Open-access MENOS EDUCAÇÃO FÍSICA, MENOS FORMAÇÃO HUMANA, MENOS EDUCAÇÃO INTEGRAL

LESS PHYSICAL EDUCATION, LESS HUMAN EDUCATION, LESS COMPREHENSIVE EDUCATION

MENOS EDUCACIÓN FÍSICA, MENOS FORMACIÓN HUMANA, MENOS EDUCACIÓN INTEGRAL

Resumo

Neste ensaio refletimos sobre um dos efeitos do Novo Ensino Médio [(NEM) (Lei federal nº 13.415/2017)] no Rio Grande do Sul. Em outras palavras, tratamos, especificamente, da extinção progressiva da Educação Física Escolar e das Ciências Humanas em geral na “Matriz Curricular Gaúcha” do Estado do Rio Grande do Sul (RS) concretizado na portaria SEDUC 350/2021 emitida pela Gestão Estadual no exercício do mandato de 2019-2022. Para cumprir com o objetivo efetivamos uma análise dos documentos relativos ao que denominamos contrarreforma curricular. Sugerimos ao final a revisão da normativa estadual que reduz a carga horária da Educação Física na Educação Básica, tarefa que coincide com posições afirmadas por entidades científicas nacionais.

Palavras-chave: Educação Física; Educação Básica; Currículo Escolar; Política Pública.

Abstract

In this essay we reflect on one of the effects of the New High School [(NEM) (Federal Law nº 13.415/2017)] in Rio Grande do Sul. In other words, we specifically deal with the progressive phasing out of school Physical Education and the Human Sciences in general in the Curriculum Matrix of the State of Rio Grande do Sul (RS) implemented in the SEDUC ordinance 350/2021 issued by the State Management in the exercise of the 2019-2022 term of office. To achieve the objective, we carried out an analysis of the documents related to what we call curriculum counter-reform. In the end, we concluded by repealing the state regulations and the law that supports the (NEM) in chorus with important national scientific entities.

Keywords: Physical Education; Basic Education; School Curriculum; Public Policy.

Resumen

En este ensayo reflexionamos sobre uno de los efectos de la Nueva Enseñanza Secundaria [(NEM) (Ley Federal nº 13.415/2017)] en Rio Grande do Sul. En otras palabras, trata específicamente acerca de la extinción progresiva de la Educación Física escolar y de las Ciencias Humanas en general en la Matriz Curricular Gaucha del Estado de Rio Grande do Sul (RS) implementada en la ordenanza SEDUC 350/2021 emitida por la Gestión del Estado en el ejercicio del mandato de 2019- 2022. Para cumplir con el objetivo realizamos un análisis de los documentos relacionados con lo que denominamos contrarreforma curricular. Al final, sugerimos que se revise la normativa estatal que reduce la carga horaria de la Educación Física en la Educación Básica, tarea esta que coincide con las posturas defendidas por entidades científicas nacionales.

Palabras clave: Educación Física; Educación Básica; Currículo Escolar; Política Pública.

INTRODUÇÃO

O presente ensaio aborda um dos efeitos do Novo Ensino Médio [(NEM) - Lei federal nº 13.415/2017 (BRASIL, 2017)] em um estado da federação brasileira. Em outras palavras, trata da redução de carga horária da Educação Física Escolar e de outros componentes curriculares do escopo das ciências humanas na Matriz Curricular do Estado do Rio Grande do Sul (RS), fato que afetará diretamente em torno de 498.481 estudantes (Tabela n. 1), sendo 219.226 das séries finais do Ensino Fundamental e 279.263 do Ensino Médio. Portanto, a questão que o fato enseja é como o professorado de Educação Física enfrentará no exercício do trabalho docente a redução abissal desse componente curricular que historicamente esteve ao abrigo da legislação educacional garantindo sua inclusão e permanência no currículo escolar?

Tabela 1
Ensino Fundamental e Médio - número de estudantes no Brasil/Rio Grande do Sul

Os pressupostos dessa exposição textual vêm da Filosofia da Ciência, sustentando-se, em especial, na teoria da argumentação sobre as pretensões de verdade e validez de uma proposição, exposta por Habermas (1987) na sua obra Teoria da Ação Comunicativa, para quem a racionalidade dos sujeitos está vinculada a sua capacidade de linguagem e ação. “A linguagem e a realidade interpenetram-se de uma maneira indissolúvel para nós. Cada experiência está linguisticamente impregnada, de modo que é impossível um acesso à realidade não filtrado pela linguagem.”1

No escopo e esforço dessa proposição argumentativa segue o conceito de formação humana de Dalla Fonte (2014), sustentado na perspectiva materialista inspiradora de pedagogias críticas e ações educativas emancipatórias e libertadoras. Desse modo, a Formação Humana e o trabalho são ações corporais intencionais e, como tais, envolvem as capacidades intelectuais, cognitivas, motoras e efetivas do ser humano, formam conceitos materiais e subjetivos que contribuem para a leitura da realidade. Assim, o pensar passa pela ação corporal no mundo real e por meio dela a construção da consciência. O pensamento não é concedido ao ser humano por um ente espiritual, fora dele. É a própria materialidade da ação corporal que enseja nossa capacidade racional. Nesse caso, Formação Humana e Educação Integral, além de ações, são argumentos recursivos entre si, considerando que podem ser recorrentes entre si.

Com esses pressupostos e também nossa experiência docente como formador de professores e professoras, vimos aqui assegurar que a portaria SEDUC 350/2021 (Apêndice 1) que está estruturada a partir da Lei nº 13.415/2017 (NEM) (BRASIL, 2017), representa forte redução da Educação Física, da Formação Humana e da Educação Integral dos estudantes das escolas públicas estaduais do Rio Grande do Sul (Educação Física não significa necessariamente Formação Humana, nem Educação Integral, mas necessita delas para se constituir completamente no ambiente escolar. Ao mesmo tempo Formação Humana e Educação Integral recorrem à Educação Física Escolar para se constituírem como tal, havendo uma dialética recursiva entre elas). Tais normativas, em termos de Ramos e Frigotto (2017), constituem uma contrarreforma do Ensino Médio, isto é, um ataque conservador à formação humana unitária e o restabelecimento de princípios já superados na Educação como os da Lei 5692/71, entre eles, a compulsória profissionalização em todo o ensino de segundo grau (hoje Ensino Médio), Educação à Direita como diria Michel Apple (2003).

De 2016 a 2019, o Ovo da Serpente2 eclodiu no Brasil, e o fascismo latente ganhou forma e rosto, a partir da consolidação das forças conservadoras e reacionárias de extrema direita nacional e internacional. Desde então, a reversão e o desmonte dos marcos civilizatórios no Brasil campeiam.

Nessa perspectiva, os desmontes dos marcos civilizatórios coincidem com o desmonte da Educação Pública. Para Azevedo3 (2022), as causas principais e as evidências do desmonte da Escola Pública são as narrativas falaciosas (dentre elas a que os recursos orçamentários da educação são gastos públicos e não investimentos no futuro das novas gerações) dos governos de direita. Estão, no fundo, relacionadas às propostas econômicas neoliberais, o desinvestimento de recursos público-orçamentários na escola pública riograndense e a perversidade do Estado (retirada de direitos historicamente conquistados dos trabalhadores da Educação, como, por exemplo, a revisão legislativa dos planos de carreira do magistério) nacional e regional quanto aos trabalhadores docentes. As privatizações avançam e esses setores continuam com seus problemas agravados, porque essa política que tira a capacidade do estado de proteção dos mais necessitados não soluciona os problemas estruturais da base econômica. O desaparelhamento do Estado submete serviços essenciais à lógica do mercado. É nesse contexto de desconstrução que ganham relevância conceitos como: meritocracia, empreendedorismo, inovação e competição4.

Concordando com a posição crítica de Azevedo (2022), cremos que a Educação e a Escola Pública no Brasil integram e sentem os efeitos da reversão do processo civilizatório. Pode-se responsabilizar o avanço da barbárie ao desacato das normas constitucionais e o avanço da extrema direita à cena política do país. Por outro lado, o “entreguismo” de governos neoliberais caracterizado pela venda de empresas públicas à iniciativa privada (bancos e empresas multinacionais) contribui para o establishment, privatizando, terceirizando e delegando a responsabilidade de instituições e serviços públicos a grupos e entidades privadas.

Segundo Habermas (1987), os valores culturais não são universais, mas constituem regionalizada pretensão de validez. Entre outras razões para os desmontes civilizatórios no país podemos citar:

  1. A cultura da violência e a comunicação distorcida pelo poder;

  2. O desrespeito ao meio ambiente e a grilagem de terras;

  3. O obscurantismo em face do desmonte da ciência, da cultura e da educação em todos níveis e etapas;

  4. A entrega da república ao canibalismo capitalista;

  5. A desvalorização da escola pública, dos professores e demais trabalhadores da Educação e do Conhecimento.

Observemos o que diz o Editorial da Revista Retratos da Escola (COMITÊ..., 2022):

Após o golpe jurídico, midiático e parlamentar que retirou Dilma Rousseff da Presidência, em 2016, as forças políticas e econômicas conservadoras nacionais, então representadas pela figura de Michel Temer, resgataram o projeto neoliberal de ensino médio para o país, alterando os currículos escolares para atender aos interesses do empresariado nacional quanto à formação de futuros/as trabalhadores/as. (p.9)

Recuperamos, assim, uma tese subjacente à proposição deste ensaio: a de que mesmo com a resiliência e resistência do Professorado, a Educação Física Escolar adoece, para não dizer que caminha para a extinção no Ensino Médio gaúcho.

Para afirmar o que destacamos no texto, estudamos a formação do professorado e a prática pedagógica de Educação Física em ambientes escolares. Sobre esse tema realizamos mais de 50 projetos de pesquisas (MOLINA NETO, 2021). Em todos eles, nossa perspectiva foi estudar com o professorado e não estes como objetos de pesquisa, mas efetivamente sujeitos dos estudos. Muitos desses estudos foram sobre o currículo por ciclos de formação, uma experiência curricular inovadora nos modos de ensinar e aprender, principalmente em relação à equidade de carga horária e à gestão democrática do currículo.

Aprendemos com o trabalho dos colegas quão complexas são a formação, a prática pedagógica e o trabalho de professores e professoras de Educação Física na escola, especialmente, nesse tempo, se confrontamos com um contexto econômico, social e político adverso a suas pretensões de ensinar no ambiente escolar. Para parcelas importantes do professorado, especialmente para aqueles com pouca experiência em sala de aula, é difícil entrar em sala de aula nos dias de hoje e dizer algo que tenha sentido para os estudantes. Argumento que consolidamos observando professores e professoras iniciantes na carreira docente.

Pesquisas empíricas (LOPES; WITTIZORECKI; MOLINA NETO, 2021) mostram que diante desse contexto e adversidades, diante da verticalidade das políticas públicas, da incontinência temporal dos gestores e o que estes pensam dos professores e professoras, o coletivo opera em uma espécie de “mandala”, em um cenário/ambiente complexo, o coletivo faz o que pode, o que sabe na medida de seu conhecimento e o que quer fazer segundo sua vontade política e experiências vividas nesse ambiente e fora deste.

Em outras palavras, o professorado resiste, é resiliente e opera no limite de seus afetos, necessidades e interesses. Confrontando os termos da portaria 350/2021 com estudos empíricos recentes, o professorado está preocupado com a perda da autonomia docente e com a angústia da extinção da Educação Física Escolar (BERNARDI, 2014, 2021; CONCEIÇÃO, 2014). Nessa perspectiva, o coletivo docente constrói cultura docente, identidades e pertencimentos. Quanto ao Ensino Médio, criticamos duramente seu caráter discricionário (educação propedêutica aos ricos e preparação para o trabalho aos pobres) e entreguista ao empresariado nacional por conta do projeto neoliberal (MOLINA NETO ., 2017).

O marco curricular gaúcho atual se constitui nessa perspectiva e entra nessa lógica. Como política pública, tem a pretensão de modelar os modos de subjetivação dos professores e do trabalho docente. Com esse propósito, usa conceitos avançados e correntes, na área de conhecimento Educação Física, como interdisciplinaridade e cultura corporal de movimento, porém define ações estratégicas didáticas de viés conservador, como, por exemplo, o conteúdo esporte ensinado na perspectiva das entidades de gestão esportiva. Nas séries iniciais, por exemplo, separa a Educação Física das demais disciplinas do currículo por atividade (Apêndice I). Será que a gestão educativa deslocará o professorado de Educação Física do Ensino Médio para garantir especialistas do primeiro ao quinto anos? Haverá novos concursos públicos para garantir Educação Física de qualidade a todos os estudantes, uma vez que a Rede Estadual de Ensino não contempla () professores especialistas nos anos iniciais do Ensino Fundamental? Com essa contradição o Estado pretende definir como a Educação Física deve organizar o conteúdo das aulas. Além disso, utiliza uma taxonomia de objetivos procedimentais avançada (já usados na Base Nacional Comum Curricular) para definir os conteúdos do ensino (GONZÁLEZ; FRAGA, 2012; GONZÁLEZ; SCHWENGBER, 2012). O que caracteriza, cotejando os objetivos de ensino com a referida portaria, um engano. Menos mal que o professorado resiste, conforme pode ser constatado no trabalho empírico de Kuhn (2021).

Nesse sentido, a pesquisa sobre os recentes currículos escolares do Rio Grande do Sul (LOPES; WITTIZORECKI; MOLINA NETO, 2021) com professores e professoras de Educação Física experientes é importante e volta a nos iluminar para entendermos o que pensam professoras e professores de Educação Física sobre as finadas políticas públicas já oferecidas na impermanência dos governos estaduais que vêm se alternando no poder do estado.

Essas últimas vozes clarificam uma espécie de artesania que transversaliza o entendimento dos professores a respeito das políticas [educativas] [...] A ‘química’ que perfaz esse processo carrega em sua composição uma espécie de fuligem, um resto deixado por outras experiências, tanto macro, quanto micropolíticas. Essas políticas residuais, a nosso ver, alteram em maior ou menor proporção a intencionalidade de qualquer política implantada, fazendo com que, na prática, no ‘chão da escola’, ela simplesmente não exista ou se reconfigure substancialmente. (LOPES; WITTIZORECKI; MOLINA NETO, 2021, p. 168).

No Ensino Médio gaúcho, Azevedo (2022) aprofunda a crítica evidenciando a:

[...] criação de disciplinas sem sustentação cientifica como: ‘projeto de vida’ e outras que pulverizam e desqualificam o currículo em prejuízo da formação das nossas juventudes e uma rede de ensino precarizada que não oferece o mínimo possível em frente das suas limitações materiais e humanas. Em nome de uma pretensa ‘flexibilização’ e de um falso ‘direito de escolha se privam os mais pobres de uma formação geral científica qualificada o que é assegurado às classes privilegiadas no mercado educacional privado. (p. 10)

Para o autor, a desestruturação do magistério estadual gaúcho (com o objetivo de modernizar as normas referentes ao plano de cargos e salários do magistério estadual, o então governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, sancionou a Lei 15.451/2020, que alterou o estatuto dos docentes instituindo regras mais rígidas. As principais alterações atingem o acesso à promoção de classe e modificações no período de estágio probatório. O que eram vantagens pecuniárias foram considerados adereços e desnecessárias ao Plano de Carreira do Magistério) representa de forma clara a precarização do trabalho docente (SAMPAIO; MARIN, 2004). Professores e professoras gastam o tempo para atividades educativas, deslocando-se de um lugar a outro para ensinar. Diz Azevedo (2022) referindo-se à alteração do plano de carreira do magistério estadual do Rio Grande do Sul: “...o que está sendo feito com os educadores e educadoras é cruel e perverso. [...] destruíram sua carreira na alegação mentirosa, falsa e injusta que suas vantagens de promoção por merecimento e por tempo de serviço eram penduricalhos e privilégios”. (p.10)

A Educação Física brasileira e em especial no Rio Grande do Sul que integra o processo de contrarreforma que acabamos de descrever, mas para sua compreensão e da portaria 350/2021 é preciso levar em conta dois conflitos circunstanciais quanto a sua objetivação na escola.

Primeiro, é possível ver contradições, intenções e objetivos na relação entre o NEM e as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para o Ensino Médio. A CNE/CEB 2/2012 (BRASIL, 2012) se propôs e trouxe avanços quanto à concepção do Ensino Médio como um direito social de cada pessoa e dever do Estado em sua oferta pública e gratuita a todos. O Novo Ensino Médio - (NEM) propõe a privatização terceirizando componentes curriculares como a Educação Física e seus conteúdos programáticos como, por exemplo, a inclusão na docência do chamado “reconhecido saber” e a participação na Educação Pública do “terceiro setor”, notadamente no âmbito das técnicas corporais.

O segundo tipo de conflito está na ontologia da Educação Física: entre a ciência e a prática pedagógica nas escolas. Segundo Bracht (1999; 20115), uma relação difícil, tumultuada e de negação recíproca. Uma tarefa que envolve dois universos paralelos que deveriam ser complementares e integrados entre si, mas não são. Refiro-me aqui à produção de conhecimento no âmbito da pós-graduação em Educação Física e à prática pedagógica que acontece nos ambientes escolares e não escolares: vanguardas pedagógicas e o chão da escola. Além de utilizarem léxicos diferentes, a dialógica é de desconsideração. Enquanto uns exigem de outros reflexão crítica, outros acusam uns de reflexões nas alturas, desinteressantes e desconectadas da prática pedagógica. Sem que estas perspectivas passem a considerar uma à outra, muitos projetos político-pedagógicos terão dificuldades para justificar sua permanência no currículo escolar.

A pergunta que Bracht (2011) faz é: é possível a reconciliação matrimonial, a partir de uma teoria da Educação Física, entre esses dois mundos: a prática científica e a prática pedagógica no âmbito da experiência vivida pelos sujeitos que no dia a dia da escola ensinam e aprendem, considerando que a prática científica da Educação Física se encontra reificada, hegemônica, despedagogizada, com o fim em si mesmo e com problemas de comunicação, uma vez que se crê totalizadora? Para o autor, a reconciliação possível está na busca do sentido, isto é, uma prática pedagógica com sentido para os praticantes, que transcenda (no sentido de ir além) ao ato motor, ao gasto calórico e à performance espetacularizada, fato que requer procedimentos, metodologias alternativas, reflexões eivadas de humanidades, portanto aprendizagens significativas para a vida toda em todas as etapas da educação escolarizada.

A portaria 350/2021, antecedida pela portaria 163/2021, nos desafia a enfrentar muitas das questões que antes levantamos. O quanto ela materializa uma perspectiva ideológica e os seus desacertos que trazem angústia, ansiedade e agonia ao professorado de Educação Física? Além da insuficiência de carga horária para muitas disciplinas na área das humanidades, a resolução traz muitas armadilhas que, se não extinguem a Educação Física do currículo escolar, a colocam no patíbulo. Com uma aula por semana, a Educação Física participará em todo Ensino Médio com algo em torno de 40 aulas semanais. Se considerarmos o tempo de deslocamento dos alunos de uma sala de aula para a quadra, para o pátio etc., a chamada, a preparação do equipamento e a seleção de materiais lá se vai o tempo e resta pouco para ensinar e aprender. Como contemplar a abrangência, a diversidade de conteúdos da cultura corporal do movimento com uma carga horária tão restrita? Isso quer dizer que a seleção dos conteúdos será restrita. No máximo, uma prática compensatória no primeiro ano do Ensino Médio. O coordenador de turno entrega a bola para os estudantes jogarem qualquer coisa por 30, 40 minutos. A esperança pode estar é na subversão e no potencial subversivo e resiliente do professorado, isto é, na capacidade do professorado de adaptar a matriz curricular aos interesses da escola e dos estudantes e resistir às orientações da gestão, ampliando a carga horária (sem infringir a lei) do componente curricular. Que eles consigam utilizar a parte reservada aos itinerários formativos, para ampliar a carga horária de todas as disciplinas desconsideradas pela portaria 350/2021. Isso só para ficar na carga horária, pois se fizermos um exercício prospectivo veremos também a inadequação da resolução ao ensino noturno e seu descompasso com a realidade das escolas, notadamente, as da periferia profunda das grandes cidades.

Manifestamos ao longo da argumentação a incongruência e o desacerto, tanto da política pública representada pelo Marco Curricular Gaúcho levado à prática cotidiana das escolas públicas por meio da portaria SEDUC 350/2021, quanto do projeto nacional que lhe dá sustentação, o NEM, materializado na Lei federal nº 13.415/2017. Coincidimos com a posição política de importantes entidades nacionais que congregam cientistas e professores da Educação Básica nacional, entre outras, o Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE), a Associação Nacional de Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE)6 e a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPED) e apoiadas por importantes confederações sindicais como a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE). Pensando sobre nossa experiência como formador de professores e professoras de Educação Física tal configuração de aula de Educação Física é o mesmo que nada. Representa um forte prejuízo à socialização e a educação Integral da população estudantil, amplamente constatado pelas pesquisas recentes da área de conhecimento Educação Física.

Além de incongruência, esses desacertos governamentais, tanto em nível federal quanto estadual, caracterizam-se como uma gigantesca contradição. Enquanto o Ministério da Educação trata de reduzir a carga horária da Educação Física e das Ciências Humanas no currículo escolar, o Ministério da Saúde (BRASIL, 2021) recomenda que a Educação Física seja ministrada três vezes por semana em todas as etapas de Ensino, tanto na Educação Infantil, quanto na Educação Básica (Figura 1).

Figura 1
Card Guia de Atividade Física para a População Brasileira.

Portanto, urge que em curto prazo possamos revisar/revogar a Portaria 350/2021, pois ela é nefasta e conspira contra a qualidade da Educação e da Educação Física gaúcha, além da saúde da população. Do mesmo modo, é necessário revogar a Lei nº 13.415/2017, uma vez entendida pela comunidade científica como prejudicial à Educação Nacional, porque só a resistência e a resiliência do professorado não serão suficientes para enfrentar o mal feito.

  • 1
    HABERMAS, apudDALLA FONTE, 2014, p.389
  • 2
    Referência ao filme de 1977, Ingmar Bergman que retrata o drama judeu ante às condições econômicas, sociais e políticas que antecedem a eclosão do Nazismo, fenômeno que alterou os destinos da Alemanha e do Mundo.
  • 3
    AZEVEDO, José Clovis. Gratidão e trajetória: a medalha e os “farrapos” da rede estadual gaúcha. 2022. Mimeografado. Secretário Estadual de Educação, de 2011 a 2015. Ganhador da Medalha do Mérito Farroupilha, honraria de iniciativa da Assembleia Legislativa do RS. Texto apresentado e distribuído na outorga da comenda.
  • 4
    Para entender como a noção de mérito opera nas sociedades democráticas e na educação ocidental, como a meritocracia articula e se sustenta na competição, na inovação e sugere o empreendedorismo ver o texto de François Dubet O que é uma escola Justa? nos Cadernos de Pesquisa, da Fundação Carlos Chagas, v.34, n.123, p.539-555, set./dez.2004. Nesse texto, também é possível ver como a pretensa igualdade no sistema educacional responsabiliza o sujeito que fracassa na escola pelo próprio fracasso.
  • 5
    Texto distribuído pelo autor em encontro pessoal.
  • 6
    A ANFOPE sublinha: “...todas as evidências apontam para um mesmo fato: o compromisso da atual Reforma do Ensino Médio não é com a consolidação do Estado Democrático de Direito e nem com o combate às desigualdades sociais e educacionais no país. A Reforma está a serviço de um projeto autoritário de desmonte do Direito à Educação como preconizado na Constituição de 1988. De fato, os primeiros impactos concretos da implementação da Reforma nos estados vão mostrando que a Lei 13.415/2017 vincula-se a um projeto de educação avesso à democracia, à equidade e ao combate das desigualdades educacionais...”
  • FINANCIAMENTO
    O presente trabalho foi realizado sem o apoio de fontes financiadoras.
  • COMO REFERENCIAR
    MOLINA NETO, Vicente. Menos Educação Física, menos formação humana, menos educação integral. Movimento, v. 29, p. e29001, 2023. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.125819

ÉTICA DE PESQUISA

A pesquisa seguiu os protocolos vigentes nas Resoluções 466/12 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil e o Guia de Integridade em Pesquisa Científica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Apêndice 1 Marco Curricular Gaúcho

Matriz Curricular Ensino Médio - Diurno e Noturno Formação Geral Básica Áreas Componentes curriculares Períodos Semanais 1º ano 2º ano 3º ano Linguagem e suas Tecnologias Arte - - 1 Educação Física 1 - - Língua Estrangeira - Língua Espanhola * - 1 - Língua Estrangeira - Língua Inglesa 2 1 1 Língua Portuguesa 4 3 4 Literatura 2 - - Matemática e suas Tecnologias Matemática 4 3 4 Ciências Humanas e Sociais Aplicadas Ensino Religioso ** - 1 - Filosofia 1 - - Geografia 2 1 1 História 2 1 1 Sociologia - 1 - Ciências da Natureza e suas Tecnologias Biologia 2 2 - Física 2 2 - Química 2 2 - Carga Horária da Formação Geral Básica Total de Períodos Semanais Períodos de 50 minutos 24 18 12 Carga Horária Anual (horas) 800 600 400 Itinerários Formativos Componentes Obrigatórios Projeto de vida 2 2 2 Mundo do Trabalho 2 - - Cultura e Tecnologias Digitais 2 - - Iniciação Científica - 2 2 Aprofundamento Curricular Componentes curriculares da Área de Aprofundamento - 8 14 Eletivas *** - *** *** Carga Horário dos Itinerários Formativos Total de Períodos Semanais(períodos de 50 min) 6 12 18 Carga Horária Anual (horas) 200 400 600 Total de Períodos Semanais(períodos de 50 minutos) 30 30 30 Carga Horária Anual (horas) 1000 1000 1000 *
**
***
Obs. Ensino Médio Diurno e Noturno.
Matriz Curricular do Ensino Fundamental - Anos Finais
Area de conhecimento Componentes 6º ano 7º ano 8º ano 9º ano

Linguagens
Língua Portuguesa 6 6 6 6
Língua Inglesa 1 1 1 1
Língua Espanhola * * Componente de matrícula facultativa: caso o estudante opte, no momento da matrícula, por não o cursar, a carga horária correspondente deve ser direcionada ao Componente Língua Estrangeira - língua Inglesa. 1 1 1 1
Arte 1 1 1 1
Educação Física 2 1 1 1
Matemática Matemática 7 7 7 7
Ciências da Natureza Ciências 2 2 2 2
Ciências Humanas História 2 2 2 2
Geografia 1 2 2 2
Ensino Religioso Ensino Religioso ** ** Componente de matrícula facultativa: caso o estudante opte, no momento da matrícula, por não o cursar, a carga horária correspondente deve ser direcionada ao componente da área de Ciências Humanas definido pela escola. 1 1 1 1
Projeto de Vida 1 1 1 1
Total de períodos semanais 25 25 25 25
Total de carga horária anual 833 833 833 833
  • *
    Componente de matrícula facultativa: caso o estudante opte, no momento da matrícula, por não o cursar, a carga horária correspondente deve ser direcionada ao Componente Língua Estrangeira - língua Inglesa.
  • **
    Componente de matrícula facultativa: caso o estudante opte, no momento da matrícula, por não o cursar, a carga horária correspondente deve ser direcionada ao componente da área de Ciências Humanas definido pela escola.
  • Matriz Curricular
    Ensino Fundamental - Anos iniciais
    Componentes Curriculares Carga Horária
    Componentes Integrados: Artes, Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História, Geografia, Ensino Religioso. 18h20min
    Educação Física 1h40min
    Carga Horária Semanal 20
    Carga Horária Anual 800

    REFERÊNCIAS

    • APPLE, Michel. Educação a direita: mercados, padrões, Deus e desigualdades. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2003.
    • AZEVEDO, José Clovis. Gratidão e trajetória: a medalha e os “farrapos” da rede estadual gaúcha, 2022. Mimeografado.
    • BERNARDI, Guilherme B. “A palo seco”: a autonomia docente na sociedade neoliberal. Tese (Doutorado em Ciências do Movimento Humano) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/230834 Acesso em 21 out. 2022.
      » https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/230834
    • BERNARDI, Guilherme B. Proletarização do trabalho docente: implicações na educação física escolar. Dissertação (Mestrado em Ciências do Movimento Humano) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2014. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/101489 Acesso em 21 out. 2022.
      » https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/101489
    • BRACHT, Valter. Educação Física ciência: cenas de um casamento (in)feliz. Ijuí: Unijuí, 1999.
    • BRACHT, Valter. EF Ciência: novas cenas de um casamento (in)feliz. 2011. Mimeografado.
    • BRASIL. Lei Nº 13.415 De 16 de fevereiro de 2017 - Altera A Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional e dá outras providências. Brasília, D.O.U, 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13415.htm
      » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13415.htm
    • BRASIL. Resolução nº 2, de 30 de janeiro 2012 Define Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília: Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, 2012. Disponível em: http://pactoensinomedio.mec.gov.br/images/pdf/resolucao_ceb_002_30012012.pdf Acesso em 29 de junho de 2022.
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    • BRASIL. Ministério da Saúde. Guia de atividade física para a população brasileira Brasília: MS, 2021. Disponível em: guia_atividade_fisica_populacao_brasileira.pdf (saude.gov.br). Acesso 1 jul. 2022.
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    Editado por

    • RESPONSABILIDADE EDITORIAL
      Alex Branco Fraga*, Elisandro Schultz Wittizorecki*, Mauro Myskiw*, Raquel da Silveira*, Roseli Belmonte Machado*
      *Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

    Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Ago 2023
    • Data do Fascículo
      2023

    Histórico

    • Recebido
      04 Ago 2022
    • Aceito
      26 Out 2022
    • Publicado
      04 Fev 2023
    location_on
    Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rua Felizardo, 750 Jardim Botânico, CEP: 90690-200, RS - Porto Alegre, (51) 3308 5814 - Porto Alegre - RS - Brazil
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