Open-access Bioética pós-secular: uma proposta para a América Latina

Resumo

A bioética surge, inicialmente, a partir do pensamento teológico, mantendo um consistente desenvolvimento em defesa de suas crenças frente aos desafios do progressismo social da expansão tecnocientífica e secularização cultural do Ocidente. Como produto desse processo surgiram normas sociais e legislações liberais em muitas nações ocidentais, incluindo aquelas com predomínio do catolicismo (França, Itália, Espanha). A secularidade reinante reconhece três processos culturais que limitam sua hegemonia: a) O diminuído espírito religioso goza de um renascimento à margem de instituições e rituais; b) A secularidade implica necessariamente pluralismo heterogêneos difíceis de harmonizar; c) A necessidade de convivência entre secularidade e religiosidade dá origem à ética pós-secular. A forte influência da Igreja Católica na América Latina opõe-se a aspirações sociais de maior autonomia e a uma bioética secularizada. A presente proposta sugere uma bioética pós-secular em busca de um instrumento de tolerância e convivência, distante do dogmatismo imutável.

Palavras-chave: Religião-Racionalização; Secularismo-Pensamento; Religião e Ciência

Abstract

Bioethics initially emerged from theological thinking, as part of the consistent development of the defense of the beliefs of the movement when faced with the challenges of the social progressivism of techno-scientific expansion and the cultural secularization of the West. As a result of this process, liberal social norms and legislation have emerged in many Western nations, including those that are predominantly Catholic (France, Italy, Spain). Three cultural processes, however, limit the hegemony of the prevailing secularity: a) A diminished religious spirit is enjoying a renaissance outside of institutions and rituals; b) Secularity necessarily implies heterogeneous pluralisms that are difficult to harmonize; c) The need for coexistence between secularity and religiosity has given rise to post-secular ethics. The strong influence of the Catholic Church in Latin America has opposed social aspirations of greater autonomy and a secularized form of bioethics. This paper proposes to explore a post-secular bioethics that seeks an instrument of tolerance and coexistence, far from immovable dogmatism.

Keywords: Religion-Rationalization; Secularism-Thinking; Religion and science

Resumen

Emerge inicialmente la bioética desde el pensamiento teológico, manteniendo un consistente desarrollo en defensa de sus creencias ante los desafíos del progresismo social de la expansión tecnocientífica y la secularización cultural de Occidente. Producto de este proceso surgieron normativas sociales y legislaciones liberales en muchas naciones occidentales, incluyendo aquellas con predominio del catolicismo (Francia, Italia, España). La secularidad reinante reconoce tres procesos culturales que limitan su hegemonía: a) El disminuido espíritu religioso goza de un renacimiento al margen de instituciones y rituales; b) La secularidad implica necesariamente pluralismos heterogéneos difíciles de armonizar; c) La necesidad de convivencia entre secularidad y religiosidad da origen a la ética post-secular. La fuerte influencia de la Iglesia Católica en Latinoamérica se opone a aspiraciones sociales de mayor autonomía y a una bioética secularizada. La presente propuesta sugiere una bioética post-secular en busca de un instrumento de tolerancia y convivencia, distante del dogmatismo inamovible.

Palabras clave: Religión-Racionalización; Secularismo-Pensamiento; Religión y Ciencia

Com o início da modernidade, ciência e razão são impostas como fontes do conhecimento humano; as versões teocêntricas fundamentadas em verdades reveladas vão perdendo influência na sociedade ao dar passagem ao que Weber denominou o desencanto do mundo. Sendo assim, a razão esclareceria todos os mistérios pendentes, perdendo-se, portanto, o encanto com o desconhecido. A ciência examina cuidadosamente os processos da vida até chegar a reproduzi-los em laboratório, estando disposta a interferir artificialmente nos extremos da vida.

A vertiginosa expansão da tecnociência alimenta um debate inacabado entre secularidade e religiosidade, que influencia diretamente em legislações, normas obrigatórias, interesses e preferências sociais e individuais. Nos países mais influentes do mundo Ocidental, há o predomínio da ideia política do laicismo ou secularidade, que requer que o Estado regule o espaço público, para que não haja interferências religiosas no campo político. Assim se explica o motivo pelo qual países europeus de maioria católica tenham legislado a favor de matérias que a Igreja desaprova: anticoncepção, aborto, investigação com células embrionárias. Com relação à bioética anglo-saxã e da Europa continental, predominou a postura de apoiar legislações liberais e deixar para a consciência individual o uso de permissões ou a fidelidade aos preceitos religiosos.

Muito diferente é a situação da América Latina, onde a Igreja mantém forte influência política e fomenta legislações conservadoras; enquanto que em vários países se mantém a proibição absoluta de abortar, em outros, a maioria, há leis que indicam restrições, muitas vezes resultado de objeção de consciência, para impedir ou dificultar o acesso ao aborto médico legalmente autorizado1. O resultado é que a bioética da nossa região é mais de trincheiras do que de deliberação, é o desencontro e antagonismo entre visões seculares e religiosas, tendo forte impacto sobre a realidade social.

A modernidade se desenvolve, desde Descartes, categorizando a realidade em esquemas duais: mente/corpo, subjetividade/objetividade, natural/artificial, mundano/transcendente. Esta tendência para a dicotomia tem sido questionada há algumas décadas, fundamentalmente pelas críticas pós-modernas ao racionalismo esquemático da modernidade, muito enfaticamente expostas pelos sociólogos da tecnociência, com destaque para Bruno Latour. A persistência do pensamento dicotômico na tardo-modernidade foi o estímulo para o surgimento do pensamento pós-secular, ainda incipiente, que ultrapassasse as pretensões da pós-modernidade desconstrutivista.

O presente texto, depois de percorrer brevemente a secularidade dominante na modernidade e o atual ressurgimento de religiosidade, segue o pensamento de J. Habermas e sua proposta de uma ética pós-secular, para depois adaptar este enfoque a uma bioética pós-secular com a intenção de destravar polêmicas que existem e persistem em abordar problemas clínicos e de investigação biomédica pendentes, assim como legitimar a revisão de normas e legislações que ainda continuam alimentando desacordos e discórdias. Isso requer uma breve observação sobre a persistente, mas cada vez menos convincente, dicotomia secularidade/religiosidade.

Secularidade

O interesse pelo vasto campo da secularização em sociedades modernas atrai a atenção de filósofos e sociólogos, e dessa extensa produção é possível extrair alguns conceitos chaves para a bioética. O secular, o mundano, só é entendido como negação da religiosidade, baseada na distinção de origem medieval entre clero regular – que vive em conventos e sob suas regras – e secular – sacerdote que vive no mundo exterior. A secularização é o processo que adapta as matérias públicas, a partir significações transcendentes, à realidade mundana, o que J-L. Nancy denomina mundanização ou desteologização.

À medida que uma sociedade se moderniza, torna-se secular e se desvincula das crenças religiosas; isso ocorre de tal maneira que a falta de fé religiosa é vista como normal, é naturalizada, sendo adotada por indivíduos e sociedades sem a menor reflexão. Ao intensificar o processo de secularização, amplia-se a ideia não só de indiferença frente ao religioso, mas também de ativa libertação que permitiria o desenvolvimento do indivíduo no mundo sem crer em uma força transcendente. Mas a secularidade carece dos elementos para dar sentido e representação às visões de mundo.

A ideia de que o mundo contemporâneo abandonou a religiosidade carece de todo fundamento. Se por um lado os aspectos institucionais e rituais das religiões perderam espaço, por outro, os fortes vínculos pessoais com crenças transcendentes continuaram. O indivíduo flutua em ambiente de indiferença de valores e permanece na incômoda situação agnóstica para dar significação a seus atos e a sua vida.

Existem diversas formas de secularização, todas com o intuito comum de conduzir os assuntos públicos de forma racional, imparcial e democrática. Ao diminuir a influência religiosa em detrimento da racionalidade de deliberação e ação pública, a influência secular deveria reconhecer duas fraquezas inevitáveis: por uma parte, ampliou-se e dividiu-se em múltiplas perspectivas, respeitando e fomentando o pluralismo cuja virtude é a democracia, mas acompanhada do vício das dificuldades de acordos entre forças sociais muito diversas. Em segundo lugar, a modernidade secular, com sua ênfase na autonomia individual e na redução da proteção social dos Estados, sociais ou benfeitores, produziu ausência de sentido existencial, um vazio motivacional, fortalecendo metas de curto prazo – consumismo –, culminando no cidadão inseguro, desprotegido e perdido em incertezas. Reduzida a vocação comunitária, não é de se estranhar que as desigualdades e os problemas tenham aumentado, e que os esforços do humanismo baseado em direitos humanos, dignidade, natureza humana, assim como na inviolabilidade do corpo, tenham tido mais força como manifesto do que como efeitos pragmáticos.

Religiosidade

Múltiplos autores têm destacado o renascimento do espírito de religiosidade, que ocorre por meio da busca por diversas formas de entender o transcendente e também, de forma preocupante, por meio de algumas variantes perturbadoras do fundamentalismo agressivo2. Os processos sociais e culturais na América Latina têm sua própria dinâmica: o caminho em direção à modernidade, acompanhado pela secularização, é parcial, desigual e lento. O papel da Igreja Católica foi protagonista desde o início da Colônia, assumindo responsabilidades fundamentais na saúde, educação, obras sociais e administração civil.

A separação de jure entre Estado e Igreja só ocorreu em algumas nações, a situação de facto é que a Igreja continua deixando sua marca tanto na educação como nas normas legais. Os temas que interessam à bioética se desenvolvem em cenário de batalhas e desacordos que, por fim, resultam em legislações mais conservadoras que liberais, sendo necessário e urgente um aggiornamento em busca de uma sociedade moderna mais aberta.

No âmbito da bioética, o pensamento da Igreja Católica tem produzido, com probidade e excelência, numerosos centros de bioética dotados de acadêmicos especializados que desenvolvem programas de formação e publicações com notória influência social e política em defesa dos fundamentos inalteráveis da doutrina. Foram produzidas em décadas recentes intranquilidades sociais pelo enfrentamento entre aspirações de maior flexibilidade em temas complexos como os extremos da vida, sexualidade e reprodução, o emprego de células-mãe de origem embrionária, a investigação genética que analisa a manipulação terapêutica e reprodutiva do genoma humano. O debate é ácido e extenuante, escassamente frutífero e perde com frequência o norte do bem comum.

Diálogo entre secularidade e religião

Publicação recente, cujo título é “Por que a religião merece um lugar na medicina secular”, reitera a distância entre o secular e o religioso, empregando uma tentativa ambígua de tolerância fraternal: Se eu, como crente religioso, tenho de ter sucesso em persuadir você, seja um agnóstico, ateu ou de crenças religiosas diferentes da minha perspectiva moral, então deverei mostrar-lhe que a sua visão tem debilidades ou problemas que não podem ser adequadamente reparados desde sua visão, mas sim a partir das minhas. Como cristão monoteísta, valorizo a vida de indivíduos humanos: todos os indivíduos são igualmente criaturas de um Pai divino e cada um tem uma vocação especial em seu tempo e lugar. Mais ainda, como crente que aceita a autoridade da tradição profética da Bíblia, sou sensível às penúrias dos ‘pobres’, ou seja, dos fracos e vulneráveis3.

O primeiro parágrafo citado é conflitivo e irritante ao sugerir acesso privilegiado do “cristão monoteísta” ao conhecimento e à sensibilidade, e que se propõe a corrigir as “debilidades ou problemas” de não crentes ou adeptos a outras crenças. O artigo citado, cujo autor é professor de teologia, provocou uma série de respostas críticas: O ponto é que todos nós temos certos compromissos metaéticos (sejam implícitos ou explícitos, religiosos ou de outra natureza) e que todos nós tendemos a convencer os discordantes de que nossos compromissos metaéticos fazem mais sentido que os deles, ou realizar um trabalho mais convincente para explicar intuições morais compartilhadas, ou o que se fizer necessário. Isso é precisamente ‘fazer filosofia’4.

Parece inquestionável que a formulação de decisões éticas deve ser informada por argumentação racional baseada em empirismo sólido. O utilitarismo, assim como outras éticas seculares, não cumpre esses critérios. A religião, por sua inerente natureza, também falha nesse aspecto5.

Numa aproximação a partir da “lei teística natural”, propõe-se a necessidade de se reter o conceito de Deus como fonte e fundamento de uma lei moral introduzida na estrutura teleológica da natureza humana. E isso é aquilo que muitos filósofos consideram como algo a ser alcançado exclusivamente pela racionalidade6. Segundo a apresentação editorial que precede os artigos citados, os conceitos ‘religião’ e ‘razão’ não dependem tanto de argumentos racionais como da experiência intersubjetiva: se é assim, e dada a diversidade de experiências humanas, uma vitória final para qualquer de ambos os lados, nesta particular ‘cultura bélica’, aparece como altamente improvável7.

Mais conciliatórios são os esforços dialógicos empreendidos com boa fé em numerosas iniciativas para encontrar algo comum nas diversas perspectivas éticas. Apesar disso, a formulação do tema já insinua sua improvável resolução. A discordância entre as distintas formas de fé só pode ser resolvida por meio de um enfrentamento no qual o único sentido possível da verdade é a sua capacidade prática, como fé, de se impor sobre as demais8. A recursão a uma verdade absoluta é motivo de discórdia que não se resolve em um “enfrentamento”. Pensar em um diálogo é reconhecer dois polos de reflexão que certamente encontram consonâncias, mas sem poder evitar desacordos essenciais.

Inícios do pensamento pós-secular

O termo ética pós-secular se fez conhecido por meio de Jürgen Habermas, o que é surpreendente para um pensador catalogado e criticado como excessivamente racionalista, ainda que abrandado por sua constante busca de diálogo com a religiosidade, como ilustra suas respeitosas conversas com o então Cardeal Ratzinger9.

O pensamento secular não consegue esclarecer sua relação com a religião. Reconhecendo a impossibilidade de eliminar a separação entre conhecimento secular e saber revelado, o papel da razão prática reside em justificar conceitos universais e igualitários baseados em moral e lei que respeitem a liberdade individual e regulem as relações interpessoais. Aceitando a separação entre fé e conhecimento, Habermas enfatiza a necessidade de uma coexistência construtiva, com ênfase especialmente em atender a questões sociais urgentes propostas pela bioética.

Não se trata de frágil compromisso para unir o irredutível, mas sim de se responsabilizar pela lacuna entre a perspectiva antropocêntrica e o olhar, desde uma perspectiva mais distante, do pensamento teo ou cosmocêntrico. Há uma diferença entre falar sobre o outro ou com o outro. Para isso, devem ser estabelecidos dois pressupostos: o lado religioso deve reconhecer a autoridade da razão, ou seja, os resultados sempre provisórios e corrigíveis das ciências institucionalizadas e os fundamentos universalistas do igualitarismo e a equanimidade de lei e moral. Por sua vez, a razão secular não deve questionar as crenças transcendentais baseadas na fé e na revelação, mesmo quando só puder incorporar ao âmbito público aquilo que em princípio possa ser traduzido para um discurso geral e compreensível, racionalmente justificado.

Ao receber o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão (2001), Habermas profere a conferência intitulada “Fé e Saber” (Glauben und Wissen), criticando o fato da secularização moderna ter sido erroneamente vista como um jogo soma-zero entre as forças produtivas da ciência e da técnica desencadeadas pelo capitalismo, e os persistentes poderes da religião e da Igreja. Apenas uma pode triunfar sobre a outra e, de acordo com as regras do jogo liberal, vencerá aquela que beneficie os impulsos da modernidade. Para sair deste empate alcançado mais pela adversidade do que pelo compromisso, Habermas conclui que este quadro não se adequa à sociedade pós-secular, que se ajusta à persistência de comunidades religiosas em âmbito insistentemente secularizado10.

Não deixa de ser pertinente, para quem se dedica à bioética, que Habermas publicasse, em jornal suíço, o artigo que tem como título “A consciência do que falta: sobre fé e saber, e derrotismo com relação à razão moderna”11. Neste texto reside o pensamento pós-secular de Habermas, é “o que falta”. O filósofo alemão se acerca em mais de uma ocasião aos problemas da bioética. Reconhece que o caráter abstrato dos direitos humanos necessita ser concretizado em cada instância particular, sendo que legisladores e juízes chegam a diversos resultados em diferentes contextos culturais, o qual hoje em dia é aparente na regulação de temas éticos controvertidos tais como suicídio assistido, aborto e meliorismo genético12.

A mais notória incursão de Habermas em assuntos bioéticos é motivada pela desesperança que lhe produz a investigação genética e suas inclinações à eugenesia liberal, impulsando-o a voltar à pergunta filosófica original acerca da ‘vida correta’, e ao alarme pela intervenção com a base física ‘que por natureza somos’13. A tecnologia genética ataca a imagem que temos feito da espécie ‘humana’, já que o indivíduo geneticamente modificado perderia autonomia espontânea na medida em que uma parte de sua pessoa será determinada por programação genética13.

O texto é concluído reconhecendo que as visões de mundo religiosas e metafísicas deixaram de ser geralmente convincentes e vinculantes, tendo caminhado em direção a um pluralismo de cosmologias toleradas, que não nos convertem em cínicos nem em relativistas indiferentes, pois seguimos sujeitos, e queremos seguir sendo, ao código binário dos juízos morais corretos e falsos13. A secularidade precisa acolher a religiosidade, o religioso deverá ser mais conselheiro que impositor.

Bioética entre secular e regular

Os primeiros escritos sobre bioética têm origem teológica – Jahr, Fletcher, Ramsey, Jakobovits – frente aos quais se vão situando bioéticas que se comprometem com a secularidade, a história, a racionalidade esquematizada em sistemas, princípios, biopolíticas discriminatórias. A racionalidade secular conseguiu apenas parcialmente a abertura do religioso, notoriamente presente nos trabalhos do jesuíta R. McCormick14, situando-se entre as polarizações extremas de uma bioética estritamente laica15 e as perspectivas firmemente arraigadas no religioso16.

Transitam de forma paralela a bioética secular, que predomina na literatura anglo-saxã, e a bioética religiosa, que tem hegemônica influência cultural, política e legislativa na América Latina. O predomínio da doutrina eclesial em assuntos primordiais da bioética, como são aqueles relacionados com o início e o final da vida, mantêm incertezas e intranquilidades em nível social, requerendo orientação em direção à resolução de confrontações fundamentais. Recentes contribuições ao tema propõem que a bioética secular deve ser aplicada a uma hermenêutica que profane, no sentido agambiano do conceito, os novos sagrados emergentes: vida, saúde, corpo17.

O discurso bioético sacralizou numerosas ideias que se desinserem do diário viver e requerem ser profanadas no sentido de restituí-las ao uso e à propriedade dos homens18. Delineia-se caminho interessante, mas árduo, em cujo trajeto deverá ser estudada a passagem da ética religiosa para a forma secularizada e deontológica, segundo Kant, em contraste com a proposta de Weber, de uma ética de convicções que deve passar a ser uma ética de responsabilidade social, para refletir também como a fenomenologia do corpo comenta a ideia de que corpo e subjetividade se separam. Interessante de abordar será talvez a própria bioética, ao menos a acadêmica, a qual tem se refugiado em uma sacralização que deve ser profanada.

Bioética pós-moderna

O rigoroso racionalismo praticado pela modernidade acaba por ser reconhecido como infrutífero para resolver os problemas sociais e filosóficos, levando ao movimento de desconstrução de grandes ideias e conceitos pretenciosos de absolutidade e universalidade. A bioética tem sido criticada por apresentar uma visão do indivíduo racional e autônomo, estimulando a elaboração das assim chamadas descrições absolutas, fechadas a críticas e a leituras secundárias, condições a deliberar para manter as opções de escolhas éticas que não estejam pré-determinadas por princípios imutáveis.

A proposta de uma bioética pós-moderna reproduz as críticas recebidas pela falta de inserção social da bioética (Hedgecoe), seu enfoque errôneo em dilemas pontuais, ainda que desatenda os grandes problemas da humanidade (Castoriadis), as insuficiências de uma bioética filosófica (Savulescu), que a submergem em severa crise19. Os desafios de uma bioética pós-moderna são três: 1) reconhecer a “provisionalidade” de todas as diversas contribuições acadêmicas; 2) enfrentar o conflito de poder entre “interpretações de ação” contrapostas a “práticas particulares” que caem no risco de perpetuar os discursos dominantes que têm privilegiado certos interesses sobre outros e; 3) introduzir o desafio da responsabilidade relacional integrada em uma rede de interações e práticas sociais em seu âmbito de ação20.

Uma bioética pós-secular aparece como perspectiva cautelosa por evitar rigores teóricos, dogmatismos morais ou presumidos universalismos éticos que são precisamente os problemas que afligem tanto as bioéticas insistentemente seculares, como as bioéticas doutrinárias, assim sejam religiosas ou laicas comprometidas com processos políticos, a veneração da evolução e do progresso, ou uma visão hegeliana da história. É, por enquanto, proposta isolada em transição em direção à cultura pós-moderna que muitos, incluindo Habermas, preferem chamar tardo-moderna.

Apontamentos para uma bioética pós-secular

Tendo delineado o caminho da pós-secularidade, Habermas, no entanto, não proporciona ferramentas adequadas para seu desenvolvimento, desde a insistência em respeitar a imagem naturalizada da espécie humana especificamente autônoma e a manutenção das dicotomias morais baseadas em diversos discernimentos entre o correto e o impróprio, tudo aquilo que, em bioética, não resolve a persistência das disputas entre o que se pode entender por especificidade do humano e os diversos critérios de moralidade. Não menor é a reiterada proposta de um pluralismo tolerante que deve ser resolvido em normas e leis mais ou menos permissivas, que em qualquer caso terão a aprovação de uns, e o rechaço de outros, sem alcançar a convivência satisfatória.

Pensar uma bioética pós-secular é tarefa árdua que aqui só pode indicar algumas possíveis vias de exploração. O discurso bioético deve ser elaborado a partir do corpo e não sobre ele, em analogia ao pensamento de R. Esposito, de pensar uma biopolítica para a vida, não da vida. O corpo é uma realidade comum a todo ser vivente que recebe ou adota significações à medida que se socializa e culturaliza. Materialismo, dualismo, origem determinista ou dom transcendente, todos são representações e significações que o corpo adquire, nenhuma delas sendo conatural a sua existência. Todo ser humano tem um corpo: Somos em nossa natureza seres corpóreos necessariamente vulneráveis; a vulnerabilidade é parte inerente do ser humano, relacionados e interdependentes21. A fenomenologia sustenta a visão transcendental segundo a qual o corpo é a condição de possibilidade para percepção e ação22.

A bioética do corpo não é secular nem religiosa, antecede e supera essa dicotomia porque se refere ao corpo, cujas características fundamentais são a vulnerabilidade, a interdependência e a racionalidade, comuns a todos e anteriores a significações de tipo, seja mundano ou transcendente. Em consequência, uma bioética pós-secular é anterior às representações do corpo que divergem e se excluem mutuamente: uma visão religiosa não pode aceitar um determinismo biológico, tal como este é alheio a toda influência transcendente. Por isso, a bioética deve transitar para avaliar as intervenções humanas que sejam favoráveis ou deletérias para o corpo em termos de afetar sua vulnerabilidade, fomentar ou dificultar a interdependência, facilitar ou obstruir a relacionalidade do indivíduo com sua comunidade e a realidade social que os engloba23.

Sendo a biologia a ciência dos seres vivos – não da vida, que é um conceito filosófico –, a bioética igualmente se refere aos seres vivos que Bentham caracterizou como capazes de sentir dor – senscientes. A visão pós-secular permite abarcar uma ética que se oriente em direção ao bem-estar de todos os seres senscientes, como também à natureza que os sustenta. A bioética pós-secular não pode ser entendida como natureza especificamente humana que se distinguiria onticamente da natureza animal. A ética não consiste em agregar-se às supostas verdades exploradas ou reveladas da natureza humana, mas sim em assumir que o ser humano, diferentemente de outros seres vivos, desenvolve a cultura e a ética entendidas como reflexão sobre ações empreendidas em liberdade e responsabilidade.

Uma perspectiva bioética que tente se fundamentar teoricamente e se validar na prática não pode surgir a partir de significações do humano controvertidas e polêmicas – autonomia, dignidade, direitos básicos. A única realidade comum a todos os seres humanos é o corpo vivido e vivo que adota significações, motivações e valores, em vez de ser submisso a cosmovisões de qualquer ordem que lhe sejam impostas. A bioética do corpo pode ser apresentada como pós-secular porque se refere a uma realidade que precede a qualquer significação secular ou religiosa, sempre submetidas a questionamento por provir de alguma cosmovisão que não é aceitável para todos.

Uma bioética pós-secular terá que buscar os fundamentos do debate em elementos comuns a todo ser humano, que claramente são mais complexos que o simples pertencimento genético à espécie. A bioética precisa dos esforços da filosofia do corpo e de sua sociologia, expandindo seu debate e reconhecimento, que ocorrem no corpo vivido e vivo onde o conhecimento clínico e prático é encarnado –conhecimento vivenciado através e com o corpo24. É o corpo que nasce, amadurece, adoece e morre. O trabalho médico é um artesanato – craftsmanship – que compromete a cura do corpo com o corpo25.

Temas importantes que a bioética não pode deixar de tratar, como tortura, desaparecidos, a carência de necessidades básicas, referem-se principalmente a corpos maltratados, eliminados, despossuídos, marginalizados, reduzidos em suas expectativas de vida. Nada disto tem sido adequadamente enfrentado: o pensamento secular fala de custos e sacrifícios de processos históricos, utopias sociais, democracia; a religião aponta inevitavelmente para teodiceias e escatologias pouco convincentes na ordem mundana e para além de seus adeptos incondicionais.

A bioética pós-secular será uma tentativa de reconhecer que conhecimentos e crenças, racionalidade e emotividade, empirismo e imaginação, são todos esforços, do corpo humano vivido e vivo, para entender sua existência. A bioética repreenderá todo processo ou norma que limite as múltiplas formas de estar corporalmente no mundo, de encarnar o mundo de diversos modos. Nesse sentido, o proposto aqui é uma atitude pós-secular, apresentando a bioética pós-secular como uma tentativa de convocatória que leve a disciplina para além das agendas seculares ou religiosas.

Os dois temas mais centrais para a bioética apontam para a intervenção humana nos extremos da vida: no início, a anticoncepção, aborto, seleção de embriões, debates sobre o status ontológico e moral das diversas etapas embriológicas. O suicídio medicamente assistido, eutanásia ativa/passiva, obsessão terapêutica, omissão e a suspensão de intervenções médicas se concentram no final da vida humana. O debate tem sido tórpido, todas as variantes legislativas para normatizar essas matérias não apaziguam a intranquilidade social e os alimentados embates para ratificar, modificar ou eliminar o que é juridicamente decidido. Não poderá ser de outro modo enquanto for mantida a oposição entre visões seculares – direitos reprodutivos, autoridade de autonomia, direito à morte – frente a visões religiosas – a vida é um dom irrenunciável que não pode estar à mercê de decisões humanas, as verdades reveladas põem limites aos atos humanos, não é lícito “julgar Deus”-.

Os resultados do estado atual de adversidade têm sido a anuência secular ao aborto dentro de um determinado prazo e a autorização para o término voluntário da vida em determinados contextos, ou, justamente o contrário e desde uma perspectiva religiosa, a proibição do aborto salvo em situações médicas excepcionais, o rechaço a qualquer forma de morte assistida com exceção, em algumas situações, da invocação da doutrina do duplo efeito. Estes são alguns exemplos de equilíbrio instável que precisam de uma perspectiva mais básica, anterior às divergências irreconciliáveis.

Considerações finais

A ideia de uma bioética pós-secular se apresenta como a necessidade para a realidade social da América Latina, que desde sempre está estagnada na dependência colonial, vítima do que se denomina imperialismo moral e ideológico26, e envolvida em embates inacabáveis entre pensamento e influência religiosa tanto cultural como legal, frente a uma secularidade que tropeça em direção a uma modernidade que lhe é esquiva. A bioética latino-americana que existe – cabe alguma dúvida? – deve evoluir para um discurso autóctone, pacificador de conflitos sociais e imaginativo para avançar no caminho da equidade27.

A bioética pós-secular se orienta em direção ao comum a todos os seres humanos, que precedem às significações doutrinárias de qualquer tipo: o corpo vulnerável, em relação com os outros, e transcendente em direção ao mundo em que está “in-corporado”. O caminho a percorrer é árduo, mas muitos dos pontos esboçados já tem tido presença na literatura bioética anglo-saxã, assim como algum trabalho preliminar sobre bioética relacional e bioética do corpo tem sido publicado em nosso meio28,29.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2016
  • Revisado
    28 Ago 2016
  • Aceito
    26 Set 2016
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