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PRÁTICAS CORPORAIS NA AMAZÔNIA: CONTRIBUIÇÕES PARA O CURRÍCULO CULTURAL NA ESCOLA

BODY PRACTICES IN THE AMAZON: CONTRIBUTIONS TO THE CULTURAL CURRICULUM AT SCHOOL

PRÁCTICAS CORPORALES EN LA AMAZONIA: APORTES AL CURRÍCULUM CULTURAL EN LA ESCUELA

Resumo

O processo de escolarização brasileiro, alicerçado pelo prisma da modernidade, fortaleceu no cotidiano escolar a predominância de práticas pedagógicas homogêneas e monoculturais que não dialogam com a diversidade cultural presente na escola. Argumentamos que esse cenário traz implicações para o processo educativo e para a formação do sujeito, além de provocar tensões ou conformidade diante da (in)adequação frente à cultura dominante. Diante disso, o presente artigo analisa as interseções entre cultura, escola e práticas corporais desenvolvidas na Amazônia para a valorização dos sujeitos e significação do processo de aprendizagens à luz da interculturalidade crítica e da educação física cultural. O diálogo com o campo teórico opõe-se aos modelos vigentes de pensar e construir a educação e tensiona em favor do reconhecimento dos diferentes conhecimentos, da valorização e do respeito à diversidade de sujeitos e culturas para a construção de uma sociedade mais democrática, plural e humana.

Palavras-chave:
Interculturalidade; Práticas Corporais; Educação Física.

Abstract

The Brazilian schooling process, based on the prism of modernity, has strengthened in everyday schools the predominance of homogeneous and monocultural pedagogical practices that do not dialogue with the cultural diversity present in schools. It is argued that this scenario has implications for the educational process and the formation of the subject, besides causing tensions or conformity in the face of (in)adequacy to the dominant culture. Therefore, this article analyzes the intersections between culture, school and body practices developed in the Amazon towards the valorization of subjects and the significance of the learning process in the light of critical interculturality and cultural physical education. The dialogue with the theoretical field opposes the current models of thinking and building education and tenses in favor of recognizing different knowledge, valuing and respecting the diversity of subjects and cultures for the construction of a more democratic, plural and human society.

Keywords:
Interculturality; Body Practices; Physical Education.

Resumen

El proceso de escolarización brasileño, basado en el prisma de la modernidad, fortaleció en el cotidiano escolar el predominio de prácticas pedagógicas homogéneas y monoculturales que no dialogan con la diversidad cultural presente en la escuela. Se argumenta que este escenario tiene implicaciones para el proceso educativo y para la formación del sujeto, además de provocar tensiones o conformismo delante de la (in)adecuación frente a la cultura dominante. Por lo tanto, este artículo analiza las intersecciones entre cultura, escuela y prácticas corporales desarrolladas en la Amazonía para la apreciación de los sujetos y el sentido del proceso de aprendizaje a la luz de la interculturalidad crítica y la educación física cultural. El diálogo con el campo teórico se contrapone a los modelos vigentes de pensar y construir la educación y se incide a favor del reconocimiento de los saberes diferentes, la valoración y el respeto a la diversidad de sujetos y culturas para la construcción de una sociedad más democrática, plural y humana.

Palabras clave:
Interculturalidad; Prácticas Corporales; Educación Física.

1 INTRODUÇÃO

No âmbito educacional, os discursos em torno do reconhecimento da diversidade cultural presente na sociedade brasileira e a necessidade de respeitar, valorizar e incorporar essas diferenças nos currículos para a construção de uma sociedade mais democrática encontram guarida entre os mais diferentes campos teóricos. Contudo, quando se analisa a prática pedagógica, observa-se a predominância de práticas monoculturais e homogêneas, o que nos leva a acreditar que há desconhecimento, resistência ou conformismo para o não diálogo com a diversidade presente no cotidiano escolar.

Compreende-se que essas construções cristalizadas nos espaços educativos são históricas e, conforme Quijano (2000)QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo. La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciências sociales. Buenos Aires: Clacso, 2000. estão vinculadas com o surgimento da modernidade, processo que se inicia a partir da invasão da América, no qual a Europa se impõe como referência intelectual, passando a produzir um modelo único, universal, padronizador e objetivo de conhecimento, o que tem promovido a exclusão de outras formas de pensar o mundo, desautorizando as epistemologias da periferia do ocidente.

Por conseguinte, esses pressupostos serviram de referência para o desenvolvimento da educação formal, bem como para a consolidação da tendência homogeneizadora que permeia as práticas educativas, na qual prevalece um tipo de conhecimento para um único modelo de sujeito, geralmente: homem, branco, heterossexual e cristão. Essas representações não dialogam com as diversidades presentes nas escolas, pelo contrário, a imposição desses padrões provocam tensões ou conformidade diante da (in)adequação à cultura dominante.

É com base nessas conjecturas históricas e sociais mais amplas que a Educação Física, como componente curricular escolar, estrutura sua prática pedagógica. Embora, com todos os avanços teóricos da área, sobretudo, a partir da década de 80, ainda hoje, observamos nas escolas a predominância de conhecimentos de origem euro-estadunidenses sem diálogos com a cultura local, onde se destaca a competição e consequente exclusão dos alunos e alunas, em detrimento a outros elementos da cultura corporal.

Ao reconhecer que esse cenário traz implicações para o processo educativo e para a formação do sujeito, o presente artigo deseja dar ênfase à diversidade cultural na escola e ao trato pedagógico à luz da interculturalidade crítica (WALSH, 2019WALSH, Catherine. Interculturalidade e decolonialidade do poder um pensamento e posicionamento “outro” a partir da diferença colonial. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas, v. 5, n. 1, jan.-jul., 2019. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/revistadireito/article/view/15002. Acesso em: 22 abr. 2021.
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; CANDAU, 2016CANDAU, Vera Maria. “Ideias-força” do pensamento de Boaventura de Souza Santos e a educação intercultural. In: CANDAU, Vera Maria (org). Interculturalizar, descolonizar, democratizar: uma educação “outra”? Rio de Janeiro: 7 Letras; GECEC, 2016.) e Educação Física Cultural (NEIRA; NUNES, 2008NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Pedagogia da cultura corporal: crítica e alternativas. 2. ed. São Paulo: Phorte, 2008., 2009NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Educação Física: currículo e cultura. São Paulo: Phorte, 2009.). Objetiva analisar as interseções entre cultura, escola e práticas corporais para a valorização dos sujeitos e significação do processo de aprendizagens quando o/a professor/a assume uma identidade docente que contextualiza a aprendizagem social.

Buscamos, a partir desses campos teóricos, estabelecer diálogos entre as práticas corporais desenvolvidas na Amazônia, especialmente no oeste paraense, e fomentar possibilidades de inserção dessas práticas no currículo de Educação Física para a construção de uma educação que valorize os diferentes sujeitos desse lugar. Outrossim, desejamos provocar fissuras para a ruptura do prisma da modernidade tão presente no cotidiano escolar. Para tanto, consideramos a imersão das autoras como sujeitos provenientes desse espaço geográfico, suas experiências profissionais em diálogo com o campo teórico para a análise crítica da temática em tela.

2 CAMINHOS DE PESQUISA E SUPORTE INVESTIGATIVO

O presente estudo de abordagem qualitativa tem como objetivo apresentar uma revisão bibliográfica que contribua para o diálogo a partir da inter-relação: experiências profissionais, práticas interculturais e Educação Física Cultural, de modo que esta articulação contribua para proposições teórico-práticas contra hegemônicas e com um currículo que dialogue com os diferentes contextos escolares e não escolares, com destaque para a região amazônica (MATOS, 2013MATOS, Gláucio Campos Gomes de. Entre rios e florestas: experiências de campo de um professor de Educação Física em ambiente amazônico. Em Aberto, v. 26, n. 89, p. 107-117, jan./jun. 2013. Disponível em: http://emaberto.inep.gov.br/ojs3/index.php/emaberto/article/view/2734. Acesso em 20 mar. 2023.
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; LOUREIRO, 2001LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica, uma poética do imaginário. São Paulo: Escrituras Editoras, 2001.).

Marconi e Lakatos (2010)MARCONI, Maria de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Metodologia do trabalho científico: São Paulo: Atlas, 2010. destacam que a abordagem qualitativa se preocupa a analisar e interpretar aspectos mais profundos, descrevendo a complexidade do comportamento humano. Fornece análise mais detalhada sobre as investigações, hábitos, atitudes, tendências de comportamento. A revisão bibliográfica aqui empreendida permite compreender o debate na inter-relação estabelecida, além de contribuir para a construção de uma contextualização para a questão abordada.

Para tanto, damos ênfase à interculturalidade como campo do conhecimento e à abordagem Cultural da Educação Física, quando amplia o debate acerca do currículo cultural, considerando as práticas corporais desenvolvidas no contexto amazônico, no oeste paraense, nosso lócus de investigação.

Desta feita, os conceitos, as ideias e os princípios localizados na produção do referencial teórico foram elencados e, à luz das experiências acumuladas pelas autoras, desencadearam a escrita que registra o pensamento investigativo no campo da cultura, do currículo e das práticas corporais.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, IBGE. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/pa.html. Acesso em: 2 jun. 2022.
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), o Estado do Pará possui uma dimensão territorial de 1.245.870.700km2 e uma população estimada em 8.777.124 de habitantes. Dado sua dimensão, há uma discussão política no sentido de dividi-lo geograficamente, ficando Belém como a capital do estado do Pará, e Santarém a capital do estado do Tapajós, região oeste do atual Estado do Pará, também conhecido como região do Baixo Amazonas.

Nesse espaço geográfico, habita uma população diversa, incluindo os povos e comunidades tradicionais1 1 Conforme o Decreto 6.040/2007, Art. 3º, I, “são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.” (BRASIL, 2007) (BRASIL, 2007BRASIL. Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que “Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm. Acesso em: 20 mar. 2023.
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), e grupos populacionais provenientes de outras regiões do país. Nele, há Unidades de Conservação Ambiental, mineradoras, garimpeiros, madeireiros, grandes e pequenos produtores rurais, o que torna as relações de poder assimétricas e conflituosas, interferindo na vida do homem amazônida que vive em relação direta com a natureza.

Nessa região, assim como em outras regiões do estado, a locomoção se dá predominantemente por via fluvial, para isso utiliza-se como meio de transporte: barcos, lancha voadeira, botes, canoas, rabetas2 2 Embarcação típica dos rios da Amazônia. Possuem motor e hélice traseira não muito funda. . Mediados pelas florestas, os rios, lagos, furos e igarapés tornam-se ruas, proporcionando entre os seus habitantes interações socioculturais singulares que são expressas, por meio de suas práticas corporais, as quais constituem-se um repertório corporal plural e particular que devem ser objeto de investigação.

Ao longo das nossas vivências, como docentes nesse contexto, observamos que os currículos vivenciados não estavam preocupados com os processos de exclusão desses conhecimentos, e nem com aqueles naturalizados socialmente. Embora, algumas ações curriculares sinalizassem novos caminhos para a prática pedagógica, elas não nos permitiram compreender com profundidade os diferentes modos de viver, conhecer e existir, manifestados nas relações entre sujeitos, diferenças que são invisibilizadas e tensionadas nas escolas.

Tais diferenças se caracterizam como construções históricas e culturais (MCLAREN,1997MCLAREN, Peter. Multiculturalismo crítico. São Paulo: Cortez, 1997.), as quais reforçam no cotidiano escolar uma predominância de determinado tipo de conhecimento carregado de representações hegemônicas, com pouco ou nenhum espaço para os conhecimentos e vivências dos grupos subalternizados, colocados em desvantagem na geografia do poder.

Considerando que é possível intervir nessas realidades a partir da busca pelo reconhecimento de direitos e respeito às suas sociodiversidades étnicas, a interculturalidade na perspectiva crítica (WALSH, 2019WALSH, Catherine. Interculturalidade e decolonialidade do poder um pensamento e posicionamento “outro” a partir da diferença colonial. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas, v. 5, n. 1, jan.-jul., 2019. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/revistadireito/article/view/15002. Acesso em: 22 abr. 2021.
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) chama atenção para a importância da reivindicação das identidades negadas como uma prática fundamental na descolonização do ser, pois se trata do reencontro do sentido do ser humano, e do ser em geral, por parte daqueles que foram considerados na modernidade meros humanos.

Catherine Walsh, professora da Universidade Andina Simón Bolívar (sede do Equador), e especialista no tema da interculturalidade, explica que o termo se origina no contexto educacional na América Latina e, mais precisamente, com referência à educação escolar indígena. Para ela, a interculturalidade nos ajuda a pensar e a construir um outro modelo de sociedade, em um movimento que se estrutura, em primeiro lugar, de um movimento étnico-social mais do que de uma instituição acadêmica; depois, porque reflete um pensamento que não se baseia nos legados coloniais eurocêntricos e nem nas perspectivas da modernidade e, finalmente, porque não se origina nos centros geopolíticos de produção do conhecimento, ou seja, do norte global (WALSH, 2019WALSH, Catherine. Interculturalidade e decolonialidade do poder um pensamento e posicionamento “outro” a partir da diferença colonial. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas, v. 5, n. 1, jan.-jul., 2019. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/revistadireito/article/view/15002. Acesso em: 22 abr. 2021.
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, p. 9-10).

A autora, ao analisar os contextos educacionais, reconhece a presença de três diferentes manifestações de educação intercultural, as quais classifica em: relacional, que concebe as relações, de igualdade ou desigualdade, minimizando os conflitos e as assimetrias de poder; funcional, porque visa favorecer a coesão social, assimilando os grupos socioculturais subalternizados à cultura hegemônica; e a interculturalidade crítica, a qual questiona as relações de poder que atravessam as diferenças e desigualdades construídas ao longo da história entre diferentes grupos socioculturais, étnico-raciais, de gênero, orientação sexual e religiosos.

Esse reconhecimento é fundamental para a construção de currículos escolares que contemplem referenciais dos mais diferentes universos socioculturais. Tal relação pode se dar por meio de conflitos ou por meio de enriquecimento mútuo, considerando a relevância dessa confluência de tensões, onde o estímulo ao diálogo é necessário para a construção de uma educação na perspectiva intercultural crítica. Nesse processo, a escola possui um papel central, uma vez que é uma instituição que tem o desafio de combater as desigualdades e as injustiças, o que deve começar pelo combate às práticas hegemônicas, antidialógicas, que visam à padronização dos sujeitos.

Candau (2016)CANDAU, Vera Maria. “Ideias-força” do pensamento de Boaventura de Souza Santos e a educação intercultural. In: CANDAU, Vera Maria (org). Interculturalizar, descolonizar, democratizar: uma educação “outra”? Rio de Janeiro: 7 Letras; GECEC, 2016., ao assumir a perspectiva da interculturalidade crítica como caminho para a construção de sociedade mais democrática, plural, humana, com fundamento no respeito e no diálogo com as múltiplas formas de existências, pontua algumas das suas características: promove a interrelação entre os diversos grupos culturais; compreende as culturas como dinâmicas e históricas; identifica a existência na sociedade, de um processo de hibridização cultural; entende que as relações culturais envolvem relações de poder; vinculada às questões da diferença e da desigualdade social; promove o reconhecimento do “outro” visando o diálogo entre os diferentes grupos sociais (CANDAU, 2016CANDAU, Vera Maria. “Ideias-força” do pensamento de Boaventura de Souza Santos e a educação intercultural. In: CANDAU, Vera Maria (org). Interculturalizar, descolonizar, democratizar: uma educação “outra”? Rio de Janeiro: 7 Letras; GECEC, 2016., p. 20).

Observamos que as concepções que fundamentam a educação intercultural crítica rompem com práticas instrumentadas de negação das múltiplas diferenças étnicas, sociais, culturais, geográficas, religiosas e econômicas, como marcas de diferenças que se apresentam como formas de intervenção entre o campo epistemológico, político e o social. Diferentemente do que o pensamento moderno ocidental afirmava, os povos colonizados/escravizados não eram desprovidos de histórias, conhecimento e culturas, apenas foram e ainda são duramente subjugados e estigmatizados.

Com isso, estabeleceu-se uma cultura de opressão sobre suas vidas, o que não ocorreu de forma pacífica, pois houve muita resistência, ainda que estas não estejam presentes nas narrativas dos colonizadores. Apesar do apagamento histórico, esses povos sempre lutaram contra a cultura do silêncio que lhes era imposta, o que vai ao encontro das ideias de Oliveira (2015)OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de. Paulo Freire: gênese da interculturalidade no Brasil. Curitiba: CRV, 2015., quando afirma que “a cultura é inerente ao existir humano e faz parte do seu processo histórico de humanização, ou seja, o ser humano ao criar cultura faz a si mesmo e a sua história, na medida em que é um ser em permanente tornar-se e fazer-se” (OLIVEIRA, 2015OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de. Paulo Freire: gênese da interculturalidade no Brasil. Curitiba: CRV, 2015., p. 35).

Nessa relação, a cultura, segundo Freire (1989FREIRE, Paulo. A Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989., p. 61), é o que dá sentido às relações humanas, uma vez que é tudo que o ser humano cria e recria. É nesse aspecto fundamental da vida humana que os sistemas hegemônicos de poder têm operado sobre as minorias, com o discurso de que são aculturadas, incivilizadas e bárbaras, e utilizam esses discursos para justificar as violências contra esses povos.

Logo, a escola, por meio da educação, tem sido um importante aparelho ideológico de controle por parte do Estado ao oferecer o conhecimento dito adequado àqueles considerados “desprovidos de conhecimentos e cultura”. Em muitos casos, ainda é com base nesses pressupostos que a escola, por meio de suas agências reguladoras e de seus currículos, define o que os professores e as professoras devem ensinar e o que os alunos e as alunas devem aprender.

3 EDUCAÇÃO INTERCULTURAL: REFLEXÕES PARA A EDUCAÇÃO ESCOLAR

O impacto das políticas de padronização das diferenças culturais pode ser verificado, em muitos aspectos, sobretudo, nas políticas educativas dirigidas à Amazônia brasileira.

A problemática multicultural de nossa região nos coloca de modo privilegiado diante dos sujeitos históricos que foram massacrados, que souberam resistir e ainda continuam a lutar pelos seus direitos de cidadania e pela afirmação de suas identidades, diante das relações assimétricas de poder ou de subordinação e exclusão a eles impostas (MOREIRA; CANDAU, 2008MOREIRA, Antonio Flávio; CANDAU, Vera Maria. (org.) Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 17).

Tais relações também são refletidas no espaço escolar, onde é comum no cruzamento de culturas na Amazônia, transitarem alunos negros (quilombolas), indígenas (de várias etnias) e de outros grupos sociais. Nossas escolas ainda não conseguem engajar e articular, em seus projetos de ensino, questões relacionadas à valorização das identidades, do pertencimento e dos territórios, fundamentais para a defesa de práticas que os ajudem a reconstruir suas experiências, histórias e vozes, marcados pelos conflitos empreendidos pelos agentes do poder capitalista na região.

Nesse contexto de forças e relações antagônicas, pessoas e instituições se posicionam em razão de seus interesses, o que implica conflitos, relações de dominação e de resistência. De um lado há os grandes projetos e as grandes empresas, responsáveis por exauriram os recursos naturais de outras regiões do mundo, que lutam para se fixarem na região amazônica sob o discurso da “exploração/devastação sustentável”, ostentando certificações de autossutentabilidade e de proteção ao ecossistema; e de outro lado há as populações locais, que resistem ao avanço do setor produtivo e de base industrial na região, que tende a se expandir e legitimar a dominação dos territórios em função da exploração para acúmulo de capital.

Diante desse cenário, a educação é fundamental para uma conscientização dos sujeitos em relação à realidade em que vivem, aos desafios que se apresentam, e para a criação de atitudes e comportamentos que busquem o equilíbrio entre o homem e o ambiente. O papel da escola deve ser o de articular, por meio do seu projeto político pedagógico, intervenções que dialoguem com os sujeitos, seus conhecimentos e saberes, com o espaço onde estão inseridos, considerando suas práticas corporais, suas culturas, de modo a afirmar suas culturas e identidades.

Um olhar a partir do contexto no qual estamos inseridas, o oeste paraense, no que se refere às escolas nos ambientes rurais, o funcionamento destas está sujeito, em muitos casos, às influências das peculiaridades regionais, como o fluxo das águas com suas subidas e descidas; as crianças muitas vezes moram em lugares muito distantes das escolas, exigindo um maior tempo para locomoção. Nessas relações, o/a professor/a é o agente principal, é o/a responsável pela contextualização dos conhecimentos que algumas vezes chegam nos livros didáticos, em um contexto em que os recursos da moderna tecnologia ainda não chegaram em algumas regiões. Em muitas situações há falta de energia elétrica, péssimas condições de saneamento básico e o funcionamento das escolas ainda é precário.

Considerando essas particularidades, (CHIZZOTTI; SILVA, 2018CHIZZOTTI, Antônio; SILVA, Rosa Eulalia Vital da. Base Nacional comum curricular e as classes multisseriadas na Amazônia. Revista e-curriculum, v. 16, n. 4. p. 1408-1436, out./dez 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.23925/1809-3876.2018v16i4p1408-1436
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, p. 3) fazem uma crítica à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), destacando o seu caráter homogeneizador diante dos contextos educacionais como o das escolas da Amazônia brasileira, as quais possuem características próprias. O autor observa que a BNCC não atende às necessidades educacionais locais, primeiramente por ter surgido de uma organização internacional, ou seja, uma base que veio de fora para dentro. Desta forma, não garante a seguridade de uma educação de qualidade, tendo em vista a diversidade e as particularidades da sociedade amazônica.

Embora invisibilizados nas suas lutas históricas, os povos amazônicos sempre resistiram às mais diferentes formas de opressões a que foram submetidos, desde a contaminação por epidemias, escravização e o genocídio das populações. Contudo, houve muita resistência e muitas lutas provenientes dos movimentos sociais tiveram avanços significativos, e esses avanços foram alcançados por meio da efetivação de políticas públicas, muitas das quais encontram-se ameaçadas pelas políticas neoliberais do atual governo.

Neste sentido, pensar formas de resistência frente aos retrocessos vivenciados são desafios que se impõe cotidianamente à educação e à escola. Na busca de formas de intervenção por meio da articulação entre o campo epistemológico e o político, encontramos no pensamento do sociólogo português Boaventura Sousa Santos (2010)SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais para uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. alternativas que nos ajudam a pensar, aprofundar e alimentar a discussão sobre educação intercultural numa perspectiva crítica.

Para tanto, o autor aponta a necessidade de que os debates sejam promovidos a partir da indissociabilidade entre as reflexões epistemológicas e políticas e que estas sejam orientadas pela justiça cognitiva aos povos que foram silenciados historicamente. Fica evidente que (SANTOS, 2010SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais para uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.), coloca em questão as universalidades como geradoras de desigualdades e de exclusões na modernidade.

Esta “ideia-força” do autor está inter-relacionada a outras, como o da ecologia de saberes, que prevê o diálogo não hierarquizado entre os conhecimentos socialmente produzidos, apresentado como uma possibilidade de superar o universalismo antidiferencialista que opera na homogeneização das diferenças, suprimindo-as, como evidenciado nas políticas educacionais brasileiras, a exemplo do processo de construção e aprovação da BNCC.

A escola é uma instituição social que produz determinados tipos de subjetividades em diversos contextos históricos e culturais, e assim, contribui na produção de sujeitos silenciados, rotulados, inferiorizados, disciplinados, a partir de pedagogias corretivas e dos aparatos tecnológicos, que visam a ordem e a classificação. Romper essa estrutura, valorizar histórias, vozes negadas, silenciadas, esquecidas são alguns dos desafios que se impõe ao processo de escolarização.

4 PRÁTICAS CORPORAIS NA AMAZÔNIA: CONTRIBUIÇÕES PARA O CURRÍCULO CULTURAL DA EDUCAÇÃO

A educação se faz, ao longo do percurso histórico, pela organização do conhecimento e sua estruturação em disciplinas, atividades e conteúdos, ao tratar das práticas corporais na escola. A educação física, especificamente a partir da década de 1980, passou por um processo de reestruturação de significados e valorações. Esse período, segundo Caparroz (2007)CAPARROZ, Franciso Eduardo. Entre a Educação Física na escola e a Educação Física da escola: a educação física como componente curricular. 3. ed. Campinas: Autores Associados, 2007., resultou na publicação de diversos livros e artigos que buscavam, além de criticar as características reinantes na área (modelo esportivo), elaborar propostas e pressupostos que viessem a tornar a educação física mais próxima da realidade e da função escolar.

No processo histórico, tensões ocorreram no sentido de mudanças e a educação física caminhou no aprimoramento de suas concepções teóricas para acompanhar as transformações da sociedade contemporânea, multicultural, marcada pela globalização, exclusão e desigualdades sociais. Dentre as concepções teóricas existentes, a perspectiva “Cultural”, também denominada de currículo cultural da Educação Física, tem procurado colocar em ação uma política da diferença por meio do reconhecimento da cultura corporal dos diferentes grupos sociais em dado contexto (NEIRA, 2018NEIRA, Marcos Garcia. O currículo cultural da Educação Física: pressupostos, princípios e orientações didáticas. Revista e-Curriculum, v.16, n.1, p. 4 - 28 jan./mar. 2018. DOI: https://doi.org/10.23925/1809-3876.2018v16i1p4-28
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).

Nessa perspectiva curricular, a experiência escolar é um campo aberto ao debate, ao encontro de culturas e à confluência de práticas corporais pertencentes aos vários setores sociais. O currículo cultural da Educação Física é uma arena de disseminação de sentidos, de polissemia, de produção de identidades voltadas para a análise, para a interpretação, o questionamento e o diálogo entre as culturas e a partir delas (NEIRA, 2011NEIRA, Marcos Garcia. A reflexão e a prática do ensino - Educação Física. São Paulo: Blücher, 2011.).

Os princípios ético-políticos que fundamentam essa abordagem apresentam-se como alternativas frente aos desafios da sociedade contemporânea, posto que a observação da ancoragem social dos conhecimentos evita o daltonismo cultural e possibilita a justiça curricular. Esse mapeamento, um dos encaminhamentos didáticos presentes na proposta, favorece o reconhecimento da diversidade de práticas corporais presentes nos diferentes espaços e a possibilidade de sistematização no currículo escolar.

Quando se trata de espaços na Amazônia, Loureiro (2001)LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica, uma poética do imaginário. São Paulo: Escrituras Editoras, 2001. destaca que se configuram dois grandes espaços tradicionais de cultura, o espaço da cultura urbana e o da cultura rural.

O espaço urbano se expressa na vida das cidades, onde as trocas simbólicas com outras culturas são mais intensas, há maior velocidade de mudanças, o sistema de ensino é mais estruturado. [...] o ambiente rural, especialmente ribeirinho, a cultura mantém sua expressão mais tradicional, mais ligada à conservação dos valores decorrentes de sua história. Além disso, há uma relação mais intensa do homem com a natureza (LOUREIRO, 2001LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica, uma poética do imaginário. São Paulo: Escrituras Editoras, 2001., p. 65).

O autor ressalta que a cultura do mundo rural de predominância ribeirinha3 3 Indivíduos que habitam as margens dos rios, lagos e igarapés na Amazônia, nesta pesquisa, o oeste paraense. constitui-se na expressão aceita como a mais representativa da cultura amazônica, por considerar a relação direta do homem com a natureza. Nesse espaço, há uma população portadora de conhecimentos, saberes, cosmologias próprias de viver e conceber a vida que se diferenciam da cultura que circula nas cidades. Contudo, o patrimônio cultural do homem ribeirinho não circula no currículo escolar como conhecimento válido, quando visíveis, esses saberes aparecem de forma folclorizada, inferiorizada, menor, o que causa deslocamentos na identidade dos sujeitos, pois ao não se verem representados, passam a negar suas identidades.

Chama-se a atenção sobre a relação do significado da cultura em cada grupo social ou em cada escola comunitária, que articulada no conjunto de conhecimentos, colabora com o processo identitário de cada grupo e para a necessidade de se perceber que “há outras visões do mundo, outras epistemologias, outras cosmologias, e que é necessário identificá-las, analisá-las, compartilhá-las, reconhecê-las, dialogar com elas e entre elas” (SACAVINO, 2016SACAVINO, Susana Beatriz. Educação descolonizadora e interculturalidade: notas para educadoras e educadores. In: CANDAU, Vera Maria (org.). Interculturalizar, descolonizar, democratizar: uma educação “outra”? Rio de Janeiro: 7 Letras; GECEC, 2016., p.191).

A partir dessas breves e importantes diferenças entre esses espaços, e considerando que a população que habita no espaço rural possui um modo sui generis de ser e estar no mundo e, inegavelmente, deve ter o reconhecimento das suas histórias, vozes, culturas, como conhecimentos válidos no currículo para a construção de práticas pedagógicas mais democráticas que tensionem com a lógica hegemônica de conceber a cultura corporal.

Genú et al. (2020SOARES, Marta Genú; SANTOS, Tamiris Mendonça dos; MELO, Yumi Hino de; SILVA, Yrlan Jorge Gomes. Identidade cultural e aprendizagem social: dos saberes da ilha e do conhecimento continental. Revista Sentidos da Cultura, v.v7, n. 13, jul./dez./ 2020. Disponível em: https://periodicos.uepa.br/index.php/sentidos/article/view/3742. Acesso em: 26 mai. 2022.
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) ao pesquisarem sobre o universo ribeirinho, pontuam que não basta “a identificação das práticas corporais, trata-se de ir além da simples identificação e atentar aos efeitos que essas práticas exercem na vida dos sujeitos” (GENÚ et al., 2020SOARES, Marta Genú; SANTOS, Tamiris Mendonça dos; MELO, Yumi Hino de; SILVA, Yrlan Jorge Gomes. Identidade cultural e aprendizagem social: dos saberes da ilha e do conhecimento continental. Revista Sentidos da Cultura, v.v7, n. 13, jul./dez./ 2020. Disponível em: https://periodicos.uepa.br/index.php/sentidos/article/view/3742. Acesso em: 26 mai. 2022.
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, p. 98). Para tanto, é importante conhecer e compreender melhor o sujeito ribeirinho, homem amazônico, especialmente nesse momento em que as políticas neoliberais avançam de forma avassaladora sobre a Amazônia para a exploração de suas riquezas, camufladas pelos discursos de “desenvolvimento”, “progresso”.

Essas políticas minimizam os danos ao meio ambiente e os decorrentes impactos na vida do homem amazônico, que ao longo dos anos estabeleceu com a natureza uma relação de interdependência que permitiu criar estratégias de sobrevivência para viver, e ocupar esse espaço numa relação direta com o seu ambiente. Aprendendo, aperfeiçoando e incorporando técnicas dos povos tradicionais, desenvolve suas práticas corporais e socioculturais em ambiente terrestre e aquático, em um espaço, do qual tem ideia, mas não a medida. Contrariamente, o tempo serve de referência e integra todas as coisas, mediadas por um tempo cíclico (LOUREIRO, 2001LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica, uma poética do imaginário. São Paulo: Escrituras Editoras, 2001., p. 102).

Conforme (MATOS, 2013MATOS, Gláucio Campos Gomes de. Entre rios e florestas: experiências de campo de um professor de Educação Física em ambiente amazônico. Em Aberto, v. 26, n. 89, p. 107-117, jan./jun. 2013. Disponível em: http://emaberto.inep.gov.br/ojs3/index.php/emaberto/article/view/2734. Acesso em 20 mar. 2023.
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, p. 110), essas “práticas socioculturais são expressas no extrativismo animal (caça e pesca) e vegetal (madeira, cipó, palha, coleta de castanhas), no cultivo do solo e na criação de animais” (principalmente o boi), desenvolvidas em área de floresta ou capoeira, rios, lagos ou cabeceiras, os quais configuram o universo amazônico. O referido autor em sua pesquisa Práticas corporais num ambiente rural amazônico, no estado do Amazonas, enfatiza a importância de entender as práticas corporais desenvolvidas nesse espaço (MATOS; FERREIRA, 2007MATOS, Gláucio Campos Gomes de; FERREIRA, Maria Beatriz Rocha. Práticas corporais num ambiente rural amazônico. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 28, n. 3, p. 71-88, maio 2007. Disponível em: http://revista.cbce.org.br/index.php/RBCE/article/view/24/31. Acesso em: 30 mai. 2022.
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).

Desse modo, a Educação Física deve levar em consideração que o clima quente e úmido da região exige de seus habitantes respostas adaptativas ao desenvolverem atividades como derrubar a mata, cavar o solo, caçar ou pescar. Esforços de baixa a moderada intensidade, ora contínuos, ora intermitentes permitem ao amazônida a execução das tarefas sem exaustão precoce, em um clima cuja temperatura permeia os 390/ 400C e sensação térmica maior (MATOS; FERREIRA, 2007MATOS, Gláucio Campos Gomes de; FERREIRA, Maria Beatriz Rocha. Práticas corporais num ambiente rural amazônico. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 28, n. 3, p. 71-88, maio 2007. Disponível em: http://revista.cbce.org.br/index.php/RBCE/article/view/24/31. Acesso em: 30 mai. 2022.
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).

Contextualizar as habilidades no artesanato, nas danças e rituais, prática do arco e flecha, do arpão, o lançar a linha de pesca, variedades outras de pescaria e de caçada, é compreender o discurso corporal dos habitantes da região com relação ao ambiente terrestre e aquático. É compreender sua identidade. É compreender, por intermédio das práticas corporais, respostas de um povo que se adaptou a uma região que cada vez mais se torna acessível para o turismo e, também, objeto de cobiça e exploração.

O/a professor/a tendo por referência os encaminhamentos didáticos da perspectiva cultural, define suas temáticas de ensino (conteúdos) com base no “patrimônio cultural corporal da comunidade, reconhecido por meio de um mapeamento” (NEIRA, 2019NEIRA, Marcos Garcia. Educação física cultural: inspiração e prática pedagógica. 2. ed. Jundiaí: Paco, 2019., p. 59). Ao identificar quais práticas corporais estão disponíveis aos alunos e alunas, bem como aquelas que pertencem a um universo cultural mais amplo, propõe, por exemplo, uma aula de atletismo, cujo subtema seja lançamento de dardo. Em sua abordagem, ao fazer a leitura da prática corporal, problematiza e aprofunda o tema se apropriando da cultura da pesca de arpão.

Diante dos alunos, sentados ou em pé, é possível problematizar e levar à reflexão, a vida e a educação na Amazônia, sobre questões como as práticas do cotidiano e a aproximação com as práticas trabalhadas na escola e, ter como objeto de reflexão e ação a pescaria com arpão. Ou ainda, tematizar a pescaria de peixes regionais ou locais como tambaqui, pirarucu, surubim, tucunaré, peixe-boi, e problematizar a proibição à captura do peixe-boi, ou a espécie peixe-boi se mamífero ou peixe, e, o porquê, sendo o peixe-boi parte do hábito alimentar do amazônida, se tornou escasso na região, ou seja, temáticas que estão interdisciplinarmente pautadas na interculturalidade.

Questões como essas, com base na vivência do aluno e da aluna, podem levar a entender que a diminuição da espécie advém da captura predatória para atender a uma rede invisível de consumidores, e à reflexão pode fazê-los compreender o papel desse animal para o bioma da região. Pode-se fortalecer a consciência ecológica e somar esforços para a preservação do grande mamífero da Amazônia.

Da mesma forma, podemos levar ao entendimento da prática corporal sociocultural de derrubar árvore pode fazer a diferença. Utilizando-se do motosserra o indivíduo coloca uma árvore ao chão em poucos minutos. A machado, a relação natureza e esforço humano é outra. Por esta atividade, podemos verificar a especificidade da técnica adquirida ao longo dos anos e qualidades físicas postas em evidências adquiridas no dia a dia, dado a diversidade das práticas corporais.

Ao nos apropriarmos dessa atividade para questionar qual é o município paraense que possui menos floresta e o porquê disso, começamos a mudar o cenário da intervenção. Cabe problematizar, por exemplo, por que a floresta amazônica deve ser mantida em pé? Qual a importância do gás carbônico? Tais questões vão se aprofundando numa perspectiva interdisciplinar.

Os exemplos colocados são possibilidades que o professor e a professora podem se apropriar para levar o aluno e a aluna, como um ser social, a entender as interrelações ao qual está imerso. Compreender que as ações do homem não seguem em uma única direção. Essa reflexão numa perspectiva Cultural sobre a realidade e o decurso histórico penso ser mais adequada para entender o universo amazônico e poder intervir.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação brasileira assentada sob o prisma da modernidade consolidou uma concepção de educação universalista, homogênea, monocultural, excludente, que não dialoga com a diversidade multicultural dos povos que coabitam a nossa sociedade. Ainda hoje, os conhecimentos, os saberes e as culturas das minorias sociais e dos povos tradicionais ocupam espaço reduzido nas políticas educacionais e nas práticas pedagógicas.

É urgente a intervenção a partir de campos teóricos que valorizem as diferenças culturais, que provoquem reflexões sobre as condições que promovem as diferenças e apontem estratégias de superá-las a partir de sua própria realidade. Nesse interim, as reflexões produzidas pela educação intercultural crítica se apresentam como alternativas em oposição aos modelos vigentes de pensar e construir a educação, haja vista que tais modelos, em sua maioria, estão a serviço dos padrões hegemônicos de poder e não dialogam com os diferentes sujeitos que circulam na escola; ao contrário, alicerçam suas possibilidades e os empurram para a margem da sociedade.

Em contraposição, a educação intercultural crítica propõe o reconhecimento, a valorização e o respeito à diversidade de sujeitos e culturas, a relação dialógica e solidária entre os sujeitos e entre os conhecimentos como preceitos fundamentais para a construção de uma sociedade mais democrática, plural e humana. Para tanto, compreende o cotidiano da escola como um espaço construído a partir da diversidade e da pluralidade de culturas, compostos de traços importantes para a construção de identidades, construídas a partir de negociações, conflitos e de inúmeras possibilidades de singularização, como a exemplo, as práticas socioculturais da Amazônia.

  • 1
    Conforme o Decreto 6.040/2007, Art. 3º, I, “são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.” (BRASIL, 2007BRASIL. Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que “Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm. Acesso em: 20 mar. 2023.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
    )
  • 2
    Embarcação típica dos rios da Amazônia. Possuem motor e hélice traseira não muito funda.
  • 3
    Indivíduos que habitam as margens dos rios, lagos e igarapés na Amazônia, nesta pesquisa, o oeste paraense.
  • FINANCIAMENTO
    O presente trabalho foi realizado sem o apoio de fontes financiadoras.
  • COMO REFERENCIAR

    MOTA, Iêda Oliveira; SOARES, Marta Genú. Práticas corporais na Amazônia: contribuições para o currículo cultural na escola. Movimento, v. 29, p. e29024, jan./dez. 2023. DOI: https://doi.org/10.22456/982-8918.125435

REFERÊNCIAS

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Editado por

RESPONSABILIDADE EDITORIAL

Alex Branco Fraga*, Edwin Alexander Canon-Buitrago**, Elisandro Schultz Wittizorecki*, Mauro Myskiw*, Raquel da Silveira*
* Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.
** Universidad de la Republica Uruguay (UdelaR), CENUR Litoral Norte, Sede Paysandú, Uruguay.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2022
  • Aceito
    26 Fev 2023
  • Publicado
    12 Jul 2023
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