Open-access A bioética de intervenção no contexto do pensamento latino-americano contemporâneo

Resumos

Este artigo destaca o processo de construção, amadurecimento e consolidação da bioética de intervenção (BI) como proposta bioética libertadora. Para tanto, considera como principal indicador dessa característica sua perspectiva antissistêmica, evidenciada pela manifesta opção política e pela insurgência epistêmica contra a dominação epistemológica do conhecimento bioético produzido nos países localizados no centro do sistema-mundo capitalista. Em face de sua marca identitária latino-americana, seu perfil ideológico e sua influência no campo de conhecimento da bioética, a BI é apresentada como uma das teorias mais importantes do pensamento latino-americano contemporâneo, sendo vista como a principal novidade depois da teoria da dependência, da pedagogia do oprimido, da teologia da libertação e da colonialidade do poder.

Bioética; Política; Direitos humanos; América Latina


This article highlights the process of construction, maturation and consolidation of a bioethics of intervention (BI) as a liberating bioethical proposal. Toward that end, it considers the main indicator of that characteristic to be its anti-systemic perspective, as manifested by its manifest political option and by epistemic insurgence against the epistemological domination of the bioethical knowledge produced in the countries located in the center of the capitalist world system. Because of its Latin American trademark, its ideological profile and its influence in the field of knowledge of bioethics, BI is presented as one of the most important theories of contemporary Latin American thinking, and is seen as the main novelty after the theory of dependence , the theory of the oppressed, the theology of liberation and the coloniality of power.

Bioethics; Politics; Human rights; Latin America


Este artículo pone de relieve el proceso de construcción, maduración y consolidación de la bioética de intervención (BI) como una propuesta bioética liberadora. A tal efecto, considera como el indicador principal de esta característica su perspectiva anti-sistémica evidenciado por la opción política y la insurgencia epistémica contra la dominación epistemológica del conocimiento bioético producido en los países situados en el centro del sistema-mundo capitalista. Por su fuerte marca de identidad latinoamericana, su perfil ideológico y su influencia en el campo de conocimiento de la bioética, la BI se presenta como una de las teorías más importantes del pensamiento latinoamericano contemporáneo, siendo considerada como la principal novedad después de la teoría de la dependencia, la pedagogía del oprimido, la teología de la liberación y la colonialidad del poder.

Bioética; Política; Derechos humanos; América Latina


“A América Latina existe?” E, existindo, revela um pensamento próprio? Essas duas interrogantes críticas foram e continuam sendo objeto de discussão entre pesquisadores das mais diferentes áreas do conhecimento na região e fora dela. A primeira indagação corresponde ao título de um dos escritos de Darcy Ribeiro, produzido em 1976. Depois de discorrer sobre o processo histórico e analisar as consequências do violento empreendimento colonial, que impôs a perversa dominação do capital aos povos do continente, o antropólogo brasileiro afirmará, como resposta, sua existência na condição de “Pátria Grande de todos nós”. E dirá mais: A América Latina existiu desde sempre sob o signo da utopia. Estou convencido mesmo de que a utopia tem seu sítio e lugar. É aqui 1.

Contudo, por não aceitarem a predominância da “latinidade”, importantes pensadores latino-americanos – a exemplo de José Martí e José Carlos Mariátegui – farão uso de outras denominações, como “América, Nuestra América”, “Indo-América”, “Ibero-América” e, mais recentemente, “Abya Ayala”, expressão oriunda da língua Kuna que pode ser traduzida como “terra viva”, “terra madura”, “terra em florescimento”. Nesse particular – como opção política –, os movimentos indígenas passaram a utilizar Abya Ayala para denominar a região, em substituição ao nome “América Latina”. Apesar dos questionamentos e suas múltiplas respostas, há certo consenso em torno da “invenção da América Latina” que se dará depois da usurpação do nome “América” pelos Estados Unidos, no século XIX. Antes disso, a denominação “América” correspondia a todo o continente, conforme definido no mapa do cartógrafo alemão Martin Waldseemüller, de 1507.

De qualquer modo, muitos têm sido os esforços de pensadores e pensadoras da chamada região latino-americana em produzir pensamento próprio. Se alguns deles não conseguiram desvencilhar-se da herança epistemológica colonial eurocêntrica, outros, contudo, lograram êxito ao realizar rupturas epistêmicas mais ou menos radicais. Evidentemente, para a definição do resultado alcançado pesaram vários fatores culturais, socioeconômicos e políticos, os quais influíram na opção ideológica e na escolha do lugar de enunciação de cada protagonista. Em nosso entender, diante do imperativo histórico, o pensamento latino-americano deverá obrigar-se a refletir sobre a realidade de dominação e subdesenvolvimento a que foi submetida a América Latina, derivando-se de tal concepção a necessidade de uma prática capaz de transformar essa condição imposta pelo sistema colonial.

No entanto, deve-se reconhecer que, desde o início da colonização europeia, a dominação epistêmica infligiu longo período de submissão do pensamento latino-americano às doutrinas epistemológicas produzidas nos países do Norte, a começar pela escolástica (predominante do século XVI ao século XVIII), seguida pelo iluminismo (final de século XVIII e início do século XIX – no caso do Brasil, coincidindo com o término do período colonial) e pelo positivismo (a partir do século XIX). Os ideais liberais também exerceram influência decisiva sobre o pensamento político regional, fortalecendo as disputas políticas dos defensores do republicanismo e do constitucionalismo, como no caso do México e do Brasil, nos quais, respectivamente, as forças republicanas derrotaram as pretensões imperialistas de Maximiliano (1867) e levaram à deposição de dom Pedro II (1889).

Com os processos de independência política do início do século XIX, emergiu o nacionalismo, vinculado ao aparecimento dos novos Estados nacionais na região. Em fins do século XIX, as ideias marxistas, juntamente com o anarquismo, começam a ser difundidas na região, ganhando força no início do século seguinte. Nesse momento, passam a desempenhar papel relevante nas lutas de resistência na América Latina, entre as quais podemos mencionar as greves realizadas no Brasil pelo operariado, que começava a se organizar nos principais centros urbanos.

Apesar das múltiplas estratégias de colonização do pensamento no território latino-americano, deparamos, no decorrer de toda a história da região, com pensadoras e pensadores dissidentes, os quais suscitaram, desde o início da presença europeia na empreitada colonial, reflexões de resistência à perspectiva dominante. Entre eles encontram-se tanto pessoas nativas do continente como europeus que se distanciaram da estratégia eurocêntrica de produção do pensamento e de suas linhas mestras conceituais. Quanto às reflexões, havia desde aquelas expressas coletivamente – como o pensamento exposto na obra de origem maia, “Popol Vuh” – até as individuais, provenientes de pensadores como Felipe Waman Puma de Ayala e Bartolomé de Las Casas, só para citar alguns nomes mais conhecidos, mas infelizmente pouco discutidos ou mesmo desprezados nos meios intelectuais brasileiros.

Assim como ocorreu no início da colonização, podemos verificar, ao longo dos mais de 500 anos que se sucederam, a existência de produções de autores latino-americanos, os quais, ao lançar mão do pensamento crítico europeu, criaram suas próprias teorias tendo como referência o contexto da região, fato que possibilitou momentos de resistência epistêmica, conforme procuramos destacar a seguir.

A insurgência político-epistêmica da América Latina

O tão propalado “desenvolvimento” latino-americano dos anos 1950, longe de amenizar as desigualdades, aprofundou-as, ao promover internamente a concentração de riqueza, ampliar os índices de pobreza e miséria e reforçar a posição imperialista dos Estados Unidos sobre os países da América Latina. A execução da política desenvolvimentista deu-se, concomitantemente e de maneira colaborativa, com o estabelecimento dos regimes totalitários decorrentes dos golpes militares e das ditaduras, impulsionados e sustentados pelos EUA no contexto da Guerra Fria e como parte de sua política econômica internacional.

Ao mesmo tempo, o triunfo da Revolução Cubana (1959) e o aparecimento dos movimentos de libertação – como a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) na Nicarágua, fundada em 1961 – alimentavam as utopias, estimulavam o pensamento revolucionário e convocavam ao engajamento, principalmente da juventude, nas lutas sociais e no propósito de pensar um projeto político de articulação e libertação do continente. Che Guevara tornava-se ícone, inspirando ideais de libertação na região e no mundo. Além dos enfrentamentos às ditaduras locais, havia o empenho de vários segmentos da sociedade em canalizar as lutas para uma dimensão política mais ampla, anti-imperialista e descolonizadora.

Nesse contexto, como expressões do pensamento latino-americano, emergem nessa fase (décadas de 1960 e 1970): a teoria da dependência, cujos autores mais proeminentes são Celso Furtado, Raúl Prebish e Theotônio dos Santos; a pedagogia do oprimido, tendo Paulo Freire como principal formulador; e a teologia da libertação, na qual sobressaem inicialmente os teólogos Gustavo Gutiérrez e Leonardo Boff. Essas três propostas contemporâneas, não obstante suas diferenças conceituais e de capacidade de mobilização das “massas”, inauguraram um processo de insurgência epistêmica e política na região que será continuado mais tarde, na década de 1990, pelo pensamento descolonial, cujo marco se reporta à teoria da colonialidade do poder, elaborada pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano.

A palavra “insurgência” aqui utilizada não se refere ao sentido político clássico de “insurreição/rebelião”, que implica o uso da força (insurgência armada), mas sim à noção apresentada por Catherine Walsh, segundo a qual a insurgência epistêmica é compreendida como processo constante de construção de novas estratégias e diferentes formas de práxis, ou seja, de criação de mecanismos de pensar, refletir e atuar conjuntamente no enfrentamento das epistemologias dominantes.

Essa insurgência epistêmica contribui para repensar as perspectivas e paradigmas teóricos e políticos. Aliada à insurgência política, tem ajudado a traçar novos caminhos tanto para os povos indígenas e afrodescendentes como para o conjunto da população. Tomemos como exemplo as experiências recentes da Bolívia e do Equador, as quais desenham um horizonte descolonial, na medida em que se desviam do que temos entendido como Estado, bem como das lógicas e significantes que têm dado sustentação a tal entendimento 2.Trata-se de experiências de refundação do Estado, ao transformar seu caráter uninacional e monocultural (Estado-nação) em plurinacional e pluricultural (Estado pluralista e comunitário), tanto que levaram a mudanças substanciais nas constituições da Bolívia e do Equador, aprovadas respectivamente nos anos de 2008 e 2009.

Em importante artigo em que analisa o pensamento de Quijano, a antropóloga Rita Segato faz a seguinte afirmação: No século das disciplinas da sociedade, são somente quatro as teorias originadas no solo latino-americano que cruzaram em sentido contrário a grande fronteira, quer dizer, a fronteira que divide o mundo entre o Norte e o Sul geopolíticos, e alcançaram impacto e permanência no pensamento mundial (…) são elas: a Teologia da Libertação, a Pedagogia do Oprimido, a Teoria da Marginalidade que fratura a Teoria da Dependência e, mais recentemente, a perspectiva da Colonialidade do Poder 3. Dois anos antes da produção desse artigo, durante reunião de estudo do grupo de pesquisa sobre pluralismo bioético, do qual foi coordenadora, Segato externou o entendimento de que, após a teoria da colonialidade do poder formulada por Aníbal Quijano, a bioética de intervenção aparecia como a principal novidade no campo do pensamento latino-americano. Recentemente, voltamos a indagá-la sobre o assunto, e sua resposta veio na reafirmação dessa convicção, muito embora a autora reconheça tratar-se de uma teoria em construção e, portanto, a demandar maior aprofundamento e experimentação na prática bioética deliberativa, a partir de casos concretos.

Tomando a perspectiva de Segato, entendemos que a bioética de intervenção desponta no cenário latino-americano das cinco últimas décadas como a quinta proposição teórica – após a teologia da libertação, a pedagogia do oprimido, a teoria da dependência e a teoria colonialidade do poder – a carregar consigo a marca regional e identitária de seu lugar social originário. Além disso, a partir da periferia do sistema-mundo capitalista, a bioética de intervenção pretende – assim como as quatro teorias que a precederam – romper as fronteiras regionais e firmar-se como perspectiva bioética libertadora, rebelando-se contra a imposição do saber bioético produzido nos países centrais, de modo a consolidar definitivamente seu processo de territorialização epistemológica. Cabe observar que o conceito de sistema-mundo aqui utilizado tem como referência as produções teóricas dos sociólogos Immanuel Maurice Wallerstein4 e Giovanni Arrighi5, segundo os quais na lógica do sistema-mundo a economia global tem vários centros políticos, com divisão de trabalho centralizada e operando em diferentes culturas. Portanto, nosso referencial teórico para a análise das relações internacionais é o sistema-mundo, e não o Estado-nação, como na abordagem liberal.

A bioética de intervenção

Em artigo publicado no ano de 2011, Porto e Garrafa associam as características das bioéticas brasileiras ao movimento pela reforma sanitária no Brasil, iniciado no final dos anos 1970 6. Tal associação justifica-se, sobretudo, pelo reconhecimento e valorização da dimensão social para a análise e compreensão da relação saúde-doença, bem como por sua importância no processo de discussão, elaboração e execução das políticas públicas de saúde.

No Brasil, a vinculação da bioética com as lutas no campo da saúde pública aplica-se, evidentemente, à própria gênese da bioética de intervenção, cujo principal divulgador, Volnei Garrafa, esteve política e intelectualmente envolvido nas mobilizações em defesa da saúde pública desde a origem daquele movimento. Do autor, destaca-se a publicação, em 1981, do livro “Contra o monopólio da saúde” 7, bastante difundido à época entre intelectuais, sindicalistas e estudantes da esquerda sanitária brasileira, e considerado precursor da reforma sanitária do final dos anos 1980.

Nesse sentido, os trabalhos de Garrafa, “A dimensão da ética em saúde pública” 8, Bioética, salud y ciudadanía 9 e Etica y salud pública: el tema de la equidad y una propuesta bioética dura para los países periféricos 10, publicados entre 1995 e 1999, período inicial do desenvolvimento da bioética no Brasil, podem ser considerados marcos historiográficos da identidade seminal da bioética de intervenção em sua vinculação teórico-política com a saúde pública, da qual se origina a preocupação com as demandas de saúde relacionadas com temáticas de situações persistentes e emergentes. As situações persistentes dizem respeito às antigas e crônicas demandas éticas das populações, como exclusão social, fome, aborto e eutanásia. Já as situações emergentes derivam dos avanços tecnológicos, a exemplo daquelas associadas à engenharia genética, ao tráfico de órgãos, ao transplante de órgãos, à medicina preditiva e aos organismos geneticamente modificados.

Esses três textos de Garrafa fazem a transição para a conferência Bioética fuerte: una perspectiva periférica a las teorías bioéticas tradicionales 11, de 2000, e o artigo Bioética, poder e injustiça: por uma ética de intervenção 12, produção conjunta de Garrafa e Porto, de 2002. Delimitamos, portanto, o período entre 1995 e 2002 como aquele correspondente à etapa gestacional da bioética de intervenção, salientando ainda que 1995 foi o ano de fundação da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), fato que simbolicamente representa o momento da emergência da bioética no país.

Contudo, quer da perspectiva teórica, quer do ponto de vista político, seria insuficiente relacionar a proposição da bioética de intervenção apenas às influências do movimento de saúde, mais precisamente da reforma sanitária brasileira. Não obstante, temos consciência de que no Brasil esse processo social assumiu identidade militante, chegando mesmo a receber a denominação de “movimento sanitário” por parte de alguns pesquisadores.

Embora reconheçamos a proximidade política e afetiva entre a reforma sanitária brasileira e a bioética de intervenção, há entre ambas grande distância com relação à amplitude de propósito que aos poucos foi se delineando com a própria construção da proposta bioética. A primeira está voltada para a ação emancipatória delimitada no contexto da formulação, execução e monitoramento de políticas públicas, em particular das políticas de saúde, mesmo que isso implique alguma reforma no âmbito do Estado, tendo como foco um país específico. Já a segunda se apresenta como proposta de libertação, que leva em conta as injustas relações estabelecidas entre o Norte e o Sul, evidenciadas pelas desigualdades sociais que distinguem os países centrais dos países periféricos.

De acordo com Porto, a bioética de intervenção pode ser tomada como “base ética para um modelo abstrato e imaginário de sociedade ideal”, tal como o socialismo utópico 13. Com tal assertiva, a autora justifica o fato de ter se referido à bioética de intervenção como “utopia”, ao mesmo tempo que esclarece que, para ela, a palavra não é sinônimo de ideário inatingível, mas sim de força mobilizadora para a construção de projetos históricos concretos, atingíveis e exequíveis, razão pela qual, ao realizar um balanço dos dez anos da bioética de intervenção, fez uso da expressão “retrospectiva de uma utopia”, que dá sentido de concretude à proposta.

Estamos, portanto, diante de referencial utópico libertador que se traduz em uma bioética do cotidiano fundamentada na ética da libertação, conforme a definiu Dussel: A Ética da Libertação não pretende ser uma Filosofia crítica para minorias, nem para épocas excepcionais de conflito ou revolução. Trata-se de uma ética cotidiana, desde e em favor das imensas maiorias da humanidade excluídas da globalização, na presente “normalidade” histórica vigente 14. Assumindo uma posição de politização dos conflitos morais, a bioética de intervenção defende que a preocupação primeira das bioéticas oriundas dos países pobres seja o enfrentamento dos dilemas éticos persistentes. Por esse motivo, faz opção pela banda frágil da sociedade e se propõe a lutar contra todas as formas de opressão e pela promoção da justiça, tendo como referencial o princípio da equidade 12.

Apesar de ter sido apresentada há pouco mais de quinze anos – considerando a gênese da reflexão feita ainda em 1998, no IV Congresso Argentino de Bioética, na cidade de Mar del Plata, por Garrafa, quando era denominada “bioética dura” –, essa matriz bioética já conta com significativo repertório teórico. Tal produção é fruto, sobretudo, dos esforços de seus principais formuladores, como também da contribuição de simpatizantes e adeptos da proposta, especialmente os egressos dos quinze cursos de especialização em bioética que vêm sendo realizados anualmente desde 1998 pela Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília (UnB) e do Programa de Pós-Graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) desenvolvido a partir de 2008 pela mesma instituição, além de bioeticistas latino-americanos.

Dentre a produção bibliográfica de seus autores mais proeminentes, podemos destacar os artigos: Ética y salud pública: el tema de la equidad y una propuesta bioética dura para los países periféricos 10; Bioética fuerte: una perspectiva periférica a las teorías bioéticas tradicionales 11; Bioética, poder e injustiça: por uma ética de intervenção 12; Intervention bioethics: A proposal for peripheral countries in a context of power and injustice 15; Gênero, raça e bioética de intervenção 16; Bioética de intervenção: considerações sobre a economia de mercado 17; De una ‘bioética de princípios’ a una ‘bioética interventiva’ crítica y socialmente comprometida 18; Inclusão social no contexto político da bioética19; La bioética de intervención y el acceso al sistema sanitario y a los medicamentos 20; A influência da reforma sanitária na construção das bioéticas brasileiras 6; Ampliação e politização do conceito internacional de bioética 21. Além destes artigos destacam-se os seguintes capítulos de livro ou verbete: “Bioética de intervenção: retrospectiva de uma utopia” 13; “Multi-inter-transdisciplinaridade, complexidade e totalidade concreta em bioética”22; “Convenção Regional do Mercosul sobre Bioética: uma proposta da Cátedra Unesco de Bioética da UnB” 23, e “Bioética de intervención”24.

Essa relação de trabalhos não contempla a totalidade da produção de Garrafa e de Porto no período 1999-2012, mas constitui uma seleção abalizada pela importância de seu conteúdo e por seu simbolismo e historicidade na consolidação da proposta epistemológica da bioética de intervenção. Considerada corrente autônoma e diferenciada das demais bioéticas, inclusive as latino-americanas, a bioética de intervenção destaca-se, por exemplo, de duas propostas particularmente bem fundamentadas no contexto brasileiro – a bioética de proteção 25 e a bioética vinculada à teologia da libertação26 –, muito embora mantenha com estas vínculos ideológicos e afetivos, o que lhe assegura a possibilidade de interagir dialogicamente com ambas.

Contudo, é fundamental ressaltar que outras contribuições vêm se somando a esse repertório, na perspectiva de confirmar o paradigma epistemológico da bioética de intervenção, o que lhe possibilita servir de instrumento de denúncia e discussão sobre as situações de injustiça, bem como colaborar para a busca de alternativas. Entre essas produções, podemos indicar: Bioética de intervenção: uma proposta epistemológica e uma necessidade para sociedades com grupos sociais vulneráveis27; Bioética de intervenção: aproximação com os direitos humanos e empoderamento 28; Ensino em bioética: breve análise da primeira década do curso de especialização da Cátedra Unesco de Bioética da UnB 29; Por uma vida não colonizada: diálogo entre bioética de intervenção e colonialidade 30; Bioética de intervenção e justiça social: olhares desde o sul 31.

Retornando ao balanço teórico realizado por Porto sobre os dez anos da bioética de intervenção, encontramos nesse trabalho importante suporte para fundamentar nosso entendimento de que a bioética de intervenção constitui uma das principais novidades do pensamento latino-americano, após o surgimento da colonialidade do poder, corrente antecedida pela teoria da dependência, pela pedagogia do oprimido e pela teologia da libertação. Por isso, preocupa-nos a maneira conclusiva pela qual a autora formula a epítome analítica dessa nova proposta epistemológica no campo da bioética:

Sintetizando esta retrospectiva, considero que a bioética de intervenção politizou a bioética, despertando os bioeticistas para os pressupostos da Reforma Sanitária e indicando que os conflitos em Saúde, que se originam na dimensão social, são temas por excelência da ética aplicada. Estimulou a consciência de que corpo e mente são um, buscando a superação do paradigma cartesiano. Apontou que cada pessoa é efetivamente um ator na sociedade e deve agir para regular a dinâmica das inter-relações sociais com base nos princípios da justiça, orientados pelos direitos humanos, segundo as necessidades coletivas32.

Embora possamos distinguir nas palavras da autora três objetivos alcançados pela bioética de intervenção durante sua primeira década de existência, a forma pela qual estão ordenados pode dar a impressão de que o segundo e o terceiro objetivos são complementares do primeiro – a politização da bioética com base nos pressupostos da reforma sanitária e da dimensão social da saúde –, o que poderia sugerir um reducionismo da bioética de intervenção, já que essa se propõe a ampla perspectiva interventiva, muito além da problemática da saúde. No entanto, como acreditamos que Porto não pretendeu externar tal compreensão – pelo contrário, propôs-se registrar a “concretização da utopia” da bioética de intervenção em toda sua amplitude política (prática) e ideológica (teórica) –, recorremos aos seus argumentos para validar nossa afirmação sobre a amplitude desse projeto bioético, ao qual a autora contribuiu, juntamente com Garrafa, para dar vida.

Nossa convicção é corroborada pela profundidade da análise de Porto, que ao realizar o referido balanço considerou os seguintes aspectos: a) contextos, marcos teóricos e referenciais; b) autocrítica à ideia de intervenção; c) críticas à bioética de intervenção. Ao enfrentar cada um desses pontos, conseguiu dar respostas convincentes às indagações vindas de fora ou por ela própria formuladas, lançando mão, inclusive, de algumas exemplificações, dentre as quais se destaca a aprovação da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco33, identificada como conquista da bioética em âmbito mundial, que contou com empenho decisivo da Sociedade Brasileira de Bioética e da Rede Latino-Americana e do Caribe de Bioética da Unesco. Nesse processo, incluem-se o valioso aporte teórico da bioética de intervenção e o engajamento político de seus formuladores, o que para nós constitui indicativo de resultado da incidência (intervenção), da aceitação da proposição teórica e de seu impacto além das fronteiras da América Latina.

Garrafa, em seu artigo Ampliação e politização do conceito internacional de bioética, apresentado na abertura do IX Congresso Brasileiro de Bioética em 2011 e publicado em 2012, valorizou fortemente a relevância dessa conquista, situando-a entreas medidas e mudanças necessárias para enfrentar os antigos e novos problemas da bioética, na qual destaca como primeiro item autilização dos princípios e referenciais da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos 34.

Recentemente, a bioética de intervenção avançou em sua perspectiva de libertação, instaurando diálogos interepistêmicos, como aquele que lhe acrescenta a característica descolonial, argumento formulado por Nascimento e Martorell 35. Entre outros aportes essenciais para a reflexão acadêmica e consideração nas tomadas de decisão, inclui-se o pluralismo bioético. De acordo com Segato 3, o pluralismo bioético vai além da pluralidade de doutrinas, como postula o pensamento bioético ocidental: ele propõe-se identificar e analisar outras experiências e teorizações de éticas da vida que não são contempladas pela biopolítica da história contemporânea do Ocidente, ou seja, não se limita à ideia de humanidade biologizada e universalizada. Para tanto, busca inspiração no pluralismo jurídico, que postula diferentes concepções de justiça e direito, influenciando práticas distintas de resolução de conflitos, como aquelas adotadas pelos povos originários.

A proposta da bioética de intervenção, com sua arrojada maneira de expor a imbricação das questões políticas e sociais na forma de avaliar eticamente os conflitos bioéticos, não apenas demanda intervenções concretas, mas também conclama a observar o lócus a partir do qual pensamos para avaliar tais conflitos. Sendo assim, obriga a perceber a área da saúde como mais um entre outros campos fundamentais, o qual, a despeito de sua importância, precisa ser articulado com a avaliação das condições sociais em que a vida é experimentada nas diversas regiões geopolíticas de nosso planeta. Portanto, de modo inventivo e decisivo, a bioética de intervenção insere a saúde no contexto insurgente do pensamento latino-americano.

Considerações finais

Durante sua primeira década de existência, a bioética de intervenção conseguiu, com base em sua fundamentação teórica e na colaboração com as demais bioéticas brasileiras e latino-americanas, assegurar, em âmbito internacional, a aceitação da dimensão política na formulação e na prática bioética, ao estabelecer como eixo aglutinador dessa dimensão o paradigma dos direitos humanos.

Ao propor-se como ponte entre os sujeitos (cidadãos), a sociedade e o Estado, a bioética de intervenção assume forte caráter social. O termo “intervenção”, em uma perspectiva histórica mais ampla, esteve geralmente associado ao intervencionismo das grandes potências mundiais nos Estados nacionais econômica e politicamente frágeis. Embora não se deva sucumbir às rotulagens pejorativas historicamente construídas, também não se pode ignorá-las. Pode então acontecer de a expressão “bioética de intervenção” soar estranha para alguns, à primeira vista. Contudo, o que importa de fato é a ação e como ela se manifesta. Por esse motivo, toda ação interventiva deve ocorrer sempre a partir do diálogo com as pessoas e instituições envolvidas, sejam elas destinatárias ou propositoras da ação. Portanto, intervenção – neste caso – jamais poderá ser confundida com intervencionismo.

A bioética de intervenção conforma um paradigma bioético que vem sendo testado e validado, especialmente em seu campo experimental e de difusão mais importante: a Cátedra Unesco de Bioética e o Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília. Para tanto, assume-se de maneira consciente a responsabilidade e as consequências do processo de produção de um conhecimento bioético que se propõe operar em duas dimensões: epistemológica e política. Em âmbito epistemológico, por meio da crítica, desconstrução e reconstrução de saberes; no âmbito político, pela reflexão crítica da práxis bioética e pela defesa de práticas que estejam comprometidas com a transformação da injusta realidade social.

Dessa forma, a bioética de intervenção vai ocupando lugar relevante na arena bioética e se consolidando como importante teoria do pensamento latino-americano da atualidade. É com essa abertura epistêmica que a proposta vai fincando as bases de sua territorialização epistemológica, em permanente articulação e interação com as epistemologias insurgentes do Sul.

Referências

  • 1 Ribeiro D. A América Latina existe? Brasília: Editora UnB; 2010. p. 45.
  • 2 Walsh C. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político-epistémicas de refundar el Estado. Tabula Rasa. 2008;9:131-52.
  • 3 Segato R. Ejes argumentales de la perspectiva de la colonialidad del poder. Revista de la Casa de las Américas. 2013;272:17.
  • 4 Wallerstein IM. World system analysis: an introduction. London: Duke University; 2004
  • 5 Arrighi G. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso tempo. São Paulo: Editora da Unesp; 1996.
  • 6 Porto D, Garrafa V. A influência da reforma sanitária na construção das bioéticas brasileiras. Ciênc Saúde Colet. 2011;16(Supl.1):719-29.
  • 7 Garrafa V. Contra o monopólio da saúde. Rio de Janeiro: Achiamé; 1981.
  • 8 Garrafa V. A dimensão da ética em saúde pública. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da USP; 1995. p. 35-40.
  • 9 Garrafa V. Bioética, salud y ciudadanía. Salud, Problema y Debate. 1997;9(16):26-33.
  • 10 Garrafa V. Ética y salud pública: el tema de la equidad y una propuesta bioética dura para los países periféricos. Actas de las 5ª Jornadas Argentinas y Latinoamericanas de Bioética de la Asociación Argentina de Bioética; 4-6 nov 1999; Mar del Plata, Argentina. Mar del Plata: Asociación Argentina de Bioética, 1999.
  • 11 Garrafa V. Bioética fuerte: una perspectiva periférica a las teorías bioéticas tradicionales [conferência]. 3er Congreso de Bioética de América Latina y del Caribe; maio 2000; Ciudad del Panamá.
  • 12 Garrafa V, Porto D. Bioética, poder e injustiça: por uma ética de intervenção. Mundo Saúde. 2002;26(1):6-15.
  • 13 Porto D. Bioética de intervenção: retrospectiva de uma utopia. In: Porto D, Garrafa V, Martins GZ, Barbosa SN, coordenadores. Bioéticas, poderes e injustiças: 10 anos depois. Brasília: CFM; 2012. p. 110.
  • 14 Dussel E. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. 4ª ed. Petrópolis: Vozes; 2002. p. 15.
  • 15 Garrafa V, Porto D. Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics. 2003;17(5-6):399-416.
  • 16 Porto D, Tapajós A. Gênero, raça e bioética de intervenção. Anais do 5º Congresso Brasileiro de Bioética; 13-15 maio 2004; Recife. Recife: Sociedade Brasileira de Bioética; 2004. p. 26.
  • 17 Porto D, Garrafa V. Bioética de intervenção: considerações sobre a economia de mercado. Bioética. 2005;13(1):111-23.
  • 18 Garrafa V. De una “bioética de princípios” a una “bioética interventiva” crítica y socialmente comprometida. Rev Argent Cir Cardiovasc. 2005;3(2):99-103.
  • 19 Garrafa V. Inclusão social no contexto político da bioética. Revista Brasileira de Bioética. 2005;1(2):122-32.
  • 20 Garrafa V. La bioética de intervención y el acceso al sistema sanitario y a los medicamentos. SIBI: Revista de la Sociedad Internacional de Bioética. 2005;14:7-15.
  • 21 Garrafa V. Ampliação e politização do conceito internacional de bioética. Rev. bioét. (Impr.). 2012;20(1):9-20.
  • 22 Garrafa V. Multi-inter-transdisciplinaridade, complexidade e totalidade concreta em bioética. In: Garrafa V, Kotow M, Saada A, organizadores. Bases conceituais da bioética: enfoque latino-americano. São Paulo: Unesco; 2006. p. 73-86.
  • 23 Garrafa V. Convenção Regional do Mercosul sobre Bioética: uma proposta da Cátedra Unesco de Bioética da UnB. In: Barbosa SN, organizador. Bioética em debate: aqui e lá fora. Brasília: Ipea; 2010. p 157-5.
  • 24 Garrafa V, Porto D. Bioética de intervención. In: Tealdi JC, director. Diccionario latinoamericano de bioética. Bogotá: Unesco; 2008. p. 161-4.
  • 25 Pontes CAA, Schramm FR. Bioética da proteção e papel do Estado: problemas morais no acesso desigual à água potável. Cad Saúde Pública. 2004;20(5):1319-27.
  • 26 Anjos MF dos. Teologia da libertação e bioética. In: Leone S, Privitera S, Cunha JT, coordenadores. Dicionário de Bioética. Aparecida: Santuário; 2000. . p. 1068–71.
  • 27 Cruz MR, Trindade ES. Bioética de intervenção: uma proposta epistemológica e uma necessidade para sociedades com grupos sociais vulneráveis. Revista Brasileira de Bioética. 2006;2(4):483-99.
  • 28 Pagani LPF, Lourenzatto CR, Torres JG, Oliveira AAS. Bioética de intervenção: aproximação com os direitos humanos e empoderamento. Revista Brasileira de Bioética. 2007;3(2):191-216.
  • 29 Gomes AS, Rodrigues DLN, Sertão VS, Porto D. Ensino em bioética: breve análise da primeira década do curso de especialização da Cátedra Unesco de Bioética da UnB. Revista Brasileira de Bioética. 2009;5(1-4):82-105.
  • 30 Nascimento WF, Garrafa V. Por uma vida não colonizada: diálogo entre bioética de intervenção e colonialidade. Saúde Soc. 2011;20(2):287-99.
  • 31 Fulgêncio CA, Nascimento WF. Bioética de intervenção e justiça social: olhares desde o sul. Revista Brasileira de Bioética. 2012;8(1-4):47-56.
  • 32 Porto D. Op. cit. 2012. p. 124-5.
  • 33 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. [Internet]. Paris: Unesco; 2005 [acesso 10 maio 2015]. Disponível: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf
    » http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf
  • 34 Garrafa V. Op. cit. 2012. p. 16.
  • 35 Nascimento WF, Martorell LB. A bioética de intervenção em contextos descoloniais. Rev. bioét. (Impr.). 2013;21(3):423-31.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2015

Histórico

  • Recebido
    7 Nov 2014
  • Revisado
    4 Fev 2015
  • Aceito
    20 Fev 2015
location_on
Conselho Federal de Medicina SGAS 915, lote 72, CEP 70390-150, Tel.: (55 61) 3445-5932, Fax: (55 61) 3346-7384 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: bioetica@portalmedico.org.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro