Resumo
Colocar em perspectiva as representações sociais não é tarefa fácil. Neste trabalho, as percepções de dez estudantes de Educação Física antes e após a Caminhada do Privilégio - dinâmica que representa a trajetória de vida dos participantes através de passos - foram analisadas visando compreender os efeitos da atividade sobre o grupo a partir das percepções de suas posições sociais, dos fatores atribuídos a tais posições e das mudanças de perspectiva desencadeadas pela Caminhada do Privilégio. Os estudantes estimaram corretamente suas posições finais na Caminhada, porém esperavam encontrar pouca diferença entre eles, decorrente do esforço individual e do acesso a direitos e privilégios. Contudo, após a Caminhada do Privilégio, observaram uma grande distância entre eles e questões como gênero, orientação sexual, apoio familiar e condição econômica foram percebidas como centrais. O racismo foi citado, mas de forma reservada, em questionário, indicando a dificuldade de debate aberto de temas sociais.
Palavras chave: Estudantes; Educação Física; Emoções; Percepção social
Abstract
Putting social representations at school in perspective is not an easy task. This study analyzed perceptions of ten Physical Education students before and after the Privilege Walk - activity that represents individual histories through steps - in order to understand its effects on the group, considering the previous perceptions of their own social positions, factors related to those positions, and changes of perspective triggered by the Privilege Walk. Students correctly estimated their final positions in the Walk, but they expected smaller differences among them as a result of individual effort and access to rights and privileges. However, after the Privilege Walk, they observed major distances among them, and issues of gender, sexual orientation, family support and economic condition were perceived as crucial. Racism was mentioned in the questionnaire but not in the group, indicating the difficulty of holding an open debate about social issues.
Keywords: Students; Physical education; Emotions; Social Perception
Resumen
Discutir las representaciones sociales no es una tarea fácil. En este trabajo, las percepciones de diez estudiantes de EF antes y después de la Caminata del Privilegio -dinámica que representa la trayectoria de vida de los participantes a través de pasos- fueron analizadas con el objetivo de comprender los efectos de la actividad sobre el grupo, a partir de las percepciones de sus posiciones sociales, de los factores atribuidos a tales posiciones y de los cambios de perspectiva desencadenados por la Caminata del Privilegio. Los estudiantes estimaron correctamente sus posiciones finales en la Caminata, aunque esperaban encontrar poca diferencia entre ellos producto del esfuerzo individual y del acceso a derechos y privilegios. Sin embargo, después de la Caminata del Privilegio, observaron una gran distancia entre ellos y cuestiones como género, orientación sexual, apoyo familiar y condición económica fueron percibidas como centrales. El racismo fue citado, pero de forma reservada, en cuestionario, indicando la dificultad en el debate abierto de cuestiones sociales.
Palabras clave: Estudiantes; Educación Física; Emociones; Percepción social
1 INTRODUÇÃO
[…] o corpo é o filtro pelo qual o homem se apropria da substância do mundo e a faz sua por intermédio dos sistemas simbólicos que partilha com os membros de sua comunidade (Le Breton. Antropologia dos sentidos)
Nessa epígrafe, Le Breton destaca a importância fundamental do corpo no processo de conhecer o mundo, bem como as restrições das potencialidades no processo de socialização dos sujeitos. Le Breton (2016, p. 19) afirma que “[…] toda socialização é a restrição da sensorialidade possível”, nessa perspectiva, entende que as formas como os sujeitos usam seus sentidos e a forma como percebem o mundo - o que resulta em “universos sensoriais diferentes” - são moldadas pela “comunidade de pertença”.
Apesar da importância do corpo no aprendizado, ele tem sido relegado a segundo plano no sistema educacional, o que é expresso não apenas no número de tempos de aula reservado à Educação Física, artes, música, literatura, dentre outras matérias que estimulam “um vai e vem entre a sensação das coisas e a sensação de si”, como coloca Le Breton ao se referir ao imperativo da experimentação do mundo pelo homem, que é atravessado e transformado por ele. Mas, também, na forma como as disciplinas priorizadas, como matemática, línguas e ciências, são elaboradas. As atividades escolares, em geral, demandam atenção e cognição, mas devem ser realizadas, na maior parte do tempo, com os sujeitos contidos, sem movimentação, em silêncio, confinados em ambientes com pouco espaço físico (CAMPOS, 2018). Adicionalmente, os conteúdos programáticos são transmitidos pelo professor. Nesse processo, o corpo em termos de sensações corporais e elaboração mental sobre os temas em tela é também desestimulado, prevalecendo uma educação utilitarista, pautada no saber de natureza técnica, voltada para o mercado de trabalho e para a propedêutica visando ao vestibular (FONSECA, 2009).
Nesse contexto, muitas vezes, a tentativa de transmissão oral do conhecimento produzido é malsucedida, como no caso de Ngoasheng e Gachago (2017). As autoras tentaram abordar temas como interseccionalidade para debater a combinação de opressões atravessando os corpos. O conceito de interseccionalidade foi utilizado por Kimberlé Crenshaw (1994) para abordar a desvantagem da mulher negra em relação à mulher branca, ou ainda da mulher negra em relação ao homem negro, devido a estruturas de dominação e opressão relacionadas a raça e gênero. Ngoasheng e Gachago (2017) não tiveram êxito nem debatendo o tema a partir dos dados provenientes de entrevistas realizadas pelos estudantes, nem trazendo dados estatísticos decorrentes de pesquisas sistemáticas. Porém, ao realizarem a Caminhada do Privilégio, os estudantes puderam perceber, através de seus sentidos e em seus próprios corpos, a interseccionalidade, se abrindo então, a partir do estranhamento e da curiosidade de compreender o percebido, ao processo dialógico sobre o tema. A Caminhada do Privilégio deve ser realizada em um ambiente bastante amplo. Os participantes iniciam a Caminhada posicionados lado a lado, de mãos dadas. Um conjunto de sentenças é proferido. As sentenças remetem à presença de favorecimento e acesso a direitos/cidadania ou de desfavorecimento/vulnerabilidade social. A cada sentença, cada um dos participantes avalia se o que está sendo dito é verdadeiro ou não para si. Caso seja, ele dá um passo para frente (se a sentença aponta algo favorável ao indivíduo) ou um passo para trás (se a sentença aponta algo desfavorável). Nos casos em que a sentença não corresponde à realidade do participante, esse se mantém na posição, não dando passos para frente, nem para trás. Assim, nessa dinâmica, a cada sentença as pessoas vão se distanciando. Os que se posicionam mais à frente têm uma trajetória de vida com menos obstáculos. Os que se posicionam mais atrás têm sua vida atravessada por aspectos negativos estruturais que influenciam sua trajetória.
A Caminhada do Privilégio surgiu a partir de uma lista de privilégios feita por McIntosh em 1989. McIntosh, analisando e comentando materiais que coletou sobre currículo e gênero, observou que seus colegas homens muitas vezes percebiam que as mulheres eram desfavorecidas, mas não se viam como privilegiados pelo desfavorecimento feminino. O privilégio se estabelece na vantagem de um grupo ocasionado pela desvantagem do outro grupo, decorre da relação imbricada entre o desfavorecimento de um e o favorecimento de outro. McIntosh entendia que essa negação do privilégio por seus pares não contribuía para a justiça social. Entendendo que os privilegiados são ensinados a não ver que seus privilégios decorrem do desfavorecimento de grupos específicos, a autora defendeu que processos que possam despertar as pessoas para essa reflexão são importantes para a mudança social. McIntosh começou a analisar a si mesma e a sua trajetória de vida e listou 46 situações nas quais ela se viu privilegiada, não por mérito, mas pela cor branca de sua pele, expondo seus privilégios decorrentes do racismo, que produz e reproduz a desigualdade social (MCINTOSH, 1989). A partir dessa lista gerada pela autorreflexão de McIntosh, se desenvolveu a Caminhada do Privilégio (Privilege Walk).
Posteriormente, Young (2006) implementou a Caminhada do Privilégio em um workshop direcionado a estudantes universitários para favorecer o debate de temas como “raça”, “diversidade” e “privilégios”, direcionando as sentenças para tal debate. Entendendo que o aprendizado é potencializado pelo envolvimento do estudante no processo, almejou, com a Caminhada do Privilégio, favorecer um aprendizado ativo construído processualmente, considerando a importância do afeto e das relações sociais, possibilitando um rico processo em que as percepções dos estudantes sobre a realidade social e as subjetividades diversas fossem confrontadas (YOUNG, 2006). Ao final da Caminhada do Privilégio, as emoções, percepções e pensamentos, os aprendizados e a intenção de ação/mudança dos participantes, a partir do processo desencadeado, foram debatidos (YOUNG, 2006). Vale ressaltar que pensamento pode ser entendido como elaboração mental que busca dar sentido ao percebido, e a percepção, compreendida a partir de Aristóteles (2002, A1 981), seria discernir “qualidades sensíveis” do objeto por algum órgão sensorial próprio, tornando “manifestas numerosas diferenças entre as coisas”.
A Caminhada do Privilégio também foi estudada de forma sistemática por Irby-Shasanmi, Oberlin e Saunders (2012). Os autores adaptaram as sentenças para que se referissem a privilégios em saúde. Nas sentenças, dados epidemiológicos eram lidos, as pessoas pertencentes aos grupos com prevalência maior de doenças ou de fatores a elas relacionados davam passos para trás, enquanto as pertencentes a grupos com fatores protetores da saúde davam passos para frente. A Caminhada foi iniciada num grande círculo e, ao final, os indivíduos pertencentes a grupos de menor prevalência de doenças ficaram mais próximos do centro do círculo. A atividade expôs os determinantes sociais da saúde.
Magana (2017), observando a escassez de estudos científicos sobre a Caminhada do Privilégio e seus efeitos, realizou uma análise exploratória dessa atividade, analisando seu impacto sobre o debate dos privilégios em um grupo de estudantes. Antes da Caminhada do Privilégio propriamente dita, a autora definiu privilégio e após a Caminhada buscou analisar as percepções e a intenção de ação desencadeadas pela atividade. Uma semana após a realização da atividade, a pesquisadora entrou novamente em contato com os participantes para coletar informações sobre o impacto da Caminhada nas ações cotidianas e nos pensamentos nesse período. A atividade gerou empatia e a sensação de maior conexão entre as pessoas e de uma rica troca de experiências, levando a falas sobre a importância de realizar tal dinâmica e do desejo de que mais pessoas passassem por essa experiência e, no follow up, os participantes se disseram mais atentos às suas próprias atitudes e preconceitos.
Ao nosso conhecimento, não há pesquisas sobre a Caminhada do Privilégio e seus efeitos em estudantes brasileiros. As buscas por trabalhos sobre o tema em bases de dados e portais que concentram trabalhos científicos, tais como Bireme, PubMed, SciELO, Periódicos Capes, Biblioteca Digital de Teses e Dissertações, Google Scholar, Biblioteca Virtual em Saúde, dentre outros, não retornaram pesquisas nacionais sobre a Caminhada do Privilégio. Assim, nossos sujeitos de pesquisa foram estudantes de graduação em Educação Física, profissão que, além de estar em contato direto com o público, está relacionada tanto aos cuidados em saúde quanto à educação, duas áreas em que a Caminhada do Privilégio pode ser uma importante experiência e contribuir para uma formação integral e socialmente referenciada do estudante.
Neste sentido, o objetivo do presente estudo foi realizar uma análise exploratória dos efeitos da Caminhada do Privilégio em estudantes de graduação em Educação Física, considerando suas referências prévias sobre autopercepção de posição social e dos fatores relacionados e as mudanças nessa percepção desencadeadas pela Caminhada do Privilégio.
2 MATERIAIS E MÉTODO
O estudo consistiu num estudo de caso realizado com alunos de uma turma do curso de graduação em Educação Física (EF) de uma instituição de ensino superior pública federal da cidade do Rio de Janeiro. Os participantes poderiam participar apenas da atividade Caminhado do Privilégio e não da pesquisa. Poderiam ainda desistir, a qualquer momento, de participar da pesquisa ou da atividade. Todos os voluntários participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa do IFRJ e os procedimentos adotados na pesquisa estão de acordo com os princípios éticos que orientam as Resoluções 466/12 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde.
Após a assinatura do TCLE foi solicitado que os voluntários estimassem em que posição (na frente, no meio ou atrás) ficariam, naquele grupo de participantes, caso suas trajetórias de vida e as dificuldades e facilidades desta trajetória fossem comparadas (Posição Estimada) e quais motivos - positivos e negativos - seriam responsáveis por sua posição. Em seguida, foi conduzida a atividade Caminhada do Privilégio.
Das sentenças utilizadas, a maior parte foi adaptada do trabalho de Young (2006) para o contexto brasileiro. Porém, removemos as palavras gênero, raça, orientação sexual e religiosa da maioria das frases. Em apenas seis de 50 questões essas palavras foram mantidas. Acrescentamos outras questões relativas a saúde, educação, segurança em casa e fora dela, mobilidade, ser, dentre outras questões. Apesar de retiradas das demais questões, inferimos que as questões sobre gênero, raça e orientação sexual seriam centrais e não deixariam de ser levantadas e debatidas pelos próprios participantes. Portanto, a atividade Caminhada do Privilégio consistiu em 50 sentenças sobre violências física e simbólica, direitos, privilégios e teve por finalidade evidenciar diferenças entre as trajetórias de vida dos participantes.
Após a Caminhada do Privilégio, os participantes responderam a um questionário aberto sobre os motivos responsáveis por sua posição final (à frente, no meio ou atrás). Também marcaram numa Escala de Sinceridade (de 0 a 10) o quanto foram sinceros durante a Caminhada do Privilégio, sendo 0 nada sincero e 10 totalmente sincero. Para os que não tivessem sido totalmente sinceros, havia uma pergunta sobre os motivos relacionados. Posteriormente, foi conduzida a análise descritiva desses dados.
Após preencher o questionário, foi feita uma roda de conversa em que os participantes puderam expressar as percepções e pensamentos que tiveram durante a Caminhada.
3 ANÁLISES DOS RESULTADOS
Vinte e três pessoas aceitaram participar da atividade. Porém, apenas 14 se propuseram a participar da pesquisa. Os participantes estão indicados neste texto por códigos que consistem em uma letra do alfabeto, seguida das letras EF.
A posição estimada pelos participantes antes de realizar a Caminhada do Privilégio e as suas posições finais durante a Caminhada são apresentadas na Figura 1a. Os resultados da Escala de Sinceridade durante a Caminhada são apresentados na Figura 1b e demonstram que a maioria diz ter sido completamente sincera. Os participantes que não foram totalmente sinceros dizem que assim procederam por vergonha e ignorância em relação a algumas sentenças.
Posição Estimada pelo participante antes da realização da Caminhada do Privilégio vs. Posição do Participante ao final da Caminhada do Privilégio (a) e análise de frequência dos resultados da Escala de Sinceridade.
A Figura 1(a) mostra a correspondência entre a posição que o participante estimou ficar e a que ele de fato ficou na Caminhada do Privilégio, mostrando que eles tinham certa previsão sobre suas diferenças. Apenas dois (representados por pontos cinzas) imaginavam ficar à frente do que realmente ficaram. Os participantes estimaram que privilégios, a luta pelos objetivos (mérito) e o acesso a direitos seriam responsáveis por suas diferentes posições, mas achavam que não haveria muita distância entre os participantes. Um deles disse que “todos se equipararam” se referindo a estarem todos numa universidade de prestígio.
A Caminhada do Privilégio teve importante impacto sobre os participantes, que no meio da atividade já não estavam mais de mãos dadas, apesar da distância entre muitos deles ainda permitir tal contato. Todos executaram a atividade com as fisionomias sérias. A maioria mantinha os braços cruzados sobre o tronco ou as mãos unidas à frente ou atrás do corpo, na altura da cintura pélvica; alguns outros seguravam o queixo com uma das mãos, enquanto a outra, cruzada sobre o tronco, apoiava o braço do membro que ia ao rosto. Os participantes que mais se distanciavam dos demais ocupando as fileiras anteriores foram se sentindo desconfortáveis, olhando para trás a todo momento para verificar se os colegas estavam se deslocando no mesmo sentido que eles. Por vezes esses mais bem posicionados diminuíam o comprimento dos seus passos para se distanciarem menos. Um dos participantes que estava atrás na Caminhada deu passos largos, como se já tivesse compreendido que havia perdido qualquer chance de se aproximar dos demais.
A atividade foi realizada numa quadra poliesportiva e, ao lado, havia um grupo jogando vôlei. O grupo também foi afetado pela atividade chegando a interromper seu jogo e se posicionar na área ao redor para acompanhar a dinâmica. Os pesquisadores também foram afetados e o tempo lógico da dinâmica pareceu muito grande, quando, na verdade, a execução da Caminhada do Privilégio durou cerca de 15 minutos.
Os participantes, se sentindo afetados com a Caminhada, enumeraram os fatores que determinaram suas posições ao final da atividade. Os que ficaram na frente em relação aos demais atribuíram tal desempenho a fatores positivos relacionados à condição social, estrutura familiar, oportunidades, ser do sexo masculino, ser heterossexual e branco e ser de classe média. Não abordaram aspectos negativos. GEF diz:
No questionário botei acreditando que eu ia estar numa posição parecida… eu evidencio que eu tenho essa posição privilegiada na sociedade, pela condição, por ser branco, ser hétero, de ter uma família etc., eu vejo que eu tenho privilégios por isso, de certa forma, mesmo eu não concordando com desigualdades, eu acabo sendo favorecido, deu para evidenciar isso.
GEF fez a leitura de privilégio sob a perspectiva de McIntosh (1989), para quem o privilégio está relacionado ao favorecimento de um grupo pelo desfavorecimento de outro. A palavra privilégio usada por GEF incomoda QEF. Ele diz que a desigualdade é evidente, mas que não sabe se ter família é privilégio. QEF entende privilégio como receber algo que você não merece. Ele não sente que tem privilégios, mas se sentiu à frente dos outros. Neste ponto parece que QEF entende que as sentenças proferidas na Caminhada do Privilégio dizem respeito a direitos aos quais todos deveriam ter acesso. Os participantes QEF e VEF utilizam o termo oportunidades, cuja presença ou ausência determinou as diferenças observadas. Em outro momento usam direitos, dizendo que todos deveriam ter direitos iguais.
A abertura para esse debate conceitual em grupos de estudantes de graduação em uma área cuja formação não privilegia esse tipo de discussão é essencial. Considerando que as diretrizes nacionais de educação orientam, para o profissional de Educação Física, uma formação, dentre outros aspectos, humanista e crítica, fundamentada na “reflexão filosófica e na conduta ética”, entendem que o graduado deve estar qualificado para “analisar e avaliar a realidade social, para nela intervir acadêmica e profissionalmente” e afirmam que o projeto pedagógico de formação deve desenvolver, dentre outras, “competências de natureza político-social” (BRASIL, 2018, p. 5-7), estratégias para viabilizar o processo de formação nesse sentido devem ser exploradas. Nesse sentido, as sensações e o estranhamento causados pela Caminhada do Privilégio geraram abertura e disposição para o debate de conceitos caros às Ciências Humanas e a atividade se mostrou bastante positiva.
Em um outro ponto de vista, DEF esperava ficar à frente, mas seu gênero a impediu: “Sinceramente, eu pensei que ficaria mais à frente, mas compreendi minha posição depois. Percebi que muitos homens ficaram à minha frente, principalmente nas questões sobre assédio; e fiquei assustada e confusa ao ver meninas também dando passos à frente”.
Essa perspectiva da DEF remete aos trabalhos de Kimberlé Crenshaw (1994) e Angela Davis (2016) sobre interseccionalidade, a interseção entre gênero, raça e classe, que debatem a sobreposição de opressões para grupos historicamente desfavorecidos na sociedade. No caso, DEF considerava ficar à frente por possuir privilégios de raça e classe. Porém, ficou mais atrás por ser mulher.
Dentre as emoções negativas relatadas pelos participantes, estavam desconforto e inferioridade, que resultaram do andar para trás e da percepção de estar muito atrás. Emoções negativas também decorreram da percepção de não ter tido seus direitos assegurados ou de ver que seus amigos não tiveram acesso a direitos básicos: “Não me senti muito bem ao perceber que muitos direitos eu ainda não tenho, dar passos para trás não foi nada confortável” (BEF). “Senti-me inferiorizado por estar sempre atrás da maioria” (OEF). “[Me marcou] o momento que vi todos na minha frente” (KEF). “O momento em que amigos ficaram para trás marcou… não imaginava pelo que eles haviam passado” (QEF).
Essas percepções evadem os enquadramentos sociais que dominam os espaços públicos (BUTLER, 2015) e orientam a construção e manutenção das representações sociais (JODELET, 2009, 2018). Safatle (2016) considera que o desamparo é o sentimento central das dinâmicas sociais e que impulsiona o desejo de alienação. Por outro lado, entende que a afirmação do desamparo é fundamental para a emancipação do sujeito. A Caminhada do Privilégio confronta a representação social de forma transubjetiva, de modo que um evento presenciado em um ambiente compartilhado é inteligível para os participantes em suas esferas subjetiva, da percepção individual e intersubjetiva (JODELET, 2009), podendo gerar um compartilhamento do estranhamento do observado e vivido por todos. Butler (2015) diz que quando a realidade evade o enquadramento, novas possibilidades de análise crítica se tornam possíveis.
A percepção da magnitude das distâncias entre as pessoas de um mesmo campo [acadêmico] marcou a dinâmica. O participante YEF se surpreendeu ao enxergar as disparidades entre colegas: “Pude perceber o quão plural pode ser uma turma, como um grupo que aparentemente é homogêneo pode ser tão diferente e possuir tantos discrepantes”.
As falas de outros colegas vão no mesmo sentido: “Percebi que a desigualdade entre as pessoas ficava evidenciada a cada pergunta” (EEF). “O momento em que vi todos à minha frente. Pensei ‘sabia que era diferente, mas não imaginava tanto’” (KEF). “[…] [percebi como] os direitos se aplicam a cada um de nós de forma diferente e como isso nos diferencia na sociedade” (GEF).
A fala de GEF ressaltou a importância desse tipo de atividade para tornar concreto algo que, apesar de sabido, não é palpável: “[…] tive momentos em que infelizmente vi a desigualdade” (GEF).
Comoção foi mencionada por DEF, referindo-se a uma questão que ela entendeu como referente à tortura. Disse ela: “Me surpreendeu e me comoveu ao ver ao menos uma pessoa dar um passo atrás”.
A questão abordava tratamentos desumanos ou degradantes que a pessoa possa ter sofrido. Talvez o contexto de percepção da violência sofrida pelos colegas, expressa em passos, tenha remetido à interpretação da sentença em sua face mais cruel, a tortura.
Os indivíduos apontaram que o apoio familiar e uma melhor condição econômica como determinantes para um melhor desempenho na Caminhada. CEF diz: “A questão que me marcou foi em relação ao apoio familiar, que é fundamental para o desenvolvimento do ser”.
A maioria dos participantes foi empática com relação aos colegas que ficaram mais atrás. Porém, o participante IEF entendeu o resultado da Caminhada como sendo a realidade da sociedade, enfrentando tudo com naturalização e indiferença, resumindo sua percepção como: “Nada me marcou”. Para ele, as questões mostram que há “diferenças sociais e financeiras”. CEF também já esperava por grandes diferenças. Diz ele: “Percebi que há grandes diferenças entre as pessoas, algo que já esperava ver” (IEF).
As falas de IEF remetem ao entendimento de direitos como algo a ser conquistado por esforço e mérito pessoal. Henri Acselrad (2006) considera vulnerabilidade como a susceptibilidade do sujeito ou grupo a um agravo, um dano à integridade física, mental ou à condição social do indivíduo. O autor estuda vulnerabilidade ambiental, mas sua análise perpassa as perspectivas que orientam o estudo da vulnerabilidade e que são pertinentes a esse achado. A primeira perspectiva é a adotada por IEF e foca no indivíduo. Para Acselrad (2006), essa perspectiva atribui a condição do indivíduo às suas “más escolhas”, seus “erros de cálculo” e sua falta de previdência. Nessa perspectiva, os sujeitos se tornam menos capazes de se defender e o Estado, nesse caso, pretende e trabalha para estender sua capacidade de dar ao sujeito meios para que esse consiga se defender. Acselrad, no entanto, defende uma outra perspectiva, na qual o processo de proteção desigual dos sujeitos gera vulnerabilidade social. A fala de CEF sobre a importância da família mostra a identificação de tal relação. Nessa segunda perspectiva, Acselrad coloca o foco sobre os processos que tornam os sujeitos vulneráveis. Inverte a lógica e coloca os “vulneráveis como vítimas de uma proteção desigual” do Estado. A perspectiva não é mais de déficit de capacidade de dar os sujeitos meios para que defendam sozinhos, mas de um déficit de “responsabilidade política dos Estados democráticos” na proteção dos cidadãos. Trata a “vulnerabilidade como uma questão de direitos humanos” e a vincula “às suas raízes sociais mais profundas”. Nessa perspectiva, Acselrad não vê o sujeito como um agente passivo, como pode parecer, mas entende que essa mudança de perspectiva do sujeito em relação à vulnerabilidade “estimula e potencializa a mobilização das pessoas para a transformação destas condições”. Entendendo a vulnerabilidade como “uma condição socialmente construída”, que gera também diferentes expectativas e concepções do que seria tolerável e intolerável em grupos sociais distintos, ele entende que ter direitos diminui “o consentimento para com os riscos e danos impostos”.
Dessa maneira, os resultados principais deste estudo mostraram que houve essa mudança de perspectiva, a partir do estranhamento das distâncias entre os corpos no espaço e das características identitárias desses corpos, para a maioria dos participantes, mas que alguns ainda consideravam a perspectiva centrada no indivíduo após a realização da dinâmica. Dialogando com alguns docentes do curso, constatou-se que a formação desse grupo é uma formação centrada no tecnicismo e, com base nesse dado, consideramos toda essa discussão no grupo bastante positiva. Os resultados poderiam ter sido ainda mais potentes se estivessem inseridos numa perspectiva de curso de extensão ou de formação ou em disciplinas formais dentro da graduação. Porém, como atividade pontual para a pesquisa, os pesquisadores se limitaram a perceber e tentar compreender os efeitos da Caminhada do Privilégio, mas não em interferir no processo de troca do grupo.
Finalmente, outro aspecto observado foi que, antes da realização da Caminhada do Privilégio, fatores como privilégios, esforço individual - descrito como “luta pelos objetivos” - e acesso a direitos foram elencados pelos estudantes como os que influenciariam na Caminhada. Apesar de apenas seis questões se referirem diretamente à discriminação por gênero, raça e orientação sexual, tais categorias estavam envolvidas nos passos para trás dos participantes, estando intimamente relacionadas com as demais, que não abordavam essas questões diretamente. Família e condição socioeconômica (classe, condição social, condição financeira foram os termos usados) também foram fatores elencados após a Caminhada. Tais questões e as questões de gênero e orientação sexual foram abertamente debatidas. Porém, o preconceito racial não foi relatado na roda de conversa, apesar de dois participantes terem escrito sobre o racismo no questionário. Adicionalmente o sistema capitalista foi questionado por apenas um participante através do questionário, mas esse questionamento não apareceu na roda de conversa para ser debatido no grupo. Esses dados parecem corroborar o relato dos docentes entrevistados de que a formação é centrada no tecnicismo, ficando o debate de questões sociais à margem.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A estratégia de utilizar a Caminhada do Privilégio parece favorecer um rico debate sobre desigualdades sociais. Essa atividade centrada nas percepções corporais, especialmente visuais, proporcionou mudanças no corpo e na apreensão de fatores associados à desigualdade. A capacidade da atividade em expor a magnitude da desigualdade existente dentro de grupos que se pensam mais homogêneos do que de fato são foi um disparador de novas percepções e reflexões. Os estudantes mostraram previamente saber da existência da desigualdade social entre eles, tanto que a maioria estimou com acerto a posição em que ficaria na Caminhada. Contudo, não pareciam sabê-la tão grande em ambiente tão próximo e de conhecidos. Como colocou Le Breton (2016, p.19), “toda socialização é a restrição da sensorialidade possível”, sendo o uso dos sentidos, para Le Breton, socialmente moldado.
A maioria das sentenças da atividade tratava de questões entendidas pelo grupo como básicas e necessárias, às quais todos deveriam ter acesso. Tais questões expuseram classe, gênero, orientação sexual e condição socioeconômica como fatores determinantes da desigualdade social. Tal compreensão desencadeou emoções negativas e as fisionomias fechadas e as reações corporais observadas durante a execução da Caminhada do Privilégio expuseram isso. Ter privilégios gerou desconforto, bem como não os ter. Apenas um participante se colocou de maneira compreendida por nós como não empática, naturalizando a injustiça social. Por outro lado, a empatia se fez presente de modo importante. Algumas divergências com relação aos conceitos mostram a importância do debate conceitual na abordagem de temas sociais, pois as preconcepções sobre os termos variam. Dessa forma, os resultados apontaram para o importante papel da escola no debate da desigualdade social visando à transformação da realidade. Sugerem também que esse debate tem sido abordado de maneira ineficiente, resultando, por exemplo, numa dificuldade de exposição aberta do racismo, questão que não foi problematizada na roda de conversa, embora tenha sido citada no questionário. Dessa maneira, a Caminhada do Privilégio desencadeou como efeitos a percepção da magnitude das diferenças e um desvio de perspectiva sobre os fatores relacionados às desigualdades sociais no grupo. Antes da Caminhada, foram elencados como determinantes categorias mais abstratas como privilégios, méritos e direitos. Orientação sexual também foi citada como fator pelo participante que ocupou a última posição na Caminhada. Após a Caminhada, entretanto, outros fatores ganharam a cena, como apoio/suporte familiar (incluindo incentivo aos estudos e aos esportes), problemas familiares também foram relatados, oportunidades e direitos, condição socioeconômica, classe, gênero, orientação sexual, experiências/vivências, qualificando de forma mais clara o que estava por trás dos direitos e privilégios. A inserção do corpo no processo de aprendizado favoreceu uma outra perspectiva sobre a desigualdade social.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Jul 2022 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
-
Recebido
04 Dez 2018 -
Aceito
08 Jul 2019 -
Publicado
19 Nov 2019