrições sucintas, sem, entretanto, eleger os binômios científicos. Portanto, não foram validamente publicadas. Apesar de adotar o sistema e a nomenclatura de Lineu, o autor não apresenta descrições para a maioria das espécies e, quando acrescenta alguma informação, cita apenas o nome popular e os usos. Os gêneros novos, além da diagnose latina, são acompanhados de estampas, ilustrando as características morfológicas de acordo com a classificação de Lineu, conforme as Figuras 1 e 2.

Figura 1
Descrição do gênero Vochya na obra de Vandelli (1788)VANDELLI, Domingos. Florae Lusitanicae et Brasiliensis Specimen et epistolae ab erudits viris. Carolo a Linné, Antonio de Haen. Coimbra: Typographia Academico-Regia, 1788..

Figura 2
Ilustrações da obra de Vandelli (1788)VANDELLI, Domingos. Florae Lusitanicae et Brasiliensis Specimen et epistolae ab erudits viris. Carolo a Linné, Antonio de Haen. Coimbra: Typographia Academico-Regia, 1788., em que se destaca na Figura 1 os caracteres morfológicos do gênero Vochya.

Tal comparação ratifica a qualidade das descrições e das observações de Vellozo, bem como demonstra que a “Flora Fluminensis” encontrava-se em perfeita conformidade com a ciência botânica que era praticada na metrópole.

No que se refere às ilustrações da “Flora Fluminensis”, conforme é dito no prefácio da obra, as 1.639 estampas reportam-se às de Plumier7 7 Charles Plumier (1646-1704), botânico francês considerado um dos mais importantes exploradores do final do século XVII. Realizou expedições às Antilhas, cujos resultados foram divulgados principalmente na sua obra “Nova plantarum americanarum genera” (Plumier, 1703). , ou seja, com realce nos contornos do hábito e dos detalhes de folhas, flores e frutos apenas no traço, sem sombras, indicando com um tracejado forte as partes mais salientes. Embora de traço não refinado, os desenhos destacam-se como elementos associados às descrições, na maioria dos casos buscando representar os caracteres diagnósticos de acordo com o sistema de classificação de Lineu. Neste sentido, devem considerar-se as limitações da microscopia ótica da época.

A FORMAÇÃO DO ‘NATURALISTA’ FREI VELLOZO

Sem a pretensão de escrever uma biografia de frei Vellozo e distante da ideia de apresentar um personagem heroificado, busca-se analisar a trajetória do frade sob uma perspectiva que insere a obra e o autor em um contexto científico, político e cultural, além de analisar a circulação de saberes que possibilitaram a que o frade elaborasse a “Flora Fluminensis”.

Para tanto, baseamo-nos em autores que entendem a singularidade da análise de um indivíduo, articulada ao contexto histórico, conforme Levi (1996LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA, Marieta Moraes; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 167-182., p. 176) reflete em artigo sobre as biografias:

qualquer que seja a sua originalidade aparente, uma vida não pode ser compreendida unicamente através de seus desvios ou singularidades, mas, ao contrário, mostrando-se que cada desvio aparente em relação às normas ocorre em um contexto histórico que o justifica.

José Xavier Vellozo – que posteriormente adotou o nome de frei José Mariano da Conceição Vellozo – nasceu em 1741 na Vila de São José Del Rei, comarca do Rio das Mortes, em Minas Gerais, cidade atualmente chamada Tiradentes.

A única informação disponível acerca da genealogia de Vellozo refere-se ao seu primo-irmão por parte de mãe, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Possivelmente, os dois tiveram convivência na infância e na juventude, contudo, no período da Inconfidência Mineira, em 1789, o nome de frei Vellozo parece não ter sido associado ao primo revolucionário.

Até os 20 anos, Vellozo residiu em Minas Gerais e, decerto, a cultura mineira influenciou sua vida e suas opções, tanto religiosa como científica. Pouco se sabe a respeito de Vellozo no período, ressentindo-se a historiografia de pesquisas sobre a fase ‘mineira’ do frade. Sendo assim, a busca de informações sobre o personagem no período de 1741 a 1760 orientou-se pelas novas produções da história social, política e cultural de Minas Gerais no século XVIII. É possível elencar nesses estudos os atores da época e suas biografias, em especial aqueles que tinham interesse nas ciências e compartilhavam saberes. Além disso, é possível compreender os significados, na época, da opção de Vellozo pela vida eclesiástica e seu posterior interesse pela história natural.

A paisagem montanhosa e distante do litoral; a convivência com o barroco mineiro, expresso, sobretudo, nas igrejas, monumentos, arquitetura; e também a religiosidade daqueles tempos decerto foram influências que acompanharam Vellozo por toda sua vida. Para a historiadora Laura de Mello e Souza (2011SOUZA, Laura de Mello e. Claudio Manuel da Costa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 18), ser mineiro era mais uma designação profissional do que regional ou de identidade. O ouro atraíra para a capitania das Minas Gerais habitantes de outras regiões, e fortunas eram criadas em pouco tempo. Uns viviam do comércio, outros da economia agrícola. A região tornara-se próspera em menos de meio século e criara um modus vivendi diferenciado do restante do Brasil, sobretudo na vida urbana, consequência da atividade mineradora.

A mineração, segundo Filgueiras (2007FILGUEIRAS, Carlos A. L. A ciência e as Minas Gerais do Setecentos. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs.). As Minas Setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007. p. 159-186., p. 162), exigia conhecimentos técnicos de disciplinas como química, geologia, metalurgia, entre outras. Sendo assim, a circulação de livros não só era necessária, como fazia parte daquela sociedade, que se urbanizava e apreciava, cada vez mais, o gosto por manifestações culturais, como pintura, poesia e música. Algumas bibliotecas eram bastante completas, a exemplo da do Seminário de Mariana – onde estudava Domingos, primo-irmão de Vellozo –, além de algumas coleções particulares, como a do Cônego Luís Vieira da Silva, que teve sua extensa e diversificada biblioteca arrolada nos Autos da Devassa da Inconfidência (Filgueiras, 2007FILGUEIRAS, Carlos A. L. A ciência e as Minas Gerais do Setecentos. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs.). As Minas Setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007. p. 159-186., p. 165).

Em pesquisas sobre o clero em Minas Gerais, Luís Carlos Villalta (2007VILLALTA, Luiz Carlos. A Igreja, a sociedade e o clero. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs.). As Minas Setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007. v. 2, p. 25-58., p. 29) demonstra que o sacerdócio era considerado uma profissão semelhante às outras existentes, garantia a sobrevivência com um pequeno salário (côngrua) do Estado e permitia posição privilegiada em uma sociedade profundamente religiosa (Villalta, 2007VILLALTA, Luiz Carlos. A Igreja, a sociedade e o clero. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs.). As Minas Setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007. v. 2, p. 25-58., p. 53). Era muito comum que as famílias incentivassem seus filhos a ingressarem na carreira eclesiástica, como aconteceu com Domingos e Antônio, primos de Vellozo, irmãos de Tiradentes.

Decidido pela vida religiosa, Vellozo ingressou em 1762 no Convento Franciscano de São Boaventura do Macacu, atual cidade de Itaboraí, estado do Rio de Janeiro. Quatro anos depois, cursava Filosofia e Teologia no Convento Santo Antônio, recebendo “ordens menores e sacras” (Stellfeld, 1952STELLFELD, Carlos. Os dois Vellozo: biografia de frei José Mariano da Conceição Vellozo e Padre doutor Joaquim Vellozo de Miranda. Rio de Janeiro: Editora Sousa, 1952., p. 26). Enviado a São Paulo em 1771 como missionário na aldeia indígena São Miguel, lecionou geometria aos soldados, conforme declarou na sua Súplica de 1795:

Que sendo mandado pela obediência para o Convento da Cidade de S. Paulo, por petição do Ilmo. D. Luiz Antônio de Souza, então seu general [governador de São Paulo entre 1765 a 1775], para ensinar geometria aos soldados, que se [sic] não verificou; fui empregado pelo seu sucessor o Ilmo. Martim Lopes Lobo de Saldanha [governador de São Paulo entre 1775 a 1782] no último triênio do governo, em se colher as produções naturais do país mais preciosas, para serem remetidas ao Museu e Jardim de Sua Majestade, por uma ordem que teve primeiramente, em ano de 1777 do Exmo. Marquês de Pombal, repetida ao depois [sic] pelo Ilmo. e Exmo. Martinho de Mello, a que o suplicante satisfez de sorte8 8 José Mariano da Conceição Vellozo. Súplica dirigida a Rodrigo de Souza Coutinho. Lisboa, 1795. Arquivo Histórico Ultramarino – AHU-CU-Reino, Caixa 30, Pasta 7. .

O governador da capitania de São Paulo, Martim Lopes Lobo de Saldanha, recebera ordens do vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza para que enviasse exemplares da flora e da fauna, pedras, conchas e demais objetos da natureza da capitania. Lobo de Saldanha, então, incumbiu frei Vellozo de coletar material:

Ilmo. e Exmo. Sr.: Em observância do que V. Exa. me participa no seu ofício de 25 de abril, de se achar encarregado por S. Mag. e para fazer remeter para a Corte toda a qualidade de plantas raras e todas as mais curiosidades pertencentes à História Natural, entrei na averiguação de quem nesta Capitania pudesse concorrer para o desempenho de V. Exa. e mostrar a minha cega obediência, e unicamente achei um Religioso Franciscano, que está com maior cuidado trabalhando a este respeito, de que a tempo oportuno pretende mostrar o seu zelo, nascido da sua curiosidade. São Paulo, 4 de julho de 1781 (Arquivo do Estado de São Paulo, 1903ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Carta do governador da capitania de São Paulo, Martim Lopes Lobo de Saldanha, ao vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza. Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, v. 43, p. 385, 1903. Disponível em: <http://bibdig.biblioteca.unesp.br/bd/bfr/or/10.5016_10-ORDCISP-27-43_volume_43/#/404/>. Acesso em: 29 mar. 2015.
http://bibdig.biblioteca.unesp.br/bd/bfr...
, p. 385).

Durante cerca de três anos, foram enviadas de São Paulo inúmeras caixas com materiais para o Rio de Janeiro. O apreço do vice-rei à qualidade das descrições do frade e das técnicas de taxidermia dos animais e de amostras desidratadas de plantas, frutos, sementes e madeira de plantas fez com que fosse solicitado o retorno de frei Vellozo ao Rio de Janeiro.

Uma reflexão faz-se necessária acerca dos estudos que frei Vellozo recebera nos Conventos do Rio de Janeiro e em São Paulo: onde, como e com quem frei Vellozo adquiriu conhecimento para empreender as tarefas que desempenhou em São Paulo e, posteriormente, no Rio de Janeiro, com tal afinco e sabedoria, reconhecidos por naturalistas portugueses e elogiados pela Rainha D. Maria I, tanto na coleta, preparação e identificação de plantas, animais e minerais e, sobretudo, na “Flora Fluminensis”.

A pesquisa de Sangenis (2006)SANGENIS, Luiz Fernando Conde. Gênese do pensamento único em educação: franciscanismo e jesuitismo na história da educação brasileira. Petrópolis: Vozes, 2006. esclarece-nos acerca da ausência de documentos históricos dos franciscanos, além de mostrar as disputas entre as ordens religiosas – franciscanos, carmelitas, beneditinos e jesuítas – presentes no Brasil Colônia, sobretudo na educação e nas missões indígenas.

Sem dúvida, os jesuítas são apontados como a ordem religiosa que se dedicava com mais afinco à educação e às missões. No entanto, por meio de exaustivo levantamento de fontes primárias, Sangenis afirma que os frades franciscanos – chamados também de capuchos ou mendicantes – dedicaram-se à educação elementar nas localidades, nas quais fundavam seus conventos. Acrescenta, ainda, que a expulsão dos jesuítas por Pombal, em 1759, permitiu que a atuação educacional dos franciscanos se ampliasse para o ensino secundário, até então monopolizado pelos jesuítas.

O autor também defende a tese de que, no Convento de Santo Antônio, os estudos correspondiam a um curso superior:

Os estudos superiores no convento do Rio de Janeiro [Santo Antônio] constituíam um curso público superior, único no gênero, composto de matérias literárias, filosóficas e teológicas. Funcionava como uma espécie de universidade onde se ensinavam História Eclesiástica, o Grego, o Hebraico, a Retórica, a Filosofia, a Teologia, a Exegética, e onde foi introduzido o ensino oficial das línguas francesa e inglesa (Sangenis, 2006SANGENIS, Luiz Fernando Conde. Gênese do pensamento único em educação: franciscanismo e jesuitismo na história da educação brasileira. Petrópolis: Vozes, 2006., p. 33).

Decerto, no tempo em que frei Vellozo esteve no Convento Santo Antônio, ainda não eram ministradas todas as disciplinas que Sangenis elenca em 1777. Entretanto, é possível supor a presença de professores-frades na época da sua formação, os quais estariam capacitados para assumir, pouco tempo depois, as referidas disciplinas.

Rodrigues (2011) observa uma particularidade da Ordem Franciscana no Brasil, importante na análise aqui empreendida: o incentivo à ordenação de brasileiros e desestímulos para que frades europeus viessem ao Brasil. Afirma, ainda, que a ordem franciscana incentivava a erudição, semelhante aos jesuítas, e acrescenta:

Essa forma de desenvolvimento do convento do Rio de Janeiro potencializa a sua qualidade intelectual e isso fica claro quando, no final do século XVIII, mais precisamente em 1776, ganha a condição de centro de estudos superiores, reforçando a sua condição de formador e caracterizando o empenho dos frades na criação e manutenção da biblioteca do convento (Rodrigues, 2011, p. 42).

O arcabouço teórico de frei Vellozo aponta na direção de que os estudos dos franciscanos eram bastante completos e o ensino tinha características de disciplinas propedêuticas, que instigavam o exercício de investigação da natureza e constituíam uma base sólida de conhecimentos, que ia além da teologia e filosofia. Corroboram essa proposição vários exemplos de religiosos brasileiros, que, à época, eram dedicados à História Natural, como Padre Joaquim Veloso de Miranda (1742-1817), frei José da Costa Azevedo (1763-1822) e frei Leandro do Sacramento (1778-1829), entre outros.

Na biblioteca do Convento de Santo Antônio, atualmente fechada para consulta ao público, encontra-se um significativo acervo de livros raros de diferentes assuntos e autores. No inventário da primeira biblioteca pública de São Paulo, constata-se a existência de uma significativa biblioteca da diocese da capitania, acrescida de acervo dos franciscanos, os quais revelam que as obras não passavam pela mesa censória de Portugal e eram adquiridas diretamente dos livreiros, que as importavam da Europa. Esse foi o caminho dos 3.162 livros do Convento de São Francisco, em que se encontravam inúmeras obras de história natural, inclusive Carlos Lineu, conde de Buffon, Charles Plumier, George Marcgrave, segundo a pesquisa de Ellis (1957)ELLIS, Myriam. Documentos sobre a primeira biblioteca pública oficial de São Paulo. São Paulo: FFLCH/USP, 1957..

Apesar das restrições à circulação de informação na Colônia, além do pequeno número de homens das ciências no Brasil e das poucas bibliotecas, a “Flora Fluminensis” demonstra que a formação de frei Vellozo foi bastante completa, com acesso a livros e sociabilidades intelectuais familiarizados com a história natural e que, inclusive, o frade estava muito bem informado sobre a literatura produzida no período, na Europa, conforme se verifica nas referências no texto das descrições das plantas.

OS ESTUDOS INICIAIS, PREPARAÇÃO E PUBLICAÇÃO DA “FLORA FLUMINENSIS”

Concomitante aos esforços de recuperação empreendidos pelo marquês de Pombal, associou-se um movimento de homens vinculados às ciências em Portugal, apoiando a execução de um levantamento das condições naturais e econômicas do Reino e do Ultramar. A análise de Kury (2004)KURY, Lorelai. Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações (1780-1810). História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 11, supl. 1, p. 109-129, 2004. demonstra as mudanças que ocorreram na forma de a metrópole portuguesa se relacionar com as suas colônias, a partir da segunda metade do século XVIII, buscando aproximar-se das práticas administrativas da França e da Inglaterra. Conforme a autora,

o modelo imperial português cedeu lugar a outras estratégias internacionais que se haviam tornado hegemônicas, organizadas segundo uma lógica de redes tecidas em torno de centros de produção de saber e de elaboração e redistribuição de produtos científicos (Kury, 2004KURY, Lorelai. Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações (1780-1810). História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 11, supl. 1, p. 109-129, 2004., p. 111).

No Brasil, os vice-reis Marquês de Lavradio9 9 Luís de Almeida Portugal Soares de Alarcão d’Eça e Melo Silva Mascarenhas, Marquês de Lavradio, exerceu o cargo de vice-rei entre 1769 e 1778. e, posteriormente, Luís de Vasconcelos e Souza10 10 Luís de Vasconcelos e Souza, Marquês de Figueiró, exerceu o cargo de vice-rei entre 1779 e 1790. , em sintonia com a política ilustrada da metrópole, buscaram implementar ações para identificar possíveis riquezas que pudessem incrementar a economia. Sob a proteção e incentivo destes dois ilustrados, o Rio de Janeiro setecentista viveu um curto período de efervescência cultural e debate científico, conduzidos principalmente em agremiações como a Academia Científica11 11 Também chamada de Academia de Medicina e História Natural do Rio de Janeiro, ou Academia Fluviense Médica Cirúrgica, Botânica e Farmacêutica, foi criada em 1772 pelo vice-rei Marquês de Lavradio, e ligada à Academia Real das Ciências da Suécia. Vinculada às ideias de Pombal de incentivar a história natural, finalizou suas atividades em 1778. e a Sociedade Literária12 12 Criada em 1786 por Luís de Vasconcelos e Souza, com propósitos semelhantes aos da Academia Científica do Rio de Janeiro, parte de seus membros era oriunda da antiga agremiação. (Dias, 1968DIAS, Maria Odila da Silva. Aspectos da Ilustração no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 278, p. 105-170, 1968.). É neste cenário e com estes antecedentes que deve ser contextualizada a iniciativa de catalogar as plantas fluminenses, entre 1782 e 1790.

O vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza, que assumira o cargo em 1778, foi um personagem típico da ilustração luso-brasileira. Descendente de nobres portugueses, criou o Passeio Público buscando unir a necessária salubridade da cidade com jardins ornados de flora nativa e obras de arte, sob o comando do artista Mestre Valentim. Incentivou, ainda, o cultivo e a produção do anil e do cânhamo no Brasil, com vistas a apresentar alternativas agrícolas à economia. Entre suas ações importantes para as ciências, destaca-se a criação do primeiro museu de história natural do Brasil, conhecido como Casa dos Pássaros (Lopes, 2010LOPES, Maria Margaret. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 25). Sua posição social e seu envolvimento com as Luzes foram fundamentais no apoio aos estudos sobre a flora do Rio de Janeiro, quando desempenhou um papel de mecenas de frei Vellozo, inclusive no período em que o frade residiu em sua casa, em Lisboa, na década de 1790.

As coletas de frei Vellozo, sob as ordens de Vasconcelos e Souza, não se limitavam às plantas: foram diversas as coleções de peixes e conchas, as amostras de madeiras, pássaros, minerais e animais vivos ou taxidermizados enviados posteriormente ao Museu Real e ao Jardim Botânico de Ajuda, em Lisboa. Ele também desenvolveu técnicas para que o material enfrentasse as mudanças climáticas e a longa travessia do Atlântico, de modo que, ao aportar em Lisboa, estivesse em perfeito estado de conservação, mantendo suas características originais. Diversas correspondências entre Martinho de Mello e Castro, ministro da Marinha e do Ultramar, e Luís de Vasconcelos e Souza mostram elogios ao seu trabalho pelos naturalistas de Portugal, além da Rainha, D. Maria I.

A versão de frei Vellozo acerca do assunto, anos depois, demonstra que o frade tinha consciência da inovação e da qualidade das coleções, do ponto de vista científico e frente a outros Gabinetes Reais da Europa, conforme a Súplica:

O suplicante não pretende ponderar a V. Exa. o excesso de um trabalho provado por onze volumes em fólio com dois de descrições, por uma coleção de todos os peixes de água doce e salgada, feitas por um novo método, por outra de insetos marinhos e terrestres, e finalmente, por uma de borboletas impressas pela fécula colorante de que se cobrem as membranas das suas asas, obra tão rara, e estimável, que tem o Suplicante notícia, não haver outra em algum dos Gabinetes Reais da Europa: e que tudo se acha no Museu de S. Majestade onde foi entregue logo que aqui chegou13 13 José Mariano da Conceição Vellozo. Súplica dirigida a Rodrigo de Souza Coutinho. Lisboa, 1795. Arquivo Histórico Ultramarino – AHU-CU-Reino, Caixa 30, Pasta 7. Grifo do autor. .

Durante cerca de sete anos, frei Vellozo fez diversas excursões pelas matas do Rio de Janeiro e arredores, com objetivo de inventariar a natureza da região, com especial dedicação às plantas. Os esboços das ilustrações14 14 Atualmente, encontram-se no Arquivo Provincial dos Franciscanos, em São Paulo. Vale ressaltar as excelentes condições de conservação e guarda dos referidos documentos. , elaborados possivelmente nas digressões pelas matas, mostram minúcias das plantas desenhadas ou decalcadas, com detalhes das características morfológicas de flores e frutos com a necessária precisão científica dos dados. Na parte superior do esboço da ilustração, anotava o nome científico que lhe parecia mais adequado ainda durante o trabalho de campo. Verifica-se que, algumas vezes, o frade riscava e classificava novamente a planta desenhada, possivelmente mais tarde, ao lado de livros que usava nas consultas. Encontram-se diversas anotações acerca do habitat e do local da coleta junto a referências geográficas, e verificam-se as mesmas informações nas descrições das espécies na “Flora Fluminensis”, conforme se observa nas Figuras 3 a 7.

Figura 3
Esboço da ilustração de Asclepias candida, atribuída a frei Solano. Fonte: Arquivo Provincial dos Franciscanos.

Figura 7
Ilustração de Asclepias candida, em “Florae Fluminensis Icones fundamentales”, tomo 3, prancha 65, na obra publicada de Vellozo (1827).

Algumas excursões lideradas pelo frade contaram com apoio militar, inclusive de engenheiros da Academia Militar. Segundo Pataca (2006)PATACA, Ermelinda Moutinho. Terra, água e ar nas viagens científicas portuguesas (1755-1808). 2006. 427 f. Tese (Doutorado em Educação Aplicada às Geociências) – Universidade de Campinas, Campinas, 2006., frei Vellozo comandou equipes distintas que passavam temporadas em trabalho de campo e, posteriormente, na volta à cidade, programava outras digressões pelas matas, com objetivo de acompanhar as épocas de floração ou frutificação e, assim, executar uma descrição completa das características das espécies em estudo. É possível constatar que a “Flora Fluminensis” distingue-se de outras obras semelhantes, publicadas na Europa durante o século XVIII, nas quais os botânicos descreviam os vegetais, geralmente em seus gabinetes, a partir da análise de amostras secas, depositadas em coleções de museus e herbários, ou enviadas pelos naturalistas viajantes.

As espécies eram ilustradas por frei Francisco Solano15 15 Nasceu em Macacu, capitania do Rio de Janeiro. Tomou hábito no Convento de São Boaventura em 1778, ordenou-se sacerdote em 1784 e foi Ministro Provincial. Estudou filosofia no Convento de Santo Antônio, onde se destacou com vocação para as artes (Ellebracht, 1990, p. 265). Sem dúvida, foi o principal ilustrador da “Flora Fluminensis”. No Convento de Santo Antônio, no Rio de Janeiro, encontram-se quadros de sua autoria. , conforme se atesta nas assinaturas existentes em alguns dos já citados esboços localizados no Arquivo Provincial dos Franciscanos. Além de outros ajudantes da Escola Militar, como desenhadores e especialistas em confeccionar mapas, frei Anastácio de Santa Inês16 16 Frade brasileiro que tomou hábito no Convento São Francisco de Paulo, em 1762 (Ellebracht, 1990, p. 121). É possível que frei Anastácio de Santa Inês tenha vindo de São Paulo com frei Vellozo, onde iniciara o aprendizado de identificação de plantas. escrevia as definições científicas (Damasceno, 1999DAMASCENO, Darcy. Frei José Mariano da Conceição Vellozo, naturalista e editor. In: LIMA, Marilene Cavalcante de Oliveira (Ed.).Frei José Mariano da Conceição Vellozo, “Flora Fluminensis”. Estudos preliminares. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, 1999. p. 3-12.), ou seja, auxiliava no preparo das descrições morfológicas das espécies.

Apenas um documento é conhecido sobre os detalhes das digressões de frei Vellozo pelas matas do Rio de Janeiro em 1788: mapa da expedição botânica de 1788. BN, Mss I-32, 12, 13. Nele, consta a rota de exploração entre a Ilha Grande e Santos e a informação sobre a relação de mantimentos que foram gastos, o número de 43 pessoas que integravam a equipe, incluindo os escravos e militares, e que contavam com canoas, além de 26 cavalos e mulas. Nas citações dos habitats das espécies descritas na “Flora Fluminensis”, foi possível ainda encontrar indícios da equipe percorrendo trechos da Serra do Mar e do vale do Rio Paraíba (Stellfeld, 1946STELLFELD, Carlos. A toponímia latina na “Flora Fluminensis”. Tribuna Farmaceutica, Curitiba, v. 14, n. 12, p. 246-248, 1946.; Lima, 1995LIMA, Haroldo C. Leguminosas da Flora Fluminensis - J. M. da C. Vellozo - lista atualizada das espécies arbóreas. Acta Botanica Brasilica, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 123-146, 1995.), bem como de praias do extenso litoral fluminense.

Finalizada a “Flora Fluminensis”, em 1790, frei Vellozo, juntamente com Luís Vasconcelos e Souza, embarca para Lisboa, com o objetivo principal de editar e publicar sua obra17 17 José Mariano da Conceição Vellozo. Súplica dirigida a Rodrigo de Souza Coutinho. Lisboa, 1795. Arquivo Histórico Ultramarino – AHU-CU-Reino, Caixa 30, Pasta 7. . A tarefa de imprimir um trabalho da magnitude da “Flora Fluminensis”, com cerca de duas mil pranchas, demandava equipamentos e mão de obra especializada, que não havia em Portugal. Portanto, parte dos originais, ou cópia dos mesmos, foi enviada a Veneza para ser executada a impressão.

O valor da impressão era muito alto e apenas viável com o apoio da Coroa, que, de fato, se efetuou, conforme ordem da rainha Maria I, confirmada na Súplica18 18 José Mariano da Conceição Vellozo. Súplica dirigida à Rainha D. Maria I. Lisboa, 1797. Arquivo Histórico Ultramarino – AHU-Reino, Caixa 27, Pasta 25. . Contudo, foram inúmeras as tentativas de executar a tarefa em Veneza, pois muitos foram os contratempos, como as atitudes de desdém de naturalistas portugueses, obstáculos da burocracia lusitana e de logística em um período das guerras napoleônicas.

Nos primeiros anos em Portugal, Vellozo, de imediato, associou-se ao meio cultural lisboeta, realizando atividades no Museu da Ajuda e na Academia Real das Ciências, dando ênfase aos estudos de classificação de espécies, tanto da flora quanto da fauna (Nunes e Brigola, 1999NUNES, Maria de Fátima; BRIGOLA João Carlos. José Mariano da Conceição Veloso (1724-1811) – um frade no universo da natureza. In: CAMPOS, Fernanda Maria Guedes; LEME, Margarida Ortigão Ramos Paes; FARIA, Miguel; CUNHA, Margarida; DOMINGOS, Manuela. A Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801) – bicentenário: “sem livros não há instrução”. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, Biblioteca Nacional, 1999. p. 51-75.). Apesar do Decreto Real de 9 de julho de 1792, ordenando a impressão da “Flora Fluminensis” (Stellfeld, 1952STELLFELD, Carlos. Os dois Vellozo: biografia de frei José Mariano da Conceição Vellozo e Padre doutor Joaquim Vellozo de Miranda. Rio de Janeiro: Editora Sousa, 1952., p. 261), o processo se arrastou, provocando inúmeros desentendimentos e resultou na expulsão de frei Vellozo como membro da Academia.

Dedicou-se, então, à edição, tradução e compilação de livros, sobretudo no período em que dirigiu a Casa Literária Arco do Cego, de 1799 a 1801, cujos meandros e desdobramentos do estabelecimento ultrapassam o objetivo do artigo. Entretanto, é possível inferir que o frade, por meio desse empreendimento tipográfico, buscasse autonomia de maquinário e treinamento de técnicos no ofício de gravadores, almejando, posteriormente, imprimir sua obra magna e, então, retornar ao Rio de Janeiro, conforme Vellozo declarou à Rainha na Súplica: “(...) e o Suplicante se acha nesta Corte há sete anos, fora do Seu Convento, para onde deseja recolher-se logo que complete esta ação [publicação da “Flora Fluminensis”]”19 19 José Mariano da Conceição Vellozo. Súplica dirigida à Rainha D. Maria I. Lisboa, 1797. Arquivo Histórico Ultramarino – AHU-Reino, Caixa 27, Pasta 25. .

Um verbete sobre frei Vellozo em um dicionário biográfico da época (Sousa, 1801SOUSA, José Carlos Pinto de. Bibliotheca Histórica de Portugal, e seus domínios ultramarinos. Lisboa: Typographia Chalcographica, Typoplastica e Litteraria do Arco do Cego, 1801., p. 55) afirma que a tipografia chegou a ter

24 peritos, exercitando-os nas multiplicadas obras de diferentes naturezas que se têm imprimido na dita Oficina, denominada por isso Calcográfica: pelo que não será preciso jamais mendigar-se a abertura das sobreditas chapas a Nação alguma.

Contudo, o frade não logrou publicar sua obra.

Ao retornar ao Brasil, em 1809, de acordo com afirmação de Borgmeier (1961)BORGMEIER, Thomas. Introdução. In: ARQUIVO NACIONAL. “Flora Fluminensis” de frei José Mariano da Conceição Vellozo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1961. (Publicações Históricas, v. 48). p. 3-21., frei Vellozo trouxe os originais da “Flora Fluminensis”, preparados e levados a Lisboa em 1790 (Figuras 8 e 9).

Figura 8
Folha de rosto do tomo I de “Florae Fluminensis Icones fundamentales”, versão manuscrita. Fonte: Biblioteca Nacional.

Figura 9
Folha de rosto do tomo I de “Florae Fluminensis discriptionum plantarum”, versão manuscrita. Fonte: Biblioteca Nacional.

Recolhido ao seu antigo claustro do Convento de Santo Antônio, Vellozo tinha, então, 68 anos e encontrava-se enfermo e, talvez por essa razão, não tenha participado das atividades da Impressão Régia, fundada um ano antes. Entretanto, alguns de seus antigos funcionários no Arco do Cego foram incorporados na ‘moderna’ tipografia, instalada na nova sede do Império luso. Faleceu em 1811, e parte do seu espólio deixado no convento dos franciscanos foi transferida à Biblioteca Real, atual Biblioteca Nacional (Borgmeier, 1961BORGMEIER, Thomas. Introdução. In: ARQUIVO NACIONAL. “Flora Fluminensis” de frei José Mariano da Conceição Vellozo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1961. (Publicações Históricas, v. 48). p. 3-21.).

Na biblioteca do Rio de Janeiro, os originais permaneceram desaparecidos até o ano de 1824, quando o então bibliotecário Frade Antônio d’Arrabida sugeriu a impressão da obra. O imperador da recente nação, D. Pedro I, vislumbrou na publicação da obra científica de um naturalista brasileiro uma forma de afirmação e, assim, ordenou que a impressão fosse executada pelo mais importante litógrafo de Paris, Senelfelder. A tiragem de 3 mil exemplares de uma obra constituída de 1.639 pranchas de 33,2 x 46,2 cm acarretou um alto custo na execução do trabalho e consequentes dificuldades no pagamento pelo Estado brasileiro.

Um longo percurso foi novamente empreendido pelos originais para sua publicação: parte das descrições em latim foi editada em 1825 na Tipografia Nacional (Figura 10); as ilustrações começaram a chegar ao Rio de Janeiro em 1827 e o último volume em 1831 (Carauta, 1969CARAUTA, Jorge P. A data efetiva de publicação da “Flora Fluminensis”. Vellozia, n. 7, p. 26-33, 1969., 1972CARAUTA, Jorge P. A data efetiva da publicação da “Flora Fluminensis” II. O texto impresso em 1825. In: CONGRESSO NACIONAL DE BOTÂNICA, 22., 1972, São Paulo. Anais... São Paulo: Sociedade Botânica do Brasil, 1972. p. 141-145., 1973CARAUTA, Jorge P. The text of Vellozos’s “Flora Fluminensis” and its effective data of publication. Taxon, v. 22, p. 281-284, 1973.) (Figura 11). A impressão do texto completo das descrições botânicas ocorreu apenas em 1881, no periódico Archivos do Museu Nacional, ou seja, 91 anos depois de finalizada (Figura 12).

Figura 10
Folha de rosto do tomo I de “Florae Fluminensis discriptionum plantarum” Fonte: Vellozo (1825).

Figura 11
Folha de rosto do tomo I de “Florae Fluminensis icones” Fonte: Vellozo (1827).

Figura 12
Página inicial do “Florae Fluminensis discriptionum plantarum” na Revista Archivos do Museu Nacional. Fonte: Vellozo (1881).

Nunes e Brigola (1999)NUNES, Maria de Fátima; BRIGOLA João Carlos. José Mariano da Conceição Veloso (1724-1811) – um frade no universo da natureza. In: CAMPOS, Fernanda Maria Guedes; LEME, Margarida Ortigão Ramos Paes; FARIA, Miguel; CUNHA, Margarida; DOMINGOS, Manuela. A Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801) – bicentenário: “sem livros não há instrução”. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, Biblioteca Nacional, 1999. p. 51-75. reportam que a missão primordial de frei Vellozo em Portugal era o aperfeiçoamento de sua obra. Porém, é importante ressaltar que a análise pormenorizada do texto e das pranchas que compõem a “Flora Fluminensis” demonstra que os manuscritos que serviram de base à impressão da obra, no segundo quartel do século XIX, foram aqueles concluídos e levados a Portugal em 1790, sem nenhum acréscimo aos originais do manuscrito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os acertos na classificação das plantas, bem como a qualidade das descrições e ilustrações, não deixam dúvidas sobre a competência de frei Vellozo e seus colaboradores em estudos botânicos. Buscou-se mostrar que o frade, além de contar com o apoio explícito do vice-rei, foi beneficiado por um ambiente de erudição e propício à circulação de saberes científicos. É possível, então, conjecturar uma vinculação com os homens das ciências do Rio de Janeiro que gravitaram em torno da Academia Científica e, posteriormente, da Sociedade Literária.

Tal constatação corrobora a análise de Kury (2007)KURY, Lorelai. Apresentação. In: KURY, Lorelai (Org.). Iluminismo e império no Brasil: o patriota (1813-1814). Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2007. p. 9-13., ao discorrer sobre os primeiros anos do século XIX e as Luzes no Brasil:

Comparada ao universo europeu, a esfera pública local é reduzida: poucos leitores, instituições frágeis, sociedades científicas e literárias incipientes. No entanto, a diferença de escala não deve servir de argumento para que se pensem as Luzes daqui como cópia mal acabada do iluminismo europeu. Em primeiro lugar, é importante pensar que existem outras formas de circulação de ideias e outras instâncias de sociabilidades no Brasil, onde o papel da oralidade é central. Em segundo lugar, as Luzes são um fenômeno internacional, que não pode ser pensado sem o mundo colonial e seus críticos (...). As Luzes são internacionais e atravessam os espaços nacionais e imperiais (Kury, 2007KURY, Lorelai. Apresentação. In: KURY, Lorelai (Org.). Iluminismo e império no Brasil: o patriota (1813-1814). Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2007. p. 9-13., p. 13).

Contudo, o período em Lisboa (1790 a 1809) rendeu a frei Vellozo não só glórias, mas também embates e boicotes que resultaram em frustrantes tentativas de publicar a “Flora Fluminensis”. É possível elencar algumas suposições: preconceito contra seu conhecimento, adquirido sem a titulação de um estabelecimento de ensino acadêmico; posicionamento político diante das disputas entre os homens das ciências da metrópole; mecenato de Luís de Vasconcelos e Souza e as consequentes tentativas de obter privilégios; e, por fim, o alto custo para impressão da obra.

De fato, um considerável número de gêneros e espécies de plantas descritas para a ciência por Vellozo perdeu o ineditismo (Atala, 1961ATALA, Fuad. A História da “Flora Fluminensis” de frei Vellozo. Vellozia, v. 1, n. 1, p. 36-45, 1961.), mas sua obra continua sendo uma referência para os estudos taxonômicos de plantas do bioma Mata Atlântica, em particular para o Rio de Janeiro. É ainda de valor insuperável para o resgate de informações sobre a distribuição e o habitat original de muitas espécies, cujas áreas de ocorrência atualmente estão restritas aos reduzidos redutos remanescentes de vegetação nativa. As referências à consulta dos manuscritos por naturalistas como Wildenow, St. Hilaire, Mikan, príncipe Maximiliano (Silva, 2001SILVA, Maria Beatriz Nizza da. O botânico Fr. José Mariano da Conceição Veloso e sua expedição na Capitania do Rio de Janeiro. Anais. Série História, v. 7-8, p. 203-218, 2001.; Costa, 1812COSTA, Hipólito. Obituário. Correio Braziliense, v. 8, p. 392-393, 1812.), bem como a citação da obra publicada por vários monografistas da “Flora Brasiliensis”, de Martius (Bentham, 1862BENTHAM, George. Papilionaceae. In: MARTIUS, C. F. P. (Ed.). Flora Brasiliensis. Lipsiae: Frid. Fleischer, 1862. v. 15, p. 1-350.), não deixam dúvidas sobre a qualidade científica da obra. No entanto, cabe ainda destacar que é correta a avaliação de que os manuscritos já estavam desatualizados quando da sua publicação, na primeira metade do século XIX.

Por outro lado, vale pensar o quanto se refere aos feitos quase ‘heróicos’ de frei Vellozo como naturalista brasileiro do século XVIII. Essa memória, tantas vezes evocada e pouco questionada, parece ter servido às ciências e à ideologia de afirmação nacionalista, em que Vellozo é apresentado como um gênio que não foi reconhecido em seu tempo por ter nascido em lugar errado.

A escassez de documentos certamente é um dos principais motivos que nos levam a acompanhar a trajetória de frei Vellozo no Brasil, ainda sob o prisma das conjecturas. No entanto, ao constatar que a documentação referente ao frade, localizada no Arquivo Nacional, foi desmembrada dos acervos a que pertenciam e ‘arquivada’ em separado (procedimento usual da Instituição na época do inventário sobre Frei Vellozo), pairam dúvidas sobre os registros: será que os documentos considerados menos valorosos pelos autores e/ou arquivistas, quem sabe, desabonadores em relação à biografia que se queria escrever, tenham sido deixados de lado em algum ‘fundo’ ou mesmo descartados nas possíveis operações memorialistas que a biografia de Vellozo buscou atingir?

Contudo, pouco ou nada saberíamos sobre o frade se não fosse o esforço político para que a “Flora Fluminensis” pudesse ser publicada, além das biografias laudatórias que serviram e, de certa maneira, ainda servem para perpetuar a ideia de cientista heroificado. José de Saldanha da Gama, Francisco Freire-Alemão, Guilherme Schuch Capanema, Frederico Burlamaqui, apenas para citar alguns homens das ciências do século XIX, buscaram imprimir às suas trajetórias o título de herdeiros de uma ‘tradição’ científica brasileira fundada por Vellozo. Não é à toa que uma importante agremiação de cunho científico da segunda metade do século XIX chamava-se Sociedade Velosiana e o periódico do Museu Botânico do Amazonas, criado por João Barbosa Rodrigues, Revista Vellozia.

A interpretação aqui empreendida sobre a “Flora Fluminensis” permite afirmar que frei Vellozo, sem nunca ter saído do país, esteve dotado de um instrumental teórico atualizado com a produção científica da Europa. Outros naturalistas brasileiros que também se dedicaram a inventariar a flora do país, a exemplo de Padre Joaquim Velloso de Miranda, Alexandre Rodrigues Ferreira e Baltasar da Silva Lisboa, tinham em comum a formação no exterior. Dessa maneira, a obra do frade no Brasil confirma que havia uma conjuntura favorável à produção de conhecimento, sobretudo no Rio de Janeiro, e ainda reforça a argumentação de parte da historiografia, que analisa a complexidade das ‘relações centro-periferia’ (Russel-Wood, 1998RUSSEL-WOOD, A. J. R. Centros e periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 36, p. 187-250, 1998.), mostrando que a vida cultural e econômica na colônia era muito mais intensa do que os documentos oficiais parecem traduzir.

Figura 4
Detalhes do esboço da ilustração do ramo de Asclepias candida. Fonte: Arquivo Provincial dos Franciscanos.

Figura 5
Detalhes do esboço da ilustração das flores de Asclepias candida. Fonte: Arquivo Provincial dos Franciscanos.

Figura 6
Ilustração de Asclepias candida, em manuscritos da “Florae Fluminensis Icones fundamentales”, tomo 3, prancha 65. Fonte: Biblioteca Nacional.

AGRADECIMENTOS

Aos frades da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil, em especial ao frei Róger Brunório, museólogo do Departamento dos Bens Culturais; à Vera Faillace, chefe da Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional; às bibliotecárias do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Cristiana Amarante e Maria da Penha Ferreira; aos botânicos Pedro Carauta (in memoriam) e João Marcelo Braga, pesquisador do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Entende-se por ‘flora’ publicação na qual consta a identificação e descrição de plantas que ocorrem em uma área delimitada, independente da amplitude de escala geográfica (flora de um país, estado etc.) e geralmente acompanhada de ilustração botânica. A outras formas mais sucintas de apresentar inventários de plantas dá-se o nome de catálogo, enumeração, lista etc.
  • 2
    “A Flora Brasiliensis foi produzida entre 1840 e 1906 pelos editores Carl Friedrich Philipp von Martius, August Wilhelm Eichler e Ignatz Urban, com a participação de 65 especialistas de vários países. Contém tratamentos taxonômicos de 22.767 espécies, a maioria de angiospermas brasileiras, reunidos em 15 volumes, divididos em 40 partes, com um total de 10.367 páginas” (CRIA, 2005CENTRO DE REFERÊNCIA EM INFORMAÇÃO AMBIENTAL (CRIA). Flora Brasiliensis. 2005. Disponível em: <http://florabrasiliensis.cria.org.br/index>. Acesso em: 3 mar. 2013.
    http://florabrasiliensis.cria.org.br/ind...
    ).
  • 3
    Sobre estudos validando espécies de Vellozo, ver Lima (1995)LIMA, Haroldo C. Leguminosas da Flora Fluminensis - J. M. da C. Vellozo - lista atualizada das espécies arbóreas. Acta Botanica Brasilica, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 123-146, 1995., Braga (2005)BRAGA, João Marcelo Alvarenga. Marantaceae - novidades taxonômicas e nomenclaturais III: tipificações, sinonímias e uma nova combinação em Calathea. Acta Botanica Brasilica, São Paulo, v. 19, n. 4, p. 763-768, 2005., Cervi e Rodrigues (2010)CERVI, Armando Carlos; RODRIGUES, William Antonio. Nomenclatural and taxonomic review of Passifloraceae species illustrated and described by Vellozo in Flora Fluminensis. Acta Botanica Brasilica, Feira de Santana, v. 24, n. 4, p. 1109-1111, 2010. e Pastore (2013)PASTORE, José Floriano B. A review of Vellozo’s names for Polygalaceae in his Flora Fluminensis. Phytotaxa, v. 108, n. 1, p. 41-48, 2013..
  • 4
    Filósofo grego, considerado o pai da botânica, escreveu por volta de 300 a.C. os dois grandes tratados “Historia Plantarum” e “De Causis Plantarum”.
  • 5
    Designação dos estudiosos de plantas da Idade Média, principalmente médicos, entre eles Brunfels, Fuchs e Clusius, interessados principalmente em usos e propriedades medicinais. A principal contribuição foi na preparação de catálogos com descrições e ilustrações para facilitar a comparação e a identificação das plantas.
  • 6
    Referimo-nos ao texto e às estampas originais da “Flora Fluminensis”, que se encontram atualmente na Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos. Nas Figuras 8 e 9 mais à frente, vê-se as folhas de rosto do Tomo I das ilustrações e Tomo I das descrições das plantas em texto, da versão manuscrita.
  • 7
    Charles Plumier (1646-1704), botânico francês considerado um dos mais importantes exploradores do final do século XVII. Realizou expedições às Antilhas, cujos resultados foram divulgados principalmente na sua obra “Nova plantarum americanarum genera” (Plumier, 1703PLUMIER, Charles. Nova plantarum americanarum genera. Paris: J. Boudot, 1703.).
  • 8
    José Mariano da Conceição Vellozo. Súplica dirigida a Rodrigo de Souza Coutinho. Lisboa, 1795. Arquivo Histórico Ultramarino – AHU-CU-Reino, Caixa 30, Pasta 7.
  • 9
    Luís de Almeida Portugal Soares de Alarcão d’Eça e Melo Silva Mascarenhas, Marquês de Lavradio, exerceu o cargo de vice-rei entre 1769 e 1778.
  • 10
    Luís de Vasconcelos e Souza, Marquês de Figueiró, exerceu o cargo de vice-rei entre 1779 e 1790.
  • 11
    Também chamada de Academia de Medicina e História Natural do Rio de Janeiro, ou Academia Fluviense Médica Cirúrgica, Botânica e Farmacêutica, foi criada em 1772 pelo vice-rei Marquês de Lavradio, e ligada à Academia Real das Ciências da Suécia. Vinculada às ideias de Pombal de incentivar a história natural, finalizou suas atividades em 1778.
  • 12
    Criada em 1786 por Luís de Vasconcelos e Souza, com propósitos semelhantes aos da Academia Científica do Rio de Janeiro, parte de seus membros era oriunda da antiga agremiação.
  • 13
    José Mariano da Conceição Vellozo. Súplica dirigida a Rodrigo de Souza Coutinho. Lisboa, 1795. Arquivo Histórico Ultramarino – AHU-CU-Reino, Caixa 30, Pasta 7. Grifo do autor.
  • 14
    Atualmente, encontram-se no Arquivo Provincial dos Franciscanos, em São Paulo. Vale ressaltar as excelentes condições de conservação e guarda dos referidos documentos.
  • 15
    Nasceu em Macacu, capitania do Rio de Janeiro. Tomou hábito no Convento de São Boaventura em 1778, ordenou-se sacerdote em 1784 e foi Ministro Provincial. Estudou filosofia no Convento de Santo Antônio, onde se destacou com vocação para as artes (Ellebracht, 1990ELLEBRACHT, Frei Sebastião. Religiosos Franciscanos da Província da Imaculada Conceição do Brasil na Colônia e Império. Petrópolis: Vozes, 1990., p. 265). Sem dúvida, foi o principal ilustrador da “Flora Fluminensis”. No Convento de Santo Antônio, no Rio de Janeiro, encontram-se quadros de sua autoria.
  • 16
    Frade brasileiro que tomou hábito no Convento São Francisco de Paulo, em 1762 (Ellebracht, 1990ELLEBRACHT, Frei Sebastião. Religiosos Franciscanos da Província da Imaculada Conceição do Brasil na Colônia e Império. Petrópolis: Vozes, 1990., p. 121). É possível que frei Anastácio de Santa Inês tenha vindo de São Paulo com frei Vellozo, onde iniciara o aprendizado de identificação de plantas.
  • 17
    José Mariano da Conceição Vellozo. Súplica dirigida a Rodrigo de Souza Coutinho. Lisboa, 1795. Arquivo Histórico Ultramarino – AHU-CU-Reino, Caixa 30, Pasta 7.
  • 18
    José Mariano da Conceição Vellozo. Súplica dirigida à Rainha D. Maria I. Lisboa, 1797. Arquivo Histórico Ultramarino – AHU-Reino, Caixa 27, Pasta 25.
  • 19
    José Mariano da Conceição Vellozo. Súplica dirigida à Rainha D. Maria I. Lisboa, 1797. Arquivo Histórico Ultramarino – AHU-Reino, Caixa 27, Pasta 25.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    17 Set 2013
  • Aceito
    18 Mar 2015
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