Resumo
Circo se tornou um conteúdo inovador em programas de Educação Física (EF) pelo mundo. No Brasil, diferentes cursos de Formação de Professores de Educação Física (FPEF) implementaram essa arte no currículo de graduação oficial. Em abordagem qualitativa, analisamos as experiências de professores no ensino do circo em universidades brasileiras. Trinta participantes de 22 instituições de ensino superior responderam a um questionário e cinco participaram de entrevistas em profundidade. Os resultados confirmaram o circo como uma inovação pedagógica sustentável, contribuindo para a diversidade sociocultural, estética e técnica na EF. No entanto a abordagem dos docentes se concentra em habilidades básicas com pouca atenção à dimensão artística. Descobrimos também que a pedagogia do circo na EF oferece uma lógica criativa de jogar com o corpo e o movimento que integra expressão artística, habilidades e capacidades físicas. Concluímos que o circo pode auxiliar a EF em sua interação com a arte.
Palavras chave: Capacitação de professores; Educação superior; Arte; Currículo
Resumen
El circo se ha convertido en un contenido innovador en programas de Educación Física (EF) mundialmente. En Brasil, diferentes programas de Formación del Profesorado de Educación Física (FPEF) lo implementaron en el currículo oficial de grado. En carácter cualitativo, analizamos las experiencias de enseñanza del circo en universidades brasileñas. Treinta participantes de 22 instituciones respondieron a un cuestionario y cinco fueron seleccionados participando en entrevistas en profundidad. Los resultados confirman el circo como una innovación pedagógica sustentable para la FPEF contribuyendo para la diversidad sociocultural, estética y técnica. No obstante, el abordaje de los docentes se concentra en las habilidades básicas ofreciendo menor atención a su dimensión artística. Además, descubrimos que la pedagogia del circo ofrece una lógica creativa de jugar con el cuerpo y el movimiento que integra expressión artística a habilidades y condicionamiento físico. En conclusión, el circo pude auxiliar en la interacción entre EF y arte.
Palabras clave: Formación de profesorado; Educación Superior; Arte; Currículo
Abstract
Circus has become an innovative content for Physical Education (PE) programmes worldwide. In Brazil, various Physical Education Teacher Education (PETE) programs implemented circus instruction in their official undergraduate curricula. Based on a qualitative approach, we analysed professors’ experiences in teaching circus at Brazilian universities. Thirty participants from 22 higher education institutions answered a questionnaire and five of them were selected to respond an in-depth interview. The results confirmed that circus is a sustainable pedagogical innovation in PETE, which contributes to increase sociocultural, historical, aesthetic and technical diversity. However, professors’ approach focuses on basic skills with little regard to its artistic dimension. Furthermore, we found that circus pedagogy in PE may offer a creative logic to play with body and movement which integrates artistic expression to the development of physical ability and conditioning. We concluded that circus may help PE to enhance interaction with arts education.
Keywords: Teacher training; Higher Education; Art; Curriculum
1 INTRODUÇÃO
O circo é uma arte que ganhou popularidade na Educação Física (EF) ao longo dos últimos 30 anos (COASNE, 2013). Por muito tempo, o circo esteve presente em nossa sociedade como uma forma de entretenimento ao invés de uma prática acessível a todos. Isso mudou radicalmente com a recente emergência mundial de escolas de circo, que ampliaram o acesso ao seu legado e permitiram que aqueles de fora da “família circense” tivessem acesso a esses saberes (DUPRAT, 2014).
Antes, a formação em circo era principalmente transmitida de geração em geração pela via oral-familiar (ABREU; SILVA, 2009). Ao estabelecer um intercâmbio mais aberto com a sociedade, o circo contemporâneo ampliou sua presença do ensino fundamental ao superior (KRIELLAARS et al., 2019). Assim, essa recente difusão do circo promoveu um diálogo mais próximo com a EF (SIZORN, 2014).
Apesar de a EF interagir com o circo desde a segunda metade do século XIX, tanto na Europa quanto no Brasil (HAUFFE; GÓIS JUNIOR, 2014), somente nas últimas décadas o circo se tornou popular entre os professores de EF (PRICE, 2012; ONTAÑÓN; BORTOLETO; SILVA, 2013). Consequentemente, é necessário maior aprofundamento nas discussões sobre sua presença na Formação de Professores de Educação Física (FPEF) (MIRANDA; AYOUB, 2017).
A popularidade do circo entre educadores, incluindo os professores de EF, é perceptível em vários países (CHUNG, 2010). Pesquisas sobre a pedagogia do circo demonstraram interações produtivas entre arte e educação, devido à sua base na diversidade, e seus aspectos multiculturais e colaborativos (WALLON, 2002; COVEZ, 2012). A contribuição do circo para aprender sobre a gestão do risco (GOUDARD, 2010; LEGENDRE, 2016), para desenvolver resiliência e “alfabetização corporal” (KRIELLAARS et al., 2019) e para ação interdisciplinar estimula novas pesquisas sobre o tema (BOLTON, 2004).
Consideramos que o circo é uma inovação pedagógica devido a suas contribuições à EF não se limitarem a ampliar o repertório cultural e de técnicas corporais. A pedagogia do circo na EF oferece uma lógica criativa para explorar o corpo e o movimento, que integra expressão artística à descoberta da capacidade e habilidade física. Ou seja, o circo busca descobrir formas “extraordinárias” de se mover e pôr o corpo, suas capacidades e habilidades como protagonistas da poética no palco.
Os estudos sobre o circo estão expandindo e ganhando legitimidade na medida em que novas (e antigas) relações com a EF e a Educação são descobertas. O debate sobre a formação em circo na EF e seus produtos educacionais ainda está em desenvolvimento, mas, como mencionado, existem evidências significativas que indicam a sua relevância em cursos de EF.
Como as experimentações da FPEF parecem ter um papel importante na popularização dessa arte na universidade, este artigo se destina a descobrir como o circo é abordado por docentes no ensino superior brasileiro.
2 METODOLOGIA
2.1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A fundamentação teórica deste estudo compreende o circo como uma forma de arte na qual corpo e movimento são a essência do espetáculo. Concordamos com Goudard (2010) e Wallon (2002) e consideramos que a natureza artística do circo é baseada no jogo com o risco como um fundamento de sua expressão artística. O risco é um dos principais elementos poéticos que agrega potência artística à realização de habilidades e exibição de capacidade física. A representação simbólica do circo é composta pela superação de limitações do indivíduo (HOTIER, 2003; MCCUTCHEON, 2003) e pela apresentação da diversidade humana (BOLTON, 2004), seja em sua fragilidade (e.g. o palhaço), excentricidade (e.g. a contorcionista) ou proeza (e.g. o acrobata).
De outra forma, como Bolognesi (2001) comenta, há uma alternância entre o sublime e o grotesco. No primeiro, o(a) artista domina seu(ua) condição humana no voo, deslize e graça. No segundo, ele(a) é subjugado(a) pela realidade, expondo-se ao risco da queda, à iminência do erro ou à instabilidade de realizar habilidades difíceis. Então, a estética circense compõe um ambiente de subversão da normalidade ao criar um espaço próprio para o extraordinário. A singularidade dos “corpos circenses” põe no palco a diversidade do ser humano.
A conexão entre a fundamentação teórica e a metodologia da pesquisa está em questionar como o docente ensina circo na FPEF. Acreditamos que os elementos essenciais da natureza artística do circo têm um papel fundamental nos resultados educacionais encontrados na literatura.
O cenário dessa discussão são as expressões plurais da EF no Brasil. Por lei, é necessário um diploma de graduação em EF para atuar em escolas, treinamento esportivo, condicionamento físico/saúde e atividades de lazer. Existem mais de 1200 cursos de FPEF em um país com uma população de mais de 200 milhões de habitantes, com dimensão geográfica continental e grandes diferenças socioeconômicas (BRASIL, 2019). Isso descreve parcialmente a complexidade e os desafios para a formação de professores no país. Também aponta para a diversidade de soluções que docentes encontram para se adaptar a contextos regionais. O circo parece ser uma inovação pedagógica consistente, já que encontramos extensos argumentos sobre a sua inclusão e muitas perspectivas diferentes sobre como/por que trabalhar com essa arte na atuação em EF (MIRANDA; AYOUB, 2017).
2.2 PARTICIPANTES DO ESTUDO
Os participantes são professores universitários responsáveis por ensinar circo em cursos de graduação em EF. Para identificá-los, analisamos o currículo de centenas de cursos de FPEF, obrigados por lei a estarem disponíveis online. Além disso, contatamos todos os grupos de pesquisa que indicaram o circo como objeto de pesquisa, informação disponível no diretório oficial do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Também consultamos os autores de artigos, capítulos de livro e livros publicados no Brasil nos últimos dez anos nessa temática. Encerramos a coleta de dados apenas ao atingir exaustividade (FIFE-SCHAW, 2006).
Quarenta e dois professores foram selecionados, mas apenas 30 concordaram em participar respondendo a um questionário. A idade dos 30 participantes foi de 29 a 70 anos (37±10.8), com um a 40 anos de experiência na FPEF (8±7.7). Vinte e sete deles (90.5%) possuem diploma de graduação em EF. A maioria (n=22 73.3%) trabalha em instituições públicas localizadas no Sul e Sudeste do Brasil. Ambas as regiões (de um total de cinco) concentram mais de 70% dos cursos de FPEF (BRASIL, 2019), indicando coerência na amostragem.
Vinte e nove participantes (96.7%) abordam o circo em disciplinas curriculares da FPEF, mas apenas cinco deles (16.7%) conduzem disciplinas específicas sobre circo. Os participantes representam 22 instituições diferentes (25 campi diferentes), em que seis são instituições privadas e 19 são universidades públicas (seis estaduais e 13 federais).
Os cinco participantes de maior experiência (especialistas) foram selecionados para uma entrevista em profundidade (dois homens, três mulheres, idade 40±5.7) e ganharam os seguintes pseudônimos, reforçando suas contribuições singulares para este estudo e protegendo suas identidades: participante 5 é o Palhaço, 22 é o Malabarista, 1 é a Tecidista, 30 é a Contorcionista e 4 é o Acrobata. Dois deles trabalham em instituições privadas e os outros em instituições públicas.
O critério para ser considerado(a) especialista foi ter conduzido pesquisas aprofundadas sobre a pedagogia do circo, como dissertação de mestrado ou tese de doutorado, ou coordenar laboratórios de pesquisa. Também consideramos as experiências profissionais (palestras, cursos, projetos de pesquisa etc.), produções técnicas e acadêmicas (artigos, livros etc.) sobre o circo na EF. Sua compreensão sobre o circo também foi considerada, com base nos resultados do questionário.
A maioria dos outros participantes não se qualificou como especialista, porque eles abordavam o circo apenas como complemento para outras temáticas de pesquisa. Ainda assim, eles ofereceram muitas contribuições para compreender o modo como professores não especializados usam essa arte no ensino, extensão e pesquisa.
2.3 COLETA DE DADOS
Nós revisamos o currículo acadêmico de todos os participantes em potencial para confirmar sua experiência, disponível online no banco de dados do repositório brasileiro oficial (Plataforma Lattes).
Um questionário semiestruturado online foi adotado na primeira fase (SEBIRE; STANDAGE; VANSTEENKISTE, 2008). Consultamos cinco pesquisadores com doutorado, realizamos uma revisão linguística com especialista, e conduzimos um estudo piloto para qualificar a versão final do questionário.
A segunda fase do estudo foi composta de uma entrevista em profundidade (DENZIN; LINCOLN, 2011) com os especialistas selecionados. O roteiro foi composto por 14 questões divididas em cinco categorias temáticas (Quadro 1) (KRIPPENDORFF, 2014). O sistema de categorias foi construído para organizar todos os aspectos relatados pelos participantes, baseado em revisão de literatura, que incluiu Goudard (2010), Wallon (2002), Hotier (2003), Bolton (2004) e Bolognesi (2001). Também consideramos as recomendações sobre a prática educacional de Schön (1991).
2.4 ANÁLISE DE DADOS
Uma análise quali-quantitativa foi adotada (DENZIN; LINCOLN, 2011). A Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011) foi aplicada nos dados qualitativos do questionário e das entrevistas. Os dados quantitativos foram analisados por Estatística Descritiva (FIFE-SCHAW, 2006).
3 RESULTADOS
Os principais resultados foram organizados em cinco categorias temáticas para agrupar e sistematizar as declarações dos professores (Quadro 1). A maioria dos professores (83.3% n=25) defende o circo como disciplina da FPEF, já que essa arte traz contribuições relevantes para a EF. Vinte e um participantes (70%) destacaram que o circo está conectado com os desafios contemporâneos da EF. A cultura e história circense (n=22) e as suas habilidades básicas (n=11) foram os mais frequentes objetivos de aprendizado. Nove participantes (30%) mencionaram incluir a dimensão artística do circo.
Cinco professores (16.6%) implementaram o circo como uma alternativa ao currículo baseado em esportes, reconhecendo que esse é um conteúdo dominante na EF brasileira.
Acredito que o circo é um conteúdo a ser transformado e perpetuado nas aulas de Educação Física. Por isso é importante que o estudante tenha um contato inicial com essa arte. Além disso, o circo é uma manifestação da nossa cultura que, por seus inúmeros valores, pode contribuir para a superação do binômio Esporte/Educação Física nas aulas da Educação Básica. Trabalhando o circo na formação inicial, a universidade aumenta as possibilidades de formação e atuação deste acadêmico. Isso nos faz caminhar rumo a uma concepção de Educação Física mais ampla (PARTICIPANTE 27, questão 3.3, linha 1-5).
Nove professores (30%) destacaram a importância do circo para discutir a história da EF e para expandir a diversidade de práticas corporais. Os participantes também mencionaram que o circo representa um saber original e ancestral sobre expressão corporal, pois “contribui para a ontologia das reflexões e pensamento do ser humano sobre os exercícios/práticas corporais” (PARTICIPANTE 15, questão 3.3, linha 1). Outro participante disse:
As atividades circenses fazem parte de muitas sociedades humanas e da cultura de movimento, assim, estão diretamente ligadas aos saberes da EF (MALABARISTA, questão 3.3, linhas 2-6).
Entendo as atividades circenses como um conjunto de práticas historicamente elaboradas pela humanidade. Elas possibilitam a apreensão de elementos constitutivos da realidade humana como o conhecimento científico, estético, artístico e lúdico. Assim como a apreensão histórica de formas de organização da sociedade relacionadas a esta prática cultural humana (PARTICIPANTE 29, questão 3.3, linhas 1-6).
Nesse sentido, a principal motivação para incluir o circo na FPEF (21 participantes, 70%) é compreender o circo como um fenômeno sociocultural e a importância de seu legado para a EF contemporânea.
Eu acho que existe uma relação muito forte da Educação Física com a arte, muito mais do que com outras temáticas. O circo possibilita esse diálogo ou, pelo menos, ele antecipa esse diálogo com a cultura e com a arte. Eu acho que essa é uma grande sacada, é um grande plus na formação. E aí é o circo pelo circo, a arte pela arte (MALABARISTA, linhas 901-905)
Encontramos 156 registros sobre atividades acadêmicas a respeito de circo nos dados sobre o perfil educacional e profissional dos 30 participantes:
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- 97 (62.2%) comunicações em eventos científicos (congressos, seminários etc.);
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- 12 (7.7%) artigos publicados em periódicos científicos;
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- 40 (25.6%) orientações de pesquisas de estudantes;
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- Sete (4.5%) projetos de pesquisa próprios;
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- Quatro (13.3%) colaborações em projetos de pesquisa;
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- 12 (40%) projetos de extensão;
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- Cinco (16.6%) cursos e oficinas específicas.
A maioria dos participantes conduz estudos introdutórios sobre o circo para ampliar seu conhecimento. Eles participam de eventos científicos para compartilhar seus resultados. Os projetos de extensão são estratégias para treinamento profissional dos estudantes e para defender e promover a prática de circo para a comunidade interna e externa.
Todos os professores também relataram convidar profissionais de circo (artistas, treinadores, diretores etc.) para participar em suas atividades. Com frequência, eles utilizam visitas a espetáculos circenses e escolas de circo como imersão cultural com seus alunos.
Apenas seis instituições têm o circo como uma disciplina curricular nos cursos de FPEF, com 30-45 horas-aula, todas como disciplinas complementares (optativas). Outros 18 registros incluem o circo como parte de outras disciplinas que já existem no currículo, com 4-16 horas de atividade. A Ginástica é o principal tema a ser utilizado para ensinar circo na FPEF. Existem seis referências ao circo em disciplinas de Lazer, Jogos e Recreação. Houve três registros do circo como parte de disciplinas de Expressão Corporal, tipicamente relacionada a artes performáticas (dança e teatro).
Em geral, a formação para circo teve pequena participação nos cursos de FPEF, mais frequentemente como uma introdução a essa arte (16 de 24 registros - 66.6%). Os professores relataram que ensinam habilidades circenses com foco em técnicas básicas, uma vez que os estudantes têm pouca ou nenhuma experiência com essa arte. Jogos temáticos (jogar com técnicas e estereótipos culturais circenses) foram os principais recursos pedagógicos explorados em aulas da FPEF, pois os professores consideram que isso é útil para a atuação profissional em EF. Apenas nove participantes mencionaram debater a dimensão artística do circo (criatividade, expressão, estética, performance) na FPEF.
Diferentes dificuldades foram destacadas no processo de implementação: quantidade limitada de horas dedicadas a disciplinas de circo; resistência institucional, e falta de formação sobre a pedagogia do circo. As atividades circenses ensinadas com maior frequência foram trapézio fixo, tecido acrobático, malabarismo, equilíbrios e equilíbrios em cordas (corda bamba e slackline), acrobacias de solo e em grupo (pirâmides).
O discurso dos professores revelou suas intenções de discutir a diversidade circense e suas contribuições educacionais. “Nas artes circenses há a possibilidade de criação, de improviso, de transformação; isso enriquece a educação corporal e traz uma percepção mais ampla desse corpo em relação ao mundo” (PARTICIPANTE 6, questão 3.3, linhas 1-2). Porém notamos uma grande ênfase no desenvolvimento de habilidades motoras e condicionamento físico, com poucas evidências de estratégias de ensino dedicadas à expressão de si, poética do movimento e dramaturgia circense.
Os participantes destacaram a grande motivação dos estudantes para participar das atividades formativas de circo. Todos os especialistas entrevistados relataram que os estudantes praticam circo em áreas de convivência e lazer e espontaneamente o levam para outros projetos acadêmicos:
[…] porque os estudantes escolhem incluir o circo em suas práticas docentes realizadas no setor da educação. E como que eu sei disso? Porque eles falam: ‘Professor, eu vou ministrar aula em turma de 35 alunos e tenho pouco material (de malabarismo e circo), você pode nos emprestar?’. Só que não é uma pessoa, e não são dez, são dezenas… Assim vejo que eles levam com entusiasmo as atividades circenses para esses espaços formais e informais de ensino. Essa é uma maneira de sabermos que a repercussão do nosso trabalho tem dado certo […] (ACROBATA, linhas 576-589).
Os estudantes promovem ativamente o aprendizado de circo na FPEF ao compartilhar suas experiências e saberes com seus colegas, o que reforça o potencial interdisciplinar dessas atividades.
Dezesseis participantes (53.3%) mencionaram que o circo é muito apropriado para a atuação na EF Escolar. Todos os especialistas desenvolveram sua própria fundamentação teórica para legitimar o circo na FPEF, enquanto que a maioria dos outros participantes relaciona o circo como uma parte do cenário cultural da EF (cultura corporal).
Vinte e três participantes (76.7%) ensinam o circo baseados em suas experiências pessoais e apenas sete (23.3%) mencionaram ter alguma formação em circo. Por sua vez, os especialistas entrevistados trabalham com o circo há mais de dez anos, experimentando com essa arte no ensino, extensão e pesquisa. Esse esforço também é dedicado a consolidar o espaço do circo na universidade e ganhar reconhecimento entre seus pares.
O Acrobata apresentou um exemplo disso ao relacionar valores educacionais (cooperação, respeito, não violência, resiliência) com as atividades circenses. Em sua opinião, é muito importante unir as habilidades do circo aos valores educacionais de sua dimensão artística:
Temos técnica para o lançamento de aros, bolinhas, diabolô, etc., mas não educamos a sensibilidade e compaixão dos professores. Essa sensibilidade é uma forma de preparar o ser humano para que viva em paz, com amor, na não violência, na ação beneficiosa. Para que viva na verdade. O circo essa sensibilização em jogos, por exemplo: estou fazendo segunda altura [equilíbrio sobre os ombros do colega] e caio de costas, só que lá atrás tem várias pessoas para me segurar. […] Esses valores humanos estão nas entrelinhas da pedagogia do circo na EF (Entrevista com o Trapezista, linhas 738-757).
A falta de informação (orientações, referências etc.) e de educação continuada sobre o ensino de circo foi constantemente reportada. No entanto várias fontes foram indicadas para planejar as atividades na FPEF (Tabela 1):
Artigos científicos, livros e manuais técnicos foram a principal fonte. Os especialistas recomendaram que participar de oficinas artísticas de circo e experiências com outras artes performáticas é muito importante para inspirar novas formas de ensinar circo na FPEF. Também recomendaram a observação de treinos de artistas circenses, assistir a espetáculos e recursos online atualizados (vídeos, tutoriais etc.). Por fim, eles sugeriram intercâmbios regulares com outros pesquisadores e profissionais, não apenas da EF, mas das artes, história e pedagogia.
4 DISCUSSÃO
O número de professores e instituições encontrados ensinando circo na FPEF é pequeno em relação ao total de cursos de EF no Brasil. Enquanto um tópico de trabalho ainda recente na universidade (LEROUX; BATSON, 2016), existem diferentes estágios de implementação, desde iniciativas isoladas até programas de ensino e extensão consolidados. Isso é comum em termos de inovação curricular (HASANEFENDIC et al., 2017).
A premissa geral dos professores é inovar em currículos de FPEF baseados em esportes tradicionais. Esses argumentos também motivam o ensino de circo em aulas de EF na Espanha (INVERNÓ, 2003), França (SIZORN, 2014) e Austrália (BOLTON, 2004).
A maioria dos participantes inclui o circo sem orientações curriculares estabelecidas, mas por meio de suas preferências e experiências pessoais. A Contorcionista explicou que há conflitos ideológicos na implementação do circo na FPEF. Para ela, esse é um conflito entre o conceito moderno de ciência e arte e sugere a expansão dos fundamentos de trabalho da EF (perspectivas técnicas, éticas e morais) em direção à educação estética e artística. Ela indicou que, apesar de o circo ter uma forte presença na história da sociedade brasileira, ainda é tratado como uma cultura marginal. Existem preconceitos contra alguns aspectos dos saberes circenses ao adentrar a universidade (e.g. a tradição de educação e transmissão de conhecimento oral) que influenciam decisões acadêmicas, como a implementação do circo no currículo da FPEF.
Apesar de a literatura específica ter crescido muito na última década (ONTAÑÓN; DUPRAT; BORTOLETO, 2012; FEDEC, 2017), os participantes ainda notam falta de orientações sobre a pedagogia do circo para a formação de professores. Eles também relataram falta de oportunidades para a educação continuada, o que pode contribuir para manter o ensino de circo atrelado a modelos esportivos.
De fato, Garcia (2013) e Sizorn (2014) reportaram uma tendência similar na França. Sem orientações específicas para a pedagogia do circo na EF, os professores recorrem à metodologia de ensino da ginástica. Os intercâmbios históricos entre circo e ginástica (HAUFFE; GÓIS JUNIOR, 2014) facilitam essas abordagens. As progressões pedagógicas esportivas são válidas para o ensino das acrobacias circenses, mas elas não alcançam a natureza artística dessa arte. O produto dessa abordagem é a “ginástica circense”, um termo mencionado por parte dos participantes não especializados. Isso representa uma prática de ginástica composta por aparelhos e técnicas circenses, sem recursos poéticos/artísticos além de uma coreografia dedicada à demonstração de habilidades.
A desvalorização da dimensão artística circense pode levar a uma silenciosa “esportivização” do ensino de circo na FPEF (SIZORN, 2014). Uma consequência possível é a propagação de conceitos mal-interpretados sobre essa arte na atuação em EF.
O principal problema é que, enquanto a arte conduz o sujeito a ir além das restrições de códigos técnicos em busca de expressão poética de si, o esporte estabelece modelos de operação. A criatividade artística permite diferentes formas de explorar as possibilidades do corpo e do movimento (PEIGNIST, 2009). O aprendizado de circo deveria prover repertório motor e matéria-prima para criação e também ensinar como criar significado simbólico (abstrações artísticas) para essas ações (LEHN, 2016). Assim, a essência da pedagogia do circo na EF deveria ensinar os estudantes como combinar habilidades físicas acrobáticas e a criação de movimentos com a poética e a expressão de si, ao invés de apenas importar diferentes técnicas à ginástica.
Os participantes foram unânimes sobre o interesse e participação dos estudantes nas aulas de circo. Eles também enfatizaram a igualdade de gênero na prática, também observada por Kriellaars et al. (2019) ao analisar o ensino de circo para crianças (ensino fundamental) no Canadá. A Tecidista comentou sobre as possibilidades educacionais da prática circense:
[…] os princípios educacionais estão presentes no legado cultural do circo, na riqueza visual do imaginário; na relação do corpo com a música; na relação do corpo com o espetáculo com música; e na relação dos artistas entre si, em termos de confiança. Então, quantos valores morais, éticos e estéticos a prática pode trazer? Os valores são realmente infinitos (TECIDISTA, linhas 485-496).
O circo pode contribuir com a FPEF ao fornecer saberes advindos da análise da dimensão simbólica de suas diferentes modalidades (TUCUNDUVA, 2015). Essas análises podem ser direcionadas ao modo como cada prática combina seus recursos expressivos aos movimentos técnicos ou no uso de habilidades físicas específicas. A expressão de cada modalidade é impregnada pela cultura circense e outras interações com a sociedade. Esse tipo de análise estimula pesquisas em diferentes tópicos dessa arte para produzir recursos educacionais mais coerentes para a atuação em EF. Como resultado, a inclusão do circo na FPEF iria além de técnicas e agregaria complexidade. Ainda, na perspectiva tradicional da EF, a análise do aprendizado motor, consciência corporal ou condicionamento acrobático no aprendizado de circo pode oferecer intercâmbios com outras disciplinas da FPEF.
Por exemplo, o estudo das acrobacias em trapézio na FPEF poderia debater as possíveis interações entre alunos quando enfrentam desafios em comum; as diferentes maneiras de interagir com os espectadores tanto no modelo do circo tradicional (e.g. realização de proezas) quanto no contemporâneo (e.g. dramaturgia); a análise do mindset de assumir riscos e da performance de habilidades aéreas; os pré-requisitos de condicionamento físico para a prática de trapézio; ou os jogos que podem pôr o aluno em interação com as expressões culturais dos trapezistas na história do circo (e.g. a história desses artistas em diferentes companhias circenses).
As atividades ensinadas pelos participantes (acrobacias em grupo, no solo e aéreas, equilíbrios e malabarismo) são as práticas mais populares de circo no Brasil (CORSI; DE MARCO; ONTAÑÓN, 2018). Acrobacias em grupo e malabarismo estão entre as atividades circenses mais comuns em aulas de EF, devido ao acesso facilitado a equipamentos e à maior participação de crianças (INVERNÓ, 2003).
Projetos de ensino, extensão e pesquisa ajudam os professores a consolidar os estudos de circo e a engajar a comunidade acadêmica, uma boa estratégia para apresentar os resultados de um processo continuado de inovação curricular. Na prática, os professores promovem o envolvimento de estudantes no ensino de projetos de extensão, apresentam os resultados de ensinar circo em eventos científicos, e incluem essa arte como parte do conteúdo de disciplinas curriculares e extracurriculares.
5 CONCLUSÕES
O circo não é apenas uma inovação pedagógica sustentável na FPEF, mas tem poder suficiente para estimular novas reflexões e interações com os fundamentos mais elementares da EF. O circo exibe a variedade de corpos e demonstra as habilidades “extraordinárias” que alguém pode realizar. O que mais se destaca é a dimensão lúdica de jogar com o corpo e explorar os limites de dificuldade para as habilidades físicas, sem regulações ou caminhos preestabelecidos. A essência de seu processo criativo está em descobrir o que alguém consegue fazer com seu corpo e como criar uma performance artística com isso. Na prática, o circo combina desafio e habilidade, seja no voo ou na aterrissagem segura, na altura ou no equilíbrio preciso, na propulsão ou em acrobacias complexas.
O diferencial educacional do circo entre outras artes performáticas (e seu atributo especial na perspectiva da FPEF) é pôr habilidade e capacidade física como protagonistas da performance. Os recursos expressivos, estéticos e simbólicos do circo adicionam potência poética a esses protagonistas para que eles possam ser apreciados como arte.
Na educação de professores, o empoderamento resultante de aprender o processo criativo circense é o aspecto mais “extraordinário” dessa arte. Algo que cativa nossa curiosidade é a expressão de aspectos biodinâmicos, socioculturais e pedagógicos da EF presentes no circo. Então, os resultados de nossa pesquisa oferecem uma visão geral de como essa arte e sua natureza multidisciplinar têm contribuições em potencial para a formação de professores.
Na FPEF, especificamente, encontramos evidências socioculturais, técnicas e estéticas muito consistentes do seu papel na EF, seja como registro de saberes corporais e de movimento ou como recurso para intercâmbios educacionais.
Com o desenvolvimento de orientações pedagógicas específicas, esse tema pode alcançar contribuições mais amplas para esse campo. Isso pode ajudar professores a compreender as interações históricas com a EF, a pluralidade de modalidades que podem ser exploradas em aula, quão efetivas são essas práticas como uma alternativa a atividades tradicionais de EF, e apresentar perspectivas de pesquisas sobre circo em relação à atuação em EF.
Após nossa incursão ao circo, acreditamos que ele pode se tornar um campo de estudos promissor na universidade por ele mesmo. Isso colaboraria com a transmissão e registro dos saberes circenses para novas gerações, com a educação de profissionais para atuar em diferentes segmentos da sociedade, e, acima de tudo, contribuiria para reconhecer o importante papel cultural do circo na história da humanidade.
Na FPEF, recomendamos atividades de formação continuada e cursos específicos. Enquanto isso, professores da FPEF e de EF deveriam dialogar com profissionais de circo e membros de famílias circenses para conhecer o que existe para além da técnica e do aprendizado motor. Esse processo auxiliou a difusão do ensino do circo na sociedade ao longo dos últimos 40 anos e parece ser um caminho coerente para estabelecer novos territórios para essa arte.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Jul 2022 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
-
Recebido
13 Nov 2018 -
Aceito
01 Jun 2019 -
Publicado
27 Out 2019