Resumo
Casos pioneiros de leishmaniose cutânea e mucocutânea nas Américas foram descritos em São Paulo, em 1909; somente em 1934, um patologista do Serviço de Febre Amarela encontrou a leishmaniose visceral no Brasil. Processos históricos concernentes a essas formas ganharam mais vigor institucional nos anos 1930. Se a Comissão para o Estudo da Leishmaniose consolidou o conceito de leishmaniose tegumentar americana, a Comissão Encarregada do Estudo da Leishmaniose Visceral Americana, chefiada por Evandro Chagas, deu origem ao Instituto de Patologia Experimental do Norte (1936) e ao Serviço de Estudo das Grandes Endemias (1938). A leishmaniose visceral ganhou crescente relevância no Nordeste brasileiro, nos anos 1950. Medidas de controle dos vetores por Dicloro-Difenil-Tricloroetano (DDT) ocorreram a reboque da campanha contra a malária, direcionadas também a cães, sacrificados massivamente, e humanos, tratados com drogas antimoniais. Grandes empreendimentos no interior do Brasil após o golpe civil-militar de 1964 transformaram a leishmaniose cutânea e mucocutânea em um problema sério na Amazônia e em outras regiões. No Brasil e em outros países, todas as formas de leishmaniose supostamente sob controle reemergiram em zonas rurais e urbanas e em áreas consideradas livres desse complexo de doenças endemoepidêmicas, devido a mudanças ambientais, migrações humanas, crescimento urbano caótico e outros processos socioeconômicos.
Palavras-chave História da leishmaniose cutânea e mucocutânea no Brasil; História da leishmaniose visceral no Brasil; Evandro Chagas; Leônidas e Maria Paumgarten Deane; Samuel Pessoa; Instituto de Patologia Experimental do Norte (Instituto Evandro Chagas)
Abstract
The first cases of cutaneous and mucocutaneous leishmaniasis in the Americas were described in São Paulo in 1909; visceral leishmaniasis was only found in Brazil in 1934, by a Yellow Fever Service pathologist. The historical processes related to these forms of leishmaniasis gained institutional strength in the 1930s. While the Leishmaniasis Study Commission solidified the concept of American tegumentary leishmaniasis, the American Visceral Leishmaniasis Study Commission (headed by Evandro Chagas) gave rise to the Institute of Experimental Pathology for the North (1936) and the Large Endemic Disease Study Service (1938). Visceral leishmaniosis gained importance in northeastern Brazil in the 1950s, and control measures against its vectors using dichlorodiphenyltrichloroethane (DDT) followed in the wake of the malaria campaign. They also targeted dogs (which were killed en masse) and humans, who were treated with antimonial drugs. Large-scale undertakings in Brazil’s hinterlands after the 1964 civilian-military coup transformed cutaneous and mucocutaneous leishmaniasis into a serious problem in Amazonia and other regions. Brazil and other countries saw a resurgence of all forms of leishmaniasis in rural and urban areas because of environmental changes, human migrations, chaotic urban growth, and other socioeconomic processes.
Keywords History of cutaneous and mucocutaneous leishmaniasis in Brazil; History of visceral leishmaniasis in Brazil; Evandro Chagas; Leônidas and Maria Paumgartten Deane; Samuel Pessoa; Institute of Experimental Pathology for the North (Evandro Chagas Institute)
Classificadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como doenças tropicais negligenciadas, as leishmanioses são as únicas ainda em crescimento, e o Brasil é o país com maior número de casos das três formas de leishmaniose no continente americano: a cutânea, a mucocutânea e a visceral (World Health Organization, 2017; Organização Mundial da Saúde, 2010). Pretendemos mostrar, neste artigo, como a leishmaniose visceral se impôs como problema de saúde pública no Brasil nos anos 1930 a 1960.
Na Índia, os registros médicos sobre a leishmaniose visceral ou calazar multiplicaram-se a partir de meados do século XIX, à medida que recrudesceram as epidemias. Associada a princípio à malária ou à ancilostomíase, essa doença passou a integrar o complexo das leishmanioses na virada do século XIX para o XX, ao mesmo tempo em que doenças dermatológicas conhecidas por vários nomes locais, sendo botão do oriente, talvez, o mais disseminado1. Essa leishmaniose cutânea e a leishmaniose visceral passaram a ser objeto de intensa produção científica em diversas partes do mundo. A partir de 1909, médicos sul e centro-americanos tiveram participação de muito destaque nessa rede internacional, em decorrência de seus trabalhos sobre as singulares manifestações na pele e nas mucosas da doença que, na região, apresentava outra singularidade: era adquirida apenas em zonas florestais e não em centros urbanos, como no Velho Mundo. A consagração do conceito de ‘leishmaniose tegumentar americana’, na década de 1930, indica a projeção conquistada por pesquisadores latino-americanos nos circuitos da medicina tropical. No tocante à leishmaniose visceral, entretanto, a singularidade das Américas residiu por bom tempo na ausência dessa forma da doença. Houve, é certo, um diagnóstico, em 1912, feito pelo médico paraguaio Migone Mieres (1913) em um morador de Mato Grosso, um italiano que havia trabalhado na construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Essa mesma ferrovia, quatro anos antes, fora palco de um surto de ‘úlcera de Bauru’, então reconhecida–pela primeira vez nas Américas–como leishmaniose tegumentar (Lindenberg, 1909a, 1909b; Carini; Paranhos, 1909a, 1909b). E, em 1926, dois outros casos de leishmaniose visceral foram identificados na Argentina (Mazza; Cornejo, 1926). Esses diagnósticos, todavia, ficaram como eventos isolados, em gritante contraste com centenas de casos de leishmaniose cutânea e mucocutânea descritos pelos médios latino-americanos.
A leishmaniose visceral irrompeu como problema de saúde pública em 1934, em meio a pesquisas de rotina relacionadas a outra doença. O Serviço Cooperativo de Febre Amarela criara há pouco, na Bahia, um laboratório para analisar fragmentos de fígado que centenas de postos de viscerotomia espalhados pelo país retiravam de pessoas falecidas de febres suspeitas. Em lâminas feitas com material colhido no Norte e no Nordeste do Brasil, negativas para febre amarela, o patologista Henrique Penna identificou protozoários do gênero Leishmania (Penna, 1934)2. Dessa forma, 41 óbitos foram subitamente relacionados à leishmaniose visceral.
Carlos Chagas, diretor do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), incumbiu, então, seu filho primogênito, Evandro Serafim Lobo Chagas, diretor do hospital que havia na instituição, de investigar aquele novo problema médico e científico. Com as fichas dos casos diagnosticados post-mortem, ele encontrou o primeiro paciente brasileiro diagnosticado em vida, um adolescente de 16 anos que vivia em Aracaju, Sergipe (Chagas, E., 1936; Chagas, E. et al., 1937). Em nota publicada logo a seguir, em março de 1936, Evandro Chagas referia-se à leishmaniose visceral do Brasil como possivelmente diferente daquela observada no Velho Mundo, não obstante fosse impossível diferenciar morfologicamente a Leishmania encontrada no Brasil, a L. donovani, agente do calazar na Índia e em outras partes da Ásia e da África, e a L. infantum, o parasita incriminado por Charles Nicolle como o causador da leishmaniose visceral infantil na região mediterrânea (Chagas, E., 1936)3.
Carlos Chagas faleceu em 8 de novembro de 1934, e decorreu algum tempo até que Evandro pudesse dar início às pesquisas sobre a leishmaniose visceral. Em junho de 1936, na gestão de Antônio Cardoso Fontes, sucessor de Carlos Chagas na direção do Instituto Oswaldo Cruz, foi criada a Comissão Encarregada do Estudo da Leishmaniose Visceral Americana (CEELVA). Chefiada por Evandro Chagas, dela faziam parte Aristides Marques da Cunha, Gustavo de Oliveira Castro e Leoberto de Castro Ferreira. Cecílio Romaña, que já realizava estudos sobre a leishmaniose visceral na Argentina, participou também da Comissão. Contando com o apoio financeiro do Instituto Oswaldo Cruz e do empresário Guilherme Guinle4, Evandro visitou outros lugares no Nordeste, mas logo concentrou sua investigação no Pará. Outros personagens seriam então incorporados à sua equipe: a enfermeira inglesa Agnes Stewart Waddel, que viria a se tornar sua segunda esposa; os paraenses Leônidas e Gladstone Deane, Felipe Nery-Guimarães e Maria Von Paumgartten, que viria a se casar com Leônidas Deane. Os esforços desse grupo resultariam em diversas publicações, na segunda metade da década de 1930, sobre vários aspectos da leishmaniose visceral5.
No Pará, como no Nordeste, Evandro Chagas e sua equipe continuaram a ter como bússola os laudos produzidos pelos patologistas do Serviço de Febre Amarela. Nas localidades em que tivessem ocorrido óbitos por leishmaniose, moradores eram examinados, buscando-se como primeiros indícios febre, anemia e baço dilatado, a esplenomegalia. Os casos considerados suspeitos eram submetidos a procedimentos arriscados e dolorosos: punções de fígado ou de baço, a fim de retirar material para exame parasitológico. Alguns doentes eram enviados a hospitais em Belém ou no Rio de Janeiro, para que fossem colhidos materiais a serem usados nos experimentos de infecção de animais e nos estudos sobre a progressão da doença e seu tratamento, realizados nesse período com dois antimoniais, fuadina e neoestibosan (Gualandi, 2013)6.
Evandro Chagas e sua equipe coletavam flebótomos e outros artrópodes, assim como animais que pudessem hospedar Leishmania. Paralelamente, estudavam as características ambientais dos lugares inspecionados, pois isso era importante tanto para a pesquisa de possíveis vetores e hospedeiros como para a comprovação da hipótese central de Evandro Chagas: diferentemente da que ocorria no Velho Mundo, a leishmaniose visceral daqui teria caráter silvestre. O filho de Carlos Chagas faria grandes esforços para demonstrar a teoria quase apriorística da suposta autoctonia da leishmaniose visceral americana. Procurou repetir o feito dos que haviam logrado estabelecer o conceito da leishmaniose tegumentar americana e também o do pai, o descobridor, em 1909, da afamada tripanossomíase americana. Certamente, foi influenciado pela ebulição científica provocada pela descoberta da febre amarela silvestre, tendo sido Henrique Penna um dos autores do trabalho que, em 1933, mudou os rumos da campanha contra essa doença no país (Soper et al., 1933).
O descobrimento da nova doença – leishmaniose visceral americana – foi anunciado em três notas prévias, publicadas em um periódico do Rio de Janeiro em fevereiro de 1937 (Chagas, E., 1937; Cunha; Chagas, E., 1937; Chagas, E.; Castro, 1937). A leishmaniose visceral encontrada no Norte e no Nordeste do Brasil e na província do Chaco, no nordeste da Argentina, ocorria em indivíduos de diferentes idades, ao passo que a do Mediterrâneo incidia preferencialmente em crianças. A doença americana ocorria exclusivamente em áreas silvestres ou em zonas rurais em estreito contato com matas, e não em cidades, como o calazar, que se manifestava sob a forma de intensas e letais epidemias urbanas na Índia. Cães eram os principais reservatórios do agente da leishmaniose visceral mediterrânea, mas animais domésticos não podiam desempenhar igual papel em doença tão esparsa quanto a americana; só animais silvestres atuando como reservatórios primários podiam explicar o perfil epidemiológico da leishmaniose visceral americana. Ao incriminar uma nova espécie–Leishmania chagasi–como a causadora da leishmaniose visceral americana, Evandro Chagas estabelecia explícita associação de sua descoberta com a de Gaspar de Oliveira Vianna, da Leishmania braziliensis, então reconhecida como o agente da leishmaniose tegumentar americana.
Em 1911, esse médico paraense, pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz e autor de estudos importantes sobre Trypanosoma cruzi, havia publicado nota preliminar sobre Leishmania que encontrara em um paciente internado no Hospital da Misericórdia do Rio de Janeiro. A presença de um filamento–“[...] talvez rudimento de flagelo, não observado até hoje [...]”–fundamentava a hipótese de que se estava diante de nova espécie (Vianna, 1911, p. 411). A nota divulgada apenas em periódico brasileiro foi recebida com precaução. Leishmania braziliensis foi uma das muitas soluções aventadas para dar sentido às singularidades da leishmaniose cutânea e mucocutânea nas Américas. A ideia de uma espécie autóctone do protozoário ganhou força quando se verificou, nos anos 1920, que os mais prováveis transmissores eram flebotomíneos (Diptera: Psychodidae) que variavam de região para região. Influíram também os achados arqueológicos sobre as origens pré-colombianas da leishmaniose cutânea e mucocutânea, possivelmente representadas em antigos vasos de cerâmica, assim como a subsunção daquele debate médico a ideologias nacionalistas que redundavam em incremento do capital simbólico dos investigadores latino-americanos na rede científica internacional da medicina tropical (Jogas Junior, 2017b). Outro fator certamente contribuiu para dar projeção internacional a Gaspar Vianna, precocemente falecido às vésperas da Primeira Guerra Mundial: a descoberta de que o tártaro emético era eficaz no tratamento das leishmanioses, apesar de sua toxidez (Vianna, 1912). O uso desse antimonial rapidamente se disseminou na Europa e em suas colônias. A hegemonia da Leishmania braziliensis como agente de todas as formas de leishmaniose cutânea e mucocutânea nas Américas, sacramentada nos anos 1930 com o conceito de leishmaniose tegumentar americana, seria quebrada nos anos 1960-1970, ao se verificar que as populações de parasitos, com seus respectivos vetores e hospedeiros vertebrados, era muito mais heterogênea do que se imaginava (Lainson, 2010).
A nosso ver, as evidências que fundamentaram a teoria de Evandro Chagas sobre a leishmaniose visceral americana se devem em larga medida ao fato de suas pesquisas se terem concentrado na Amazônia, onde a leishmaniose visceral é ainda hoje residual, o que, por sua vez, tem relação com a circunstância de terem sido bem-sucedidas somente lá as articulações políticas do filho de Carlos Chagas que resultaram na criação, em Belém do Pará, do Instituto de Patologia do Norte (IPEN) para abrigar seus estudos7.
EVANDRO CHAGAS E SUA EQUIPE NO PARÁ E DE NOVO NO NORDESTE
Em dezembro de 1936, Evandro Chagas e jovens médicos recrutados na capital paraense fizeram a primeira viagem a Abaeté (atual Abaetetuba), e subiram o rio de mesmo nome, pois de suas cabeceiras provinham registros de óbitos por leishmaniose obtidos por viscerotomia. Em um lugarejo chamado Piratuba, encontraram os primeiros casos vivos de leishmaniose visceral da região amazônica. Ela seria encontrada em três outros municípios do Pará: Marapanim e Soure, no litoral, por viscerotomia, e Moju, por investigação clínica.
Os casos aí observados corroboravam a ideia de que a leishmaniose visceral americana não ocorria nem em cidades, nem em várzeas, isto é, em zonas com grandes vias aquáticas e terrenos alagados, e sim em terra firme, zonas de mata com terreno seco e alta concentração de mamíferos silvestres (Gualandi, 2013).
Foram encontrados no Pará alguns cães e um gato naturalmente infectados. Em um roedor silvestre (sauiá ou Phyllomys sp.), foram observadas granulações que sugeriam Leishmania, mas não se conseguiu ir além das suspeitas. Além de numerosas inoculações em animais silvestres, domésticos e de laboratório com materiais oriundos de pacientes humanos, a equipe de Evandro Chagas buscou o inseto vetor. Os principais suspeitos eram os flebótomos, e as espécies mais frequentes nas áreas de estudo, dentro das casas e em seus arredores, eram o Phlebotomus longipalpis e o Phlebotomus intermedius (atualmente classificados como Lutzomyia longipalpis e Nyssomyia (Lutzomyia) intermedia). Esses insetos eram capazes de manter os protozoários em seu trato digestivo, já que ambos eram infectáveis usando-se animais com Leishmania, mas seu papel na transmissão da doença não foi demonstrado conclusivamente (Ferreira et al., 1938; Paraense; Chagas, A., 1940; Chagas, A., 1939).
Em meados de 1938, Evandro Chagas voltou novamente ao Nordeste, mas seu plano de trabalho foi ‘capturado’ por gravíssima epidemia de malária que lá grassava, em decorrência da importação de um perigoso vetor africano, o Anopheles gambiae (Anaya, 2016; Soper; Wilson, 2011)8. No começo daquele ano, a Comissão Encarregada do Estudo da Leishmaniose Visceral Americana, que Evandro Chagas chefiava, fora transformada em Serviço de Estudos de Grandes Endemias (SEGE), com a missão de investigar em todo o país não apenas a leishmaniose visceral, mas também outras endemias rurais, que passavam a constituir alvos importantes para o governo de Getúlio Vargas (Barreto, 2012).
Em 1940, o Ministério da Educação e Saúde incumbiu Evandro Chagas de investigar a malária na Amazônia, uma vez que a campanha contra o Anopheles gambiae e a malária no Nordeste já conseguira ‘limpar’ extensas áreas (Andrade; Hochman, 2007; Andrade, 2007). O Serviço de Febre Amarela dava prosseguimento, em ritmo intenso, tanto à campanha para erradicar o Aedes aegypti nos centros urbanos como à vacinação em massa nas zonas rurais e florestais, onde grassava a febre amarela silvestre (Benchimol, 2001). Em 1941, foram criados outros serviços nacionais, entre eles o Serviço Nacional de Malária. Trabalhando em conjunto com as Delegacias Federais de Saúde, recém-criadas, e com os governos estaduais, aumentariam consideravelmente a presença do Estado no território brasileiro (Hochman, 2001).
Evandro Chagas, porém, não viveu para ver essas mudanças. Em 8 de novembro de 1940, aos 35 anos, morreu em um desastre de avião, na baía de Guanabara, em uma de suas inúmeras idas e vindas do campo ao Rio de Janeiro. O instituto criado em Belém recebeu o nome de Instituto Evandro Chagas, e a chefia do Serviço de Estudo das Grande Endemias foi entregue–até sua extinção, em 1942–ao irmão mais novo, Carlos Chagas Filho.
LEISHMANIOSES E OUTRAS ENDEMIAS RURAIS NOS ANOS 1940 E 1950
Estava em curso a Segunda Guerra Mundial, e o governo brasileiro, depois de muita duplicidade, rompeu relações com Itália, Japão e Alemanha, em janeiro de 1942, e declarou guerra a esses países em agosto. Aos norte-americanos interessava aumentar a produção de matérias-primas de importância estratégica para a guerra, especialmente a borracha. Assim, os acordos político-militares assinados entre Washington e o governo brasileiro em maio de 1942 deram origem, naquele mesmo ano, ao Serviço Especial de Saúde Pública (SESP). Incorporado ao SESP, o Instituto Evandro Chagas dedicou-se sobretudo à malária, mas executou extenso inquérito sobre a fauna de flebótomos ao longo do rio Amazonas (1944-1949), que revelou a existência de muitas espécies possivelmente relacionadas à transmissão da ferida brava (leishmaniose cutânea ou mucocutânea), as formas da doença dominantes na região9.
Houve desaceleração nos estudos sobre a leishmaniose visceral após a morte de Evandro Chagas, o que contrasta com o número muito expressivo de trabalhos a respeito da leishmaniose tegumentar americana, sobretudo depois que teve início, em 1939, o primeiro grande inquérito epidemiológico sobre essa doença abrangendo São Paulo e o cone sul do continente sul-americano. A iniciativa foi de Samuel Barnsley Pessoa, chefe do Departamento de Parasitologia, da Faculdade de Medicina, da Universidade de São Paulo, que, com seu assistente Mauro Pereira Barreto, publicaria, em 1948, “Leishmaniose tegumentar americana”, ainda hoje importantíssima obra de referência sobre o assunto (Pessoa; Barreto, 1948).
Naqueles anos, o nacionalismo desenvolvimentista era abraçado por muitos professores e investigadores nas escolas médicas tradicionais ou naquelas recentemente criadas em diversas partes do Brasil, assim como pelos sanitaristas que encontravam promissoras perspectivas profissionais nos serviços e órgãos de saúde criados nos planos federal, estadual e municipal. Personagem-chave nesse enredo político-sanitário-ideológico foi Mário Pinotti, graças à habilidade em interligar as aspirações de sua geração ao jogo político-partidário em curso no país (Silva; Hochman, 2011). Pinotti comandou o Serviço Nacional de Malária (SNM) durante 14 anos, boa parte deles naquela conjuntura do pós-guerra em que se foi armando a Guerra Fria, caracterizada também por grande otimismo no tocante ao controle de doenças, graças às novas descobertas da ciência: inseticidas de ação residual, antimaláricos, sulfas e antibióticos, novas tecnologias vacínicas e diagnósticas.
Em 1945, na cidade de Breves, no Pará, ocorreram as primeiras dedetizações domiciliares no Brasil. O combate químico ao vetor da malária foi combinado ao uso terapêutico e profilático da cloroquina, incluindo a distribuição do sal de cozinha cloroquinado, ideia inspirada na mistura do iodo ao sal de cozinha para combater o bócio endêmico10.
Educação e saúde, unidas em 1930 em um mesmo ministério, separaram-se em 1953, durante o segundo governo de Getúlio Vargas. Mário Pinotti assumiu a chefia do Ministério da Saúde em julho de 1954, mas o suicídio de Vargas no mês seguinte e as turbulências políticas subsequentes não lhe deram condições para fazer muita coisa. Pinotti dirigiu a equipe responsável pela formulação do programa de saúde do sucessor de Vargas, Juscelino Kubitschek (JK), cujas promessas desenvolvimentistas foram bem sintetizadas no slogan da campanha: “50 anos de progresso em 5 de governo” (Hochman, 2009).
Esperavam-se melhorias nas condições de vida dos trabalhadores rurais com a erradicação ou o controle de doenças endêmicas no interior do país segundo estratégias específicas, que variavam conforme as peculiaridades biológicas e sociais dessas doenças e a disponibilidade de medicamento, vacina e outras técnicas para seu controle. Influíam também as prioridades estabelecidas em uma conjuntura em que as agências internacionais de saúde passavam a desempenhar papel cada vez mais importante nas decisões dos governos do Brasil e de outros países.
JK tomou posse em janeiro de 1956 e, logo em seguida, Pinotti foi nomeado diretor do Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERu), que substituiu os serviços nacionais por novas estruturas, igualmente verticalizadas. Atuariam, porém, de forma mais entrosada em 25 circunscrições, correspondentes aos estados, aos territórios e à capital do país, o chamado Distrito Federal, que até 1960 foi o município do Rio de Janeiro, transferindo-se então para a nova capital, Brasília, construída no planalto central.
LEISHMANIOSES NO NORDESTE DO BRASIL
“A leishmaniose, quer a tegumentar, quer a visceral, constitui um problema de relevância para o Nordeste, se bem que não seja pelo elevado número de casos [...]”, declarou o médico incumbido de relatar o tema “Endemias do Nordeste Brasileiro” em um Congresso Médico do Nordeste Brasileiro realizado em Fortaleza, em julho de 1953 (Alencar, 1953), Joaquim Eduardo Alencar, um dos fundadores, em 1947, da Faculdade de Medicina do Ceará, onde ensinava parasitologia.
O Congresso e o tema em discussão revelam a densidade que vinha adquirindo o campo médico na região e os estudos sobre as doenças do Nordeste feitos por médicos locais, em colaboração cada vez mais frequente com investigadores de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Em seu relatório, Joaquim Eduardo Alencar deu ênfase a helmintoses, amebíase, bouba, tracoma, doença de chagas e leishmanioses, que eram mal conhecidas ainda, objetos de trabalhos esparsos, com poucos dados sobre poucos lugares – à exceção das helmintoses, que tinham sido alvo de vasto inquérito epidemiológico, o primeiro de abrangência nacional, coordenado por Amilcar Barca Pellon, diretor da Divisão de Organização Sanitária, e Isnard Teixeira, sanitarista ligado a esse órgão do Ministério da Educação e Saúde. O Inquérito Helmintológico Escolar, concluído em 1953, abrangera 615.000 escolares de sete a 14 anos de idade e encontrara prevalência média de 7,26% para esquistossomose e de 46,1% para a ancilostomíase (Pellon; Teixeira, 1953).
Quanto às leishmanioses, o que tinha a dizer o relator do Congresso Médico do Nordeste? Que eram pouco estudadas e que não se tinham elementos adequados para as combater, em virtude das incertezas no tocante à epidemiologia, aos hospedeiros e aos vetores, ao diagnóstico e ao tratamento das formas visceral e tegumentar.
Esta última, como vimos, era mais conhecida, pois, desde a década de 1910, fora encontrada em canteiros de obras de ferrovias e em empreendimentos agropecuários e extrativistas que adentravam zonas de florestas, e graças a médicos – especialmente dermatologistas – que atendiam em hospitais das cidades maiores pacientes vindos das zonas rurais do país. Os postos de saúde criados em zonas interioranas, nos anos 1920 e principalmente a partir dos anos 1930, desempenharam papel importante no número crescente de diagnósticos da leishmaniose tegumentar11.
Em gritante contraste com esses números, os casos in vivo de leishmaniose visceral eram poucos, e assim se mantinha de pé a noção estabelecida por Evandro Chagas de que era doença rara e esporádica. Em quatro décadas, 34 casos de leishmaniose visceral americana tinham sido reconhecidos em pacientes vivos, a maior parte no Pará e na Bahia (Deane, M.; Deane, L., 1955). As viscerotomias apontavam 314 óbitos, mais disseminados de 1934 a 1950. No continente americano, apenas 35 casos tinham sido descritos nesse período12.
Em 1953, entretanto, irrompeu uma epidemia no norte do Ceará, a primeira documentada nas Américas, que alterou drasticamente as representações da leishmaniose visceral. Em apenas cinco anos (1953 a 1957), o total de casos in vivo no Brasil saltou de 34 para 1.832, 81,38% dos quais no Ceará. No continente americano, o total de casos subiu para 2.179 (1.840 em vida e 339 post-mortem), porém mais de 98% desse total (2.145 casos) pertenciam ao Nordeste do Brasil (Deane, L., 1958).
A EPIDEMIA NO CEARÁ: NOVA ABORDAGEM PARA A LEISHMANIOSE VISCERAL NO BRASIL
No cerne da caatinga, Sobral vinha sofrendo os efeitos de uma seca devastadora. Centenas de famílias flageladas afluíam aos arrabaldes dessa cidade, conhecida também como Princesa do Norte, à procura de teto, trabalho e comida. A maioria acabava seguindo viagem em busca de salvação em paragens longínquas do Maranhão, da Amazônia, de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Na imprensa, entre os médicos e no seio do povo fala-se muito agora em calazar. Investigações feitas então, entretanto, mostraram que passava despercebido há muito tempo. Por volta de 1935, teria dizimado quase toda a população de menos de cinco anos de vários povoados, segundo relatos de seus habitantes. Os clínicos da região confirmaram: há muitos anos vinham observando infecção de natureza desconhecida e que só agora identificavam. A epidemia de 1953 mostrou, assim, que o pequeno número de diagnósticos feitos anteriormente, em vez de traduzir a raridade da doença, era consequência da falta de assistência médica à população rural e do desconhecimento dos médicos que atuavam no interior.
Nos registros sobre a epidemia, percebe-se quão importantes foram as polias de transmissão que passaram a interligar esses médicos àquelas estruturas verticalizadas em operação na área da saúde. Um clínico de Sobral (dr. Thomaz Corrêa Aragão) alertou o delegado federal da Criança, por ocasião de uma de suas visitas ao Posto de Puericultura da cidade, para onde foram então médicos dessa Delegacia, da Delegacia Federal de Saúde e do Departamento Estadual da Criança. Essa comissão examinou 11 crianças com diagnóstico de calazar (todas tratadas com Glucantime). Samuel Pessoa foi a Sobral e declarou em seguida aos jornais: “Nunca, no Brasil, houve uma área assim tão restrita com tão grande concentração de doentes” (Impressionado..., 1953, p. 2). Foi, então, instituída a Campanha contra a Leishmaniose Visceral no Ceará, sob a chefia do já citado Joaquim Eduardo de Alencar. Quando Samuel Pessoa regressou a São Paulo, determinou que dois de seus assistentes – Leônidas Deane e sua mulher, Maria Paumgartten Deane –, ex-integrantes da equipe de Evandro Chagas, fossem o quanto antes para o Ceará.
Leônidas fez uma viagem prévia a Sobral, em outubro de 1953, e pediu a caboclos da região que capturassem animais silvestres. Quando o casal Deane chegou a Sobral, em dezembro, havia uma raposa (Lycalopex vetulus) à sua espera. Estava repleta de Leishmania (Deane, L.; Deane, M., 1954b)13. Se esse achado corroborava o reservatório silvestre que Evandro Chagas tinha buscado com tanto empenho para fundamentar a especificidade e a autoctonia da leishmaniose visceral americana e seu agente, a Leishmania chagasi, as demais observações feitas no Ceará abalaram seriamente aspectos fundamentais da teoria proposta por ele nos anos 1930. Tinha-se agora uma doença que independia das matas; podia ocorrer em zonas urbanas e mesmo nas zonas rurais, onde era predominante, tinha caráter ‘focal’. A transmissão urbana foi comprovada por doentes que aí se infectavam e sobretudo por inquérito entre os cães, que revelou muitas infecções adquiridas nas cidades.
As investigações concentraram-se em quatro municípios de onde vinha a maioria dos casos: Sobral, Massapê, Viçosa do Ceará e Tianguá. Abrangiam duas zonas com características ambientais diversas: o ‘sertão’, planície quente e seca, com vegetação escassa, sujeita a secas periódicas; e as ‘serras’, onde o clima era ameno, a vegetação rica e as chuvas abundantes14. A população dos quatro municípios era de 150.782 habitantes, dos quais três quartas partes residiam em zona rural, e o restante, em povoados ou sedes municipais, sendo a mais populosa Sobral, então com cerca de 24.500 habitantes.
A distribuição dos casos rurais, majoritários, apresentava nítida concentração em áreas que o povo chamava de ‘boqueirões’ e ‘pés de serra’, vales estreitos entre serras ou no sopé delas. Embora fossem habitados por cerca de 10% da população rural, forneceram 63,5% dos casos, que, nesses locais, podiam ser relacionados com outros anteriores, ou com a presença de leishmaniose canina. Os Deane sempre obtinham “[...] informações sobre a morte de várias pessoas em cada família, às vezes, de todos os filhos de um casal, atingidos sucessivamente pela mesma doença, nos anos anteriores” (Deane, M.; Deane, L., 1955). Já no sertão e nas serras, a frequência da infecção era baixa, e os casos, esparsos e esporádicos.
O grupo etário mais atingido era o de zero a nove anos. Os surtos epidêmicos pareciam ter relação com o aumento cíclico no número de suscetíveis, sobretudo na população infantil, não imune, e com as secas periódicas, que diminuíam a resistência da população.
Leônidas e Maria Deane não classificavam mais como Leishmania chagasi o parasita, ainda que utilizassem, vez por outra, o conceito de calazar americano, mas despojado da ideia de uma doença à parte, originária do continente americano. Renomados protozoologistas eram céticos quanto à existência de diferentes espécies de Leishmania. Para o britânico Charles Morley Wenyon e o brasileiro Carlos Chagas, por exemplo, a leishmaniose cutânea apresentava diferentes formas em diferentes regiões, devido às características ambientais de cada uma. As manifestações do calazar tampouco justificavam a existência de espécies distintas de Leishmania. O calazar do Mediterrâneo afetava majoritariamente crianças e estava relacionado à leishmaniose canina. Já o da Índia afetava sobretudo adultos e parecia não ter relação com cães. Como não se conseguia distinguir morfologicamente os parasitos, Wenyon considerava que havia somente duas espécies patogênicas para o homem: L. tropica (leishmaniose cutânea) e L. donovani (calazar).
Para os Deane, a pronunciada ação patogênica da Leishmania para a raposa, que podia morrer da infecção, não se coadunava com um parasitismo secular, que teria resultado em relativo equilíbrio entre parasita e hospedeiro. Admitiam, assim, a hipótese de ter sido o calazar americano importado do Velho Mundo por intermédio de cães ou indivíduos parasitados15.
Leônidas e Maria Deane tentaram, sem sucesso, infectar gatos ou encontrar algum infectado. De concreto, verificaram que três mamíferos – homem, cão e raposa – infectavam-se naturalmente pela L. donovani e podiam servir de fonte de infecção para o inseto transmissor. Dezenas de espécies tinham sido descritas no Nordeste. Os Deane encontraram em todas as localidades em que ocorria a doença o P. longipalpis, que os nativos chamavam de asas-duras ou arrupiados, e quantificaram essa coincidência mediante engenhosos métodos de pesquisa. Fizeram grande número de capturas dentro de habitações humanas, de abrigos de animais domésticos e ao ar livre, com diferentes iscas e em diferentes horários. Foram capturados e identificados 117.981 flebótomos de 12 espécies diferentes: Phlebotomus longipalpis (hoje Lutzomyia longipalpis) correspondeu a 97% desse total, verificando-se que era muito mais abundante nas zonas de calazar endemo-epidêmico do que naquelas em que era esporádico. Era com frequência o único díptero hematófago encontrado dentro das casas, mas apresentava antropofilia apenas relativa, pois capturas feitas ao ar livre rendiam número mais elevado do que as domiciliárias.
A área endêmica logo foi alargada por investigações feitas por Joaquim Eduardo Alencar e outros médicos do Nordeste e do Norte, em regiões com características ambientais diferentes. Os boqueirões e pés de serra deram lugar a vales úmidos de rios, cenário mais próximo daquele frequentado por Evandro Chagas: inicialmente o vale do rio Jaguaribe, depois as margens do rio Piancó na Paraíba (Alencar et al., 1956; Alencar, 1962).
E como foi combatida a doença? Em 1947, começara a utilização em larga escala do Dicloro-Difenil-Tricloroetano (DDT) visando à malária no estado do Rio de Janeiro. Como na Índia e em outras partes do mundo, a campanha contra a leishmaniose visceral adotou a dedetização domiciliária no Nordeste do Brasil. Um estudo feito pelos Deane e por Alencar foi importante para a calibragem do combate ao Phlebotomus longipalpis: o DDT devia ser aplicado no mínimo uma vez por ano nas paredes internas e externas das casas, até três metros de altura, e nos abrigos de animais domésticos (Deane, L. et al., 1955). Os flebótomos praticamente desapareciam das casas tratadas. Nos abrigos de animais domésticos, a ação do inseticida durava menos. Ao ar livre, a densidade de flebótomos não era afetada. A experiência mostrou que a transmissão intradomiciliária do calazar poderia ser muito reduzida, fato relevante considerando-se que o P. longipalpis sugava mais à noite, quando a população humana estava recolhida às casas. A transmissão extradomiciliária era o ‘calcanhar de Aquiles’ daquela estratégia profilática. Medidas antilarvárias tão importantes na febre amarela e malária não eram aplicáveis ao calazar. Larvas e pupas de P. longipalpis tinham sido encontradas na terra, ao pé de árvores, não em ambientes aquáticos. Seus criadouros ainda eram, na verdade, mal conhecidos.
Pelo menos até 1960, o uso do inseticida no Ceará continuou a ter caráter experimental, já que foi aplicado em um grupo de 14 municípios, mas em outro não. Foram dedetizadas 3.935 localidades. O calazar fora assinalado em 271; apenas 11 dessas localidades apresentavam a doença em 1960. Sua incidência foi zerada em quatro municípios. Naqueles não dedetizados, os casos aumentaram (Alencar, 1961).
As dedetizações eram feitas pelo Serviço Nacional de Malária, ficando, assim, a reboque da profilaxia dessa doença. As turmas do Serviço agiam em função dos hábitos dos Anopheles, vetores da malária, que não eram os mesmos do Phlebotomus longipalpis, o que levaria Alencar (1961, p. 178) a escrever: “[...] a dedetização não foi feita na medida do que era necessária, nem também o foi na época aconselhável, aquela que antecede a queda das chuvas, após as quais a densidade de flebótomos aumenta e com isso o contágio se intensifica”.
Esse era, contudo, apenas um aspecto da campanha, que envolveu também a descoberta e o tratamento dos casos humanos, e a descoberta e a eliminação dos casos caninos.
À luz dos valores atuais da ética animal, é chocante o número de cães eliminados ao longo de oito anos de campanha: de 279.423 animais examinados, 78.929 foram abatidos (28,24%), não obstante apenas 3.712 (1,32% do total) fossem dados como positivos (Alencar, 1961). As técnicas para o diagnóstico parasitológico eram consideradas incertas. Cabe mencionar que os veterinários iriam adquirir na leishmaniose visceral posição tão importante quanto a dos dermatologistas na leishmaniose cutânea e mucocutânea.
Os trabalhos dos Deane e de outros investigadores ressaltavam a importância de um fator ‘coadjuvante’ (para Samuel Pessoa, ligado ao Partido Comunista, determinante16) da epidemiologia da leishmaniose visceral: as condições socioeconômicas e a pobreza dos trabalhadores rurais. Atribui-se a Alencar um comentário muito significativo: ‘A leishmaniose é uma doença de cães e daqueles que levam uma vida de cão’. Por isso, a profilaxia devia incluir a melhoria das condições de vida das populações atingidas. Não havia dúvida de que as variações anuais e regionais da morbidade e mortalidade pela doença estavam ligadas “[...] aos infortúnios sociais [...]” (Alencar, 1959b, p. 19-20), mas, na prática, as ações concernentes às populações humanas limitaram-se ao tratamento sistemático com os antimoniais pentavalentes então disponíveis, fornecidos gratuitamente a hospitais e postos da Campanha17.
Mostramos que até finais de 1957 tinham sido diagnosticados no continente americano 2.179 casos de calazar, mais de 98% deles no Nordeste brasileiro, sem contar os óbitos identificados pelas viscerotomias do Serviço de Febre Amarela18. Depois do Ceará, os estados mais atingidos eram Bahia e Piauí. A doença fora detectada em uma faixa próxima ao litoral, desde o Pará até a Bahia, e nos estados centrais de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Aparentemente não ocorria nos estados do Sul (ideia mais tarde desmentida).
Em julho de 1958, Mário Pinotti tomou posse como ministro de Saúde de Juscelino Kubitschek e prometeu eliminar cinco endemias devastadoras: a bouba, a doença de chagas, o bócio, o tracoma e a leishmaniose (Ministro..., 1958). Naquele mesmo ano, a XV Conferência Sanitária Pan-Americana, realizada em Porto Rico, aprovou resolução declarando livre do Aedes aegypti, o vetor da febre amarela urbana, o Brasil, a zona do Canal do Panamá e outros nove países (Franco, 1969). Ainda em 1958, o Brasil engajou-se oficialmente na campanha mundial de erradicação da malária.
Ao mesmo tempo em que se disseminavam pelo país as ações contra as leishmanioses e outras endemias, a campanha formalmente constituída no Ceará em 1953 deixou de existir. Em 1962, o DNERu firmou com o Instituto de Medicina Preventiva, criado por Alencar na Universidade Federal do Ceará, um convênio que contemplava investigações sobre a leishmaniose visceral, assistência hospitalar a doentes e treinamento de profissionais para trabalhar com essa endemia no Nordeste (Seidl, 1962). Alencar liderou um inquérito em Santarém, no estado do Pará (Alencar et al., 1962): era a primeira vez que se encontrava o calazar naquele município, o que abria a possibilidade de penetração da doença no estado do Amazonas, onde não fora encontrada ainda. O inquérito mostrava que a emigração de nordestinos para o Norte e para outras regiões do país podia estar na origem de novos e insuspeitados focos.
Os estudos de médicos do Nordeste e do Norte; de Samuel Pessoa e seus assistentes na Faculdade de Medicina, da USP; e os estudos envolvendo colaborações entre o grupo de São Paulo e pesquisadores da Bahia, de Minas Gerais, do Ceará e do Pará tinham mostrado que a leishmaniose visceral era um problema sanitário grave no Nordeste e que a emigração originária de lá aumentava sua importância em outras regiões do Brasil. Isso teve duas significativas consequências: aumentou o número de diagnósticos feitos tanto por médicos interioranos como das grandes cidades, para onde migravam contingentes cada vez maiores de trabalhadores rurais nordestinos. Por outro lado, aumentou a consciência de que a identificação de casos isolados devia ser seguida de investigações mais sistemáticas, já que era provável sua ligação com focos autóctones e novas áreas de leishmaniose visceral endêmica.
A passagem das descrições clínicas isoladas aos inquéritos epidemiológicos foi viabilizada pela transformação nos aparatos de saúde pública em níveis federal e estadual e pelo adensamento da malha institucional capaz de abrigar os estudos sobre as leishmanioses. Os departamentos de parasitologia das faculdades de medicina de São Paulo e Ribeirão Preto (criada também em 1947) e o Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, eram os principais polos dessa rede. Dela faziam parte o Instituto de Medicina Preventiva do Ceará, o Instituto Evandro Chagas, o SESP e três centros de pesquisa criados em finais dos anos 1950 por um importante órgão do Departamento Nacional de Endemias Rurais, o Instituto Nacional de Endemias Rurais (INERu): o Núcleo de Pesquisas da Bahia (depois chamado Centro de Pesquisa Gonçalo Moniz); o Centro de Pesquisas de Belo Horizonte (que passaria a se chamar Centro de Pesquisas René Rachou); e o Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, em Recife, originário de iniciativas de Evandro Chagas, e que já desenvolvia importantes pesquisas sobre a esquistossomose. Os trabalhos feitos aí envolviam estreita cooperação com as universidades de Pernambuco, Bahia e Minas Gerais.
Um evento pode ser tomado como marco na consolidação dessa rede de pesquisas: a Jornada sobre Calazar, realizada em Salvador em novembro de 1960 (Notas..., 1960a, 1960b, 1960c). Quase todos os especialistas interessados nessa endemia (mas que trabalhavam também com outras doenças endêmicas) lá se reuniram pela primeira vez. E em 12 de novembro, primeiro dia da Jornada, decidiram fundar a Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (Notas..., 1960d). Não deixa de ser intrigante que fosse a leishmaniose visceral a alavanca desse relevante episódio da institucionalização – ou, melhor, revalorização – da medicina tropical, e não a malária, doença de Chagas ou esquistossomose, que tinham prioridade nas agendas das instituições de pesquisa e dos órgãos da saúde pública.
CONCLUSÕES
A leishmaniose visceral foi controlada no Brasil, mas apenas momentaneamente. Hoje, apresenta elevada incidência e vasta distribuição, adquirindo formas graves e letais quando associada à má nutrição e a infecções concomitantes, como a Aids.
Grandes empreendimentos no interior do país após o golpe civil-militar de 1964 contribuíram para a transformação das leishmanioses cutânea e mucocutânea em um problema grave na região amazônica19. Na verdade, no final do século XX, no Brasil e em outros países, todas as formas de leishmaniose que pareciam sob controle reemergiram em zonas rurais e urbanas e irromperam em áreas consideradas livres desse complexo de doenças endemoepidêmicas devido a mudanças ambientais, migrações humanas, crescimento urbano caótico e outros processos socioeconômicos incidentes sobre largas porções dos territórios desses países. Desde então, observa-se notável incremento na cooperação internacional no tocante às leishmanioses.
No Brasil, a progressiva urbanização das leishmanioses nas últimas décadas colocou em questão as estratégias adotadas para seu controle no período ‘otimista’ que examinamos. Muitas incertezas (antigas ou novas) pairam ainda sobre os mecanismos de transmissão, as técnicas diagnósticas, o tratamento e a prevenção das leishmanioses. Elas são classificadas como doenças tropicais negligenciadas, as únicas ainda em crescimento; e, embora esse complexo de doenças seja de fato negligenciado pelas políticas públicas e afete populações também negligenciadas, mobiliza uma das mais pujantes comunidades de pesquisa no Brasil.
Novos paradigmas, especialmente a biologia molecular, mudaram a maneira de ver as leishmanioses, dando-lhes complexidade bem maior do que tinham na época que acabamos de analisar. A extrema especialização dos profissionais que lidam com essas doenças tropicais parece ter como contrapartida, com raras exceções, uma inabilidade para perceber o problema holisticamente, como fazia a geração multivalente de Samuel Pessoa, Leônidas Deane e Joaquim Alencar, bem mais sensível aos determinantes sociais e ambientais das leishmanioses e de outras doenças endêmicas. E isso acontece porque a doença é também um evento cultural que depende de categorias de pensamento e constructos verbais específicos a uma geração, os quais refletem a história do campo médico e da sociedade que o engloba.
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Sobre a campanha contra a febre amarela no Brasil, ver Löwy (2001), Benchimol (2001) e Cueto (1996).
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Sobre os estudos de Evandro Chagas a respeito da leishmaniose visceral, a principal referência é Gualandi (2013). Informações importantes encontram-se também em Deane, L. (1986).
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Sobre as relações desse empresário e filantropo com Carlos Chagas e outros cientistas brasileiros, ver Sanglard (2008). A relação de Evandro Chagas com esse e outros patrocinadores privados e públicos de suas atividades é analisada por Barreto (2012).
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Sobre as pesquisas desenvolvidas por Evandro Chagas e sua equipe no âmbito do Instituto de Patologia Experimental do Norte (IPEN) e do Serviço de Estudos de Grandes Endemias (SEGE/IOC) e seu impacto na agenda da saúde pública brasileira, ver Barreto (2012).
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Ao se deparar com o primeiro caso vivo de leishmaniose visceral em Sergipe, Evandro Chagas pagou à família para que fosse enviado para o Hospital do Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. A informação é endossada, entre outros, por Deane, L. (1994, p. 155). Segundo Barreto (2012, p. 108), a prática seria repetida.
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Sobre essa questão, ver Gualandi (2013), Barreto (2012) e Deane, L. (1986).
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Encontra-se boa análise sobre a atuação de Evandro Chagas na campanha contra o Anopheles gambiae em Barreto (2012).
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Às margens do rio Amazonas, de Belém à fronteira Brasil-Peru, Reinaldo G. Damasceno, Ottis R. Causey e Arouk identificaram 64 espécies, 21 novas para a ciência.
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O chamado ‘método Pinotti’ teve considerável repercussão internacional e foi incorporado ao arsenal do programa de erradicação da malária, preconizado pela OMS a partir de 1955 (Silva; Hochman, 2011).
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Dados valiosos sobre o Ceará encontram-se em Sousa (2009). Esse médico cearense publicou, com Richard Pearson, um artigo excelente analisando a circulação da varíola e da leishmaniose cutânea entre Nordeste e Amazônia, associada ao intenso fluxo e refluxo de migrantes nordestinos provocado pela ascensão e decadência da economia da borracha no Norte do Brasil (Sousa; Pearson, 2009).
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O total de casos registrados eleva-se a 48 ou, talvez, 51, se forem considerados outros estudos relacionados por Deane, L. (1958). Os dados encontram-se em Alencar (1959a; 1959b), Deane, L. (1956, 1958). Os casos descobertos nos Estados Unidos eram importados, exceto um, contaminado acidentalmente em laboratório (Benedek, 1940, 1941).
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Imaginaram que tinham sido os primeiros a encontrar um animal silvestre com leishmaniose visceral, mas logo souberam que três russos tinham acabado de verificar na Ásia Central (Tadjiquistão) que o chacal (Canis aureus) também desempenhava esse papel (Latyshev et al., 1951). Esse e outros artigos sobre leishmaniose foram resenhados pelo parasitologista britânico Hoare (1954).
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Nos municípios de Sobral e Massapê predominava o sertão, mas elevavam-se aí as pequenas serras de Rosário e Meruoca; Viçosa do Ceará e Tianguá situavam-se, em grande parte, na serra de Ibiapaba. Os estudos produzidos por Leônidas e Maria Deane trataram de cães naturalmente infectados por Leishmania donovani (Deane, L.; Deane, M., 1954c); da biologia do Phlebotomus longipalpis (referido em Deane, M.; Deane, L., 1955); da leishmaniose visceral urbana (Deane, L.; Deane, M., 1955). Os estudos de Maria e Leônidas Deane versaram sobre infecção experimental de Phlebotomus longipalpis (Deane, M.; Deane, L, 1954b, 1954a); transmissão da leishmaniose visceral no Ceará (Deane, L.; Deane, M., 1955). Os Deane, em colaboração com Alencar, apresentaram comunicação sobre o tipo de região em que ocorreu leishmaniose visceral no Ceará (referida em Deane, L.; Deane, M., 1954a). Deane, L. (1956) apresentou sua tese de livre-docência à Universidade de São Paulo a respeito de leishmaniose visceral no Brasil. Alencar (1959b) também defendeu tese junto à Universidade do Ceará, sobre calazar canino.
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Para os Deane, existiam provavelmente outros reservatórios silvestres de L. donovani no continente americano. Ratos-de-espinho (Proechimyis semispinosus panamensis) tinham sido identificados no Panamá como portadores de parasitos indistinguíveis morfologicamente de L. brasiliensis, o agente da leishmaniose tegumentar. E no Quênia, em área endêmica de calazar, tinham conseguido infectar hamster pela inoculação de emulsão do baço de um esquilo (Xerus rutilus).
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16
Sobre as ideias de Pessoa relativas às doenças rurais endêmicas e às posições políticas mais engajadas, ver Hochman (2015).
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17
Foram utilizados sobretudo o antimoniato de N-metil glucamina, comercializado como Glucantime (Rhône-Poulenc-Rohrer) e o gluconato de antimônio sódico, conhecido comercialmente como Solustibosan (Bayer). Sobre essas e outras drogas empregadas nas leishmanioses, ver Rath et al. (2003).
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18
Trezentos e trinta casos foram diagnosticados pelo exame de amostras de fígado obtidas post mortem para pesquisa de febre amarela, entre cerca de 470 mil óbitos, representando a leishmaniose visceral, assim, 0,07% desse total (Deane, L., 1958).
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19
A esse respeito, ver Peixoto (2017) e Guerra et al. (2015).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Ago 2019 -
Data do Fascículo
May-Aug 2019
Histórico
-
Recebido
17 Dez 2018 -
Aceito
28 Fev 2019