Resumo
O debate bioético enseja reflexões que propiciam a compreensão da morte e da terminalidade de modo a assegurar a observância de princípios como respeito à autonomia, beneficência e não maleficência e os direitos humanos. O objetivo do estudo foi analisar conflitos bioéticos no trabalho de fisioterapeutas em atendimento domiciliar a pacientes em condição de terminalidade. Trata-se de estudo qualitativo e descritivo. Dez fisioterapeutas do Distrito Federal participaram, respondendo a entrevista semiestruturada. Duas categorias foram identificadas: “desafios da atuação em domicílio com pacientes em condição de terminalidade”; e “o fisioterapeuta entre o tecnicismo e o humanismo”. O estudo descortina conflitos bioéticos potenciais no atendimento a esses pacientes e seus familiares, em que os limites para a utilização dos recursos terapêuticos se traduzem em posturas polarizadas – de aproximação ou distanciamento – e o desafio de promover cuidado pautado na humanização e na dignidade humana.
Bioética; Ética; Fisioterapia; Cuidados paliativos na terminalidade da vida
Abstract
The bioethical debate gives rise to considerations that foster understanding of death and terminal illness, in order to ensure compliance with principles such as respect for autonomy, beneficence, not maleficence, and human rights. The objective of the study was to analyze bioethical conflicts related to physiotherapy home care for terminal patients. This is a qualitative descriptive study. Ten physiotherapists from the Federal District, Brazil, participated, answering a semi-structured interview. Two categories were identified: “challenges of home care for patients with terminal conditions”; and “polarization of physiotherapists between technicality and humanism”. The study reveals potential bioethical conflicts in the care of these patients and their families, in which the limits for the use of therapeutic resources translate into opposite approaches – either attachment or detachment – and the challenge of promoting care guided by humanization and human dignity.
Bioethics; Ethics; Physiotherapy; Palliative care of terminal patients
Resumen
El debate bioético da lugar a reflexiones que propician la comprensión de la muerte y de la terminalidad, con el fin de garantizar el cumplimiento de los principios como el respeto a la autonomía, la beneficencia y la no maleficencia y los derechos humanos. El objetivo del estudio fue analizar los conflictos bioéticos en el trabajo de los fisioterapeutas en la atención domiciliaria a pacientes en situación de terminalidad. Se trata de un estudio descriptivo y cualitativo. Participaron diez fisioterapeutas del Distrito Federal, Brasil, respondiendo a una entrevista semiestructurada. Se identificaron dos categorías: “desafíos de la atención domiciliaria con pacientes en condición de terminalidad”; y “el fisioterapeuta entre el tecnicismo y el humanismo”. El estudio revela posibles conflictos bioéticos en la atención de estos pacientes y sus familias, donde los límites para el uso de los recursos terapéuticos se traducen en posiciones polarizadas − de aproximación o distanciamiento − y el desafío de promover una atención basada en la humanización y la dignidad humana.
Bioética; Ética; Fisioterapia; Cuidados paliativos al final de la vida
O que torna a questão de terminalidade, no contexto dos cuidados paliativos, tão evidenciada no universo das discussões bioéticas? Certamente porque estes afloram dimensões conflituosas que perpassam a preservação da vida a qualquer custo e o lidar com a morte, bem como a promoção da dignidade humana. São temas complexos e carregados de valores e juízos morais, com os quais os profissionais podem apresentar dificuldades em lidar devido à relação de cuidado com a pessoa que se encontra fora de possibilidades terapêuticas.
Há avanços da medicina e biotecnociência, novos mecanismos de prolongamento da vida, ao lado de expectativas das famílias e dos aspectos legais e culturais de cada grupo social envolvido. O debate bioético tem permitido reflexões importantes que permitem compreender o fenômeno da morte de modo a assegurar a observância de princípios pautados no respeito à autonomia, na prática da beneficência e não maleficência, e nos direitos humanos, contribuindo para a humanização do cuidado em saúde 11. Batista RS, Schramm FR. A eutanásia e os paradoxos da autonomia. Rev Ciênc Saúde Coletiva. 2008:13(1):207-21..
Nesse sentido, de acordo com Siqueira, Zoboli e Kipper, o fim da vida (se) tornou um dos polos de convergência dos desafios éticos do mundo contemporâneo22. Siqueira JE, Zoboli E, Kipper DJ, organizadores. Bioética clínica. São Paulo: Gaia; 2008. p. n./d.. Para Singer, o avanço da tecnologia médica nos tem obrigado a pensar em questões que não tínhamos enfrentado anteriormente33. Singer P. Repensar la vida y la muerte: el derrumbe de nuestra ética tradicional. Barcelona: Paidós; 1997. p. n./d.. Essas questões podem perpetuar uma vida sem possibilidades de cura, como nos casos de pacientes − principalmente idosos com doenças oncológicas, quadros demenciais, sequelas neurológicas graves − submetidos a procedimentos invasivos de alta tecnologia, muitas vezes desnecessários. Nesses casos, o sofrimento da pessoa mantida no leito, controlada por respiração artificial, com escaras pelo corpo e fortes dores é desconsiderado, com prejuízos para a qualidade de vida do doente e de seus familiares. Essa forma de tratamento está pautada em uma ética da cura, em detrimento de uma ética da atenção à pessoa, que se baseia na centralidade do cuidado e na dignidade humana 44. Academia Nacional de Cuidados Paliativos. O que são cuidados paliativos?. [Internet]. 2009 [acesso 14 out 2016]. Disponível: http://bit.ly/2jOcCvC
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Os cuidados paliativos têm como princípios éticos a compreensão da morte como processo natural, de respeito à vida e à dignidade humana, premissas importantes para a atuação dos profissionais de saúde 44. Academia Nacional de Cuidados Paliativos. O que são cuidados paliativos?. [Internet]. 2009 [acesso 14 out 2016]. Disponível: http://bit.ly/2jOcCvC
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. Todavia, a literatura pesquisada ressalta a dificuldade dos profissionais de diferentes áreas da saúde de cuidar e promover a dignidade de pacientes sem possibilidade de cura e em terminalidade da vida. De acordo com Pessini e Bertachini 55. Pessini L, Bertachini L. O que entender por cuidados paliativos? 2ª ed. São Paulo: Paulus; 2006., a Organização Mundial da Saúde tem entre suas premissas a atuação em equipe multidisciplinar em cuidados paliativos, incluindo como um de seus integrantes o profissional de fisioterapia.
A atuação do fisioterapeuta é fundamental em todo o processo saúde-doença, pois contribui para a promoção da saúde, tratamento, reabilitação e prevenção de agravos, bem como em cuidados paliativos, com ênfase na qualidade de vida, preceito importante incorporado ao novo Código de Ética e Deontologia da Fisioterapia 66. Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução Coffito nº 424, de 8 de julho de 2013. Estabelece o Código de Ética e Deontologia da Fisioterapia. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, nº 147, 1º ago 2013 [acesso 8 mar 2016]. Seção 1. Disponível: http://bit.ly/2jO88Fg
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. Para o exercício de seu trabalho, o profissional de fisioterapia utiliza técnicas manuais, mecanoterapia e recursos termofotoeletroterápicos e, como generalista, atua nas mais diversas áreas da saúde: respiratória 77. Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução Coffito nº 318, de 30 de agosto de 2006. Designa especialidade pela nomenclatura Fisioterapia Respiratória em substituição ao termo Fisioterapia Pneumo Funcional anteriormente estabelecido na Resolução nº 188, de 9 de dezembro de 1998, e determina outras providências. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, nº 33, 15 fev 2007 [acesso 15 out 2016]. Disponível: http://bit.ly/2khNuP7
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, neurologia 88. Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução Coffito nº 189, de 9 de dezembro de 1998. Reconhece a especialidade de Fisioterapia Neuro Funcional e dá outras providências. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, nº 237, p. 59, 10 dez 1998 [acesso 15 out 2016]. Seção 1. Disponível: http://bit.ly/2iSN55q
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, traumato-ortopedia 99. Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução Coffito nº 260, de 11 de fevereiro de 2004. Reconhece a especialidade de Fisioterapia Traumato-Ortopédica Funcional e dá outras providências. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, nº 32, p. 66-7, 16 fev 2004 [acesso 15 out 2016]. Seção 1. Disponível: http://bit.ly/2jnfGvS
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, ginecologia 1010. Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução Coffito nº 372, de 6 de novembro de 2009. Reconhece a Saúde da Mulher como especialidade do profissional Fisioterapeuta e dá outras providências. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, nº 228, p. 101, 30 nov 2009 [acesso 15 out 2016]. Seção 1. Disponível: http://bit.ly/2jQTvS7
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. No caso de pacientes em estado grave, confinados ao leito e submetidos à respiração artificial, por exemplo, o fisioterapeuta habitualmente monitora os parâmetros da ventilação mecânica e realiza procedimentos voltados à manutenção e/ou à qualidade de vida do paciente 66. Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução Coffito nº 424, de 8 de julho de 2013. Estabelece o Código de Ética e Deontologia da Fisioterapia. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, nº 147, 1º ago 2013 [acesso 8 mar 2016]. Seção 1. Disponível: http://bit.ly/2jO88Fg
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,1111. Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução Coffito nº 10, de 3 de julho de 1978. Aprova o Código de Ética Profissional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, 22 jul 1978 [acesso 8 jun 2009]. Seção 1. Disponível: http://bit.ly/2kibUb3
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O fisioterapeuta que trabalha com cuidados paliativos usa ainda recursos para aliviar a dor. Para esse tipo de trabalho terá à disposição alguns procedimentos terapêuticos que poderão minorar a dor e o sofrimento do paciente e auxiliar no seu manejo. Cabe também ao profissional a avaliação inicial para identificar as necessidades físicas e psicossociais, além de aspectos do ambiente onde o paciente está inserido. No entanto, antes de iniciar qualquer procedimento, o fisioterapeuta deve indagar o desejo do paciente − se este estiver em condições de escolher e tomar decisões de receber tratamento fisioterapêutico. A não observância no que tange à obtenção do consentimento do paciente acerca dos procedimentos a serem efetuados pode redundar em conflito bioético, infringindo o respeito à autonomia 1212. Beauchamp TL, Childress JT. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola; 2002..
Merece destaque o fato de que o tema dos cuidados paliativos e da terminalidade da vida é ainda pouco abordado na formação acadêmica do estudante de fisioterapia, área que exige do futuro profissional bom aporte psicológico para lidar com a dor, o sofrimento e as expectativas da pessoa e dos familiares acerca do tratamento fisioterapêutico 1313. Marcucci FCI. O papel da fisioterapia nos cuidados paliativos a pacientes com câncer. Rev Bras Cancerol. [Internet]. 2005 [acesso 15 out 2016];51(1):67-77. Disponível: http://bit.ly/2jR4xGT
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. É importante que o profissional conheça os limites de sua atuação, a fim de não gerar expectativas irrealistas e frustrações, pois, como aponta Kovács, não há solução para a morte, mas se pode ajudar a morrer bem e com dignidade1414. Kovács MJ. A caminho da morte com dignidade no século XXI. Rev. bioét. (Impr.). 2014;22(1):94-104. p. 101..
Para Badaró e Guilhem 1515. Badaró AFV, Guilhem D. Bioética e pesquisa na fisioterapia: aproximação e vínculos. Fisioter Pesqui. 2008;15(4):402-7., a inserção dos fisioterapeutas em temas bioéticos, como o da terminalidade da vida, ainda é muito incipiente, sendo fundamental que a formação e a capacitação profissional visem prepará-los para lidar com esses conflitos, por meio da bioética. Faz-se necessário trabalhar a dignidade do ser humano, sua corporeidade, a qualidade e sacralidade da vida, os benefícios e eventuais danos causados pelos tratamentos fisioterapêuticos, mas sem deixar de visualizar a vulnerabilidade e a integridade pessoal de cada paciente. Entende-se que a bioética, mediante o entendimento e aplicação de seus princípios, poderá fortalecer a tomada de decisão quanto à atividade terapêutica do profissional de fisioterapia, proporcionando-lhe subsídios teóricos e práticos para a melhor abordagem do paciente.
Para Marques, Oliveira e Marães 1616. Marques AF, Oliveira DN, Marães VRFS. O fisioterapeuta e a morte do paciente no contexto hospitalar: uma abordagem fenomenológica. Rev Neurociênc (Impr.). 2006;14(2):17-22., é importante que o fisioterapeuta estude o fenômeno da morte, descortinando os principais conflitos existentes na prática terapêutica com pacientes em contexto de terminalidade, em especial os de natureza bioética. No entanto, as autoras chamam atenção para a importância de se adotar enfoque acadêmico mais voltado para a formação abrangente do profissional − e não de um tecnicista −, ou seja, de uma pessoa que, além de executar boa técnica, possa adotar novas posturas em relação às questões relacionadas com a dor, o sofrimento e a finitude da vida, como apontam Pessini e Bertachini 1717. Pessini L, Bertachini L. Op. cit. p. 19.. Para um trabalho humanizado no âmbito da saúde, Ferreira 1818. Ferreira J. O programa de humanização da saúde: dilemas entre o relacional e o técnico. Saúde Soc. [Internet]. 2005 [acesso 10 mar 2016];14(3):111-8. p. 113. Disponível: http://bit.ly/2jQHTyo
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aponta que é importante criar nova cultura em saúde e humanizar o processo terapêutico a partir da formação profissional consolidada na melhoria das relações do trabalho em equipe, tendo como referência o respeito à dignidade humana.
O objetivo deste estudo foi identificar e analisar conflitos bioéticos no trabalho de fisioterapeutas em atendimento domiciliar a pacientes em condição de terminalidade. Para esta pesquisa, a bioética se constituiu em ferramenta de reflexão diante de avanços biotecnológicos, pois por meio destes a vida passa a ser monitorada e também prolongada 1414. Kovács MJ. A caminho da morte com dignidade no século XXI. Rev. bioét. (Impr.). 2014;22(1):94-104. p. 101.. Nesse sentido, diante de cenário no qual se busca aumentar a sobrevida, especialmente de doentes em terminalidade, devemos refletir também sobre a humanização do cuidado, pois, de acordo com Masiá, estamos cobrando maior consciência da necessidade de humanizar o processo de morrer1919. Masiá J. Dignidad humana y situaciones terminales. An Sist Sanit Navar. [Internet]. 2007 [acesso 8 jun 2009];30(3 Suppl):39-55. p. 44. Disponível: http://bit.ly/2jeU1s3
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. Assim, temas relativos ao tecnicismo versus humanismo, identificados nos relatos dos participantes e que podem redundar em conflitos bioéticos − referentes ao respeito à autonomia, beneficência, não maleficência e dignidade humana −, também foram discutidos neste estudo.
Método
Trata-se de estudo qualitativo e descritivo-exploratório. Os participantes foram dez fisioterapeutas do Distrito Federal (DF), selecionados por conveniência, que atenderam ao convite divulgado na página eletrônica do Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional da 11ª Região (Crefito 11) e também pelo Sindicato dos Fisioterapeutas do Distrito Federal (Sindifisio).
Mediante contato da pesquisadora responsável pelo estudo, foram selecionados os fisioterapeutas que atenderam aos seguintes critérios de inclusão: 1) atender pacientes em situação de terminalidade em domicílio; e 2) atuar há pelo menos seis meses com esses pacientes. Após essa etapa de seleção, os fisioterapeutas foram contatados e dia, hora e local convenientes foram agendados para os profissionais, indo a pesquisadora (primeira autora deste artigo) ao seu encontro. Na ocasião os participantes anuíram e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, conforme a resolução do Conselho Nacional de Saúde vigente à época: Resolução CNS 196/1996 2020. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução CNS nº 196, de 10 de outubro de 1996. Dispõe sobre diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. [Internet]. [acesso 27 jun 2016]. Disponível em: http://bit.ly/2jeUaM9
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. Aos participantes foi garantido sigilo e anonimato, bem como assegurada a recusa quanto à continuidade de participação no estudo, se assim desejassem, por livre escolha e sem ônus.
Para a coleta de dados foram realizadas entrevistas em profundidade, no período de maio a julho de 2010, por meio de roteiro semiestruturado com questões para caracterização do perfil sociodemográfico e quatro questões abertas sobre as práticas dos fisioterapeutas envolvidos em cuidados domiciliares a pacientes em terminalidade. Nas entrevistas, os participantes receberam nomes fictícios para preservarmos a confidencialidade. Dos dez profissionais, oito foram entrevistados no local de trabalho, em ambiente reservado, e dois foram entrevistados em suas residências, sem interferências durante as entrevistas, que foram gravadas com consentimento dos participantes.
Os dados foram analisados pela técnica compreensiva para dados qualitativos, conforme procedimentos descritos por Minayo 2121. Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Ciênc Saúde Coletiva. [Internet]. 2012;17(3):621-6. Disponível: http://bit.ly/2bcM7hz
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: transcrição das entrevistas e organização dos relatos verbais, leituras horizontais para elaboração transversal visando classificar dados, recorte das falas dos participantes para eventuais comparações e exaustão da leitura para se identificar unidades de sentido e categorização. Duas categorias receberam destaque neste artigo: desafios da atuação em domicílio com pacientes em condição de terminalidade e o fisioterapeuta entre o tecnicismo e o humanismo.
Resultados e discussão
Em relação ao perfil dos fisioterapeutas entrevistados, seis eram mulheres e quatro homens, com idade entre 25 e 41 anos. Do total, seis estavam solteiros, três casados e um divorciado. Metade dos fisioterapeutas era natural do Distrito Federal e os demais dos estados de Goiás, São Paulo e Minas Gerais. Os entrevistados relataram possuir crenças religiosas, à exceção de um deles. Todos exerciam a fisioterapia no DF, sendo que quatro tinham vínculo empregatício como assalariados na rede privada, um era servidor público da Secretaria de Estado da Saúde do DF e os outros cinco eram profissionais liberais. Dos dez fisioterapeutas, apenas um referiu ter curso de formação em cuidados paliativos, aspecto que pode favorecer a formação de competências técnicas e relacionais para o atendimento na área em questão.
Desafios da atuação em domicílio com pacientes em condição de terminalidade
Segundo os depoimentos dos fisioterapeutas, cuidar de pessoas em condição de terminalidade da vida no ambiente domiciliar revelou-se um processo permeado por sentimentos e reações emocionais desencadeados por experiência polarizada, percebida, ao mesmo tempo, como difícil e gratificante. O sentimento de angústia foi preponderante nos discursos dos fisioterapeutas. Os profissionais relataram tê-la experimentado ao perceber a dor e o sofrimento do paciente. A não aceitação da morte sentida pelos pacientes, bem como pelo profissional, também foi emoção frequente originária do envolvimento desenvolvido ao longo do processo terapêutico. Uma participante afirmou: “estava muito sofrida e aquilo lá angustiava muito a gente, estava angustiada demais com aquela situação… E ela, o que mais comovia a gente, era que ela não estava preparada para o óbito, ela não estava, ela não tinha aceitado ainda que estava próximo” (Fernanda).
No relato de Fernanda, a situação pode se configurar em conflito bioético relacionado ao princípio da beneficência 1212. Beauchamp TL, Childress JT. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola; 2002.,2222. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos. Brasília: Unesco; 2005., pois foi preparada para cumprir seu dever profissional de fazer o bem, de prover benefícios por meio de sua intervenção terapêutica, seja monitorando parâmetros da ventilação mecânica e/ou minimizando possível dor física por meio de recursos termofotoeletroterápicos. No entanto, a profissional se sente angustiada porque a paciente estava em situação terminal e nada que pudesse fazer dentro de sua intervenção terapêutica modificaria o prognóstico. Para Sadala e Silva 2323. Sadala MLA, Silva FM. Cuidando de pacientes em fase terminal: a perspectiva de alunos de enfermagem. Rev Esc Enferm USP. 2009;43(2):287-94., ao lidar com a terminalidade da vida o profissional da saúde enfrenta situação temida pelo ser humano, que se manifesta em sentimentos como angústia e dor. Nesse sentido, para os autores, lidar com a morte no dia a dia é extremamente angustiante e desgastante, fazendo surgir sentimentos como impotência, frustração e insegurança diante do sofrimento do paciente e do insucesso das ações profissionais2424. Sadala MLA, Silva FM. Op. cit. p. 288..
Como aponta Singer 33. Singer P. Repensar la vida y la muerte: el derrumbe de nuestra ética tradicional. Barcelona: Paidós; 1997. p. n./d., nestes tempos de avanços biomédicos e da biotecnologia é preciso repensar a vida e também a morte. Esta última é regida por reflexões como a questão da ortotanásia e o direito de escolher não prolongar o sofrimento. É importante preparar de fato não somente a equipe de saúde, mas também os familiares no processo de aceitação da morte como consequência lógica de um processo irreversível e fatídico 33. Singer P. Repensar la vida y la muerte: el derrumbe de nuestra ética tradicional. Barcelona: Paidós; 1997. p. n./d.,1616. Marques AF, Oliveira DN, Marães VRFS. O fisioterapeuta e a morte do paciente no contexto hospitalar: uma abordagem fenomenológica. Rev Neurociênc (Impr.). 2006;14(2):17-22.. Essa consciência, entretanto, é assustadora e pode ser permeada por conflitos, pois remete à finitude de todos os envolvidos − profissional, familiares e o próprio paciente −, que podem hesitar em encarar essa situação.
De acordo com Moritz, durante a formação acadêmica é ensinado que o médico detém a maior responsabilidade de cura, apresentando maior sentimento de fracasso e medo de errar ante a morte de seu paciente2525. Moritz RD. Os profissionais de saúde diante da morte e do morrer. Bioética. 2005;13(2):51-63. p. 55.. O fisioterapeuta também é preparado para a cura e reinserção do paciente na sociedade, conforme ilustra a fala de Laís: “a gente não tem essa formação de cuidados paliativos, a gente na faculdade foi orientada, foi treinada para reabilitar, para reinserir o indivíduo na sociedade”. Esse aspecto dificulta ainda mais a admissão da finitude no processo de conviver com a morte, pois além de perceber-se mortal, o profissional pode sentir-se fracassado por não ter possibilidade de curar o paciente.
De modo geral, fisioterapeutas são preparados em sua formação para agir com beneficência − aliviar, diminuir ou prevenir danos, prover e equilibrar benefícios versus riscos e custos 66. Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução Coffito nº 424, de 8 de julho de 2013. Estabelece o Código de Ética e Deontologia da Fisioterapia. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, nº 147, 1º ago 2013 [acesso 8 mar 2016]. Seção 1. Disponível: http://bit.ly/2jO88Fg
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,1111. Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução Coffito nº 10, de 3 de julho de 1978. Aprova o Código de Ética Profissional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, 22 jul 1978 [acesso 8 jun 2009]. Seção 1. Disponível: http://bit.ly/2kibUb3
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,1212. Beauchamp TL, Childress JT. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola; 2002. − e, embora o óbito de pacientes em situação terminal seja inexorável, muitas vezes é difícil para o profissional lidar com a situação e entender que, ao se esgotarem os recursos terapêuticos, ele não estaria agindo com maleficência (causando danos). Lidar com a morte não é, de fato, tarefa fácil em uma sociedade que legalmente sacraliza a vida 2626. Ribeiro DC. Autonomia: viver a própria vida e morrer a própria morte. Cad Saúde Pública. [Internet]. 2006 [acesso 8 jun 2009];22(8):1749-54. Disponível: http://bit.ly/2kic81Z
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Implementar serviços de saúde voltados para profissionais também pode garantir melhor preparo e enfrentamento do processo de perda do paciente 2727. Santos MA, Hormanez M. Atitude frente à morte em profissionais e estudantes de enfermagem: revisão da produção científica da última década. Ciênc Saúde Coletiva. [Internet]. 2013 [acesso 8 jun 2009];18(9):2757-68. Disponível: http://bit.ly/2c6BcjV
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. Albuquerque 2828. Albuquerque A. Direitos humanos dos pacientes. Curitiba: Juruá; 2016. reforça essa perspectiva quando aponta que para humanizar a saúde é preciso olhar também para os profissionais, contemplando as necessidades que decorrem do próprio exercício da profissão. O preparo sob aspecto biopsicossocial poderá ajudá-los a enfrentar situações difíceis.
Ademais, a formação profissional para provimento de cuidados paliativos é de suma importância quando se considera que a vida é direito inalienável e somos preparados para resguardá-la com todas as diligências técnicas possíveis. No entanto, morrer com amparo e dignidade ainda não é direito previsto na legislação brasileira, que não reconhece formalmente o direito de morrer2929. Ribeiro DC. Op. cit. p. 1750.. Esse fato implica, inequívoca e consequentemente, o dever deontológico do profissional em salvaguardar a vida 66. Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução Coffito nº 424, de 8 de julho de 2013. Estabelece o Código de Ética e Deontologia da Fisioterapia. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, nº 147, 1º ago 2013 [acesso 8 mar 2016]. Seção 1. Disponível: http://bit.ly/2jO88Fg
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,1111. Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução Coffito nº 10, de 3 de julho de 1978. Aprova o Código de Ética Profissional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, 22 jul 1978 [acesso 8 jun 2009]. Seção 1. Disponível: http://bit.ly/2kibUb3
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Apesar do avanço da biotecnologia nos últimos anos, pouco se progrediu no ensino e em discussões bioéticas nos cursos de Fisioterapia, como apontam Badaró e Guilhem 1515. Badaró AFV, Guilhem D. Bioética e pesquisa na fisioterapia: aproximação e vínculos. Fisioter Pesqui. 2008;15(4):402-7. e Figueiredo 3030. Figueiredo AM. O ensino da bioética na pós-graduação stricto sensu da área de ciências da saúde no Brasil [tese]. Brasília: UnB; 2009., que constataram a deficiência do ensino da bioética na graduação em fisioterapia. De modo geral, a formação acadêmica do fisioterapeuta revela falta de preparo para o tema “terminalidade da vida”, como aponta pesquisa recente que entrevistou 222 graduandos em fisioterapia da Universidade de Brasília. A pesquisa revelou que 79,7% dos entrevistados do primeiro ao décimo semestre relataram não ter participado, nas disciplinas cursadas, de qualquer reflexão e discussão acerca da morte 3131. Mizuno YA. Experiências frente à morte em graduandos de fisioterapia: perfil sociodemográfico [monografia]. Brasília: UnB; 2015..
Esses dados permitem inferir que o conflito diante da morte dos pacientes surge a partir do momento em que o fisioterapeuta depara com a realidade do acompanhamento profissional do processo de terminalidade, como revela a fala de Fernanda: “eu não tive nenhuma preparação para como lidar com a morte, para como lidar com esses pacientes que não têm perspectiva de recuperação funcional, e então eu acho que é um desafio muito grande lidar com quem não tem perspectiva de cura”. Preparado para promover a cura, agir com beneficência e não maleficência e imerso em uma sociedade que nega a morte, o profissional é lançado em situação de trabalho adversa, para a qual se exige delicadeza e empatia, o que pode acabar exaurindo suas forças, provocando depressão e adoecimento.
Os conflitos bioéticos podem advir das escolhas terapêuticas disponíveis para o profissional. Em que medida a conduta pode trazer de fato benefícios para o paciente: agir com beneficência e não maleficência? Como identificar o limite de atuação sem prejuízo para a saúde do profissional? Como se comunicar com a equipe de saúde mantendo relação de diálogo para decisões conjuntas e compartilhadas, com base em solidariedade e cooperação? 1616. Marques AF, Oliveira DN, Marães VRFS. O fisioterapeuta e a morte do paciente no contexto hospitalar: uma abordagem fenomenológica. Rev Neurociênc (Impr.). 2006;14(2):17-22.,2222. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos. Brasília: Unesco; 2005.,2626. Ribeiro DC. Autonomia: viver a própria vida e morrer a própria morte. Cad Saúde Pública. [Internet]. 2006 [acesso 8 jun 2009];22(8):1749-54. Disponível: http://bit.ly/2kic81Z
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O fisioterapeuta, assim como os demais profissionais da saúde, é preparado para agir com beneficência, preservando a vida de seus pacientes e reinserindo-os na sociedade, como vem ocorrendo desde o ensino da história e fundamentos da fisioterapia nos cursos de graduação. No entanto, o estudante não é inserido em discussões sobre morte e perda do paciente; normalmente não é incentivado a falar sobre seus sentimentos durante e após as práticas de atendimento, ou sobre os sentimentos de seus pacientes e familiares, o que poderá acarretar conflitos na tomada de decisão em tratamentos que envolvam questões bioéticas 2222. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos. Brasília: Unesco; 2005.,3232. Marta GN, Marta SN, Andrea Filho A, Job JRPP. O estudante de medicina e o médico recém-formado frente à morte e ao morrer. Rev Bras Educ Méd. [Internet]. 2009 [acesso 8 jun 2009];33(3):416-27. Disponível: http://bit.ly/2iSXoGw
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,3333. Rebelatto JR, Botome SP. Fisioterapia no Brasil: fundamentos para uma ação preventiva e perspectivas profissionais. Barueri: Manole; 2008.. É necessário que o profissional considere o limite da biotecnologia para a manutenção da vida, e que também esteja preparado para aceitar que há limites para a intervenção terapêutica, reconhecendo a linha tênue entre benefícios e danos, não apenas ligados ao corpo físico, mas também à dimensão psicossocial.
O fisioterapeuta entre o tecnicismo e o humanismo
A pesquisa apontou polaridade entre atuações eminentemente técnicas ou humanísticas, desafio que se coaduna com a reflexão sobre conflitos bioéticos. Observou-se que a execução de procedimentos técnicos foi predominante, empregando meios disponíveis para que o trabalho terapêutico fosse efetivado sem demonstrar em suas falas preocupação em interagir com o paciente como pessoa inserida em um contexto psicossocial, como ilustram os depoimentos a seguir:
“Geralmente eu inicio uma sessão com paciente terminal, recorro primeiro a fazer uma avaliação dos dados vitais (…) terminando a sessão eu coloco o paciente numa postura melhor para que ele venha facilitar novamente o trabalho respiratório” (Tobias);
“A maioria dos pacientes terminais que atendi era de ventilação mecânica, então basicamente a higiene brônquica, então, assim, prática mesmo de higiene brônquica com ambu, aspiração no leito” (Amanda);
“Diariamente realizava a avaliação do paciente, realizava aspiração quando necessário, manobras torácicas, drenagem postural, mobilizações passivas e alongamentos para evitar deformidades, exercícios respiratórios” (Rubens).
Embora a conduta descrita nessas falas reflita a intenção de atuar com base na beneficência, por meio de ações eminentemente técnicas e objetivas, aponta também a falta de valorização de aspectos subjetivos, a partir de práticas como escuta do paciente ou diálogo com cuidadores e familiares. A ausência desses aspectos pode transformar profissionais em meros cuidadores de doenças, como afirma Siqueira 3434. Siqueira JE. Reflexões éticas sobre o cuidar na terminalidade da vida. Bioética. 2005;13(2):37-50., ou em técnicos para monitoramento de aparelhos, o que implica em conduta potencialmente causadora de danos (maleficência). É possível entrever que a rígida observância dos aspectos técnicos conforta o profissional, que sente que está se desincumbindo da tarefa de prover cuidados da melhor forma possível, sem comprometer suas emoções e sentimentos pelo contato intenso com a situação de finitude do paciente.
O que se pode constatar na pesquisa é que, na prática profissional, a valorização da técnica ocorre, especialmente, quando o fisioterapeuta em atendimento domiciliar de pessoas em condição de terminalidade realiza seu trabalho quase sem interação verbal com o paciente ou seus familiares. Nesse caso, a preocupação maior do profissional, desde a primeira abordagem, é aferir sinais físicos e passar para a etapa da realização do trabalho por meio da(s) técnica(s) escolhida(s). Essa abordagem enfatiza o distanciamento entre profissional e paciente, transformando este último em objeto da técnica do primeiro. Nessas situações, o risco de infração ética se acentua, em especial o não respeito à autonomia do paciente.
Em contrapartida, quando o profissional consegue aliar técnica e postura mais humanizada, tanto ele quanto o paciente usufruem de momentos enriquecedores durante a terapêutica, trazendo conforto à situação marcada pelo sofrimento e pela dor. Essa forma de atuação profissional pode gerar, inclusive, maior participação de familiares, que passam a ser mais bem orientados quanto a como conviver com a condição de terminalidade do paciente, implementando adaptações funcionais e compartilhando suas próprias angústias e receios. No cuidado ao paciente em situação de terminalidade, um aspecto importante a ser analisado, em especial sob o olhar da bioética, é o tecnicismo estrito, exercido em práticas terapêuticas objetivas, que limita a integração da abordagem humanística no cuidado.
Machado e colaboradores 3535. Machado D, Carvalho M, Machado B, Pacheco F. A formação ética do fisioterapeuta. Fisioter Mov. 2007;20(3):101-5. p. 104. definem esse processo como desumanização, quando o profissional passa a enxergar a doença e não mais o ser humano, quando passa a valorizar o manejo de pacientes críticos e discutir a decisão clínica sem adentrar o universo subjetivo. Isso ocorre, por exemplo, quando ignora a situação emocional e financeira da família. Para esses autores, perceber o outro é questão que envolve atitude profundamente humana3535. Machado D, Carvalho M, Machado B, Pacheco F. A formação ética do fisioterapeuta. Fisioter Mov. 2007;20(3):101-5. p. 104..
Para romper com a desumanização e as práticas centradas no modelo baseado no paradigma cartesiano − que acolhe o objeto (ou o objetivo) e não o sujeito (o paciente), o corpo biológico e não a corporeidade humana integral − é necessário enfatizar o processo relacional na ação terapêutica, o que pode trazer benefícios e reduzir vulnerabilidades. A sociedade hoje requer profissionais capazes de desenvolver não somente habilidades técnicas, mas, como pontuam Crippa e colaboradores 3636. Crippa A, Lufiego CAF, Feijó AGS, Carli GA, Gomes I. Aspectos bioéticos nas publicações sobre cuidados paliativos em idosos: análise crítica. Rev. bioét. (Impr.). 2015;23(1):149-60. p. 156., valores como compaixão, sensibilidade, entrega e ética. Barchifontaine aponta ainda que o cuidado é atinente à dignidade e humanidade do paciente e reforça os campos éticos de simples atenção, abre a participação e a solidariedade e afeta o modo como os outros são vistos3737. Barchifontaine CP. Humanismo y dignidad. In: Tealdi JC, director. Diccionario latinoamericano de bioetica. Bogotá: Unesco; 2008. p. 278-80. p. 280.. Ou seja, a relação entre o profissional de saúde e o paciente deve ser a tônica do cuidado e pautada no reconhecimento da dignidade humana e da solidariedade, que levam, consequentemente, à humanização.
Nos casos relatados pelos profissionais Tobias e Amanda evidenciou-se o conflito da autonomia, ou seja, a liberdade para decidir que condutas devem adotar, mais técnica ou mais humana, a depender de características pessoais, e não somente da formação profissional. Há profissionais que não desejam vínculo ou maior interação com seus pacientes, pois estão ali para realizar seus trabalhos e seguir para os próximos atendimentos. O emprego da comunicação verbal também é terapêutico, especialmente para pacientes sem possibilidades de cura, e implica em qualidade de cuidados, que é benefício salvaguardado ao paciente na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos2222. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos. Brasília: Unesco; 2005..
A dimensão humanística, por seu turno, apareceu nos discursos de alguns dos participantes associada à valorização da qualidade da comunicação e da interação desenvolvida entre fisioterapeuta, paciente, seus cuidadores e familiares. Nesta pesquisa, constatou-se em depoimentos que os fisioterapeutas valorizam o fato de estabelecer e manter comunicação constante com os pacientes. Entrevistados relataram que, no momento inicial do atendimento fisioterapêutico, buscavam voltar a atenção e o interesse ao quadro geral do paciente. Saber como se sentiam, o que incluía sentimentos e sensações sobre suas condições físicas, explicações sobre o cuidado realizado com o paciente, bem como identificar o clima relacional e afetivo presente entre membros familiares. A partir desse cenário delimitavam a ação terapêutica a ser adotada na intervenção, como exemplificam os trechos de relatos dos participantes:
“Olha, normalmente, eu procuro perceber como é que estão as coisas primeiro, como é que foi, como é que está o clima do ambiente, como é que a pessoa está se sentindo” (Pedro);
“Mostrar pra ele que ele é muito importante pra nós (…) eu entrava, cumprimentava, conversava um pouquinho, mesmo se ele não falava (…) eu conversava com ele com ou sem respostas” (Sheila);
“Bom, eu chego no domicílio do paciente, converso com o familiar responsável, se o paciente se comunica verbalmente, eu também, claro, converso muito sobre como passou da última sessão, como está naquele dia, se tem dor, como está se sentido, se tem alguma coisa que eu poderia fazer em especial naquele dia” (Laís).
Nos relatos dos profissionais observa-se que quando é feita a opção por estabelecer canal de comunicação adequado com o paciente e seus familiares, desde a interação inicial e durante a intervenção terapêutica, o fisioterapeuta passa a participar do cotidiano do paciente. Essa abordagem o torna mais sensível e atento às necessidades físicas, emocionais e psicológicas, contribuindo, assim, para minimizar a condição de vulnerabilidade da pessoa sob seus cuidados. Kovács 1414. Kovács MJ. A caminho da morte com dignidade no século XXI. Rev. bioét. (Impr.). 2014;22(1):94-104. p. 101. chama esses profissionais que lidam com a morte, empregando sua diligência profissional como também biopsicossocial, de “paliativistas”, justamente por colocarem em prática a beneficência quando um simples diálogo pode contribuir para o alívio da dor e do sofrimento. Segundo Coelho e Ferreira, a conversa proporciona alívio, transmite sensação de acolhimento e tem efeito benéfico ou terapêutico3838. Coelho MEM, Ferreira AC. Cuidados paliativos: narrativas do sofrimento na escuta do outro. Rev. bioét. (Impr.). 2015;23(2):340-8. p. 341..
Por meio de avaliação adequada, ao interagir verbalmente com pacientes e familiares, o profissional poderá perceber suas particularidades e individualidade, conhecer sua história, não somente a da doença, e poderá interagir com o doente nesse universo de sentidos e significados 1818. Ferreira J. O programa de humanização da saúde: dilemas entre o relacional e o técnico. Saúde Soc. [Internet]. 2005 [acesso 10 mar 2016];14(3):111-8. p. 113. Disponível: http://bit.ly/2jQHTyo
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. Por outro lado, deve reconhecer o desejo de silêncio do paciente, mas não deve desencorajá-lo a dizer o que sente, deixando-o à vontade, para que confie no profissional que dele cuida e que o acompanha nesse momento difícil. Essa ligação estabelecida pode ajudar o profissional a construir valores humanísticos pautados na compaixão, no respeito mútuo, na solidariedade e na integridade. Dadas as características específicas de sua atuação, para prover cuidado de qualidade o fisioterapeuta precisa tocar e conversar com o paciente, aproximando-se física, psicológica e emocionalmente.
Para O’Sullivan e Schmitz, as pessoas não nascem possuindo estes valores, mas estes são adquiridos ao longo das experiências pessoais e interpessoais3939. O’Sullivan SB, Schmitz TJ. Fisioterapia: avaliação e tratamento. 2ª ed. Barueri: Manole; 1998.. Para os autores, os valores dos pacientes são fatores importantes a serem considerados no tratamento, pois chegam à fisioterapia em diversos estágios de suas vidas, e com uma história única4040. O’Sullivan SB, Schmitz TJ. Op. cit. p. 117.. Como identificar esses valores se o fisioterapeuta não estabelecer relação mais humanizada, pautada no diálogo, na escuta e no processo de acolhimento e vínculo? Portanto, é necessário interagir não só com o paciente, mas também com os familiares, e construir relações humanizadas, com potencial para prevenir conflitos bioéticos. O profissional necessita sentir-se seguro, preparado para agir em situações-limite, além de compreender que existe, nessas situações, uma linha tênue entre beneficência e maleficência e entre tecnicismo e humanismo.
Indubitavelmente, a dimensão técnica é essencial para a boa prática fisioterapêutica. É a aplicação dos procedimentos apropriados que possibilitará a manutenção da integridade corporal da pessoa ao trabalhar, por exemplo, a prevenção de quadros álgicos severos e de deformidades devido ao grande tempo restrito ao leito. No entanto, a técnica precisa ser permeada pela relação de afeto, pela percepção das condições psicológicas e existenciais do paciente. Afinal é essa relação humanística que vai permitir ao profissional reconhecer que a enfermidade não é estritamente um fenômeno biológico, mas biopsicossocial, além de espiritual. Quando o profissional valoriza em sua prática terapêutica a interação humana com o paciente, passa a dar atenção à pessoa enferma e não à doença especificamente 3434. Siqueira JE. Reflexões éticas sobre o cuidar na terminalidade da vida. Bioética. 2005;13(2):37-50.. Esse trecho do relato de Samuel exemplifica a ideia:
“A pessoa está terminal, mas enquanto ela está ali você pode conversar com ela, você pode mexer nela, você pode dar carinho, pode fazer uma série de coisas, você pode é agir como uma pessoa do seu lado, não pode tratar como uma planta, é um ser humano.”
Outro aspecto importante na análise da questão tecnicista é que parece colocar o profissional como centro do processo de cuidado. Moritz ressalta aspectos da formação acadêmica tecnicista e discute o desenvolvimento de mecanismos de defesa do profissional da saúde para lidar com a morte. A autora adverte que, no início da formação, o estudante de medicina tem contato com um cadáver no estudo da anatomia e se vê diante um corpo desfigurado, enegrecido pelo formol, no qual o aluno dificilmente procura identificar um ser que passou pela vida e sentiu as emoções que marcam o indivíduo4141. Moritz RD. Op. cit. p. 54.. Podemos afirmar que esse contexto não é diferente para o estudante de fisioterapia.
O fisioterapeuta precisa estar preparado para reconhecer as necessidades psicossociais de seus pacientes, não apenas as físicas, mesmo se estiver em estado vegetativo, como se observou na fala de Samuel, ao evidenciar a necessidade de um tratamento mais humanizado e integral: “ele não é uma planta, é um ser humano”. Quando o paciente é visto de fato como é – um ser humano –, materializa-se o princípio bioético da dignidade humana, que é um dos conceitos fulcrais do cuidado centrado no paciente, como aponta Albuquerque 4242. Albuquerque A. Op. cit. p. 75.. Independentemente do estágio da doença, avançada ou não, o ser humano necessita sentir-se aceito, compreendido e valorizado 4343. Coelho MEM, Ferreira CA. Op. cit.,4444. Selli L. Cuidados ante el dolor y el sufrimiento. In: Tealdi JC, director. Diccionario latinoamericano de bioetica. Bogotá: Unesco; 2008. p. 62-3.. Enxergar o paciente em primeiro lugar, e não a doença, é atribuir valor fundamental ao ser humano em sua dignidade e integridade.
A reflexão sobre a interface entre bioética e direitos humanos do paciente ainda é recente. É preciso mais discussões e avanços que possam orientar as práticas em saúde, preparar e sensibilizar os profissionais para minimizar os conflitos advindos do enfrentamento de situações-limite 4545. Oliveira, AAS. Interface entre bioética e direitos humanos: perspectiva teórica, institucional e normativa [tese]. Brasília: UnB; 2010..
Considerações finais
Este estudo não exaure a temática, mas descortina alguns conflitos bioéticos muitas vezes vivenciados no cotidiano do trabalho de fisioterapeutas no atendimento de pacientes em condição de terminalidade e a seus familiares. Situações em que os limites para a utilização dos recursos terapêuticos se traduzem em posturas polarizadas − de aproximação ou distanciamento − e no desafio de promover cuidado pautado na humanização e na dignidade humana. Ao prover cuidado humanizado, o profissional encontra-se exposto à angústia e ao sofrimento existencial experimentado pelo paciente em processo de terminalidade. Sem ter recebido preparo adequado em sua formação para enfrentar essas situações, e sem apoio para administrá-las, o profissional pode sucumbir ao estresse, que o impedirá de exercer suas atividades de maneira efetiva e, pior, poderá levá-lo ao adoecimento crônico.
Tem-se aqui grande desafio para as instituições formadoras de profissionais fisioterapeutas quanto a incluir em todo o processo formativo, de forma transversal, conhecimentos que pautem a bioética do cuidado em saúde com base na autonomia, na dignidade e nos direitos humanos. É importante que se estabeleça diretriz de capacitação desses profissionais na lógica da educação permanente, tanto em programas de cuidados domiciliares quanto de outros equipamentos de saúde. Consideramos que para enfrentar a questão com decisão e pertinência é indispensável incluir a discussão da temática da morte e do morrer na formação profissional, promover a capacitação permanente para trabalhar em cuidados paliativos e prover apoio psicológico aos profissionais, quando necessário. Essas tarefas devem ser adotadas pelas instituições de ensino, impulsionadas pelos órgãos de classe e estimuladas por e para todos os profissionais que se preocupam com o exercício ético da profissão.
Referências
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7Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução Coffito nº 318, de 30 de agosto de 2006. Designa especialidade pela nomenclatura Fisioterapia Respiratória em substituição ao termo Fisioterapia Pneumo Funcional anteriormente estabelecido na Resolução nº 188, de 9 de dezembro de 1998, e determina outras providências. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, nº 33, 15 fev 2007 [acesso 15 out 2016]. Disponível: http://bit.ly/2khNuP7
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8Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução Coffito nº 189, de 9 de dezembro de 1998. Reconhece a especialidade de Fisioterapia Neuro Funcional e dá outras providências. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, nº 237, p. 59, 10 dez 1998 [acesso 15 out 2016]. Seção 1. Disponível: http://bit.ly/2iSN55q
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9Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução Coffito nº 260, de 11 de fevereiro de 2004. Reconhece a especialidade de Fisioterapia Traumato-Ortopédica Funcional e dá outras providências. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, nº 32, p. 66-7, 16 fev 2004 [acesso 15 out 2016]. Seção 1. Disponível: http://bit.ly/2jnfGvS
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10Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução Coffito nº 372, de 6 de novembro de 2009. Reconhece a Saúde da Mulher como especialidade do profissional Fisioterapeuta e dá outras providências. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, nº 228, p. 101, 30 nov 2009 [acesso 15 out 2016]. Seção 1. Disponível: http://bit.ly/2jQTvS7
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11Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução Coffito nº 10, de 3 de julho de 1978. Aprova o Código de Ética Profissional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, 22 jul 1978 [acesso 8 jun 2009]. Seção 1. Disponível: http://bit.ly/2kibUb3
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30Figueiredo AM. O ensino da bioética na pós-graduação stricto sensu da área de ciências da saúde no Brasil [tese]. Brasília: UnB; 2009.
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40O’Sullivan SB, Schmitz TJ. Op. cit. p. 117.
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41Moritz RD. Op. cit. p. 54.
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42Albuquerque A. Op. cit. p. 75.
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43Coelho MEM, Ferreira CA. Op. cit.
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44Selli L. Cuidados ante el dolor y el sufrimiento. In: Tealdi JC, director. Diccionario latinoamericano de bioetica. Bogotá: Unesco; 2008. p. 62-3.
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45Oliveira, AAS. Interface entre bioética e direitos humanos: perspectiva teórica, institucional e normativa [tese]. Brasília: UnB; 2010.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2017
Histórico
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Recebido
29 Abr 2016 -
Revisado
4 Nov 2016 -
Aceito
3 Dez 2016