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Analítica da ambiguidade: estratégia metódica para a pesquisa fenomenológica em saúde

Analytic of ambiguity: metodic strategy to the phenomenological research in health

Analítica de ambiguedad: estrategia metodica para la investigación fenomenológica en salud

Resumos

A estratégia aqui apresentada, denominada Analítica da ambiguidade, vincula-se à necessidade de compreensão dos achados em pesquisas fundamentadas na fenomenologia merleau-pontyana. Ela articulou-se a partir de estudo das descrições vivenciais de dez familiares, integrantes de um Grupo de Ajuda Mútua para cuidadores de portadores de doença de Alzheimer, realizado em uma universidade de Florianópolis, Santa Catarina. Tais descrições se mostraram por meio de entrevista baseada na experiência intercorporal, durante a construção de uma tese de doutorado em Enfermagem. A aplicação da analítica da ambiguidade ao referido estudo coaduna-se com outros estudos de natureza semelhante e abre possibilidades para a compreensão dos achados em pesquisas fenomenológicas, mais especificamente naquelas fundamentadas na ontologia da experiência de Merleau-Ponty, por reconhecer a consciência como algo inapreensível e a percepção, sempre, como um processo ambíguo.

Filosofia em enfermagem; Cuidadores; Doença de Alzheimer


The strategy presented here, called Analytical of ambiguity, is linked to the need for understanding of findings in research based on Merleau-pontyan phenomenology. It was hinged from the study of experiential descriptions of ten family members, components of a Mutual Help Group for caregivers of patients with Alzheimer's disease, conducted at a university in Florianopolis, Santa Catarina, Brazil. Such descriptions have shown themselves through interviews based on interbody experience, during the construction of a Doctoral Dissertation in Nursing. The application of analytical of ambiguity to the cited study is consistent with other similar studies and opens up possibilities for the understanding of the findings in phenomenological researches, specifically those based on the experience ontology of Merleau-Ponty, for recognizing consciousness as something inapprehensible and the perception, always, as an ambiguous process.

Philosophy, nursing; Caregivers; Alzheimer disease


La estrategia presentada aquí, llamada Analítica de la ambigüedad, está vinculada a la necesidad de comprensión de los hallazgos en investigaciones basadas en la fenomenología Merleau-pontyana. Ella se articuló a partir del estudio de las descripciones vivenciales de diez familiares, componentes de un Grupo de Ayuda Mutua para cuidadores de pacientes con enfermedad de Alzheimer, realizado en una universidad en Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Estas descripciones se han mostrado a través de entrevistas basadas en la experiencia intercorporal, durante la construcción de una Tesis de Doctorado en Enfermería. La aplicación de la analítica de la ambigüedad al estudio citado es consistente con otros estudios similares y abre posibilidades para la comprensión de los hallazgos en investigaciones fenomenológicas, en particular las basados en la experiencia de la ontología de Merleau-Ponty, por reconocer la conciencia como algo inaprensible y la percepción, siempre, como un proceso ambiguo.

Filosofía en enfermería; Cuidadores; Enfermedad de Alzheimer


ARTIGO ORIGINAL

Analítica da ambiguidade: estratégia metódica para a pesquisa fenomenológica em saúdea a Texto extraído da tese de Doutorado apresentada em 2006 ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem (PPGENF) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Analítica de ambiguedad: estrategia metodica para la investigación fenomenológica en salud

Analytic of ambiguity: metodic strategy to the phenomenological research in health

Edite Lago da Silva SenaI; Lucia Hisako Takase GonçalvesII; Marcos José Müller GranzottoIII; Patricia Anjos Lima CarvalhoIV; Helca Franciolli Teixeira ReisV

IDoutora em Enfermagem, Professora Adjunta do Departamento de Saúde e do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e Saúde (PPGES) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Jequié, Bahia, Brasil

IIDoutora em Enfermagem, Professora Titular do Departamento de Enfermagem e do PPGENF da UFSC, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil

IIIDoutor em Filosofia, Professor dos Programas de Pós-Graduação em Filosofia e em Literatura da UFSC, Psicólogo Clínico do Instituto Gestalten, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil

IVMestre em Enfermagem e Saúde, Professora Auxiliar do Departamento de Saúde da UESB, Jequié, Bahia, Brasil

VMestre em Enfermagem e Saúde, Professora Assistente da Universidade Federal da Bahia, Vitória da Conquista, Bahia, Brasil

Endereço do autor Endereço do autor: Patricia Anjos Lima de Carvalho Rua Francisco Félix de Almeida, 47, Campo do América 45203-170, Jequié, BA E-mail: patrícia.anjos3@gmail.com

RESUMO

A estratégia aqui apresentada, denominada Analítica da ambiguidade, vincula-se à necessidade de compreensão dos achados em pesquisas fundamentadas na fenomenologia merleau-pontyana. Ela articulou-se a partir de estudo das descrições vivenciais de dez familiares, integrantes de um Grupo de Ajuda Mútua para cuidadores de portadores de doença de Alzheimer, realizado em uma universidade de Florianópolis, Santa Catarina. Tais descrições se mostraram por meio de entrevista baseada na experiência intercorporal, durante a construção de uma tese de doutorado em Enfermagem. A aplicação da analítica da ambiguidade ao referido estudo coaduna-se com outros estudos de natureza semelhante e abre possibilidades para a compreensão dos achados em pesquisas fenomenológicas, mais especificamente naquelas fundamentadas na ontologia da experiência de Merleau-Ponty, por reconhecer a consciência como algo inapreensível e a percepção, sempre, como um processo ambíguo.

Descritores: Filosofia em enfermagem. Cuidadores. Doença de Alzheimer.

RESUMEN

La estrategia presentada aquí, llamada Analítica de la ambigüedad, está vinculada a la necesidad de comprensión de los hallazgos en investigaciones basadas en la fenomenología Merleau-pontyana. Ella se articuló a partir del estudio de las descripciones vivenciales de diez familiares, componentes de un Grupo de Ayuda Mutua para cuidadores de pacientes con enfermedad de Alzheimer, realizado en una universidad en Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Estas descripciones se han mostrado a través de entrevistas basadas en la experiencia intercorporal, durante la construcción de una Tesis de Doctorado en Enfermería. La aplicación de la analítica de la ambigüedad al estudio citado es consistente con otros estudios similares y abre posibilidades para la comprensión de los hallazgos en investigaciones fenomenológicas, en particular las basados en la experiencia de la ontología de Merleau-Ponty, por reconocer la conciencia como algo inaprensible y la percepción, siempre, como un proceso ambiguo.

Descriptores: Filosofía en enfermería. Cuidadores. Enfermedad de Alzheimer.

ABSTRACT

The strategy presented here, called Analytical of ambiguity, is linked to the need for understanding of findings in research based on Merleau-pontyan phenomenology. It was hinged from the study of experiential descriptions of ten family members, components of a Mutual Help Group for caregivers of patients with Alzheimer's disease, conducted at a university in Florianopolis, Santa Catarina, Brazil. Such descriptions have shown themselves through interviews based on interbody experience, during the construction of a Doctoral Dissertation in Nursing. The application of analytical of ambiguity to the cited study is consistent with other similar studies and opens up possibilities for the understanding of the findings in phenomenological researches, specifically those based on the experience ontology of Merleau-Ponty, for recognizing consciousness as something inapprehensible and the perception, always, as an ambiguous process.

Descriptors: Philosophy, nursing. Caregivers. Alzheimer disease.

INTRODUÇÃO

Em nossa experiência de pesquisa na área de saúde, percebemos que uma das dificuldades em utilizar a abordagem fenomenológica como fundamentação de pesquisa configura-se pela escassez de estratégia metodológica que norteie a compreensão de descrições vivenciais e que seja coerente com o referencial filosófico. Nessa perspectiva, reconhecemos na filosofia da experiência merleau-pontyana um referencial adequado para reaprendermos a ver o mundo(1).

Merleau-Ponty, não obstante inscreva grande parte de suas obras na filosofia husserliana, pela qual tem grande apreço, de onde extrai um impensado(2), algo que poderia desenvolver a partir da noção de essência em Husserl, compreende que o campo de presença como síntese da consciência ou vivência essencial da qual falava o autor, consiste em um movimento de reversibilidade entre dois polos de uma mesma experiência: o sensível e o objetivo. Essa vivência ambígua é o que caracteriza a percepção como uma experiência de campo. Em seus últimos escritos, já não faz mais fenomenologia no sentido husserliano, das reduções eidética e transcendental, pois constata que não é possível se chegar às essências ou síntese intelectual.

A redução eidética, em Merleau-Ponty, corresponde à fenomenologia da percepção, ou seja, a fazer ver o que se mostra em si mesmo, a partir de si mesmo. Para o autor, as vivências são dinâmicas e contraem as ambiguidades de quem as vive e aquelas que vamos encontrar em todas as partes do universo. Portanto, "a reflexão nunca tem sob seu olhar o mundo inteiro [...] ela só dispõe de uma visão parcial de uma potência limitada"(1).

Nesta perspectiva, a percepção ocorre a partir de uma síntese presuntiva ou síntese de horizontes, que constitui uma experiência de campo cujas essências consistiriam apenas no movimento das vivências através de uma estrutura de horizontes ou estrutura figura-fundo(1). Além disso, o autor também descreve a noção de coexistência a partir da ideia de temporalidade em que, a todo o momento, através da experiência perceptiva, contraímos, no presente, um horizonte de passado e outro de futuro, constituindo uma vivência de campo, que chamou de vivência do corpo próprio. Esta seria a ideia de campo fenomenal, ou mundo da vida, no qual estamos inseridos como ambiguidades.

Escritos mais tardios do autor apresentam, em lugar de corpo próprio e coexistência, um corpo de generalidade que permite o descentramento, o entrelaçamento, a reversibilidade entre eu e outrem(3). Assim, o filósofo que, no início, descreve uma fenomenologia da percepção e ainda faz referência à redução eidética ou essencial, posteriormente amplia seu pensamento, anunciando uma ontologia do ser selvagem ou ontologia da experiência ou ainda uma filosofia da carne, que corresponde à busca da compreensão da natureza sensível e impessoal. Com essa nova ontologia, o autor se tornou muito mais incisivo em suspender o naturalismo, ultrapassando a ideia de consciência ou síntese intelectual e enfatizando a noção de ambiguidade.

Estudos fenomenológicos, como o que buscou descrever os sentimentos de acadêmicos do curso de medicina no enfrentamento dos fenômenos da morte, demonstram que, para descrever vivências, faz-se necessário reconhecer que a experiência humana constitui-se de sentimentos e emoções verdadeiros, que o torna um ser autêntico, um elo de comunicação e relação, como fator de continuidade do seu próprio existir(3,4).

O primado da vivência se refere à experiência primeira, inicialmente chamada, por alguns autores, mundo da vida e posteriormente denominada "primordialidade das experiências [...], a ocorrência primitiva dos fenômenos", aquilo que haveria de se restituir com uma nova ontologia, ou seja, retornar às coisas mesmas(5).

Neste sentido, entendemos que o pesquisador, ao optar pela abordagem fenomenológica merleau-pontyana, precisa responder inicialmente ao questionamento acerca de qual a melhor estratégia para descrever aquilo que se mostra por meio da intersubjetividade. Desse modo, estabelecemos a seguinte questão norteadora: como operacionalizar a compreensão dos achados em pesquisas fundamentadas na fenomenologia merleau-pontyana?

Com este entendimento, o presente estudo tem como objetivo apresentar uma estratégia metodológica para a compreensão dos achados em pesquisas fundamentadas na fenomenologia merleau-pontyana. Tal estratégia, que denominamos Analítica da ambiguidade, se articulou a partir de uma tese de doutoramento(6-8) que visava a descrever vivências de familiares cuidadores de pessoas que sofrem da doença de Alzheimer (DA), à luz da teoria da intersubjetividade(1).

DESCRIÇÃO DE UMA PESQUISA DE ENFERMAGEM FUNDAMENTADA NA FENOMENOLOGIA DE MERLEAU-PONTY COMO REFERENCIAL TEÓRICO, FILOSÓFICO E METODOLÓGICO

A ideia inicial do estudo com os familiares cuidadores emergiu da constatação da existência de um mundo perceptivo, de uma história, que não pertence apenas a uma pessoa como subjetividade distinta. Trata-se de uma experiência primordial que se caracteriza como uma generalidade, no sentido em que somos capazes de produzir essências nas quais outros se podem reconhecer. Por exemplo, como cuidadores, podemos nos reconhecer nas essências que outros cuidadores produzem. No entanto, ao percebermos que também não existia um método ou técnica de compreensão ideal para pesquisas fundamentadas na fenomenologia merleau-pontyana, iniciamos o processo de construção de uma estratégia que possibilitasse o fazer ver fenomenológico em proveito da descrição de vividos intencionais.

Procura do "outro eu mesmo" para a construção do conhecimento

O título acima se refere a nosso investimento na constituição de um grupo de participantes da pesquisa, em consonância com a concepção fenomenológica de que a produção do conhecimento é intencional, o que significa dizer que ele se efetiva a partir da intersubjetividade, e com a convicção de que somos o outro do outro, e que o outro somos nós mesmos(9).

Nesta perspectiva, buscamos uma forma de operacionalização do trabalho de campo que acreditamos ter sido bastante compatível com o pensamento fenomenológico. Para tal, contamos com a voluntária colaboração de integrantes do Grupo de Ajuda Mútua para os Familiares Cuidadores de Idosos Portadores de DA e Outras Similares (GAM), que funciona no Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)(6).

A experiência de campo teve início com a apresentação do projeto de pesquisa em uma das reuniões do GAM: exposição dos objetivos, da proposta metodológica, dos possíveis benefícios do estudo como construção do conhecimento na área de cuidadores de pessoas com DA. Acrescentamos ainda a informação de que o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da UFSC, sob protocolo n. 081/2005, conforme preceitos previstos na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde que trata de pesquisa envolvendo seres humanos(10).

O GAM foi, então, o contexto de que emergiram os dez cuidadores que aceitaram o convite para participar da pesquisa e assinaram o Termo de consentimento livre e esclarecido(10), documento em que autorizam, além da gravação das entrevistas, a divulgação dos resultados concernentes aos achados. Os participantes foram identificados por meio de codinomes para preservar suas identidades - e são designados, nos relatos, pelos nomes de pedras preciosas. Os entrevistados constituíram um Grupo de Colaboradores Vivenciais (GCV), por reconhecermos que eles contribuíram imensamente com a ressignificação de nossas vivências como cuidadoras e permitiram-nos compartilhar das suas, as quais, também, constituem as nossas, já que estamos vinculados por uma generalidade intercorporal.

Deste grupo (GCV), convidamos cinco cuidadores, que nos ajudaram a fomentar uma discussão geral acerca de suas vivências e que foram incumbidos de destacar temas abertos que consideraram interessantes para nortear a construção dos temas integrantes do roteiro e a realização das entrevistas. Esse grupo foi chamado de Subgrupo de Colaboradores Reflexivos (Sub-GCR), e seus integrantes, juntamente com os demais componentes do GCV, participaram das entrevistas.

Entre as técnicas utilizadas na pesquisa qualitativa, optamos pela entrevista, em função do caráter relacional e intersubjetivo com que se configura. Esta escolha possibilitou aos informantes discorrerem de forma flexível sobre o tema do estudo, permitindo inclusive que eles acrescentassem temas não previstos no roteiro, desde que estes constituíssem tópicos de interesse para a pesquisa.

Não obstante a literatura também contemplar a importância da intersubjetividade do pesquisador com os entrevistados, ela o faz a partir de uma visão psicológica, que não constituía propriamente a orientação da pesquisa. Para solucionar este impasse, ocorreu-nos uma modalidade de entrevista moldada especificamente na perspectiva da intersubjetividade(1) segundo a qual, as relações interpessoais implicam relações intercorporais. Estas últimas, por sua vez, acontecem mediante o entrelaçamento das experiências perceptivas(11). Essa concepção de entrevista não consiste em uma troca de informações, em que cada um tem pensamentos a priori. Ao contrário, os sujeitos falantes articulam os pensamentos plenamente no exterior(12). A palavra, em suas várias formas de expressão, torna-se o componente essencial para a articulação dos pensamentos constitutivos das descrições vivenciais. Por conseguinte, a entrevista consiste em uma experiência de reversibilidade que abre a possibilidade de se configurar como uma transcendência(11).

A experiência do outro envolve uma dinâmica perceptiva em que se passa de um perfil a outro, até que, em determinado momento, o processo perceptivo é interrompido por um olhar. Nesse momento, introduz-se a palavra na tentativa de preencher a lacuna que ocorreu na relação. Dessa maneira, inicia-se a dinâmica criativa, da qual surgem possibilidades inéditas, propiciadas pelas palavras a partir da experiência intercorporal. Nossa experiência, entrevistando os cuidadores, ocorreu nessa direção.

O apelo aos cuidadores baseou-se na noção de que não há um pensamento constituído a priori, que se explicita por meio de palavras, mas na convicção de que estas permitem a articulação de pensamentos. Também fez com que percebêssemos uma lacuna que não poderia ser plenamente preenchida pela palavra. Descobrimos que a identidade que buscávamos encontrar entre os cuidadores é inapreensível. As objetividades que constituímos a partir de suas falas não se configuram como teorizações consistentes, mas como idealidades transitórias que sempre estão se reconstruindo. O que confere unidade às vivências é a experiência de campo. Nessa perspectiva, todos fazem parte de uma mesma ambiguidade que, neste estudo, revela-se no cuidado de um familiar com DA(6).

Durante os dois encontros para a definição de temas, percebemos que a comunicação estava impregnada de ideias demasiadamente enraizadas. Assim, à medida que ouvíamos, observávamos que os cuidadores emitiam frases prontas, chavões oriundos de um discurso já cristalizado. Estes aspectos, habitualmente, mobilizaram-nos para fazer a redução, não no sentido husserliano de alcançar uma síntese intelectual, mas de fazer ver ambiguidades.

Construído o roteiro de entrevista, que não consistiu em uma relação de perguntas, mas de temas amplos e flexíveis, relacionados às vivências de familiares cuidadores de pessoas que sofrem da doença de Alzheimer (DA), passamos à etapa seguinte, que foi a obtenção das descrições vivenciais, por meio das entrevistas individuais. Procedíamos à leitura dos temas desencadeadores, enfatizando que eles poderiam sentir-se à vontade para acrescentar outros temas referentes às suas vivências como cuidadores. Deixávamos claro, também, que eles poderiam começar falando a partir de qualquer um daqueles temas, não importando a ordem disposta no roteiro. Durante a entrevista, a descrição do tema ocorreu de forma bem mais complexa e ambígua, demonstrando que o processo ocorre como uma multiplicidade aberta e indefinida, envolvendo implicações recíprocas.

Concluídas as entrevistas com os dez voluntários iniciais, percebemos que não precisávamos mais buscar outros entrevistados, pois as descrições vivenciais mostravam-se como uma experiência ambígua. Por conseguinte, independentemente do número de pessoas entrevistadas, o foco central do estudo seria a descrição das experiências como eventos de campo e não, a determinação objetiva no sentido de fornecer uma explicação consistente para as situações factuais que apareceram nos relatos dos cuidadores. Desse modo, percebemos que a ambiguidade revelada por cada entrevistado era semelhante àquela que experimentamos em nosso próprio corpo como mundo da vida que somos.

Aplicando a analítica da ambigüidade, essa relação de implicação se inscreveu na construção de categorias temáticas. Na perspectiva analítica que nos propusemos, essas categorias não se referem a uma síntese reflexiva como uma idealidade pura, mas apenas como um dos polos da ambiguidade. Desta forma, efetivou-se todo o processo de compreensão, sempre atentando para que o pensamento objetivo disposto no roteiro de entrevista não nos fizesse perder o contato com a experiência perceptiva.

DESVELAR O QUE SE MOSTRA DESDE SI MESMO ATRAVÉS DA ANALÍTICA DA AMBIGUIDADE

A dinâmica dialógica, no encontro com o outro, situou-se numa perspectiva temporal, universo de ambiguidade que engendra o ser bruto (mundo de possibilidades que nos vincula ao outro) e o ser humano. Nesta ambiguidade, ambos procuram retomar duas formas de vida, a sensível e a cultural. A dimensão sensível relaciona-se com a necessidade afetiva que se busca satisfazer na relação, no contato com o outro, no compartilhamento de sentimentos, conhecimentos, sofrimentos, histórias diferentes e semelhantes. Enfim, um conteúdo que, mesmo não explicando, ousamos entender. O domínio cultural se refere ao universo simbólico que caracteriza as relações sociais, envolvendo reflexão e linguagem.

Os encontros com o Sub-GCR possibilitaram a construção dos temas norteadores para as entrevistas, situando-se, entre estes, autonomia/flexibilidade do cuidador junto ao portador na fase inicial da DA; sexualidade/afetividade da pessoa ao tornar-se cuidadora; o impacto que a pessoa com DA gera no contexto familial do cuidador; aceitação e/ou revolta do cuidador diante do diagnóstico da DA em um familiar; a opção de ser ou não ser cuidador; o cuidar: uma aprendizagem ou um dom?; a influência da história de relacionamento do cuidador com o portador no processo de cuidar atual; a possibilidade de cuidar de si enquanto cuida de um familiar com DA; o prazer e o desprazer no cuidar(6).

Vale ressaltar que o propósito de elaborar estes temas não se firmou na busca de algo já pensado por parte dos cuidadores, mas em motivá-los à expressão daquilo que, embora não tivesse sido articulado por eles, se anunciava como uma possibilidade que não é somente de um determinado grupo de cuidadores: é de todos. A tentativa visualizava a criação de uma forma desencadeadora do diálogo com os cuidadores, em que discutissem tanto os temas que mais frequentemente ouviam de seus pares quanto aqueles que, por algum motivo, não se sentiam à vontade para expor no GAM. No entanto, poderiam ser relatados durante as entrevistas. Enfim, os resultados apresentam a fantástica teia de entrelaçamento entre "eu" e "outrem" que vai se constituindo a partir da experiência de vivências cuidativas.

Na compreensão das descrições vivenciais dos cuidadores, fixamo-nos na ideia de ambiguidade por ser uma noção que mais se aproximou da tentativa de descrever o tecido intencional do qual se constituem as vivências que propusemos com este estudo. E, por não encontrarmos na literatura tradicional especializada um procedimento de compreensão que se adequasse efetivamente à nossa proposição, mantendo-nos coerentes com a filosofia da experiência, arriscamo-nos em construir a analítica da ambigüidade como uma estratégia de organização das descrições vivenciais (dados empíricos)(6).

A analítica da ambiguidade ocorre na seguinte perspectiva: enquanto estamos lendo as descrições vivenciais, sentimos algo que é próprio em nosso corpo. Deparamo-nos com um olhar que interrompe a trajetória perceptiva e somos capturados por uma experiência inédita que nos faz trazer para o presente um mundo que nos é estranho, mas que, ao mesmo tempo, parece-nos familiar. Neste instante, esforçamo-nos para decompor esse tecido intencional. Aqui, o que era irrefletido passa à reflexão e articula-se um pensamento. Neste processo perceptivo, mostra-se uma "infra-estrutura instintiva e uma super-estrutura que se estabelece por meio da reflexão"(1).

A utilização da analítica da ambiguidade e a consequente categorização a partir dos achados nas entrevistas consistem dos seguintes passos: transcrever as entrevistas gravadas; organizar as entrevistas em forma de textos; realizar diversas leituras. Para tanto, parte-se das seguintes prerrogativas: por se tratar de um estudo fenomenológico busca-se descrever vivências, ocorrências de campo e não, explicá-las. As vivências são experiências perceptivas que acontecem em um campo fenomenal, que têm a ver com nossa inserção no mundo da vida e com o reconhecimento de que a percepção só pode ser entendida do ponto de vista de quem a vive. A percepção apresenta-se como uma experiência ambígua. Assim sendo, envolve duas dimensões: o ser bruto – um não saber de si ou consciência pré-reflexiva - e o espírito selvagem – consciência reflexiva, domínio da linguagem, na qual se instala o universo de significações.

A experiência ambígua mostra-se a partir da fala, cuja significação existencial habita a significação conceitual, "[...] retom(a)[e]mos os pensamentos de outros, [de maneira que] suas reflexões enriquecem as nossas. Deste modo, nós nos comunicamos assumindo as palavras do outro, fazendo-as em nosso corpo"(6). O mundo aparece para nós parcialmente, porém arrasta consigo um hábito, isto é, um horizonte de passado que retomamos em nossa vivência perceptiva.

Assim, passamos para a última parte da analítica da ambiguidade, a saber: deixar que os fenômenos se mostrem em si mesmos a partir de si mesmos. Isto significa dizer que o pesquisador vive sua experiência perceptiva durante a leitura e nesta se reconhece como generalidade intercorporal. Ao efetivar objetivações, os pesquisadores estão convencidos de que as ambiguidades são inúmeras, visto tratar-se de uma experiência perceptiva que se insere em um campo fenomenal.

A ambiguidade, como observamos, envolve a experiência perceptiva e constitui-se dos polos sensível ou pré-reflexivo e o reflexivo. Assim, as objetivações, como operações expressivas, consistem em uma transmutação do polo pré-reflexivo ao reflexivo, processo realizado pela linguagem, utilizando-se de palavras, formas, síntese e um gênero literário, aos quais se juntam o estilo próprio do escritor e os sentimentos que o habitam(8). Investido dessas noções, estamos fazendo fenomenologia a partir da suspensão das teses de que as coisas são em si mesmo e fazendo ver essências, ambiguidades, que têm a ver com percepção, com o reconhecimento de que o fenômeno sempre se mostra em perfil e arrasta consigo outros perfis.

Além disso, faz-se necessário o cuidado para não tratar as descrições de "imediato como um conhecimento e esquecer seu fundo existencial", pois, tratá-las dessa forma implicaria o "prejuízo do mundo" - mundo, aqui, entendido como a própria experiência perceptiva, que é uma experiência temporal e se refere à vivência de retomada de uma coexistência anônima(1). Assim, a compreensão sugere a abertura de um campo fenomenal que a inscreve como uma experiência de campo, aquela em que, a cada instante, contraem-se no presente horizontes de passado e de futuro. Não se trata mais de dois gêneros de análise, um subjetivo e um objetivo, mas de uma descrição que tem a ver com o intercorporal, em que está implicada uma atitude transcendental.

Como pesquisadoras, emprestamos nossa percepção à leitura das descrições experienciais dos cuidadores, que se mostraram para nós de forma ambígua. Desta ambiguidade, emergiram expressões na tentativa de preencher uma lacuna imposta pela impossibilidade de apreender o vivido, de traduzir algo que é inapreensível em sua plenitude. A estas expressões, chamamos de categorias, a saber: orientação intencional para o cuidado, ambiguidades das demandas do processo de tornar-se um cuidador, estilo e aprendizagem no cuidado, ambiguidades saúde-doença no cuidado, efeitos do cuidar nas relações familiares, percepção do outro e de si no cuidado, sexualidade no cuidado(6).

Após a construção das categorias temáticas, sentimos a necessidade de sua confirmação. Nesta perspectiva, convidamos o GCV e suscitamos o diálogo, fazendo um paralelo entre os temas propostos pelo Sub-GCR e as categorias estabelecidas a partir da analítica, enfatizando que o cuidado pode ser visto como um processo dinâmico, criativo e responsável e a intersubjetividade, não como a interação entre indivíduos que têm subjetividades distintas, mas como uma experiência intercorporal(6).

O cuidado, a partir de uma intencionalidade que orienta a ação de cuidar, constitui-se uma vivência que ocorre em um campo perceptivo e intercorporal. O cuidador retoma, no presente, um passado, caracterizado por um não-saber de si (um todo se impõe sem que ele o delibere - uma experiência perceptiva) e um futuro que lhe possibilita tornar-se um outro eu mesmo (transcendência)(7), como se percebe na fala que segue:

[...] a mãe era assim: a gente não podia fazer nada, a mãe não tinha afeto, só enquanto era nenezinho, depois que crescia e começava a entender que era gente, acabava os afetos [...] Eu fico às vezes pensando: meu Deus, porque que hoje a minha mãe está precisando de carinho e eu não consigo fazer carinho nela! [...] Ela não foi uma mãe ruim, mas eu não conseguia dá carinho nem ela me dava carinho, não tinha contato físico, mas ela era uma boa mãe, [...] ela sempre fez de tudo pra dar o melhor pra nós; então o pouco que ela deu foi o melhor que ela pode dar. [...] é do contato físico que ela precisa, do carinho, do tocar, essas coisas..., eu não consigo, mas quando eu consigo fico feliz que eu consegui! (Esmeralda).

Na experiência do cuidado de alguém com DA, conforme apareceu na fala acima, o familiar cuidador vive essa ambiguidade: de um lado, um apelo à impessoalidade (sentimento), uma vivência se impõe a ele espontaneamente, como um fenômeno, algo aparece em perfil à percepção, mas arrasta consigo outros perfis. De outro lado, um apelo à pessoalidade, ao universo da cultura, ao mundo da linguagem e da objetividade(7). Ao mesmo tempo em que o cuidador vive a universalidade do sentir, uma existência impessoal e anônima, ele lida com a reflexão, com uma instituição cultural que lhe impõe significados, valores, normas, costumes e tradições.

Embora o objetivo deste estudo não seja o de apresentar os resultados obtidos na tese da qual este artigo constitui um recorte, sentimos a necessidade de fazer referência a uma descrição vivencial que compõe a primeira categoria temática construída na tese, como forma de exemplificar a operacionalização da analítica da ambiguidade(6-8).

CONCLUSÕES

Ao escrever sobre os familiares cuidadores de pessoas com DA, na perspectiva da fenomenologia, foi possível perceber que o conhecimento se mostrou na relação com os cuidadores, emergindo, de experiências intuitivas, algo bem primitivo, que foram os nossos sentimentos. Eles mobilizaram vários atos, inclusive todo o processo de construção do estudo, visando a constituir formas objetivas que reunissem as vivências essenciais em que nós mesmas e os cuidadores pudéssemos nos reconhecer como uma generalidade intercorporal. Deste modo, na compreensão das descrições, buscamos suspender tudo aquilo que representava coisas já definidas e nos detivemos apenas naquilo que se mostrava como essencial.

Contudo, a analítica da ambiguidade se assemelha à experiência de contemplação de uma paisagem em que, para percebermos uma figura, precisamos fechar a paisagem às demais figuras e fixar o olhar no contorno da figura que queremos ver. Esse processo acontece espontaneamente, não pertence ao domínio reflexivo, mas é caracterizado como ambiguidade, ora polarizando-se no mundo da percepção, ora, no mundo humano. Assim, não obstante a estratégia tenha sido pensada e construída na perspectiva de possibilitar a compreensão dos achados em estudos fundamentados na fenomenologia merleau-pontyana, poderá ser aplicada na compreensão de estudos com outras abordagens de natureza qualitativa cujo foco seja a percepção humana, considerando que esta se exprime sempre de forma ambígua.

Recebido em: 30/04/2010

Aprovado em: 13/12/2010

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  • Endereço do autor:
    Patricia Anjos Lima de Carvalho
    Rua Francisco Félix de Almeida, 47, Campo do América
    45203-170, Jequié, BA
    E-mail:
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    Texto extraído da tese de Doutorado apresentada em 2006 ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem (PPGENF) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Jun 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Aceito
      13 Dez 2010
    • Recebido
      30 Abr 2010
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