Resumo
O objetivo deste artigo foi analisar a distribuição de profissionais médicos vinculados ao Sistema Único de Saúde em municípios em extrema pobreza do Brasil. Trata-se de estudo observacional, longitudinal e retrospectivo, desenvolvido com base em dados secundários disponibilizados pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde. Foram contabilizados 16.267 médicos, dos quais 1.360 atendiam na rede privada e 14.907 na rede pública. Dentre estes, 1.284 atendem na região Norte; 9.186, no Nordeste; 3.071, no Sudeste; 837, no Sul; e 529, no Centro-Oeste. Entre os municípios brasileiros em extrema pobreza, 12,2% dispõem de três médicos; 10,7%, de dois médicos; e 9,2%, de apenas um médico. Os desfechos primários relativos à demografia médica dos municípios em extrema pobreza afirmam a desproporção na distribuição de profissionais entre as cidades brasileiras. Sugere-se a implementação de políticas em saúde que promovam a equidade da demografia médica no país.
Sistema Único de Saúde; Acesso aos serviços de saúde; Regionalização da saúde
Abstract
This article aimed to analyze the distribution of medical professionals linked to the Brazilian Unified Health System in municipalities in extreme poverty in the country. This is an observational, longitudinal and retrospective study based on secondary data provided by the Department of Informatics of the Unified Health System. In total, 16,267 physicians were identified, of which 1,360 worked in the private network and 14,907 in the public network. The regional distribution is as follows: 1,284 in the North; 9,186 in the Northeast; 3,071 in the Southeast; 837 in the South; and 529 in the Midwest. Among Brazilian municipalities in extreme poverty, 12.2% have three physicians; 10.7% of two physicians; and 9.2% of only one. The primary outcomes related to the demographics of medical personnel municipalities in extreme poverty show the disproportion in the distribution of professionals among Brazilian cities. The implementation of health policies that promote the equity of such demographics in the country is suggested.
Unified Health System; Health services accessibility; Regional health planning
Resumen
Este artículo analizó la distribución de los profesionales médicos vinculados al Sistema Único de Salud en municipios en extrema pobreza en Brasil. Se trató de un estudio observacional, longitudinal y retrospectivo, realizado con datos secundarios provenientes del Departamento de Informática del Sistema Único de Salud. De un total de 16.267 médicos; 1.360 estaban en la red privada y 14.907 en la red pública. De estos, 1.284 trabajaban en la región Norte; 9.186, en el Nordeste; 3.071, en el Sudeste; 837 en el Sur; y 529, en el Centro-Oeste. En tal condición, el 12,2% de los municipios tenía tres médicos; el 10,7%, dos; y el 9,2% solo uno. Los resultados primarios relacionados con el tema permiten atestar la desproporción en la distribución de profesionales entre las ciudades brasileñas. Se sugiere implementar políticas de salud que promuevan la equidad en la demografía médica en el país.
Sistema Único de Salud; Accesibilidad a los servicios de salud; Regionalización
O Brasil, maior país em extensão da América Latina, teve sua população estimada em 210.147.125 habitantes em 2019 1 . O Sistema Único de Saúde (SUS) vigente no país foi instituído pela Constituição Federal de 1988 2 , que, em seu artigo 196, definiu a saúde como direito de todos e dever do Estado. O SUS, financiado com recursos do orçamento da seguridade social da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, tem entre seus princípios organizativos a descentralização, regionalização e hierarquização do serviço. Nesse contexto, a funcionalidade de uma rede regionalizada e hierarquizada de serviços de saúde tem sido um dos seus principais desafios. Problemas de natureza estrutural se sobrepõem a aparato incompleto de equipamentos e especialidades (recursos humanos e tecnológicos) pelo território, trazendo para o primeiro plano a questão da equidade territorial como o maior obstáculo a ser enfrentado para a concretização da diretriz de integralidade no SUS 3 .
A regionalização requer arranjos institucionais peculiares, tendo em vista que a criação de regiões depende de pactuação federativa entre o governo das unidades federativas e dos municípios que as compõem, assim como de acordos horizontais entre os secretários municipais, que extrapolam os mecanismos contratuais que vigoram em consórcios entre cidades 4 . Diversas categorias permitem avaliar a qualidade do acesso à saúde, entre as quais são comuns acessibilidade geográfica, disponibilidade, viabilidade e aceitabilidade. A acessibilidade geográfica diz respeito à conformidade da localização dos serviços de saúde em relação à localização dos usuários, levando em conta distância, meios de transporte e tempo de deslocamento 5 .
A descentralização político-administrativa do SUS, baseada na municipalização, favoreceu a inflexão do processo de regionalização ao ampliar as atribuições municipais na provisão de serviços e desconsiderar o papel dos estados 6 . Surgiu, então, a necessidade de discutir a capacidade de gestão no âmbito municipal para a implementação dessa política. Debateu-se a capacidade de governo ou gestão 7 . Diante da fragilidade da adequação às múltiplas realidades brasileiras ao desconsiderar condições políticas, administrativas, técnicas, financeiras e de necessidades de saúde dos municípios, visando reduzir desigualdades, observou-se que este primeiro ciclo de descentralização, de 1988 a 2000, com protagonismo dos municípios, ainda prevaleceu em alguns territórios, mesmo com o estabelecimento de Regiões de Saúde e das Redes de Atenção à Saúde, a partir do ano 2000 8 .
Embora haja proporção significativa de médicos por habitantes brasileiros, esse contingente de profissionais não está disseminado de forma equitativa pelas regiões do Brasil, concentrando-se nos centros com maior rendimento monetário 5 . Dessa forma, em muitos municípios o acesso à saúde é escasso, especialmente naqueles em extrema pobreza, os quais carecem de acessibilidade geográfica.
Segundo critérios adotados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 1 , são considerados municípios em extrema pobreza aqueles em que pelo menos 20% da população vive nessa condição. Dados da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE 9 mostram que a extrema pobreza atingiu 13,5 milhões de brasileiros em 2019, chegando ao maior nível em sete anos. Pessoas nessa situação têm rendimento domiciliar mensal de até R$145 per capita , já as em situação de pobreza têm renda domiciliar mensal entre R$145 e R$420 per capita . As unidades da federação com maior renda estão nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, com destaque para o Distrito Federal, que apresenta maior renda média. Por outro lado, os estados com os menores rendimentos estão nas regiões Norte e Nordeste, sendo o menor deles no Maranhão 9 , correspondendo a regiões onde as taxas de cobertura de saúde pública são menores 10 .
Diante do cenário demográfico e epidemiológico de desigualdade da cobertura de saúde brasileira, o objetivo desta pesquisa foi analisar a distribuição de profissionais médicos vinculados ao SUS nos municípios em extrema pobreza no Brasil, a fim de apresentar a demografia médica nesses locais. A presente análise procura evidenciar, no âmbito do acesso efetivo à saúde, a carência de médicos nesses municípios e proximidades. Estimula-se, assim, reflexão, permitindo-se fundamentar ações para adequar os serviços de saúde às necessidades desses territórios vulneráveis.
Método
Trata-se de estudo de natureza observacional, analítica, longitudinal e retrospectiva baseado em dados quantitativos secundários disponibilizados pelo Departamento de Informática do SUS (Datasus) 11 , coletados no tabulador público de informações em saúde (Tabnet) entre 1º e 31 de dezembro de 2019. As variáveis do presente estudo correspondem à categoria de redes assistenciais, exígua de recursos humanos, a partir do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, sendo selecionados profissionais em abrangência nacional.
Entre as várias dimensões e aspectos dos arranjos organizacionais, o estudo priorizou a análise das composições de médicos que atendem pelo SUS nos municípios em extrema pobreza, conforme região, unidade federativa, ano ou mês competente – entre outubro de 2007 e outubro de 2019 –, natureza jurídica, tipo de gestão, tipo de estabelecimentos e exercício de ensino e pesquisa. Para avaliar a distribuição segundo porte populacional, foram extraídos do site do Datasus 11 dados sociodemográficos e número de habitantes, estimados pelo Tribunal de Contas da União.
Os dados coletados foram processados no Microsoft Office Excel 2016 para análise de frequência simples e absoluta. As medidas de tendência central utilizadas foram médias, mediana e moda, e, como medida de precisão, foi calculado o desvio padrão.
Resultados
Em outubro de 2019, dos 5.570 municípios brasileiros, conforme IBGE 9 , 1.582 (28,4%) estão catalogados no Datasus como de extrema pobreza, representando mais de ¼ do total. Existem 466.135 médicos ativos no Brasil 12 , e 298.530 (64%) atuam profissionalmente no SUS 11 . Foram contabilizados, nos municípios em extrema pobreza, 16.267 médicos, dos quais 1.360 (8,4%) atendiam na rede privada e 14.907 (91,6%) trabalhavam no SUS, sendo a natureza jurídica de 10.438 (64,2%) deles municipal; 1.031 (6,3%), estadual; 143 (0,9%), federal; 363 (2,23%), a sociedade empresária limitada; 264 (1,62%) ao órgão público do Poder Executivo municipal; 229 (1,4%) a associações públicas; 70 (0,43%), a autarquia federal; 25 (0,15%) empresários e o restante dividem-se entre empresas individuais, entidades sindicais, cooperativas, entre outros. No que concerne à atuação de médicos em ensino e pesquisa nos municípios em extrema pobreza, somente 208 (1,3%) trabalham em unidades auxiliares de ensino, 69 (0,4%) atuam em hospitais-escola, 24 (0,2%) em universidades e 8 (0,1%) em faculdades isoladas; portanto, 14.598 (89,7%) médicos não estão vinculados a trabalhos científicos, conforme exposto no Gráfico 1 . Ou seja, o perfil identificado em municípios em extrema pobreza é majoritariamente de profissional médico que atende no SUS, contratado pelo município e alheio a ocupações de ensino e pesquisa.
Exercício de ensino e pesquisa por médicos do SUS em municípios em extrema pobreza (Brasil, outubro de 2019)
Dentre os médicos que exercem suas atividades profissionais pelo SUS nos 1.526 municípios brasileiros em extrema pobreza, 1.284 (8,6%) atuam na região Norte; 9.186 (61,6%), no Nordeste; 3.071 (20,6%), no Sudeste; 837 (5,6%), no Sul; e 529 (3,5%), no Centro-Oeste ( Tabela 1 ).
Número de médicos que atendem no SUS em municípios em extrema pobreza (Brasil, outubro de 2009 a outubro de 2019)
Conforme o Gráfico 2 , dentre os municípios brasileiros em extrema pobreza, 186 (12,2%) dispõem de três médicos; 164 (10,7%), de dois médicos; e 141 (9,2%), de um médico. Nesse quadro, a extremidade oposta é evidenciada pelos municípios de Barbalha/CE, com 60.781 habitantes e 353 médicos no SUS, indicando 5,8 médicos por mil habitantes; Guanambi/BA, com 84.481 habitantes e 171 médicos registrados, o que equivale a 2,02 médicos por mil habitantes; e Arcoverde/PE, com 74.338 habitantes e 168 médicos no SUS, o que significa 2,25 médicos por mil habitantes.
Distribuição de médicos do SUS por municípios em extrema pobreza (Brasil, outubro de 2019)
Perfazem os 186 (12,2%) municípios em extrema pobreza com apenas três médicos, por exemplo, Ministro Andreazza/RO, com 9.660 habitantes e 0,31 médico no SUS por mil habitantes; Jordão/AC, com 8.317 habitantes e 0,36 médico no SUS por mil habitantes; e Campo Azul/MG, com 3.817 habitantes e 0,78 médico no SUS por mil habitantes. No extremo estão os 141 (9,2%) municípios com um médico, como Santa Tereza de Goiás/GO, com uma população de 3.355 habitantes e 0,29 médico no SUS por mil habitantes; Cristal do Sul/RS, com 2.847 habitantes e 0,35 médico no SUS por mil habitantes; e Bacurituba/MA, com 5.644 habitantes e 0,177 médico no SUS por mil habitantes.
O Gráfico 3 ilustra a alocação dos médicos colaboradores do SUS nos municípios em extrema pobreza entre outubro de 2009 e outubro de 2019. Nesse período, o maior número de médicos foi designado em 2018, totalizando 15.487 profissionais. Todavia, no último ano, constata-se diminuição de 3,7% no contingente de médicos nesses territórios, representando redução de 580 profissionais nessas localidades.
Discussão
São condicionantes da organização do SUS a regionalização, descentralização e hierarquização 10 . Para sustentar o atendimento da população em país com dimensões continentais 1 , marcado pela pluralidade cultural e ambiental, à proporção que se acentuam as desigualdades socioeconômicas e regionais 13 , o SUS tem por esteio a disposição de equipes na atenção primária à saúde por meio do Programa Saúde da Família. Tais grupos estão mais próximos da comunidade para avaliar seus determinantes sociais de saúde e intervir de modo preciso e abrangente. Cada equipe compreende, obrigatoriamente e no mínimo, um médico 10 .
No Brasil, existem em média 2,18 médicos por mil habitantes. No entanto, esses profissionais estão concentrados em determinados locais e regiões: 60,2% dos médicos estão em municípios com mais de 500 mil habitantes, cuja população representa 30,2% do país, e apenas 2,6% dos médicos atendem em municípios com até 20 mil pessoas e menor rendimento financeiro. A população destes municípios, somada, equivale a 15,5% do total brasileiro, denotando-se a desproporção na distribuição de médicos no país 14 .
Ressalta-se a precária disponibilidade de médicos em municípios em extrema pobreza no Brasil. Se mais de ¼ dos municípios brasileiros encontra-se nessa condição, a disparidade pode ser inferida no fato de que, do total de médicos atualmente ativos 12 , apenas 3,5% exercem sua profissão nesses territórios. Tal desproporcionalidade já se verifica em termos regionais, uma vez que a região Nordeste concentra 27,6% da população brasileira, mas detém 17,8% dos médicos no país 14 . Essa região concentra ainda mais da metade dos municípios em extrema pobreza do Brasil, e ali estão também mais da metade do contingente de médicos que atuam nas cidades nessa condição. No entanto, essa realidade não permite inferir que o número de médicos nessas localidades alcance a média de 2,5 médicos por mil habitantes recomendada pelo Ministério da Saúde. Mesmo no quadro de profissionais atuantes nos municípios em extrema pobreza existem discrepâncias, conforme resultados apresentados. Há municípios que não contam com um médico para mais de 3 mil habitantes.
O Sudeste, por sua vez, contém 15,5% dos municípios em situação de extrema pobreza e 20,6% dos médicos que atuam nessas áreas no Brasil. A maioria das rotas de escassez de médicos no país, avaliadas em relação a atrativos para fixação, está no Nordeste e Norte 15 , embora exista alta concentração de médicos no Sudeste e a média nacional de médicos por habitantes seja satisfatória 14 . O mesmo ocorre em relação à distribuição heterogênea perceptível na situação entre o Norte com o menor e o Sudeste com o maior número de médicos por habitantes do Brasil 14 . Além disso, prepondera a concentração de médicos nas capitais do Norte em detrimento do interior. A situação do Amazonas, maior estado brasileiro, é a mais desproporcional. A capital concentra mais da metade da população e 93,1% dos médicos, restando aos demais 6,9% dos médicos. A população de Vitória/ES, que conta com 12 médicos por mil habitantes, maior proporção do Brasil, tem 25 vezes mais médicos disponíveis por mil habitantes que no interior do Norte e Nordeste 14 .
A distribuição médica desigual está subordinada à prevalência de determinantes sociais de saúde debilitantes, especialmente em municípios em extrema pobreza 16 . Com intuito de atender à necessidade de médicos, principalmente em territórios remotos, em 2013 foi instaurado o Programa Mais Médicos (PMM) 17 , fundamentado em três eixos. Um deles aborda a contratação de mais profissionais, cuja demanda foi preenchida por portadores de registro no Conselho Regional de Medicina (CRM), cooperadores – originários de Cuba, empregados por meio da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) – e intercambistas – médicos formados no exterior. Outro eixo volta-se para o aprimoramento das graduações e residências médicas, e o terceiro visa otimizar a infraestrutura dos estabelecimentos do SUS.
Ao fim do primeiro ano de instauração do PMM, em outubro de 2014, observou-se aumento de 19,3% no número de profissionais atuantes no SUS, entre os quais os profissionais cubanos. Embora se tenha registrado 34.450 médicos inscritos no CRM entre 2013 e 2014 12 , poucos profissionais brasileiros aderiram ao programa, somando apenas 1.280 médicos nativos e intercambistas. Isto é, o aumento verificado no PMM tem expressiva influência dos 5.400 médicos cooperadores que imigraram para o país em 2013 18 .
Segundo o Ministério da Saúde 18 , apenas em 2016 sobressaiu a participação de brasileiros no PMM, empregados em 89% das vagas. Entretanto, a média de permanência desses profissionais em áreas remotas é menor que 90 dias. Verifica-se com isso a necessidade de incorporar na discussão os determinantes que influenciam a transferência e fixação de médicos 15 em municípios em extrema pobreza.
O PMM pretende ultrapassar o número próximo de 2,18 médicos por mil habitantes no Brasil para atingir a média do Reino Unido, 2,7 médicos por mil habitantes, em razão de o país ter o segundo maior sistema de saúde do mundo, depois do Brasil, e assemelhar-se no modo de gestão centrado na atenção primária universal 18 , 19 . Tal medida é desaconselhada tanto pela Organização Mundial da Saúde como pela Opas, uma vez que a quantidade ideal de profissionais em equipe de saúde deve ser planejada considerando os determinantes sociais de saúde da região 13 .
Nessa discussão, como exposto pelos resultados, deve-se ressaltar a desmedida desigualdade socioeconômica regional que reflete em singular sistema de saúde, o qual transita entre serviços públicos e privados em país com dimensões continentais. Nesse sentido, e ainda que 63% dos 4.716 médicos do PMM no Nordeste tenham sido destinados a municípios abaixo da linha da pobreza, o Maranhão, estado com menor taxa de médicos por habitantes, recebeu menos médicos que Pernambuco, que já antes da instauração do Programa apresentava o maior índice de distribuição de médicos por habitantes do Nordeste 16 . Essa realidade é acarretada pela necessidade de os municípios requererem a contratação de médicos pelo PMM, o que viabiliza a não adesão ao programa e, consequentemente, a prevalência da falta de assistência médica devido a oposições políticas 16 , 20 .
Ainda sobre essa questão, é notável a discrepância na quantidade de médicos por número de municípios. Por exemplo, Minas Gerais, estado brasileiro com mais cidades (853) e cerca de metade do número de municípios em extrema pobreza no país, tem 52.496 médicos ativos, média de 61,54 por cidade. Nos 1.526 municípios da amostra deste estudo, a média é de 10,65 médicos. Cientes do desvio padrão de 17,08, não homogêneo, é evidente, conforme estudo do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo 13 , que estimar a média a ser atingida nos municípios segundo o número de médicos por habitantes, como havia sido planejado pela estratégia governamental ao ampliar contratações e vagas nos cursos de medicina, não é confiável nem efetivo como indicador-base para a distribuição de médicos.
A descentralização da gestão de políticas públicas de saúde, por meio do acordo entre União, unidades federativas e municípios, se ampara no protagonismo das cidades para legitimar o SUS local 20 . Nesse sentido, o PMM, o Programa de Interiorização do SUS, o Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica ou mesmo o Programa Farmácia Popular destoam de estratégias adotadas em países desenvolvidos por não destacar medidas efetivas segundo estudos epidemiológicos, priorizando o fortalecimento de redes em saúde e, consequentemente, a integralidade no SUS 21 .
Ao analisar a discrepância de 1 a 353 médicos que atendem no SUS em municípios em extrema pobreza, com moda 3, é enfatizada a desigualdade até mesmo entre cada um desses territórios. As três municipalidades com maior número de profissionais estão no Nordeste e correspondem a 4,6% dos médicos que trabalham no SUS nos 1.526 municípios estudados.
O índice de Gini quantifica a distribuição de renda evidenciando esferas de desigualdade, com base em escala na qual 0 corresponde a plena igualdade e 1 significa o extremo de desigualdade. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 22 de 2018, a região Norte apresenta maior diferença de rendimento médio mensal domiciliar per capita , com coeficiente de Gini em 0,551, seguida do Nordeste, com 0,545. Destarte, o burocrático sistema de saúde no Brasil, diante da desigualdade social regional e falta de recursos humanos e materiais, embarga a estruturação de projetos nacionais de maneira homogênea entre os municípios 20 , 21 .
Dessa forma, sobretudo em municípios em extrema pobreza, faz-se necessário que o médico compreenda a importância dos determinantes sociais de saúde em sua área de atuação 21 . Ensino e pesquisa são grandes aliados para o exercício da medicina baseada em evidências, porém apenas 2% dos médicos no SUS em municípios em extrema pobreza se dedicam a esse tipo de função, conforme ilustrado. Os dados encontrados corroboram a tendência dos médicos recém-formados sobre trabalho no ensino superior: ao ingressar na faculdade, 9,2% dos estudantes acreditavam que poderiam seguir carreira científica e 9,1%, a carreira docente; contudo, quando questionados sobre suas pretensões como egressos, menos de 3% pretendia se dedicar a pesquisa, ensino ou gestão de serviços em saúde 14 . Estudo realizado na Faculdade de Medicina de Botucatu, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, analisou o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde na consolidação da pesquisa para aperfeiçoar o serviço da Estratégia Saúde da Família, demonstrando aumento da motivação da equipe envolvida em pesquisa científica para estudar e se atualizar, executar ações na comunidade, reconhecer a área, atualizar protocolos e elaborar materiais de promoção de saúde, refletindo em melhoria no atendimento da demanda do território 23 .
É evidente, portanto, a primordialidade de discutir medidas eficientes para reduzir a desigualdade da demografia médica, resguardando as peculiaridades regionais e incentivando a participação de médicos, demais profissionais de saúde e população, constatando-se a fixação ou não dos médicos em áreas remotas 21 . A escassez de políticas públicas que influenciem a distribuição de médicos em municípios em extrema pobreza reforça a vulnerabilidade dessa população, a exemplo da diminuição do número desses profissionais nessas cidades entre outubro de 2018 e outubro de 2019, após posicionamento político contrário da atual gestão federal ao regime cubano e, consequentemente, evasão de colaboradores daquele país do território nacional 24 .
Faz-se necessário, portanto, reestruturar desde a graduação até a prática médica, com incentivos para a distribuição de profissionais no território e investimentos em recursos humanos e materiais 16 , 20 , 21 . Segundo o livro Demografia médica no Brasil 2018 14 , 84% dos recém-formados apontam boas condições de trabalho como principal fator para decidir fixar-se em determinada localidade, e 66,2% deles consideram a qualidade de vida. Esse processo depende do fortalecimento de princípios e diretrizes de base do SUS, de modo a valorizar a integralidade, amparado por estratégias entre público e privado, tecnologias, investimentos financeiros adequados e reformulação de normas apuradas de funcionamento dos serviços de saúde 21 .
Considerações finais
Os desfechos primários relativos à demografia médica dos municípios em extrema pobreza afirmam a desproporção na distribuição de profissionais nas cidades brasileiras. Persiste a necessidade de políticas em saúde que preconizem a equidade da demografia médica pelo país, de forma a respeitar as particularidades econômicas e sociais de cada região e município, bem como promover a reestruturação do sistema de saúde pública e investir em recursos humanos e materiais, a fim de reduzir significativamente as disparidades em saúde no território nacional.
Faz-se necessário, portanto, incentivar novos estudos que dissertem sobre fatores atrativos ou de fixação dos médicos em áreas remotas e com menor renda no Brasil, considerando plano de carreira médica para propor ações efetivas. Ao mesmo tempo, é preciso discutir o perfil do profissional da medicina e sua atuação em diferentes localidades, bem como a formação de novas diretrizes curriculares.
Referências
-
1 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. População brasileira estimada. Cidades [Internet]. Rio de Janeiro, c2017 [acesso 28 out 2021]. Disponível: https://bit.ly/3pbF37O
» https://bit.ly/3pbF37O -
2 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 5 out 1988 [acesso 28 out 2021]. Disponível: https://bit.ly/3BKXd5a
» https://bit.ly/3BKXd5a - 3 Viana ALÁ, Iozzi FL. Enfrentando desigualdades na saúde: impasses e dilemas do processo de regionalização no Brasil. Cad Saúde Pública [Internet]. 2019 [acesso 28 out 2021];35(supl 2):e00022519. DOI: 10.1590/0102-311X00022519
- 4 Dourado DA, Elias PEM. Regionalização e dinâmica política do federalismo sanitário brasileiro. Rev Saúde Pública [Internet]. 2011 [acesso 28 out 2021];45(1):204-11. DOI: 10.1590/S0034-89102011000100023
- 5 Oliveira RAD, Duarte CMR, Pavão ALB, Viacava F. Barreiras de acesso aos serviços em cinco Regiões de Saúde do Brasil: percepção de gestores e profissionais do Sistema Único de Saúde. Cad Saúde Pública [Internet]. 2019 [acesso 28 out 2021];35(11):e00120718. DOI: 10.1590/0102-311x00120718
- 6 Xavier DR, Oliveira RAD, Barcellos C, Saldanha RF, Ramalho WM, Laguardia J, Viacava F. As Regiões de Saúde no Brasil segundo internações: método para apoio na regionalização de saúde. Cad Saúde Pública [Internet]. 2019 [acesso 3 nov 2021];35(supl 2):e00076118. DOI: 10.1590/0102-311x00076118
- 7 Sampaio J, Carvalho EMF, Pereira GFC, Mello FMB. Avaliação da capacidade de governo de uma secretaria estadual de saúde para o monitoramento e avaliação da atenção básica: lições relevantes. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2011 [acesso 3 nov 2021];16(1):279-90. DOI: 10.1590/S1413-81232011000100030
- 8 Viana ALÁ, Ferreira MP, Cutrim MA, Fusaro ER, Souza MR, Mourão L et al. The regionalization process in Brazil: influence on policy, structure and organization dimensions. Rev Bras Saúde Mater Infant [Internet]. 2017 [acesso 3 nov 2021];17(supl 1):S27-43. DOI: 10.1590/1806-9304201700s100003
-
9 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2018 [acesso 3 nov 2021]. (Estudos e pesquisas: Informação demográfica e socioeconômica, nº 39). Disponível: https://bit.ly/352NqeZ
» https://bit.ly/352NqeZ -
10 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da atenção básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial União [Internet]. Brasília 22 set 2017 [acesso 3 nov 2021]. Disponível: https://bit.ly/35lvvzW
» https://bit.ly/35lvvzW -
11 Brasil. Ministério da Saúde. CNES: recursos humanos a partir de agosto de 2007: ocupações classificadas pela CBO 2002. Datasus [Internet]. Rede Assistencial; 2008 [acesso 3 nov 2021]. Disponível: https://bit.ly/36neSEL
» https://bit.ly/36neSEL -
12 Número de médicos com registros primários e ativos. Conselho Federal de Medicina [Internet]. Brasília, 2007 [acesso 3 nov 2021]. Disponível: https://bit.ly/37YHvJb
» https://bit.ly/37YHvJb -
13 Estudo de projeção “Concentração de médicos no Brasil em 2020”. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo [Internet]. Demografia Médica; 25 jun 2012 [acesso 3 nov 2021]. Disponível: https://bit.ly/3sfO6q3
» https://bit.ly/3sfO6q3 -
14 Scheffer M, coordenador. Demografia médica no Brasil 2018 [Internet]. São Paulo: FMUSP; 2018 [acesso 3 nov 2021]. Disponível: https://bit.ly/3LXvMtx
» https://bit.ly/3LXvMtx - 15 Stralen ACSV, Massote AW, Carvalho CL, Girardi SN. Percepção de médicos sobre fatores de atração e fixação em áreas remotas e desassistidas: rotas da escassez. Physis [Internet]. 2017 [acesso 3 nov 2021];27(1):147-72. DOI: 10.1590/S0103-73312017000100008
- 16 Nogueira PTA, Bezerra AFB, Leite AFB, Carvalho IMS, Gonçalves RF, Brito-Silva KS. Características da distribuição de profissionais do Programa Mais Médicos nos estados do Nordeste, Brasil. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2016 [acesso 3 nov 2021];21(9):2889-98. DOI: 10.1590/1413-81232015219.17022016
-
17 Brasil. Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as leis nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993, e nº 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 23 out 2013 [acesso 3 nov 2021]. Disponível: https://bit.ly/3va4VER
» https://bit.ly/3va4VER -
18 Brasil. Ministério da Saúde. Programa Mais Médicos [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2017 [acesso 3 nov 2021]. Disponível: https://bit.ly/3t4hSNJ
» https://bit.ly/3t4hSNJ -
19 Brasil. Mais médicos: resultado para o país. Mais médicos [Internet]. [s.d.] [acesso 22 de mar 2022]. Disponível: https://bit.ly/3qux8TE
» https://bit.ly/3qux8TE -
20 Mello GA, Pereira APCM, Uchimura LYT, Iozzi FL, Demarzo MMP, Viana ALÁ. O processo de regionalização do SUS: revisão sistemática. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2017 [acesso 3 nov 2021];22(4):1291-310. Disponível: https://bit.ly/3HfYvGD
» https://bit.ly/3HfYvGD - 21 Viana ALÁ, Iozzi FL. Enfrentando desigualdades na saúde: impasses e dilemas do processo de regionalização no Brasil. Cad Saúde Pública [Internet]. 2019 [acesso 3 nov 2021];35(supl 2):e00022519. DOI: 10.1590/0102-311X00022519
-
22 Pnad Contínua: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [Internet]. Rio de Janeiro; c2018 [acesso 3 nov 2021]. Disponível: https://bit.ly/3pehKdn
» https://bit.ly/3pehKdn - 23 Cyrino EG, Cyrino APP, Prearo AY, Popim RC, Simonetti JP, Villas Boas PJF et al. Ensino e pesquisa na estratégia de saúde da família: o PET-Saúde da FMB/Unesp. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2012 [acesso 3 nov 2021];36(1 supl 1):92-101. DOI: 10.1590/S0100-55022012000200013
-
24 Matos MFM. O caso dos médicos cubanos no Brasil: análise da compatibilidade entre o Projeto Mais Médicos para o Brasil e o Código Global de Práticas de Recrutamento Internacional de Profissionais da Saúde da Organização Mundial da Saúde [tese] [Internet]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2019 [acesso 3 nov 2021]. Disponível: https://bit.ly/3BPKqhP
» https://bit.ly/3BPKqhP
-
Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e do Instituto Cesumar de Ciência, Tecnologia e Inovação.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Maio 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2022
Histórico
-
Recebido
27 Jun 2021 -
Revisado
7 Fev 2022 -
Aceito
9 Fev 2022