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ARTE MARCIAL, CINEMA E MORALIDADE: IMPULSOS DO CORPO E O CULTIVO DE SI1 1 O autor agradece aos pareceristas pelas contribuições durante o processo de avaliação deste trabalho.

MARTIAL ARTS, CINEMA AND MORALITY: BODY IMPULSES AND SELF-CULTIVATION

ARTE MARCIAL, CINE Y MORALIDAD: IMPULSOS DEL CUERPO Y EL CULTIVO DE SÍ MISMO

Resumo

Este ensaio filosófico visa apresentar uma perspectiva crítica da associação entre artes marciais, cinema e moralidade. Para isso, primeiramente será realizada uma interpretação do filme Cinzas do Passado, de Wong Kar Wai, buscando problematizar algumas relações a respeito do cinema e das artes marciais, sobretudo na dimensão moral menos heroica que este filme apresenta. Posteriormente, será feita uma discussão da moral e suas relações com os impulsos do corpo, buscando expor a importância do esclarecimento na estabilização dos instintos que caracterizam a condição mais arcaica do ser humano e que pode gerar ações moralmente inaceitáveis. Por fim, serão explicitados alguns elementos que podem contribuir para a formação de uma moral corajosa através do cultivo de si e da autocriação, direcionando e canalizando os impulsos agressivos e de autodefesa no contexto criativo de estudo e prática das artes marciais.

Palavras-chave:
Artes Marciais; Filmes cinematográficos; Filosofia; Moral

Abstract

This philosophical essay aims to present a critical perspective on the association between martial arts, cinema and morality. First, an interpretation will be conducted of Wong Kar Wai’s film “Ashes of Time”, seeking to problematize some relations regarding cinema and martial arts, especially in the less heroic moral dimension of this film. Subsequently, there will be a discussion on morals and their relationships with body impulses, seeking to expose the importance of clarification in stabilizing the instincts that characterize the most archaic condition of human beings, which can generate morally unacceptable actions. Finally, some elements will be explained that may contribute to form a courageous moral through self-cultivation and self-creation, directing and channeling aggressive impulses and self-defense in the creative context of martial arts study and practice.

Key words:
Martial Arts; Motion pictures; Philosophy; Morale

Resumen

Este ensayo filosófico tiene como objetivo presentar una perspectiva crítica sobre la asociación entre artes marciales, cine y moralidad. Para ello, primero se realizará una interpretación de la película “Las Cenizas del Tiempo”, de Wong Kar Wai, buscando problematizar algunas relaciones en torno al cine y las artes marciales, especialmente en la dimensión moral menos heroica que presenta esta película. Posteriormente, se discutirá la moral y sus relaciones con los impulsos del cuerpo, buscando exponer la importancia del esclarecimiento en la estabilización de los instintos que caracterizan la condición más arcaica del ser humano y que pueden generar acciones moralmente inaceptables. Finalmente, se explicarán algunos elementos que pueden contribuir a la formación de una moral valiente a través del cultivo de sí mismo y de la autocreación, dirigiendo y canalizando los impulsos agresivos y de autodefensa en el contexto creativo del estudio y práctica de las artes marciales.

Palabras clave:
Artes Marciales; Películas cinematográficas; Filosofía; Moral

1 INTRODUÇÃO

Um filme pode ser uma forma instigante de aguçar o pensamento e de elaborar questões e reflexões sobre um tema. Ao mesmo tempo, caracteriza-se como um objeto cultural que forma uma inteligência e uma linguagem diferente da linguagem verbal. Assim, o cinema pode ser entendido como uma prática social em que arte, entretenimento, linguagem, indústria, tecnologia e aspectos ideológicos estão combinados de forma complexa (ALMEIDA, 2004ALMEIDA, Milton José de. Imagens e sons: a nova cultura oral. São Paulo: Cortez, 2004.).

O ato de se expor a um filme é uma ação voluntária de deixar-se transformar interiormente, pois mesmo que se discorde do discurso audiovisual da obra cinematográfica, as narrações e as personagens existentes são sempre figuras modelares que realizam a educação política e sentimental dos afetos (ALMEIDA, 1999ALMEIDA, Milton José de. Cinema: arte da memória. Campinas, SP: Autores Associados, 1999.).

Na indústria do cinema e da televisão, o que mais importa não é exatamente a qualidade estética do que se exibe, mas sim a quantidade de pessoas dispostas a pagar pelo produto veiculado. Como a violência é moralmente inaceitável na vida ordinária, ela se torna um objeto de desejo e uma mercadoria de interesse popular, gerando rentabilidade para os meios de comunicação, que se aproveitam desse fascínio para tirar proveito da estética da violência. Entretanto, em um filme marcial com ênfase na poesia, a dimensão destrutiva e violenta será sobrepujada por uma narrativa em imagens e sons que irá enaltecer a beleza e a fantasia dos movimentos.

Aqui será realizada uma interpretação de uma obra cinematográfica, um produto artístico complexo que não causou grande repercussão mundial. Trata-se de Cinzas do Passado, de Wong Kar Wai, um filme honconguês em que não há heroísmo e nem a polaridade entre bem e mal, aspectos que são usuais em filmes deste gênero.

Longe da grandeza e do heroísmo, em Cinzas do Passado, as personagens são vulneráveis e estão sofrendo por erros de julgamento e/ou comportamento. Não se trata, portanto, de uma obra que associa as artes marciais a valores morais auspiciosos. Entretanto, o filme é rico em aspectos estéticos, filosóficos e marciais que serão aqui explorados brevemente.

Tendo em vista esses aspectos, a seguir, será realizada uma exposição de algumas relações entre artes marciais e moralidade, buscando realçar a importância do esclarecimento e da consciência de si em contraposição aos aspectos impulsivos que constituem a condição humana e que podem contribuir para ações moralmente inaceitáveis.

Nas artes marciais, a ideia é oportunizar a expressão dos impulsos que poderiam ser maléficos para a convivência social e canalizá-los de forma criativa através da prática dissimulada e regrada do combate. Neste sentido, uma potência pedagógica das artes marciais seria a constituição de um espaço/tempo de autossuperação através do controle e escoadouro dos aspectos impulsivos da condição humana.

2 LESTE MALÉVOLO, OESTE MALICIOSO: AS ARTES MARCIAIS A SERVIÇO DA IMORALIDADE

Nas artes marciais, há algo além da eficiência marcial e que se relaciona com o conhecimento suprassensível do mundo. Neste contexto, mesmo a violência e a rejeição podem ser reinventadas, tornando-se esteticamente mais interessantes de serem observadas.

É o que ocorre em Cinzas do Passado, do cineasta Wong Kar Wai. O título original do filme é 東邪西毒, que pode ser traduzido por leste malévolo, oeste malicioso, indicando uma dimensão moral menos romantizada das artes marciais.

Este filme é carregado de fragmentação narrativa e de registros espaciais/temporais discrepantes, o que exige uma leitura menos sujeita à racionalização, por isso, é preciso assisti-lo mais de uma vez, caso se queira um entendimento mais apurado de seus aspectos sutis e multifacetados. Isso porque tanto a estética quanto a sua estrutura narrativa não buscam se aproximar da realidade tal como é concebida em outros filmes que possuem uma tônica mais realista. Logo, reconstruir a narrativa e as personagens faz parte do trabalho do espectador que se propõe a investigar, de maneira mais pormenorizada, as dimensões e os campos de sentido possíveis de Cinzas do Passado.

O cinema é uma linguagem com rastro de realidade, pois a imagem projetada na tela mimetiza a realidade com alto teor de fidelidade. Trata-se de uma língua cujo código e cujos signos parecem identificar-se com a natureza, os seres e as coisas que representam (PASOLINI, 1982PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo herege. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982.). Mas, no caso de Cinzas do Passado, tem-se uma obra que não quer seguir uma representação mimética do real, pois a iluminação em tom pastel lembra as pinturas clássicas chinesas, e a ordem dos eventos não segue uma cronologia linear, criando um senso de caos e desordem temporal. Além disso, Cinzas do Passado não segue a estrutura narrativa em que a presença do bem, do mal e do heroísmo marcial é claramente apresentada, por isso, este filme pode ser considerado uma tentativa de inovação no gênero (DISSANAYAKE, 2003DISSANAYAKE, Wimal. Ashes of Time. Aberdeen: Hong Kong University Press, 2003.).

Wong Kar Wai inspirou-se na novela The Legend of the Condor Heroes de Jin Yong, para fazer Cinzas do Passado. A obra de Jing Yong apresenta uma narrativa sobre poder e aventura e já serviu de inspiração para outros filmes e séries. Entretanto, neste filme, Wong Kar Wai não manteve quase nada da história original. De acordo com Dissanayake (2003DISSANAYAKE, Wimal. Ashes of Time. Aberdeen: Hong Kong University Press, 2003.), o que foi mantido do livro na narrativa fílmica foi a presença de três personagens, que são Hong Qi, Huang Yaoshi e Ouyang Feng.

A narrativa fílmica acompanha as estações do ano e o almanaque chinês. A fantasia amplia-se na medida em que as personagens são capazes de feitos além do comum, como lutar contra o próprio reflexo ou implodir uma montanha apenas com o desembainhar da espada.

No entanto, mais do que a visibilidade, é a invisibilidade que domina as sequências de ação, por isso, ao invés do foco da câmara centrado em todo o corpo da personagem, são figuras parciais na sombra que predominam nas cenas marciais de combate.

Ouyang Feng deixou sua casa na Montanha do Camelo Branco porque a mulher que amava escolheu casar-se com seu irmão por vingança. Então, ele abandona uma vida moral auspiciosa para tornar-se uma espécie de agente homicida:

Ouyang Feng: Pela sua aparência eu diria que você deve ter uns 40 anos. Nestes 40 anos deve ter havido pessoas com quem nunca gostaria de ter cruzado. Talvez tenham magoado você. Talvez tenha até cogitado matá-las! Mas você não teve coragem ou não quis se dar o trabalho. Matar não é difícil! Tenho um amigo que conhece artes marciais. Ele não tem tido muita sorte ultimamente. Por uma pequena soma, com prazer livrará você de uma pessoa dessas. Pense nisso! (CINZAS DO PASSADO, 2008, cap. 1).

Ouyang Feng foi rejeitado pela mulher que ama justamente pela ausência que a vida de um grande guerreiro exige. Ele perde a possibilidade do amor em troca da fama e do sucesso. Assim, grande parte do filme ocorre à frente do tempo das aventuras virtuosas de Ouyang Feng. Apesar disso, alguns trechos apresentam Ouyang em ação com a espada, como na abertura do filme, quando ocorre uma batalha entre ele e Huang Yaoshi. Apenas o desembainhar das espadas de ambos é capaz de destronar montanhas. A troca de golpes de espadas e a maneira com que se movem demonstram a grande habilidade de ambos para lutar.

A personagem Huang Yaoshi é representada na obra literária como um homem de grande beleza, inteligência e inclinação artística. No livro, Huang Yaoshi detesta dupla personalidade e aprecia a lealdade, já no filme, ele só visita Ouyang Feng porque está interessado em sua antiga namorada (DISSANAYAKE, 2003DISSANAYAKE, Wimal. Ashes of Time. Aberdeen: Hong Kong University Press, 2003.).

Assim como Ouyang Feng, é difícil definir Huang Yaoshi moralmente, pois entre as personagens principais não há clara dicotomia entre o bem e o mal e nem heróis ou bandidos. O filme conduz para o bem, mas as principais personagens transitam entre os vícios e as virtudes, assim como sofrem de erros de julgamento e/ou comportamento. Assim, o filme desestabiliza os valores morais não propondo o habitual confronto entre o bem e o mal.

Ao se aproximar de Huang Yaoshi, muitos se cativam, mas depois se desiludem. Talvez seja por esta qualidade de decepcionar as pessoas que Huang deseja apagar suas memórias. A ideia de uma fuga dos feitos passados perpassa a trama até o ponto da existência de um vinho mágico capaz de apagar a memória:

Huang Yaoshi: Alguém que conheci recentemente deu-me esta garrafa de vinho. Ela disse que este vinho é mágico. Que um copo faz a gente esquecer o passado. Achei que era bobagem. Como era possível existir um vinho assim? Ela disse que a raiz dos problemas do homem é a memória. Sem um passado, cada dia seria um novo início. Não seria maravilhoso? (CINZAS DO PASSADO, 2008, cap. 1).

A questão de como lidar e/ou julgar as ações após terem sido realizadas perpassa a moral e fundamenta a ética da vida social e comunitária. Existe aqui o aspecto repressor da memória e da consciência moral, enquanto plano de interioridade de um sentimento de tipo especial, que se manifesta na forma de aprovação ou reprovação como resultado das intenções e das ações: “Trata-se de uma consciência atuando como infalível instância de julgamento, que nos censura ou nos louva, nos condena ou absolve” (GIACÓIA JR., 2012GIACÓIA JR., Oswaldo. Nietzsche x Kant: uma disputa permanente a respeito de liberdade, autonomia e dever. Rio de Janeiro: Casa da Palavra; São Paulo: Casa do Saber, 2012., p. 85).

Desperta a primavera, Huang Yaoshi encontra em uma taverna um espadachim cuja visão vem progressivamente sucumbindo. Huang, que nesse momento da trama já havia ingerido o vinho mágico do esquecimento, pergunta-lhe se eles já se conheciam. O espadachim responde afirmativamente e diz que os dois já foram bons amigos.

Huang Yaoshi já tinha ido à Vila das Flores de Pessegueiro, cidade natal deste espadachim, para assistir o seu casamento, mas Huang flertou com a noiva dele no dia do casamento; desde então, o espadachim jurou matar Huang quando o visse. Apesar do seu juramento, o espadachim não matou Huang Yaoshi naquele encontro, pois ele já estava praticamente cego naquele momento.

Huang Yaoshi tem relações tempestuosas com as demais personagens do filme, sua vida selvagem e livre o torna uma pessoa sedutora e desafiadora, mas também capaz das mais condenáveis ações. Esse passado tempestuoso de Huang o faz desejar esquecê-lo e, por isso, ele ingere o vinho mágico.

Nasce o verão, o espadachim da Vila das Flores de Pessegueiro está rapidamente perdendo a visão e quer ir para sua terra natal para ver as flores de pessegueiro uma última vez, mas ele precisa de dinheiro para a viagem. Na verdade, Flor de Pessegueiro2 2 Na cultura chinesa, flor de pessegueiro é um símbolo sofisticado e idealizado de ambição e desejo. é o nome que o espadachim cego deu a sua esposa, mas por algum motivo ele não quer revelar isto a Ouyang Feng. Ouyang oferece-lhe a tarefa de defender os moradores locais de uma gangue de ladrões de cavalos.

Na manhã da chegada dos bandidos, o espadachim sai para enfrentar os ladrões. Sem visão e agindo solitariamente contra uma gangue muito superior em número, o espadachim é morto.

O espadachim cego escolheu a morte por ter sido rejeitado pela mulher que ama, após o encontro dela com Huang Yaoshi. A sua valentia e a maneira com que enfrenta a gangue de ladrões demonstram o seu desespero e a renúncia da vida. A câmera lenta na cena de sua batalha evidencia a sua caminhada em direção ao fim. Seus gestos, apesar de virtuosos, são carregados de sofrimento e indiferença à vida.

Na chegada do outono, aparece o espadachim Hong Qi, que passa a residir perto da cabana de Ouyang Feng. Ele está à procura de aventuras no mundo das artes marciais. Apesar de receios, Ouyang Feng o alimenta e lhe oferece o trabalho de acabar com os ladrões de cavalos restantes.

Após vencer a batalha contra a gangue de ladrões de cavalos, Hong Qi passa alguns dias a refletir sobre a vida de espadachim:

Hong Qi: Já se perguntou o que há além deste deserto?

Ouyang Feng: Outro deserto.

Narrador (Ouyang Feng): É algo que todos nos perguntamos em algum momento da vida. Vemos uma montanha e queremos saber o que há atrás dela. Eu queria dizer a ele que o outro lado pode ser igual. Fazendo um retrospecto, vejo que o lar não é tão ruim. Mas ele não me ouvia. Era o tipo de pessoa que precisava ver por si mesmo (CINZAS DO PASSADO, 2008, cap. 3).

Os movimentos de Hong Qi com seu sabre são agéis e acompanhados de saltos e golpes com as pernas. Suas lutas são filmadas em grande velocidade para acompanhar o ritmo do seu corpo em batalha. Hong Qi é um guerreiro em ascensão, pois a sua forma de lutar, o seu desapego do passado e suas aspirações de futuro demonstram sua ascendência no universo das artes marciais. Diferente de Ouyang Feng e Yang Yaoshi, Hong Qi se aproxima do típico herói de filmes marciais, com algum senso de generosidade e humanidade.

Chega o fim do inverno, Ouyang Feng vai visitar a Vila Flor de Pessegueiro e encontra a viúva do espadachim cego que reconhece o cachecol do falecido marido que está sob a posse de Ouyang. Ele imediatamente percebe que não há flores de pêssego neste lugar e que Flor de Pessegueiro é o nome que o espadachim cego deu a sua mulher.

Enquanto isso, Huang Yaoshi está recordando o último encontro com a mulher que rompeu o namoro com Ouyang Feng. Ela estava doente e solitária, pois a sua decisão de rejeitar Ouyang Feng agora lhe trouxe dor. Ela entrega para Huang Yaoshi a garrafa de vinho mágico que se destina a Ouyang Feng e logo após morre.

Retorna a primavera, Ouyang Feng recebe uma mensagem da Montanha do Camelo Branco informando-lhe que a mulher que ele ama faleceu. Ele contempla as razões da sua solidão.

O filme finaliza com uma batalha de Ouyang Feng contra guerreiros desconhecidos, mas antes disso, ele ateia fogo em sua cabana e abandona o deserto. O fogo queimando a madeira parece simbolizar algo que perpassa toda a trama e o título do filme em versões traduzidas no ocidente: queimar o tempo transformando-o em cinzas.

O apego ao passado simbolizado pelas cinzas que restam da queima dos acontecimentos representa a impossibilidade de se desvencilhar do tempo e das ações já concretizadas:

Como seria maravilhoso voltar ao passado; a memória é a raiz dos problemas dos homens; quanto mais você deseja esquecer, mais você se lembra; não seria maravilhoso se pudéssemos esquecer o passado? Sem um passado, cada dia seria um novo recomeço! (CINZAS DO PASSADO, 2008, cap. 4).

Ainda resta destacar a presença de duas personagens com claras referências ao par yin/yang da cultura chinesa. Trata-se de Murong Yang e sua irmã Murong Yin, que é na verdade um alter ego de Murong Yang com fins de transcendência, mas que o faz mergulhar ainda mais profundamente em si mesmo. Murong Yin e Murong Yang são duas facetas de uma mesma alma perturbada (DISSANAYAKE, 2003DISSANAYAKE, Wimal. Ashes of Time. Aberdeen: Hong Kong University Press, 2003.).

Na cena em que Murong Yin e Murong Yang aparecem em tempos intermitentes praticando espada em uma lagoa, é como se quisessem se cortar, golpeando a imagem do alter ego que reflete na água. Na versão honconguesa estendida deste filme, esta cena finaliza com um estridente grito de cólera de ambos, provavelmente porque não conseguem cortar o próprio alter ego.

O tema principal do filme é o medo da rejeição, mas o senso de solidão, o poder opressivo da memória, a inabilidade para comunicar-se, as desconexões e desapontamentos no amor serão motivadores de ações moralmente questionáveis pelas personagens.

Apesar de ser considerado um filme de arte marcial, o tempo e a trama não são preenchidos com ações heroicas. Além disso, as cenas marciais em Cinzas do Passado exigem que o espectador preencha de sentidos os espaços vazios deixados pelas cenas de baixa luminosidade ou pela especificidade das transições dadas entre um corte e outro. Assim, o filme apresenta muitas lacunas para serem preenchidas pela imaginação e pela razão. É como se o espectador fosse convidado a desembaralhar a difícil trama e, ao mesmo tempo, a preencher as fissuras de ininteligibilidade que o filme apresenta:

O não falar não significa que não se tenha nada a dizer. Aqueles que não falam podem estar transbordando de emoções que só podem ser expressas através de formas e imagens, gestos e feições. Os gestos do homem visual não são feitos para transmitir conceitos que possam ser expressos por palavras, mas sim as experiências interiores, emoções não racionais que ficariam ainda sem expressão quando tudo o que pudesse ser dito fosse dito. Tais emoções repousam no nível mais profundo da alma e não podem ser expressas por palavras, que são meros reflexos de conceitos. O que aparece na face e na expressão facial é uma experiência espiritual visualizada imediatamente, sem mediação de palavras (BALÁZS, 1983BALÁZS, Bela. Der Sichtbare Mensch (O Homem Visível) - 1923. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. P. 50-61., p.78).

É possível argumentar que foi graças às artes marciais que as personagens de Cinzas do Passado tornaram-se ressentidas e maliciosas. Por desejar a fama no mundo marcial, Ouyang Feng perde a chance de uma vida amorosa afortunada, pois a sua antiga namorada resolve se vingar dele casando-se com o seu irmão, o que irá futuramente trazer infelicidade para ela e desembocar na vida mercenária e solitária de Ouyang Feng; por ser um aventureiro inconsequente e um exímio espadachim, Huang Yaoshi torna-se o pivô do ressentimento do espadachim cego e dos irmãos Murong, além de se aproximar de Ouyang Feng apenas pelo interesse particular que possui por sua antiga namorada; Hong Qi tem o anseio de tornar-se famoso, mas por sentir oposição a Ouyang Feng, retira-se para liderar uma gangue de mendigos, desembocando em sua morte junto com a de Ouyang Feng; os irmãos Murong são duas personagens perturbadas emocionalmente, ainda que virtuosas de beleza e habilidades marciais; o espadachim cego abandona a vida por não aceitar a perda do seu antigo amor, a Flor de Pessegueiro, para Huang Yaoshi. Logo, são poucos os resquícios de heroísmo e de moral auspiciosa que estão presentes nesse filme.

Afinal, as artes marciais são disciplinas que permitem a construção de uma personalidade auspiciosa ou, pelo contrário, podem conduzir seus praticantes para a catástrofe moral, como ocorre com as personagens de Cinzas do Passado?

3 ARTES MARCIAS E MORALIDADE

No contexto das diferentes práticas corporais, as artes marciais costumam chamar a atenção pela difusão de valores morais auspiciosos que são conquistados através da sua prática. É muito comum, na propaganda de diferentes escolas, a divulgação de que as artes marciais promovem disciplina e ajudam a controlar a agressividade (ANDRAUS, 2013ANDRAUS, Mariana Baruco Machado. Arte marcial e agressividade. In: ANTUNES, Marcelo Moreira; IWANAGA, Carla Carvalho. Aspectos multidisciplinares das artes marciais. Jundiaí: Paco Editorial, 2013. p.83-99.).

Said (1990SAID, Edward Wadie. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.) diz que o oriente é quase uma invenção europeia, um lugar de romance, de seres exóticos, de memórias e paisagens extravagantes e de experiências notáveis. Existe, portanto, uma tradição no ocidente que estabeleceu uma ideia a respeito do oriente que este intelectual palestino denominou orientalismo. Um dos traços do orientalismo reside justamente na romantização das artes marciais orientais e da sua potência moral, o que não quer dizer que praticar uma arte marcial não possa contribuir para a formação de uma personalidade mais disciplinada e de caráter nobre.

É justamente a presença de um conjunto de valores morais que possibilita uma espécie de transcendência das artes marciais, pois, do contrário, a prática marcial poderia ser reduzida apenas a sua dimensão física de combate. Como dizem Reid e Croucher (1983REID, Howard; CROUCHER, Michael. O caminho do guerreiro: o paradoxo das artes marciais. São Paulo: Cultrix, 1983.), a arte marcial não depende somente da prática de certos movimentos, mas também possui um conteúdo intelectual e um sistema de valores que se baseiam numa visão específica do universo e do lugar que o ser humano ocupa dentro dele. Por isso, a prática da arte marcial vem imbuída de um sentido de trabalhar a consciência de si, do mundo, do colega, configurando um exercício que visa ao aguçamento da concentração, da percepção e da atenção (ANDRAUS, 2013ANDRAUS, Mariana Baruco Machado. Arte marcial e agressividade. In: ANTUNES, Marcelo Moreira; IWANAGA, Carla Carvalho. Aspectos multidisciplinares das artes marciais. Jundiaí: Paco Editorial, 2013. p.83-99.).

De provável origem confucionista,3 3 Confúcio (551-479 a. C.) foi um importante pensador chinês que buscou estabelecer mecanismos que pudessem produzir um bom ordenamento social. Confúcio acreditava que só poderia haver harmonia se cada indivíduo seguisse à risca as normas de sua sociedade, incluindo respeito à hierarquia e à etiqueta. Este legado confucionista que aprecia a hierarquia e a aceitação da ordem favorece a governabilidade e a manutenção da organização social (HAIMING, 2011). as artes marciais do oriente têm um código de ética que preconiza uma conduta de respeito às tradições, aos demais praticantes e, sobretudo, aos mestres: “Assim, o treinamento em artes marciais pode ser profícuo na relação do sujeito com a sua agressividade, ao suscitar nele atitudes como o respeito e a valorização do outro” (ANDRAUS, 2013ANDRAUS, Mariana Baruco Machado. Arte marcial e agressividade. In: ANTUNES, Marcelo Moreira; IWANAGA, Carla Carvalho. Aspectos multidisciplinares das artes marciais. Jundiaí: Paco Editorial, 2013. p.83-99., p. 96).

No entanto, para que ocorra a consolidação de valores morais promissores, o contexto de estudo e prática de uma arte marcial deve permitir o acesso ao surgimento desses aspectos, o que nem sempre ocorre. Amiúde, a ideia de que a arte marcial deve preparar o indivíduo não apenas para infligir dores, mas também para suportá-las, faz com que ele seja incentivado ao uso de esforço excessivo sob uma lógica punitiva e autopunitiva de dor e sacrifício, o que pode acarretar consequências negativas em sua personalidade, além de lesões físicas das mais diversas ordens.

Também é questionável a moral esportiva que apresenta lutadores campeões como verdadeiros heróis. Afinal, não são inúmeras as desilusões e frustações daqueles que não alcançam o lugar mais alto do pódio? Além disso, tornar-se um campeão esportivo dota o vencedor de uma moral digna e exemplar ou, pelo contrário, pode contribuir para nutrir uma personalidade vaidosa e/ou arrogante?

Independentemente dos resultados morais a que se pode chegar, há um conjunto de saberes morais que circundam a prática marcial. A reflexão sobre este conjunto de saberes é necessária para que o artista marcial possa pensar a respeito das qualidades e consequências de sua capacidade de combate. Assim, o estudo e a prática de uma arte marcial perpassam tanto pela necessidade de refletir a respeito das consequências morais e éticas que podem surgir como resultado de sua prática, quanto de buscar algo além da exclusividade marcial dos gestos, pois a humanidade optou por uma trilha de pacificação e de convivência civilizada.

Em Cinzas do Passado, as personagens sucumbem à dimensão negativa da vida social porque são demasiado apegadas aos erros do passado e, por isso, cometem ações motivadas por razões egoístas. De fato, a vontade humana não é perfeita, não é uma vontade santa. Os seres humanos são ontologicamente constituídos de tal forma, que a razão pura é limitada pela sensibilidade constituída de impulsos, desejos, inclinações, propensões e interesses egoístas (GIACÓIA JR, 2012GIACÓIA JR., Oswaldo. Nietzsche x Kant: uma disputa permanente a respeito de liberdade, autonomia e dever. Rio de Janeiro: Casa da Palavra; São Paulo: Casa do Saber, 2012.).

De que modo as artes marciais podem concorrer para ações moralmente auspiciosas de seus praticantes? São muitos os caminhos que podem ser tomados para responder esta pergunta. De maneira sintética, será abordada a dimensão positiva da vazão dos impulsos do corpo em contexto dissimulado e regrado de combate e o cultivo de si através da coragem de tornar-se o que se é, ultrapassando a zona de conforto. Assim, quando a dimensão impulsiva do ser humano é submetida a uma cultura ou a uma educação, o movimento instintivo que na vida pode criar coisas terríveis e cruéis, pode transmutar-se em arte, em jogo e em gozo.

4 IMPULSOS DO CORPO E O CULTIVO DE SI NAS ARTES MARCIAIS

Uma vez que o processo civilizatório optou por refutar ações instintivas que passam a ser considerados atos de violência numa cultura presumidamente de paz, o animalesco no ser humano teve de se privar da satisfação natural de seus mais vigorosos impulsos,4 4 Impulso é um incitamento súbito, momentâneo e difícil de controlar para determinada meta. É caracterizado por um aspecto dinâmico, ativo, circunscrito no limite entre o psíquico e o somático, enquanto no instinto sobressai-se o caráter hereditário, característico da espécie, pré-formado no seu desenvolvimento e desenrolando-se segundo uma sequência temporal pouco suscetível de perturbações (ABBAGNANO, 2007). justamente aqueles que constituíam seu prazer animal e sua terribilidade (GIACÓIA JR., 2012GIACÓIA JR., Oswaldo. Nietzsche x Kant: uma disputa permanente a respeito de liberdade, autonomia e dever. Rio de Janeiro: Casa da Palavra; São Paulo: Casa do Saber, 2012.).

Sendo moralmente inaceitável o combate em contexto real, é na dimensão da simulação regrada do combate que a marcialidade pode tornar-se mais apropriada. Nesse contexto dissimulado, mesmo os impulsos agressivos podem ser controlados pela razão. Dessa forma, as artes marciais passam a se tornar canais de exteriorização positiva de forças destrutivas presentes no ser humano:

Uma vez que todo sujeito tem, em maior ou menor grau, um instinto destrutivo a ser deslocado para fora, a arte marcial pode configurar um espaço para extravasar essa energia, seja nos exercícios em que efetivamente se desfere o golpe contra um saco de pancada ou contra um adversário que esteja portando equipamento de segurança ou pela via da expressividade presente na execução das formas5 5 Formas são sequências de movimentos que simulam um combate (ANDRAUS, 2013). (ANDRAUS, 2013ANDRAUS, Mariana Baruco Machado. Arte marcial e agressividade. In: ANTUNES, Marcelo Moreira; IWANAGA, Carla Carvalho. Aspectos multidisciplinares das artes marciais. Jundiaí: Paco Editorial, 2013. p.83-99., p. 95).

A prática de uma arte marcial pode transportar os impulsos agressivos para um mundo moralmente aceitável e, desta forma, dar vazão à dimensão animal do humano em contexto de criatividade e razoabilidade social. Assim, a eficiência combativa precisa ser regrada mediante a dimensão moral das consequências do golpe.

Portanto, as artes marciais possibilitam uma aproximação da dimensão instintiva do ser humano, pois para praticar um gesto marcial é preciso lidar com os impulsos agressivos e de autodefesa que surgem no contexto de um combate, ainda que seja apenas um combate dissimulado. Assim, a prática da arte marcial possibilita um tempo/espaço propício para que os impulsos mais destrutivos possam ocorrer dentro de valores e normas aceitáveis, o que pode ser considerado uma espécie de estabilização para um grave desequilíbrio que aflige a humanidade:

A maior e mais sinistra doença, da qual até hoje não se curou a humanidade, o sofrimento do homem com o homem, consigo: como resultado de uma violenta separação de seu passado animal, como que um salto e uma queda em novas situações e condições de existência, resultado de uma declaração de guerra aos velhos instintos nos quais até então se baseava sua força, seu prazer e o temor que inspirava (NIETZSCHE, 2009NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 68).

O afastamento do ser humano da sua dimensão instintiva se potencializa com a opção pela civilização e, com ela, a recusa de poderosos instintos. Tal renúncia não se faz impunemente, se essa perda não for compensada, sérios distúrbios podem decorrer disso. Um elemento que precisa ser bem manejado no processo civilizatório é a inclinação para a agressão, que constitui um fator que perturba os relacionamentos e força a civilização a despender enorme [energia], pois como consequência dessa hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração (FREUD, 1974FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1974.v.21.).

Nietzsche (2018NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Companhia de Bolso, 2018.) diz que o homem é uma corda atada entre o animal e o além-do-homem, uma corda sobre um abismo. Uma das oportunidades que o aprendizado de uma arte marcial possibilita se encontra na observação, compreensão e cultivo de si, o que seria uma forma de educação que poderia contribuir para que o ser humano caminhasse em direção ao além-do-homem. Tal caminhada se caracteriza pela autossuperação e pelo cultivo de uma nova dimensão de si.

Em Nietzsche, a ética está intimamente relacionada com as próprias vivências e com a incorporação de novos modos de pensar, agir e sentir. Portanto, não se trata de uma teoria ou um sistema ético para ser seguido e legislado, mas de uma autocriação, ou seja, a construção de uma singularidade autêntica e genuinamente pessoal, um sujeito esclarecido e, por isso mesmo, supramoral:

Pode-se conjecturar que um espírito no qual o tipo do ‘espírito livre’ deva algum dia tornar-se maduro e doce até a perfeição tenha tido seu evento decisivo numa grande liberação, e que anteriormente parecesse ainda mais atado e para sempre acorrentado a seu canto e sua coluna. O que liga mais fortemente? Que laços são quase indissolúveis? Para homens de espécie mais alta e seleta serão os deveres: a reverência que é própria da juventude, a reserva e delicadeza frente ao que é digno e venerado desde muito, a gratidão pelo solo do qual vieram, pela mão que os guiou, pelo santuário onde aprenderam a adorar (NIETZSCHE, 2005NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2005., p. 9).

Nietzsche propõe, em seu projeto filosófico, a formação de uma singularidade genuína que seja capaz de suprimir a necessidade de leis universais. Legisladores de si mesmos é o que reivindica o processo de esclarecimento e autocriação do filósofo da genealogia da moral. O espírito livre é aquele que abandonou toda a crença, toda a segurança, todo o conforto. Aquele que é capaz de pensar por si (GIACÓIA JR., 2012GIACÓIA JR., Oswaldo. Nietzsche x Kant: uma disputa permanente a respeito de liberdade, autonomia e dever. Rio de Janeiro: Casa da Palavra; São Paulo: Casa do Saber, 2012.).

Trata-se da superação da moral pela autonomia do sujeito esclarecido. Uma proposta de cultivo de si, de tornar-se o que se é. Essa tarefa exige que se mexa com os valores mais profundos, com os hábitos mais comuns. Esse processo de “tornar-se o que se é” é um devir permanente, consistindo em vivências fundamentais, que são deposições de si ao longo de um caminho do pensamento, fragmentos e pegadas de um si mesmo que só podem ser recuperadas parcialmente, em etapas privilegiadas do próprio caminhar (GIACÓIA JR., 2019GIACÓIA JR., Oswaldo. Falso e verdadeiro self: pensar para além dos avós. ou: espírito livre e autoconsciência: si-próprio como devir. Revista Natureza Humana, v.21, n.2, p.97-111, 2019.).

Conhecer a si mesmo significa saber identificar as reais motivações dos pensamentos, emoções e ações que se praticam no mundo, bem como uma luta constante pela superação de si e da zona de conforto que os seres humanos costumam permanecer. Essa é a meta do indivíduo que não se aquieta com o que está pronto. A busca de si mesmo significa uma vida que se cria na constante luta interna (MENDONÇA, 2013MENDONÇA, Samuel. Filosofia, Saúde e Arte Marcial: A dimensão individual e interna da luta. In: ANTUNES, Marcelo Moreira; IWANAGA, Carla Carvalho. Aspectos multidisciplinares das artes marciais. Jundiaí: Paco Editorial, 2013. p. 101-115.).

Para o artista marcial, trata-se de superar a dormência, a preguiça e o medo, pois a arte marcial induz o uso do corpo como instrumento de fortalecimento do sujeito: “A arte marcial diz respeito à busca da superação de nossas fraquezas internas. É a partir da luta interna e da superação das fraquezas que o lutador supera sua condição comum e, assim, consegue revalorar os seus valores” (MENDONÇA, 2013MENDONÇA, Samuel. Filosofia, Saúde e Arte Marcial: A dimensão individual e interna da luta. In: ANTUNES, Marcelo Moreira; IWANAGA, Carla Carvalho. Aspectos multidisciplinares das artes marciais. Jundiaí: Paco Editorial, 2013. p. 101-115., p.102).

Trata-se de se desprender dos mais íntimos valores, sobretudo da preguiça e da falta de coragem diante do pavor da solidão ao ter que se desgarrar da moral de escravos, pois a moral de escravos é essencialmente uma moral utilitária, que induz o afastamento do conflito por uma felicidade superficial.

A liberdade da vontade de que trata Nietzsche é uma lei absolutamente própria, autônoma. Essa autossupressão da moral significa para Nietzsche uma inversão da metafísica platônica e a abolição do sentimento de culpa, uma vez que os valores não se encontram num mundo suprassensível, mas revelam-se humanos, demasiado humanos:

Inventando outro mundo, os ressentidos reinstauram princípios transcendentes, tomando-os por base da moralidade; com isso, desprezam o mundo em que se encontram e negligenciam o caráter humano, demasiado humano dos valores que eles mesmos instituíram (MARTON, 2014MARTON, Scarlett. Nietzsche e a arte de decifrar enigmas: treze conferências europeias. São Paulo: Loyola, 2014., p. 167-168).

Esclarecer-se não significa superar a dimensão humana de não sentir mais impulsos e/ou desejos egoicos, mas de saber conviver com a angústia e o estranho dentro de si mesmo, lidando com estes afetos de forma franca, direta e objetiva.

No caso das personagens de Cinzas do Passado, seria preciso esclarecer-se do ressentimento e superar a aversão ao tempo e não de apagar as memórias pela ingestão de um vinho mágico, ou seja, submeter à crítica o ressentimento e desligar-se dele, como diz a ex-namorada de Ouyang Feng pouco antes de morrer: “Eu achava que algumas palavras eram muito importantes. Uma vez ditas, elas durariam para sempre. Mas hoje, fazendo um retrospecto, vejo que não tem importância. Tudo muda” (CINZAS DO PASSADO, 2008, cap. 04).

Portanto, é preciso lidar corajosamente com os erros cometidos e transmutar todo “Foi” em “Assim eu quis!” de maneira auspiciosa, afirmando incondicionalmente o momento presente e todas as consequências e responsabilidades advindas do passado ou projetadas para o futuro, uma tarefa para os incomparáveis legisladores de si, os autocriadores (NIETZSCHE, 2018NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Companhia de Bolso, 2018.).

5 CONCLUSÕES

A narrativa cinematográfica de Cinzas do Passado se desvia do código moral que justifica o uso da marcialidade em prol do bem e do correto. Ao invés disso, nesse filme, as artes marciais propiciam o isolamento, falhas de comportamento e até mesmo a loucura. A contribuição do filme para uma análise moral das artes marciais se dá pela via do questionamento e da problematização de uma certeza aparente, visto que praticar uma arte marcial não necessariamente resultará na conquista de uma moral auspiciosa.

No entanto, foi apresentada a ideia de que as artes marciais possibilitam a canalização dos impulsos agressivos e de autodefesa em contexto simulado e regrado de combate, promovendo o desenvolvimento da perspectiva de cuidado de si e de autossuperação.

A moral constitui-se como um conjunto de valores e normas que orientam e justificam o agir humano. No entanto, esse conjunto de valores e normas esmorecem diante de um indivíduo esclarecido que é capaz de fazer uso de sua consciência para se autossuperar e tornar-se o que se é, ou seja, uma subjetividade profundamente ligada a uma concepção de vida prática que é extraordinariamente difícil de ser atingida, pois é muito difícil não sucumbir à zona de conforto.

As artes marciais constituem uma senda que abre um portal para duas dimensões aparentemente antagônicas, mas que estão interligadas no ser humano: A dimensão instintiva e a dimensão moral. O desafio é poder harmonizá-las, tendo em vista uma vitalidade e satisfação superior.

REFERÊNCIAS

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  • PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo herege. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982.
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  • SAID, Edward Wadie. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
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    O presente trabalho foi realizado sem o apoio de fontes financiadoras.
  • 1
    O autor agradece aos pareceristas pelas contribuições durante o processo de avaliação deste trabalho.
  • 2
    Na cultura chinesa, flor de pessegueiro é um símbolo sofisticado e idealizado de ambição e desejo.
  • 3
    Confúcio (551-479 a. C.) foi um importante pensador chinês que buscou estabelecer mecanismos que pudessem produzir um bom ordenamento social. Confúcio acreditava que só poderia haver harmonia se cada indivíduo seguisse à risca as normas de sua sociedade, incluindo respeito à hierarquia e à etiqueta. Este legado confucionista que aprecia a hierarquia e a aceitação da ordem favorece a governabilidade e a manutenção da organização social (HAIMING, 2011HAIMING, Wen. El pensamiento filosófico chino. Beijing: China Intercontinental, 2011. (Series de China Cultural).).
  • 4
    Impulso é um incitamento súbito, momentâneo e difícil de controlar para determinada meta. É caracterizado por um aspecto dinâmico, ativo, circunscrito no limite entre o psíquico e o somático, enquanto no instinto sobressai-se o caráter hereditário, característico da espécie, pré-formado no seu desenvolvimento e desenrolando-se segundo uma sequência temporal pouco suscetível de perturbações (ABBAGNANO, 2007ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.).
  • 5
    Formas são sequências de movimentos que simulam um combate (ANDRAUS, 2013ANDRAUS, Mariana Baruco Machado. Arte marcial e agressividade. In: ANTUNES, Marcelo Moreira; IWANAGA, Carla Carvalho. Aspectos multidisciplinares das artes marciais. Jundiaí: Paco Editorial, 2013. p.83-99.).

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RESPONSABILIDADE EDITORIAL

Alex Branco Fraga *, Elisandro Schultz Wittizorecki *, Ivone Job *, Mauro Myskiw *, Raquel da Silveira *
* Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2020
  • Aceito
    10 Ago 2021
  • Publicado
    18 Set 2021
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