Resumos
A presente pesquisa analisou a produção de conhecimento sobre comunidades quilombolas no Paraná, para identificar seu conteúdo e, especialmente, para saber se as práticas corporais são recorrentes nessas investigações e de que forma são apresentadas. Para tanto, foi necessário, por meio do Estado da Arte, mapear os estudos realizados sobre quilombolas no Paraná, identificando categorias e reconhecendo as produções teóricas que contemplassem as práticas corporais. Os dados demonstram que a produção de conhecimento sobre comunidades quilombolas no Paraná é recente e se centra nas categorias legalidade, questão agrária/território, conceito de quilombo e educação, com raras incursões pela categoria práticas corporais. Atentam, ainda, para a necessidade de investigações que percebam como essas comunidades produzem cultura e reafirmam suas práticas corporais.
Quilombola; Produção acadêmica; Práticas corporais
This research examined the knowledge production about quilombolas communities in Paraná, identifying their content and, especially, if the bodily practices are recurring in these investigations and how they are presented. Thus, it was necessary, through the State of the Art, mapping studies on quilombolas in Parana, identifying the categories and acknowledging the theoretical productions about the bodily practices. The data demonstrate that the production of knowledge about quilombolas communities in Paraná is recent, focused in categories as legality, agrarian question/territory, concept of quilombola and education, with occasional forays in the category bodily practices. In addition, the data show the need for investigations to understand how these communities produce culture and reaffirm their bodily practices.
Quilombola; Academic production; Bodily practices
O estado da arte de comunidades quilombolas no Paraná:produção de conhecimento e práticas corporais recorrentes1 1 Pesquisa premiada em 2010 no II Prêmio Brasil de Esporte e Lazer de Inclusão Social/SNDEL/ME.
The state of the art of quilombolas communities in Parana: knowlege production and bodily practices recurring
Thaís Godoi de SouzaI; Larissa Michelle LaraII
IMestranda do Programa de Pós-graduação em Educação pela Universidade Estadual de Maringá.
IIDoutora. Professora do Programa de Pós-Graduação Associado em Educação Física UEM/UEL, Maringá-PR.
Correspondência Correspondência: Thaís Godoi de Souza. Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Educação Física. Av. Colombo, 5790, Cep 87090-200-Maringá-PR, Brasil. E-mail: thais.uemr6@hotmail.com
RESUMO
A presente pesquisa analisou a produção de conhecimento sobre comunidades quilombolas no Paraná, para identificar seu conteúdo e, especialmente, para saber se as práticas corporais são recorrentes nessas investigações e de que forma são apresentadas. Para tanto, foi necessário, por meio do Estado da Arte, mapear os estudos realizados sobre quilombolas no Paraná, identificando categorias e reconhecendo as produções teóricas que contemplassem as práticas corporais. Os dados demonstram que a produção de conhecimento sobre comunidades quilombolas no Paraná é recente e se centra nas categorias legalidade, questão agrária/território, conceito de quilombo e educação, com raras incursões pela categoria práticas corporais. Atentam, ainda, para a necessidade de investigações que percebam como essas comunidades produzem cultura e reafirmam suas práticas corporais.
Palavras-chave: Quilombola. Produção acadêmica. Práticas corporais.
ABSTRACT
This research examined the knowledge production about quilombolas communities in Paraná, identifying their content and, especially, if the bodily practices are recurring in these investigations and how they are presented. Thus, it was necessary, through the State of the Art, mapping studies on quilombolas in Parana, identifying the categories and acknowledging the theoretical productions about the bodily practices. The data demonstrate that the production of knowledge about quilombolas communities in Paraná is recent, focused in categories as legality, agrarian question/territory, concept of quilombola and education, with occasional forays in the category bodily practices. In addition, the data show the need for investigations to understand how these communities produce culture and reaffirm their bodily practices.
Keywords: Quilombola. Academic production. Bodily practices.
Introdução
A investigação acerca das produções acadêmicas existentes sobre os quilombolas, assim como a reflexão sobre o conteúdo dessas produções, torna-se importante para a identificação de lacunas naquilo que foi produzido e nos avanços já conquistados. O alcance desse intuito deu-se por meio do Estado da Arte da produção acadêmica sobre comunidades quilombolas no Paraná, no sentido de identificar seu conteúdo e suas categorias e, especialmente, saber se as práticas corporais eram contempladas nessas investigações. Interessava-nos saber, especialmente, se danças, jogos, brincadeiras, lutas, esportes e ginástica eram descritas por essas investigações e se faziam parte do cotidiano quilombola no Paraná.
As pesquisas denominadas Estado da Arte, como ressalta Ferreira (2002, p. 257), trazem em comum "o desafio de mapear e de discutir uma certa produção acadêmica em diferentes campos do conhecimento, tentando responder que aspectos e dimensões vêm sendo destacados e privilegiados em diferentes épocas e lugares" e observando de que formas e em que condições são produzidas dissertações de mestrado, teses de doutorado, publicações em periódicos, comunicações, etc. Assim, ao mapearmos a produção sobre comunidades quilombolas no Paraná, passamos à descrição de seu conteúdo, momento em que emergiram categorias de análise. Posteriormente foi avaliada a produção de conhecimento sobre os quilombolas paranaenses, no sentido de identificar limites e apontar possibilidades de intervenção.
A motivação para esse estudo, decorrente de iniciação científica desenvolvida junto à Universidade Estadual de Maringá e de pesquisa vinculada à Rede Cedes/Ministério do Esporte, parte de investigações sobre cultura popular no Brasil realizadas por uma das componentes deste texto. As reflexões anteriores resultaram em experiências que culminaram no interesse pelo desenvolvimento da pesquisa em questão, cujo foco está na produção de conhecimento sobre comunidades quilombolas no Paraná. Aqui estabelecemos como questões centrais: "Quais são as produções teóricas sobre comunidades quilombolas no Paraná? O que abordam? Há estudos sobre as práticas corporais recorrentes nessas comunidades? Qual seu conteúdo?"
A descoberta e a identificação dos quilombos paranaenses tiveram ressonância com a investigação feita pelo Grupo de Trabalho Clóvis Moura (GTCM), criado em 2005 por secretarias do Governo do Paraná para mapear as comunidades negras no Estado. O nome escolhido homenageia Clóvis Moura, sociólogo negro, estudioso e pesquisador da rebeldia negra no período escravista e do movimento negro no Brasil.
Com o mapeamento e análise do contexto histórico das comunidades quilombolas no Estado, o GTCM classificou-as da seguinte forma: comunidades negras tradicionais; indicativos de comunidades negras; e comunidades remanescentes de quilombos. Estas últimas começaram a ter direitos reconhecidos a partir da Constituição Federal de 1988, mais especificamente no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), em seu art. 68. Nesse ato o termo quilombo não designa o histórico de grupos formados por escravos fugidos, mas sim, a condição dos segmentos negros no Brasil em diferentes regiões e contextos, fazendo referência a terras compradas por negros libertos, à posse pacífica (por ex-escravos) de propriedades abandonadas em períodos de crise econômica e à "[...] ocupação e administração das terras doadas aos santos padroeiros ou de terras entregues ou adquiridas por antigos escravos organizados em quilombos" (BRASIL, 1988).
Para acelerar o reconhecimento dos direitos observados na Constituição, editou-se o Decreto nº 4.887/2003 (BRASIL, 2003), procedimento legal que concede a essas populações o "direito à autoatribuição como único critério para identificação das comunidades quilombolas", com base na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 1989), que fala sobre o direito de autodeterminação dos povos indígenas e tribais. Este decreto, em seu art. 2º, define remanescentes de quilombos como grupos étnicos raciais com ancestralidade relacionada à opressão histórica e a relações territoriais específicas.
Quatro ações foram organizadas para o desenvolvimento da pesquisa. A primeira foi mapear as produções acadêmicas realizadas sobre comunidades quilombolas no Paraná. Contatos foram realizados com o Governo do Estado do Paraná, na figura do Grupo de Trabalho Clóvis Moura, que investiga essas comunidades quilombolas, para assegurar que informações, dados e produção teórica pudessem ser acessados. Pesquisas foram realizadas em bibliotecas brasileiras, em periódicos, em base de dados, entre outras fontes. Também foram contatados grupos de pesquisas e pesquisadores sobre quilombolas por telefone, email e também pessoalmente, quando da Reunião Técnica de Planejamento para a Educação Quilombola do Estado do Paraná, realizada no período de 10 a 12 de dezembro de 2008 na Casa do Trabalhador, em Curitiba - PR, a qual contou com a presença de líderes e não líderes das comunidades, dos núcleos regionais de educação, da Secretaria da Educação no Campo, do Grupo de Trabalho Clóvis Moura e de convidados especiais.
A terceira ação foi verificar se a categoria "práticas corporais" era identificada nesses estudos, e, se desenvolvida, em que perspectiva. Tal análise buscou identificar se jogos, danças, brincadeiras, esportes e outras práticas corporais foram investigados nessas comunidades, se fazem parte de seu cotidiano e de que forma. A quarta ação resultou em reflexão acerca da produção de conhecimento sobre o quilombola paranaense, identificando limites nas pesquisas e apontando possibilidades de intervenção nesse campo do conhecimento.
A realização dessas ações deu-se concomitantemente à participação na pesquisa sobre as comunidades quilombolas no Paraná (Rede Cedes/ME, 2007-2009), desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa Corpo, Cultura e Ludicidade -DEF/UEM, que objetivou identificar, em campo, políticas de esporte/lazer nessas comunidades e suas práticas recorrentes. Assim, a produção resultante dessa investigação do GPCCL contribuiu fortemente para pensar o material de análise da pesquisa de iniciação científica, pesquisa que trouxe importantes subsídios para as análises realizadas pelo Grupo.
MAPEAMENTO DAS PRODUÇÕES CIENTÍFICAS SOBRE COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBO NO ESTADO DO PARANÁ
As produções acadêmicas encontradas sobre comunidades quilombolas no Paraná englobam resumos, artigos, monografias de graduação e especialização, livros, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Referem-se às áreas das ciências humanas (história, geografia, sociologia, antropologia), das ciências agrárias e da saúde, abordando temas sobre educação, saneamento, trabalho, segurança, subsistência, identidade étnica, luta pela terra (questão agrária), legalidade, cultura e práticas corporais (dança).
Ao todo, foram mapeadas vinte e uma produções sobre comunidades quilombolas no Paraná. Da relação existente, apenas foi possível avaliar o conteúdo de dezessete produções, pelos seguintes motivos: duas dissertações estavam em andamento durante o desenvolvimento da pesquisa e duas obras não foram viabilizadas para avaliação. Em duas obras das dezessete avaliadas, o acesso se deu de modo parcial (resumo de uma tese em andamento; apenas um capítulo de trabalho monográfico). Mesmo com algumas limitações, o conteúdo avaliado é satisfatório e atende aos objetivos propostos neste estudo. Vale observar que as duas dissertações e a tese em andamento são de autores já mapeados nesta pesquisa, com produções de outra natureza. O quadro 1 traz dados das produções acadêmicas e seus respectivos autores.
O resumo de Walfrido Júnior (2005), apresentado no encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, em 2005, tem como título o Relacionamento entre senhores e escravos nos campos de Guarapuava: o caso da Invernada Paiol de Telha, e aborda estratégias de dominação entre senhores e escravos nos campos de Guarapuava - PR. O intuito era analisar as possibilidades de relacionamento entre senhores e escravos, esclarecendo as ações dos indivíduos e da sociedade no tocante à lógica da escravidão.
O resumo ampliado, intitulado Fortalecimento da identidade e da autonomia da comunidade: um enfoque na saúde, de autoria de Varejão et al. (2006), foi publicado no VI Seminário do Projeto Integralidade. O texto apresenta o projeto de extensão universitária e sua relevância, bem como ações efetivadas nas comunidades do Vale do Ribeira paranaense, dentre elas a comunidade remanescente de quilombo João Surá. O texto esclarece como ocorreram os estudos, as vivências, as ações e os resultados obtidos pela extensão universitária, trazendo o contexto das comunidades quilombolas em geral. As práticas desenvolvidas junto aos moradores foram planejadas com base na teoria de Paulo Freire sobre educação popular, em três momentos: metodologia de mobilização coletiva individual (capacitação); vivência junto à comunidade; e ação continuada. Constatou-se a falta de ações públicas relacionadas à garantia da terra, de apoio e de proteção para a comunidade, bem como um IDH (indice de desenvolvimento humano) baixo e um elevado percentual de mortalidade infantil e analfabetismo.
A terceira liberdade: notas sobre o processo de elaboração do relatório técnico na comunidade quilombola de João Surá/PR, de Lewandowski e Góes (2008), é um resumo ampliado, apresentado na 26° Reunião Brasileira de Antropologia. O texto apresenta o estudo realizado na comunidade de João Surá, município de Adrianópolis, por um período de 10 meses, no ano de 2007, mediante um convênio entre o INCRA e a Universidade Federal do Paraná. O trabalho teve como intuito promover considerações sobre o contexto histórico da região do Vale do Ribeira (em especial, Adrianópolis) para inserir uma reflexão sobre as formas pelas quais comunidades interagem com o processo de elaboração do relatório técnico, reparando os significados concedidos, as apropriações e as expectativas geradas com os estudos realizados.
Notas sobre atuação do Estado junto às comunidades quilombolas no Paraná, de Lewandowski (2009), fala sobre o convênio que a Universidade Federal do Paraná estabeleceu com o INCRA, em 2007, para a pesquisa em campo, tratando de questões territoriais e políticas e das ações dos quilombolas junto ao Governo do Estado e outras instâncias do poder.
O quilombo como patrimônio cultural: uma proposta educativa, de Both (2006), é um artigo publicado nos Cadernos Temáticos do Paraná. A autora propõe reflexão e encaminhamento pedagógico para a escola com o intuito de apreender as áreas remanescentes de quilombos no Paraná como patrimônio cultural. Para desenvolver o estudo, discute os vários significados de quilombo e de patrimônio e a importância da visualização de áreas quilombolas no Estado, e propõe ações pedagógicas que possibilitem o conhecimento sobre a temática por parte de professores e alunos.
A autora apresenta dados estatísticos de comunidades quilombolas no Brasil e também informações sobre as comunidades remanescentes de quilombos no Paraná. Fala sobre ações de educação patrimonial e sobre a função da área quilombola, o que possibilitaria o desenvolvimento da percepção simbólica do aluno, de sua capacidade analítica e interpretativa das evidências, das análises, das hipóteses encontradas, o que o leva a valorizar a herança sociocultural dos ancestrais.
Quilombos: referência de resistência à dominação e luta pela terra no Paraná, de autoria de Cruz et al. (2006), é um artigo presente nos Cadernos Temáticos da Secretaria de Estado da Educação que aborda o processo de formação das comunidades remanescentes de quilombo no Estado do Paraná, inserindo a luta pela terra e a resistência dos negros à elite paranaense. Os autores iniciam a discussão sobre a conjuntura das comunidades quilombolas nas últimas décadas e apresentam duas matrizes interpretativas em relação ao fenômeno quilombo no Brasil: a matriz "culturalista", que se inicia na década de 1930; e a matriz "materialista", criada em 1960. A primeira busca compreender o quilombo brasileiro como referência e fenômeno do passado, e segunda pauta-se na interpretação materialista da história, com a inserção da luta de classes na rebeldia coletiva dos escravos.
Cruz et al. (2006) afirmam que a presença africana no território paranaense surge com a procura do ouro de aluvião em Paranaguá e, posteriormente, com o tropeirismo (economia hegemônica dos séculos XVIII e XIX), fato que inicia uma nova questão agrária regional - o latifúndio monocultor. Como a pecuária exigia baixa concentração de mão de obra e diminuição da mineração no Estado, configurou-se a presença e a resistência negra, culminando com a origem das comunidades remanescentes de quilombo.
O artigo Esporte e lazer na comunidade quilombola Invernada Paiol de Telha: realidade, perspectivas e desafios, de Lara et al. (2009), investiga e analisa a existência de políticas públicas de esporte e lazer em comunidades quilombolas no Paraná, visando identificar possibilidades de intervenção apropriada nestas localidades. Os autores apresentam como e onde o estudo se realizou e quais os sujeitos participantes da pesquisa, os quais foram constituídos por integrantes da Companhia de Música e Dança Afro Kundun Balê. A coleta de dados para a verificação de políticas públicas de esporte e lazer na comunidade ocorreu por meio de entrevistas com os coordenadores do Kundun Balê, os quais forneceram informações sobre a formação do quilombo, as políticas ali desenvolvidas, a comunidade, a educação, a religião, o trabalho, a saúde, etc. As danças realizadas pelo grupo "atendem não somente ao desejo de realizar manifestações corporais, culturais e artísticas, mas são apropriadas pela questão fundamental atual, que é a luta pela melhoria das condições de vida e visualização/reconhecimento social" (LARA, et al., 2009 p. 12). Com isso, declaram a necessidade de estudar a realidade quilombola no Paraná para auxiliar na compreensão de seu cotidiano, identificando potencialidades e carências.
O livro Projeto comunidades do Feixo e da Restinga: herança dos afro-descendentes da Lapa, da fotógrafa Paula (2007), exibe imagens, fotografias e relatos dos moradores das comunidades quilombolas Feixo e Restinga, no município da Lapa. O estudo descreve narrativas dos integrantes das comunidades, além de retratar suas imagens pelos próprios jovens do lugar, os quais tiveram oficinas de fotografia. Os temas ilustrados tiveram como figurantes os próprios moradores quilombolas e a paisagem (terras, plantações) em que vivem. As imagens retrataram a família, o cotidiano, as comemorações, a religiosidade, as paisagens, a luta (capoeira), a espontaneidade, as brincadeiras das crianças e o trabalho de subsistência.
Paraná Negro, livro organizado por Gomes Júnior, Silva e Costa (2008), aborda as comunidades quilombolas do Paraná. É uma obra de fotografias que apresenta imagens de casas, paisagens, pessoas e, ainda, indicações, localização e breve histórico das comunidades apontadas. O livro traz, ainda, o contexto histórico da colonização da América, da ocupação desse território, do sistema de economia de base primário-exportadora que fez com que muitos africanos constituíssem peça fundamental para a economia da época. Os autores apontam o Paraná como o estado do Sul com maior porcentagem de negros, com base em dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que apontam o percentual de 24% de população negra no Paraná. Afirmam a necessidade de pensar ações em uma perspectiva histórica, antropológica e social para que atendam aos grupos quilombolas.
A obra Campina dos Morenos: um quilombo preservado, de autoria de Portella (2002), retrata a história do quilombo localizado no município de Turvo, limite com o município de Guarapuava, apontando aspectos que caracterizam a comunidade. A metodologia é sustentada pela etnometodologia, que tenta entender como os sujeitos veem, descrevem e sugerem, em grupo, uma definição das situações vividas. Também trata da diferença entre os gêneros, do aspecto físico dos descendentes dos negros da Campina, das festas (como a de São João), a crença no santo padroeiro, entre outros aspectos.
O sangue e o espírito dos antepassados: escravidão, herança e expropriação no grupo negro Invernada Paiol de Telha-PR , de autoria de Hartung (2004), refere-se à comunidade quilombola Invernada Paiol de Telha, do município de Guarapuava. A autora apresenta e discute a expropriação desse território quilombola - terra deixada de herança a um grupo de escravos e libertos.
Comunidades remanescentes de quilombo: do debate teórico e sua configuração no Paraná, de Cruz ([199-?]), é um trabalho monográfico que foi acessado de modo parcial, não sendo possível a análise da obra por completo. O autor trata da produção historiográfica sobre quilombo e aspectos históricos da territorialização negra no Paraná, com interpretações sobre vários autores que discutem o termo quilombo. Apresenta a localização da comunidade de João Surá e aponta que nela há três tipos de organização de trabalho: a contratação, a reunida e o mutirão. Além disso, mostra as alterações da paisagem quilombola por diversos fatores, como as indústrias de base que se instalaram perto das comunidades entre as décadas de 1950 e 1970, impedindo em diversos aspectos a sua reprodução (física, trabalho, social).
A monografia Por dentro do universo afrodescendente: um olhar sobre a manifestação artístico-cultural da Companhia de Música e Dança Afro Kundun Balê de Guarapuava-Paraná, de autoria de Cruz (2008), é uma das raras produções que abordam o tema das práticas corporais nas comunidades quilombolas. A autora fala sobre as manifestações culturais africanas, especialmente sobre as danças inspiradas nesse universo, buscando subsídios para identificar as singularidades da cultura dita africana no Brasil a partir de uma comunidade quilombola do Paraná. Para tanto, buscou fontes sobre a cultura africana e as formas de dança, e estudou a expressão artística, utilizando como referência a Companhia de Música e Dança Afro Kundun Balê, considerando seu papel na transmissão da cultura africana e sua valorização na Região Sul do Brasil.
A pesquisa caracterizou-se como descritiva do tipo etnográfico e a coleta de dados ocorreu em forma de observações e entrevistas semiestruturadas com moradores da comunidade quilombola Paiol de Telha, com foco especial nos integrantes do grupo Kundun Balê. A autora mostra que a dança esteve intimamente ligada à religião e, por meio do sincretismo, os negros conseguiram manter a dança em seus rituais. Descreve as características do candomblé, especialmente a musicalidade do rito e as peculiaridades dos orixás, e faz relações com as celebrações negras. Afirma que a cultura negra é vista de forma equivocada e que, por meio da dança e da música, os quilombolas podem causar alguma mudança nessa visão.
Porque o "pinhão não cai longe do pinheiro": o saber socialmente construído no Conselho dos Anciões do quilombo Paiol de Telha é um trabalho monográfico de especialização, de autoria de Salles (2007). Esta obra é referente à comunidade remanescente de quilombo Invernada Paiol de Telha, situada no município de Guarapuava. O autor trata de questões referentes às comunidades quilombolas no Paraná, apresentando fatos narrados pela história dos quilombos, massacrados e oprimidos, com reflexos visíveis na vida desses indivíduos, a exemplo da expropriação, por grileiros, de territórios negros nos municípios de Ponta Grossa, Guarapuava e Varzeão. A isso se articularam, posteriormente, a mecanização da agricultura e os interesses do agronegócio, em especial, das empresas de reflorestamento de pinus, processo que prejudica a reprodução social dos quilombos por meio da derrubada das matas nativas e ciliares. O objetivo geral do autor foi compreender esse processo e contribuir para a divulgação de subsídios para a história social da luta pela terra nos quilombos do Paraná pela compreensão do papel dos "Mais Velhos" no processo de organização da comunidade quilombola a partir da ação do Conselho dos Anciãos. Procurou, também, colaborar com o debate acerca dos processos de promoção da igualdade racial no Paraná a partir da questão agrária. Para tanto, utilizou-se de pesquisa qualitativa do tipo participante, com entrevistas realizadas durante dois meses, em 2007, nos municípios de Guarapuava, Pinhão e Reserva do Iguaçu. Por fim, o autor declara a importância de mapear os grupos empresariais envolvidos nos conflitos de terras e, o papel educativo dos mais velhos.
O trabalho de Paula (2008), intitulado Policiamento comunitário quilombola no Estado do Paraná, insere-se na modalidade de monografia de especialização da UFPR. Pautou-se em pesquisa bibliográfica e de campo, com a utilização de questionários dirigidos às unidades operacionais da Polícia Militar do Paraná. São feitas considerações sobre o negro na história do Brasil, com recorte para as milícias negras. Certifica o tema da legalidade e relata que o trabalho da polícia militar, historicamente, vem sendo associado a situações de repressão e perseguição ao povo negro, ligadas a interesses políticos e ideológicos. Afirma que sua proposta é apresentar uma mudança de concepção de Patrulhamento Quilombola que leve a polícia militar do Paraná a garantir não só os direitos legais dos quilombolas, mas também a manutenção do patrimônio material, imaterial e cultural das comunidades.
A comunidade do Sutil: história e etnografia de um grupo negro na área rural do Paraná, de autoria de Hartung (2000), é uma tese de doutorado que detalha a origem, os costumes, a cultura, o cotidiano e a organização social do grupo negro da comunidade do Sutil, localizada no município de Ponta Grossa. A autora traz detalhes desse grupo social, a forma como ele se consolidou, as relações sociais estabelecidas e os rituais praticados nesse espaço. Percebe-se a busca de diversos elementos para entender a totalidade dessa comunidade.
O conhecimento etnobotânico da Comunidade Quilombola do Varzeão e o desenvolvimento sustentável, de autoria de Lopes (2007), é uma pesquisa de doutorado que se encontra em andamento. Os objetivos dessa pesquisa são conhecer e interpretar o conhecimento etnobotânico da comunidade quilombola do Varzeão, do município de Dr. Ulisses, Paraná, retratando a realidade em que vivem e elencando os principais fatores que representam risco à perpetuação desse saber, além de estudar flora local como subsídio tanto ao desenvolvimento de políticas sustentáveis e de geração de renda, quanto de políticas de promoção da saúde.
O mapeamento dessas produções e a avaliação de seu conteúdo contribuem para o reconhecimento de pesquisas que identificam as comunidades quilombolas e procuram dar-lhes visibilidade, de modo a saírem de sua condição marginal. Diferentes áreas do conhecimento participaram desse processo, embora outras ainda possam intensificar a luta, descrevendo, avaliando, analisando e disseminando os dados coletados em campo, com intervenção direta tanto junto às próprias comunidades, no sentido de valorizar sua cidadania, quanto junto a instituições governamentais e não governamentais.
Vale lembrar que, das 21 produções mapeadas, apenas foi possível o acesso direto a 17 delas, uma vez que duas não foram conseguidas para avaliação, referentes ao estudo de Steuernagel (2007) e Pinto, Lewandowski (2007). Ainda, somente foi possível o acesso limitado ao trabalho de Cruz ([199-?]) e ao de Lopes (2007), este último ainda em fase de consecução. O elenco das categorias presentes na produção teórica sobre quilombolas auxilia na identificação dos focos de pesquisa.
CATEGORIAS PRESENTES NA PRODUÇÃO TEÓRICA SOBRE QUILOMBOLAS
A produção científica sobre comunidades remanescentes de quilombos no Paraná (ou quilombolas) começou a ganhar corpo no final da década de 1990, mas as comunidades quilombolas somente foram mapeadas no ano de 2005, pelo Grupo de Trabalho Clóvis Moura, responsável pela articulação entre o Governo do Estado e os quilombos. Até então, as comunidades quilombolas, no Paraná, praticamente inexistiam na história, sobretudo pelo foco na grande imigração europeia (OLIVEIRA, 2007).
A pesquisa realizada sobre a produção existente acerca de comunidades quilombolas no Paraná constatou um número de vinte e uma produções que se referem às áreas das ciências agrárias, humanas e da saúde. Assim, ao longo da pesquisa, as leituras e sínteses das produções permitiram-nos encontrar categorias nas obras mapeadas, visivelmente percebidas nos materiais analisados, quais sejam: legalidade, questão agrária/território, conceito de quilombo e educação. A categoria prática corporal foi encontrada apenas em dois dos vinte e um trabalhos pesquisados.
A primeira categoria, legalidade, aparece em todas as produções. Foi com a questão legal que se tornou possível tornar público o novo conceito de quilombo. A lei sobre quilombolas apareceu na Constituição de 1988, em seu art. 68, no ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), afirmando que "aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos" (BRASIL, 2008). Foi após este Ato que cresceu o interesse em estudar essas comunidades.
No decorrer da história do negro, no Brasil, percebemos que a exploração do trabalhador afro-brasileiro continuou após a abolição. Esse trabalhador ficou à mercê da sociedade, desempregado e subempregado, em escassas condições de moradia, educação e saúde. Dessa forma, esta população se revoltava por todos os direitos negados durante a história. Na ditadura militar, os afro-descendentes resistiam, juntamente com outras camadas da sociedade, às imposições militares capitalistas. Foi no final desse regime que a comunidade afro-descendente apresentou algumas de suas reivindicações, formando, assim, o Movimento Negro Unificado (FIABANI, 2005).
Com o Decreto N.° 4.887/2003, surgiram outros documentos e projetos governamentais de inserção das comunidades quilombolas nas políticas públicas. Um deles é o Programa Brasil Quilombola, instituído em 2005, que visa colocar em prática ações de melhoria de qualidade de vida e de organização das comunidades quilombolas, além de garantir-lhes o acesso aos serviços sociais necessários ao seu desenvolvimento. Esse Programa foi proposto pelo Governo Federal, por meio do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e do Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares, sob a coordenação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR).
Diante dos documentos legais, nota-se que o que se propõe na lei e o que é vivido pelas comunidades quilombolas são coisas extremamente opostas. Isso pode ser confirmado nas produções analisadas, nas imagens, descrições, relatos de moradores e opiniões dos autores investigados, os quais mostram uma realidade ao que preveem os documentos. Essas comunidades enfrentam problemas referentes a necessidades básicas de sobrevivência, falta de saneamento básico, alimentação, saúde, moradia, educação, entre outros. Isso se deve também ao processo histórico dessa população no Brasil, que é inferiorizada e massacrada pela sua cor nos espaços em que vive, pela ideologia do branqueamento e naturalização da violência contra o negro.
As teorias racistas difundidas na sociedade brasileira no final do século XIX e a ideologia do branqueamento vigoraram até os anos de 1930, quando foram substituídas pela ideologia da democracia racial (FREYRE, 2006). O início da República (1889) foi marcado pela ideia da modernidade e progresso do país, questão que esteve intimamente articulada ao branqueamento da população, uma vez que a imigração europeia e a miscigenação gerariam a diminuição dos negros (JACCOUD, 2008). A ideia do branqueamento da população brasileira se vê presente até os dias atuais, perceptível nos livros didáticos e em outros meios de comunicação, identificando como positiva a relação com o que é de fora (estrangeiro), principalmente, com a cultura europeia e norte-americana.
A segunda categoria encontrada refere-se à questão da terra do território quilombola. O "direito à terra" coloca-se como condição primeira da produção do sustento desses povos, como também da forma como tradicionalmente se organizaram. A terra é o que permite a sobrevivência e a forte vinculação com a ancestralidade. A má distribuição da terra no Brasil tem razões históricas, e a luta pelo território envolve aspectos econômicos, políticos e sociais. As primeiras terras, no país, foram doadas a particulares - as sesmarias. Do verbo sesmar, que significa dividir terras, a lei das sesmarias foi criada em Portugal, em 1375, com o intuito de fazer progredir a agricultura nesse país. Sesmaria era o sistema de concessão de terras pela coroa portuguesa a particulares com a finalidade de promover a apropriação do território colonial, estimular a produção e trazer lucro ao Reino. Este sistema gerou grande concentração de terras na mão de poucos, e ainda hoje muitos latifúndios do Brasil têm origem nessa ideia (SILVA, 1989).
Com o declínio do regime escravista e o fim do tráfico negreiro, como afirma Fiabani (2005), cria-se a Lei de Terras, em 1850, feita para disciplinar o acesso à terra, com a intenção de impedir ou dificultar a posse por parte da população pobre e dos imigrantes. O autor ainda declara que os fazendeiros paulistas temiam a falta de força de trabalho nos cafezais, por isso era necessário apreender a terra a fim de implementar o trabalho livre. A lei de terras teve o intuito de favorecer a conjuntura da época para a elite brasileira, mantendo o monopólio do acesso à terra.
Diante dessa realidade, pergunta-se: como se constituíram os territórios quilombolas, nessa época, e os conflitos que eles enfrentam hoje? Conforme Fiabani (2005) e o Observatório Quilombola (2003), alguns proprietários entregaram, em vida ou por testamento, partes de terra para que fossem cultivadas por seus escravos. Um exemplo dessa prática ocorreu no Paraná, no município de Guarapuava, em que a proprietária da fazenda Capão Grande, Dona Balbina Francisca de Siqueira, declarou em testamento, no ano de 1860, que deixava suas terras (Invernada Paiol de Telha) aos seus escravos (HARTUNG, 2000). Esta terra, até os dias atuais, enfrenta conflitos territoriais com órgãos públicos e empresas privadas.
Enfim, consideramos que a concentração fundiária histórica atrapalhou a reprodução social de muitas famílias. Por isso vemos diversos movimentos sociais se organizando para lutar por territórios e contra as grandes propriedades privadas, como forma de resistência. Neste contexto, percebemos também o porquê de os territórios quilombolas serem ameaçados por fazendeiros quando o Incra delimita e regulamenta a terra dos remanescentes de quilombos. Em vista disso, observamos que os movimentos sociais populares, no Brasil, sempre enfrentam posições desfavoráveis, pois os interesses do capital, no país (em consonância com os interesses do capital internacional), são incompatíveis com uma real reforma agrária que altere a estrutura política e social no campo brasileiro.
A terceira categoria refere-se ao conceito de quilombo. Os autores das produções sobre quilombolas mencionam os quilombos como espaços de resistência e de identidade étnica, e para isso se baseiam no que estabelece o Decreto N.° 4.887/2003, que define como remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais segundo critérios de autoatribuição, aqueles com trajetória histórica própria, os dotados de relações territoriais específicas e aqueles presumidamente de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida (BRASIL, 2003).
Esse termo adquiriu diversas conotações ao longo dos séculos. Na historiografia de negros e quilombos, como se constatou em vários dos trabalhos aqui analisados sobre quilombolas no Paraná, encontramos duas correntes interpretativas: a culturalista e a materialista. A primeira, como esclarece Gomes (2006, p.10), iniciada por volta de 1930, tendo como principais expoentes Nina Rodrigues, Gilberto Freyre, Ramos, Oliveira Vianna e Afrânio Peixoto, entendia que os "[...] quilombos representavam um fenômeno contra-aculturativo, que tinha origem na persistência da cultura africana, em resposta ao permanente processo de aculturação da sociedade escravista"; ou seja partia da ideia de que, nos quilombos, os sujeitos tinham a intenção de reproduzir a cultura africana. Essa corrente considerava o negro como inferior e submisso aos senhores, mas não o via como trabalhador escravizado. A crítica que se faz a essa perspectiva é que os escravos são vistos como passivos ante a exploração em que viviam, não representando nenhuma ameaça ao sistema escravista.
Contestando as concepções que viam as relações entre senhores e escravos como dóceis e paternalistas, cria-se, na década de 1960, a concepção materialista. Esta se mostra como uma visão coletiva e de resistência escrava. Autores como Clóvis Moura (1986) e Florestan Fernandes apresentam o quilombo como espaço de resistência e luta de classes, dando ênfase às ações (revoltas, insurreições, quilombos) dos escravos contra o sistema vigente da época. Gomes (2006, p. 13) coloca que nessa corrente "[...] produzia-se, assim a imagem do escravo violento e rebelde, pois a negação da suposta docilidade do cativeiro se fazia através da exaltação da reação dos escravos à mesma". Declara, também, que essa abordagem ressalta o aspecto revolucionário de líderes e grandes quilombos no Brasil.
A partir da década de 1970 o termo quilombo é visualizado em um novo contexto - o de reabertura política. Com a redemocratização do país, buscou-se um novo olhar sobre os escritos passados. É nesse momento que a história sobre quilombos ganha espaço, levando ao surgimento da articulação entre intelectuais (antropólogos) e militantes do movimento negro à revisão da historiografia dos negros e quilombos (FIABANI, 2005). O Decreto N.° 4.887/2003 traduz a identidade étnica aliada aos estudos materialistas.
A categoria educação também é recorrente nas obras analisadas, sobretudo com a medida de reconhecimento dos direitos da população negra, pela inserção de sua história no Ensino Básico. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação passou a vigorar a partir de janeiro de 2003, acrescida dos artigos 26-A, 79-A e 79-B, que tratam da obrigatoriedade de inserir no currículo oficial do Ensino Fundamental e Médio de instituições públicas e privadas a temática "História e Cultura Afro-Brasileira" (BRASIL, 2003). Esses artigos da referida lei estabelecem como conteúdo programático a história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a participação dos negros na formação da sociedade nacional, entre outras questões. Posteriormente ela foi substituída pela Lei N.°11.645/2008 (BRASIL, 2008), com uma modificação: a inclusão da cultura indígena nos currículos escolares.
Cumpre lembrar que a imposição dessa lei em nível nacional deveu-se ao trabalho árduo do movimento social negro, que propugnava essa ideia desde 1986 (MOURA, G., 1986). Por outro lado, apesar da grande importância dessa iniciativa, não podemos afirmar que ela assegure a abordagem do conteúdo de forma consciente e concreta. É necessário que haja consciência crítica por parte dos formadores, monitoramento dos livros didáticos, desenvolvimento da alteridade, reconhecimento de processos democráticos, identificação de práticas discriminatórias, de modo que se alcance a superação da desigualdade racial na educação.
A categoria práticas corporais, intencionalmente escolhida para reflexão e constituída, em suas condições históricas, a partir de um conjunto de experiências que se constroem no corpo, a partir do corpo e por meio do corpo, foi observada em apenas duas produções teóricas. Como observa Silva (2005), o termo prática deve ser compreendido em sua acepção de "levar efeito" ou "exprimir" uma dada intenção ou sentido e fazê-lo por meio do corpo.
A monografia de graduação e o artigo encontrado que tratam sobre o tema das práticas corporais em comunidades quilombolas abordam, coincidentemente, a investigação na mesma comunidade, qual seja, a da Invernada Paiol de Telha. Ambos os estudos afirmam que o Kundun Balê é um grupo que reivindica melhorias para sua comunidade por meio de seu espetáculo artístico e, por meio da riqueza dos movimentos, mostra também o significado do campo gestual, o êxtase, a dança que comunica e o corpo expressivo. Assim, é possível considerar que a categoria práticas corporais, apesar de ser abordada somente em duas produções, aponta ricas discussões que ajudam a refletir sobre o sentido/significado das manifestações corporais na sociedade e a relevância em estudá-las.
Pesquisar as práticas corporais (jogos, danças, brincadeiras, esportes, lutas e ginástica) em comunidades quilombolas coloca-se como estudo rico e curioso, embora carente de investigações. O processo de aculturação das comunidades diante da urbanização e os valores contemporâneos comprometeram, inclusive, a realização de manifestações próprias à sua cultura. De fato, desde o período escravista, as manifestações artísticas trazidas pelos escravos africanos foram se adequando às condições históricas e sociais da colônia, criando elementos distintos daqueles de origem. Por vezes, esse "novo" surge totalmente distante daquilo que o originou, a ponto de não mais ser reconhecido como tal.
Discutir esporte, lazer, dança, ginástica, brincadeiras, jogos, corpo, movimento e cultura é uma forma de buscar a dimensão social das expressões corporais, possibilitando a consolidação de um novo entendimento em relação a essas manifestações. As práticas corporais, o campo de movimento e produção cultural são formas legítimas de manifestação da comunidade, de resistência, de valorização étnica, de luta política, e não podem ser camuflados e sufocados por outras políticas ou práticas hegemônicas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essa pesquisa se propôs a analisar a produção de conhecimento sobre comunidades quilombolas no Paraná, identificando seu conteúdo e, especialmente, se as práticas corporais são contempladas nessas investigações. O trabalho mapeou os estudos realizados sobre quilombolas no Paraná e identificou categorias próprias dos quilombolas na produção selecionada para estudo, discutindo-as a partir de referenciais teóricos.
As produções acadêmicas encontradas sobre comunidades quilombolas no Paraná vão desde pequenos textos até teses de doutorado, e referem-se às áreas das ciências agrárias, ciências humanas (história, geografia, sociologia, antropologia) e da saúde (educação física). Abordam temas sobre educação, cultura, trabalho, segurança, identidade étnica, luta pela terra (questão agrária), legalidade, produção do conhecimento e dança. Foram encontradas vinte e uma obras, constituídas de cinco artigos, três resumos, quatro livros, cinco monografias, duas dissertações e duas teses de doutorado.
Aponta-se, também, aqui, uma limitação do estudo em relação ao conteúdo da produção acadêmica mapeada, já que duas produções não foram analisadas por dificuldade de acesso e duas por estarem em andamento durante o desenvolvimento dessa pesquisa. Não obstante, como a investigação não se esgota nesse momento, sobretudo se considerarmos que as comunidades quilombolas, atualmente, têm sido uma tônica entre as diferentes áreas do conhecimento, outros estudos precisam ser desenvolvidos acerca de uma produção que tende a se tornar um campo inesgotável de pesquisa.
Observa-se, diante do mapeamento realizado, que algumas obras tiveram o intuito de contribuir com a produção do conhecimento histórico sobre as comunidades, trazendo dados referentes a diversos aspectos do grupo social, como os aspectos paisagísticos e geográficos em que se inserem os quilombos, a origem dos habitantes das comunidades e dos sujeitos que ali vivem, bem como a importância dessa memória. Outras propõem concepções do termo quilombo, assegurando que é um território de resistência, de organização política e de luta dos populares por seus direitos. Outros estudos, ainda, apontam ações de educação, entendendo os quilombos como patrimônio que deve ser preservado como herança cultural e memória social. Assim, percebemos, conforme Saviani (1997, p. 1), "que desde que o homem é homem ele vive em sociedade e se desenvolve pela mediação da educação". Destarte, as entrelinhas da história não devem ser omitidas. O ensino formal tem que estar baseado em uma formação integral que garanta que os seres humanos sejam críticos, conscientes e capazes de intervir na realidade com a possibilidade de construir novas relações sociais.
Neste sentido, consideramos que os materiais mapeados são ricos em informações, pois permitem ao leitor conhecer situações históricas e cotidianas das comunidades quilombolas, e assim contribuem para que se organizem ações interventoras. O pouco investimento teórico em investigações acerca das práticas corporais nas comunidades quilombolas no Paraná aponta a existência de um vasto campo a ser explorado em especialmente pela educação física brasileira, que pouco tem se voltado para o estudo das minorias alijadas de condições dignas de existência e de sua produção cultural. Reconhecer esta lacuna é possibilitar que outros estudos sejam potencializados, contribuindo para dar condições de reconhecimento e valorização dessas comunidades em todas as instâncias sociais.
Recebido em 17/07/2010
Revisado em 20/01/2011
Aceito em 15/04/2011
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Correspondência:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
03 Out 2012 -
Data do Fascículo
Dez 2011
Histórico
-
Recebido
17 Jul 2010 -
Aceito
15 Abr 2011 -
Revisado
20 Jan 2011