Resumo
O presente artigo aborda o arqueofuturismo, do intelectual francês Guillaume Faye (1949-2019), um dos expoentes da Nouvelle Droite, corrente de pensamento que busca atualizar os referenciais da extrema direita na Europa desde os anos 1960. O arqueofuturismo é uma das mais radicais propostas desta corrente, e que faz um constante uso do passado e de uma concepção cíclica da história para enfatizar o identitarismo branco e a formação de um Império Europeu (Eurosibéria); o combate à imigração, sobretudo islâmica; e a defesa de sociedades hierárquicas, divididas entre núcleos hiper tecnológicos e núcleos arcaicos. Analisa-se o arqueofuturismo como uma nova forma de utilização da perspectiva da “luta entre raças” e do racismo na história europeia e uma resposta propositiva ao contexto de independência das ex-colônias europeias e da crise do socialismo e da hegemonia liberal-democrática no sentido de uma agenda revolucionária, conservadora e transumanista para uma sociedade neofascista.
Palavras-chave: Extrema direita; Nova direita; Racismo
Abstract
This article addresses archeofuturism, by the French intellectual Guillaume Faye (1949-2019), one of the exponents of the Nouvelle Droite, a current of thought that seeks to update the far-right references in Europe since the 1960s. Archeofuturism is one of the most radical proposals of this current, which makes constant use of the past and a cyclical conception of history to emphasize white identity and the formation of a European Empire (Eurosiberia); the fight against immigration, especially Islamic; and the defense of hierarchical societies, divided between hypertechnological nuclei and archaic nuclei. archaeofuturism is analyzed as a new way of using the perspective of the “struggle between races” and racism in European history and a purposeful response to the context of the independence of former European colonies and the crisis of socialism and of liberal-democratic hegemony towards a revolutionary, conservative and transhumanist agenda for a neo-fascist society.
Keywords: Far right; New right; Racism
Introdução
Nas últimas duas décadas ideologias de direita ganharam espaço, legitimando novos movimentos e governos críticos ao sistema político liberal-democrático (EMPOLI, 2020). Essa nebulosa ideológica recebe inúmeras nomenclaturas para além da convencional extrema direita herdeira dos movimentos da primeira metade do século XX,1 cujos limites ela busca questionar ou contornar em inúmeros desenvolvimentos teóricos paralelos, muitas vezes conexos, em diversos países, como Estados Unidos, França e Rússia.2 A inserção de quadros ligados a estas vertentes em círculos governamentais, inclusive no Brasil, e a proliferação de uma nova produção intelectual associada a movimentos políticos torna urgente um programa de pesquisa crítico das doutrinas de extrema direita e de suas novas roupagens em diferentes sociedades.
Entendemos a extrema direita como um posicionamento fundamentado a partir de três aspectos: 1) a negação do ideal de igualdade social e a afirmação das diferenças como desigualdades naturais, base para o direito de domínio; 2) a recusa do individualismo das “sociedades de massas” ou “sociedades de mercado” e a defesa de um ideal aristocrático/hierárquico de sociedade; 3) e a busca pela ruptura e mudança da ordem institucional, embora possam partilhar de valores conservadores de ordem moral, reivindicando modelos de sociedade anteriores aos da época moderna. Por sua visão mudancista, através de ação radical e mesmo revolucionária, não fazem parte da escola do conservadorismo político; e, pelo seu conteúdo econômico, não são neoliberais - embora tanto conservadores como neoliberais se vejam não raras vezes em alianças com a extrema direita.
Nesse sentido, em nossa abordagem nos aproximamos da visão de Pierre Milza (2002) e de Glaydson Silva (2019) sobre as transformações da extrema direita. Para ambos, a recusa absoluta das instituições democráticas, o apoio à violência, o nacionalismo xenófobo e a referência direta aos regimes fascistas não mais definem a extrema direita em toda a sua extensão, hoje, nos países onde a democracia liberal está, de longa data, enraizada. Após a Segunda Guerra Mundial, essa extrema direita atravessará uma crise, permeada por iniciativas de renovação que somente irão frutificar no século XXI. Um dos principais centros de recriação e atualização da extrema direita é a França, através da Nouvelle Droite3 que, assim como movimentos congêneres nos Estados Unidos, Rússia e Alemanha, readaptaram ideias de antigos pensadores, especialmente dos séculos XIX e XX, que reagiram criticamente ao legado do Renascimento, da Revolução Protestante, do Iluminismo e da Revolução Francesa, muitos dos quais com o propósito implícito ou explícito de salvaguardar o legado das populações brancas do Ocidente e a liderança geopolítica, cultural e econômica do Norte Global em um contexto de crise e mudança.
São três as principais correntes de pensamento que lhes servem de inspiração: a “revolução conservadora”, o Tradicionalismo e, em menor grau, a Ariosofia (GOODRICK-CLARKE, 2013; SEDGWICK, 2019; TEITELBAUM, 2020).4 Interessa-nos refletir sobre como, a partir desse conjunto de correntes de pensamento, a Nouvelle Droite se orienta por determinadas concepções a respeito do movimento da História que buscam se opor às leituras materialistas e às visões lineares e progressivas. Elas são substituídas por uma abordagem mítica e, por vezes, mística, através da reinterpretação do paganismo da antiguidade greco-latina ou oriental, substrato para uma concepção de história cíclica, em que o tempo presente é associado à decadência e ao cataclisma, a ser regenerado pela reconstrução do mundo segundo valores “perenes”, “tradicionais” ou “arcaicos”.
Entre os revolucionários-conservadores, por exemplo, contesta-se a ordem burguesa, entendida como decadência do mundo Ocidental, apoiando-se a retomada de princípios aristocráticos e hierárquicos presentes no mundo medieval ou o nacionalismo revolucionário inspirado em socialismos de tipo prussiano. Entre os Tradicionalistas, por sua vez, a luta de classes é substituída e contraposta à luta de castas como motor da História, determinando eras ou ciclos históricos, de ascensão e decadência associadas à predominância das castas de sacerdotes, guerreiros, comerciantes ou trabalhadores/escravos (SEDGWICK, 2019). Já entre os Ariosofistas, trata-se da (re)construção de uma raça originária e mítica, cuja natureza, em suas vertentes mais esotéricas, é espiritual ou mesmo extraterrestre (GOODRICK-CLARKE, 2013). Embora sejam diferentes perspectivas de pensamento, há pontos em comum que servem de influência para os novos movimentos de extrema direita que ganharam maior expressão no final do século XX e início do XXI, principalmente a ideia de uma “nova revolução conservadora”, a concepção cíclica de história, o diagnóstico de decadência do tempo presente, a valorização da hierarquia, o ideal de Império e a retomada de identidades étnicas como bases para uma contra Modernidade ou Modernidade alternativa (BAR-ON, 2012).
No presente artigo buscamos avançar um pouco mais nas hipóteses sobre essas correntes ideológicas, ao considerá-las sob o prisma da genealogia das “lutas entre raças” e do racismo na Europa (FOUCAULT, 2000). Não é possível desenvolver todo o seu argumento neste espaço, mas, em síntese, ao analisar as mudanças da consciência histórica europeia, Foucault elabora uma divisão entre dois grandes momentos: 1. O abandono, no fim da Idade Média (sécs. XVI e XVII), de uma consciência histórica de tipo “romano”, centrada nos rituais de soberania e seus mitos de fundação, por uma “contra história” centrada na revolução e na luta de classes, com suas promessas de libertação futuras; 2. O surgimento, dos séculos XVIII ao XX, de uma reação à contra história revolucionária por meio de um racismo de tipo biológico-médico.
Essa mudança, por sua vez, pressupõe, em grande parte, a diferenciação, mais por ruptura que continuidade, entre a perspectiva da “luta entre raças” e o racismo biológico nos séculos XIX e XX. Para Foucault, a perspectiva da “luta entre raças”, baseada no discurso das recordações de lutas ancestrais entre francos, gauleses, celtas, etc., era uma ruptura com a consciência histórica de tipo “romano”, e constituía uma forma de discurso de contraposição, resistência e revolta contra o Estado. Esse discurso terá seus pontos de convergência com a história de “tipo bíblico, quase hebraico” (FOUCAULT, 2000, p. 85) da denúncia da servidão, da revolta e da profecia, presentes nas propostas revolucionárias. Porém, sua linha mestra será a mitologia de restauração da era dos “grandes ancestrais”, do “complô” e da “guerra secreta” permanente, da “vinda do novo reino [...], à espera do imperador dos últimos dias [...], do novo chefe, do novo guia, do novo Führer” (FOUCAULT, 2000, p. 67). Para Foucault, a “luta entre raças” como guerra histórica permanente, não é o mesmo que o racismo biológico dos séculos XIX e XX, da luta pela “pureza da raça”, ou seja, luta em sentido biológico - que pressupõe diferenciação entre espécies, seleção e manutenção dos mais aptos -, em uma sociedade doravante dividida binariamente entre “puros” e “impuros”, “raça superior” e “sub-raça”.
Esses dois discursos entrarão em diversas formas de confluência ou de oposição no início do século XX, nas propostas de “revolucionários conservadores”, Ariosofistas e Tradicionalistas, a exemplo das concepções do Julius Evola sobre a reconstrução de um Império com base em um “racismo espiritual” - baseado em, em grande parte, na história indo-europeia e no sistema de castas hindu - em contraposição ao racismo biológico defendido pelo nazismo (EVOLA, 1963; GOODRICK-CLARCKE, 2013; SEDGWICK, 2021).5 Foi seguindo o princípio da guerra étnica que cada uma destas “escolas” fizeram diferentes usos do passado (SVAMPA, 2016), buscando arqueologicamente evidências dos seus pressupostos, afirmando uma história para além das descobertas arqueológicas materiais, ou da confrontação negacionista de determinados eventos.
A retomada dessa linguagem de disposição política será feita pela Nouvelle Droite, mas em resposta aos desafios de um mundo reconfigurado pela independência política das ex-colônias e a hegemonia do liberalismo na construção de políticas multiculturais e de integração, que borraram antigas fronteiras étnicas e culturais. Sendo assim, embora as teses possam variar internamente, o ponto de convergência destas diferentes correntes diz respeito à preparação para um mundo de crise e catástrofe, consequência dos desequilíbrios econômicos e climáticos, no interior do qual se trava uma guerra, espiritual e/ou étnica, vista como necessária ao estabelecimento de novas fronteiras entre blocos civilizacionais e econômicos. Esta guerra reconduziria a uma configuração geopolítica pretensamente diferente da colonização imperialista do século XIX, como reação política que tem como referência principal não a formação de regimes de exceção baseados no Estado Corporativo, como ocorrera no início do século XX, mas através da agregação de comunidades hierárquicas locais, com mesma base étnica e cultural, reunidos em torno do ideal de Império.
Estas novas vertentes, surgidas a partir dos anos 1960, também vão dar continuidade aos usos do passado (SVAMPA, 2016), enfatizando sobretudo a Antiguidade europeia, onde são buscadas as referências identitárias e civilizacionais para a Europa e para os Estados Unidos. Esse movimento pode ser constatado, em especial, na Nova Direita europeia, principalmente a francesa, a partir da atuação do GRECE - Groupement de Recherches et d’Étude pour La Civilisation Européene (Grupo de Pesquisas e Estudos sobre a Civilização Europeia). O GRECE é o principal representante da Nouvelle Droite, reunindo ideologias nem sempre homogêneas - nacionalistas de direita, monarquistas e neofascistas - no sentido de um novo alinhamento teórico e prático, influenciando uma série de movimentos similares na Europa (SILVA, G., 2019; CAMUS, 2019; PRADO, 2021).
O presente artigo busca ser mais uma contribuição para a análise dessa “linhagem de pensamento”, abordando a proposta teórica e política de um dos principais expoentes da Nouvelle Droite, o Arqueofuturismo do ensaísta, jornalista e teórico político francês Guillaume Faye (1949-2019). Embora Faye não seja o principal expoente do GRECE, através do seu pensamento podemos tornar evidente dois aspectos fundamentais da Nouvelle Droite: 1) a retomada do passado europeu como base para a refundação de uma identidade branca considerada em crise diante de uma sociedade multirracial e das dificuldades de integração política, econômica e cultural da comunidade europeia; 2) a inscrição da história europeia/ocidental em um regime de historicidade cíclico e apocalíptico, no seio do qual se projeta um futuro como retomada de princípios de um passado idealizado - unicidade étnica e territorial - em um contexto hiper tecnológico. A proposta de Faye se soma, nesse sentido, ao conjunto de interpretações que, desde ao menos Julius Evola, passando por Alain de Benoist e Aleksandr Dugin, procuram projetar o futuro europeu em contraponto às formas liberais, fascistas e socialistas convencionais e no interior de um novo realinhamento geopolítico, cultural e étnico entre blocos civilizacionais e de poder em âmbito global.
Na primeira seção do texto, apresentamos um breve histórico da Nouvelle Droite, considerando, em primeiro lugar, seus momentos de repercussão midiática, política e intelectual - quando do seu surgimento, nos anos 1970, em contexto de competição mimética com a chamada Nova Esquerda, e nos anos 2000, com a tendência das direitas a se reorganizar transnacionalmente (EMPOLI, 2020); e, em segundo, as discordâncias entre suas duas principais lideranças: Alain de Benoist e Guillaume Faye. Na segunda seção, situamos o pensamento de Guillaume Faye em sua especificidade, através de algumas de suas principais obras. Refletiremos sobre a “espinha dorsal” do pensamento de Faye, seus principais conceitos - arqueofuturismo, etnomasoquismo e Eurosibéria - e seu papel na defesa da ideia de uma “guerra civil racial” e de um “movimento identitário”. Por fim, abordamos alguns dos desenvolvimentos do Arqueofuturismo na discussão a respeito de suas ligações com os princípios ideológicos e teóricos do fascismo, da “luta entre raças” e do racismo.
As origens da Nouvelle Droite na França
As origens da Nouvelle Droite na França remetem às duas influências principais: as agremiações da juventude mobilizada pela guerra da Algéria, cuja defesa dos valores nacionalistas, racistas e militaristas remontam a vínculos com as ideologias fascistas; e a recuperação do pensamento político do pessimismo filosófico, romântico, reacionário e radical dos séculos XVIII e XIX, principalmente, da chamada “revolução conservadora”. Porém, nos anos 1960, a extrema direita francesa está em crise, consequência do fim da segunda guerra mundial e da luta pela independência da Algéria. Desde então, grupos de militantes e intelectuais pretendem conservar ou atualizar as diversas doutrinas anti-igualitárias da extrema direita, a exemplo dos monarquistas, dos integralistas católicos, dos nacional-revolucionários e dos neofascistas. Apesar das diferenças, estas vertentes compartilhavam um núcleo de valores que giravam em torno do nacionalismo e do anticomunismo; do medo de uma “invasão” de imigrantes árabes-africanos; do racismo biológico, que fazia equivaler a defesa do Ocidente à defesa da raça branca; e uma defesa da comunidade europeia frente aos “dois imperialismos”, o dos Estados Unidos e o da União Soviética. Nas décadas seguintes, estes militantes colaboram e se dividem em diferentes caminhos, seja na política, seja em centros de estudo e revistas.
É nesse contexto que surge uma proposta de ação intelectual que se propõe como uma Nouvelle Droite, que se diferencia tanto dos neoliberais, através de uma recusa do capitalismo, como da direita católica e dos neofascistas ou nacionalistas da velha guarda. A alcunha de Nouvelle Droite, na Europa continental, portanto, não significará a acomodação entre neoconservadores - economicamente liberais, culturalmente reacionários e defensores de uma religiosidade cristã - mas passará a se identificar com uma nova síntese: a economia liberal começa a ser denunciada tanto quanto a economia marxista, e o “americanismo”, forma moderna dominante de igualitarismo e do cosmopolitismo “judaico-cristão”, torna-se o principal inimigo (TAGUIEFF, 1993).
A Nouvelle Droite busca reorientar a extrema direita para um horizonte político tanto revolucionário, como reacionário; antimoderno e antiocidental; contra a ideia de individualismo, de igualitarismo, de livre mercado, de democracia, de Estado-Nação e de comunismo. A partir de um trabalho contínuo de atualização e reinterpretação do legado da “revolução conservadora”, buscando não a resumir ao fascismo e ao nazismo, a Nova Direita amplia sua abrangência e repertório, mesclando-se, inclusive, com pautas da esquerda, no sentido de um neopaganismo federalista antiliberal, pretensamente anticolonial.
Na década de 1960, o principal líder político e teórico de movimentos de extrema direita era Dominique Venner,6 um dos fundadores do GRECE, para o qual se faria necessária uma estratégia “contra leninista” para os nacionalistas franceses (VENNER, 1964). Para ele, não haveria condições, àquele momento, de nenhuma revolução de direita, nem a partir de um simples golpe de estado, nem mesmo pela via legal, através da concorrência entre partidos: seria necessária uma estratégia de longo prazo baseada na construção de uma organização política e de uma doutrina. Da proposta “contra leninista” de Venner (1964), surge o “gramscismo de direita”, de Alain de Benoist (1982), que pode ser definido como uma tentativa de conquista do poder pela cultura.
Essa “Nova Direita Cultural” tem o objetivo inicial era retirar a extrema direita do “gueto”, o que teve início com uma crítica virulenta das simbologias e repertórios ligados ao fascismo histórico (VENNER, 1964). A ideia era penetrar os meios culturais, através da criação de revistas e associações voltadas a diferentes categorias socioprofissionais. No lugar da ação política pragmática ou partidária, enfatizava-se a mudança no plano cultural e ideológico como sustentação de um novo horizonte político no longo prazo. A esta estratégia a Nouvelle Droite também nomeia como metapolítica. Há diversas perspectivas sobre este conceito, mas, para os fins deste artigo, consideramos metapolítica como uma forma de atuação política não imediatista, com base no domínio cultural e na mudança de mentalidades com referência a princípios e valores tradicionais, religiosos, perenes ou ancestrais nem sempre explícitos no discurso (FRANÇOIS, 2005; BUELA, 2013). É nesse sentido que o GRECE se dedicará a uma “guerra cultural” contra a esquerda, especialmente a marxista:
de início, penetrando nos meios comunicacionais e universitários para implantar uma “contracultura” de direita. Organizando, em seguida, uma contraofensiva intelectual combinada; a partir do “centro” formado pelo GRECE e suas redes. Por fim, estabelecendo várias pontes entre os lugares culturais “conquistados” e os partidos políticos de direita, a fim de reformá-los intelectualmente a partir de dentro. Esta é a grande novidade do GRECE: levar a sério, à direita, a questão “cultural”. As direitas políticas haviam abandonado o campo cultural-intelectual à esquerda marxista ou marxisante, enquanto os movimentos nacionalistas radicais (“extrema direita”) estavam engajados em um ativismo com forte conotação anti-intelectual [...] ligado a uma revolta de tipo populista (TAGUIEFF, 1993, p. 8, tradução nossa).
Assim, apesar de ser incorreto afirmar que a Nouvelle Droite surge em reação às revoltas estudantis de maio de 1968, pois sua história remonta a fatores anteriores, ela se organizará também em concorrência mimética à “Nova Esquerda”, que, a partir da renovação do marxismo crítico ao stalinismo e do favorecimento a uma cultura política democrática, tornou-se hegemônico nos meios universitários e políticos. A proposta de um “contra leninismo” e de um “gramscismo de direita” revela uma estratégia de reflexão que não ignora o conteúdo dos principais teóricos marxistas e nem os temas da esquerda, como a diferença cultural, o antirracismo, o colonialismo, a ecologia e o anticapitalismo, mas procura incorporá-los em uma síntese afinada a um repertório político diferenciado e oposto.
É nesse contexto que o GRECE é criado. Porém, de início, o grupo transita de maneira explícita entre as perspectivas da extrema direita. A sigla do grupo remete à Antiguidade e à ideia de patrimônio intelectual para um “nacionalismo europeu”, fundado na primazia da raça branca. Haveria uma cultura indo-europeia, biologicamente determinada, que transcende os Estados-nações:
a referência aos indo-europeus permite conferir uma origem comum aos povos europeus e justifica sua união imperial. Tira-se dos estudos de Dumézil sobre a existência de um substrato linguístico indo-europeu a ideia da existência de uma raça indo-europeia, logo, de uma “herança” e de uma mentalidade “indo-europeia”, ligadas às noções de língua, povo e pátria originais, o que conduz, consequentemente, às ideias de superioridade racial original (SILVA, G., 2019, p. 179).
Nos anos 1970, a proposta do GRECE, sofre uma severa contestação no debate intelectual e midiático, exposta como um grupo com objetivo de reciclar ideias nazifascistas (FRANÇOIS, 2017). A dupla condenação, da esquerda e da direita, colaborou para a marginalização do GRECE nos meios acadêmicos, na imprensa e em partidos, mesmo aqueles círculos originalmente ligados ao GRECE, ocasionando uma reorientação do grupo. Desde então o grupo busca convencer a opinião pública de sua distância em relação a qualquer “clube memorialístico” do nazifascismo. ou proposta de autoritarismo burocrático baseado na ideologia do Estado Corporativo. Não obstante, o grupo será recorrentemente visto com desconfiança, considerando o histórico de vinculações a atores que tiveram participação direta ou indireta com o nazismo (FRANÇOIS, 2017).
Porém, a controvérsia pública conduziu o GRECE, no espaço de quatro décadas, a uma renovação de sua matriz ideológica, especialmente através de duas lideranças concorrentes: Guillaume Faye e Alain de Benoist. Faye será reconhecido, nos anos 1980, pela crítica à sociedade do consumo e do espetáculo, e por sua crítica ao americanismo e ao Ocidente “em declínio”, levantando a bandeira de um “nacionalismo europeu” e da “Europa contra o Ocidente” (FAYE, 1981; 1984a; 1984b; 1985). De Benoist, por sua vez, buscou maior interlocução com círculos políticos e acadêmicos à esquerda, ou mesmo marxistas, no âmbito das reflexões sobre democracia participativa, ecologia e antiglobalização (CAMUS, 2019).
À primeira vista, De Benoist e Faye aparentem ser teóricos muito afinados, tendo em vista o compartilhamento de ideais comuns: uma sociedade orgânica, uma cultura religiosa/política neopagã, a crítica da imigração e da sociedade de consumo. Mas, apesar das semelhanças, a história dos diferentes alinhamentos e confrontações, demonstra que se trata de dois projetos concorrentes pela hegemonia da Nouvelle Droite. Por dois momentos Faye terá divergências cruciais com Alain de Benoist. O primeiro, após a publicação de Europe-Tiers Monde (BENOIST, 1986), no qual Faye enxerga uma capitulação ao multiculturalismo liberal-republicano:
o comunitarismo contemporâneo e o discurso multiculturalista da Nouvelle Droite podem ser interpretados como uma espécie de fatalismo: pois vê o caleidoscópio étnico da Europa, a sociedade multirracial e a imigração como eventos inelutáveis a que devemos aceitar e submeter-nos, administrando-os e suportando-os da melhor maneira possível. Trata-se de uma postura desmobilizadora, incompatível com uma ideologia que se considera revolucionária - embora no final se mostre politicamente correta. […] a Nouvelle Droite vislumbra um modelo de harmonia social dentro de uma sociedade multicultural pacificada, o que é pura utopia. Toda sociedade multirracial - e multicultural - é multirracista e “infra xenófoba” [...] O multietnismo na França será explosivo e não terá nada a ver com o tribalismo plácido que meus amigos Alain de Benoist e Charles Champetier descreveram (FAYE, 2010, p. 21, tradução nossa).
O trecho acima já antecipa o tom apocalíptico e radical dos textos de Faye, mais próximo de posições xenófobas típicas da direita conservadora nacionalista do Front Nacional, em relação a qual a linha hegemônica da Nouvelle Droite busca se diferenciar. Em razão das controvérsias, Faye se retira do GRECE em 1986 e passa a se envolver com o jornalismo e a “indústria cultural”.7
Enquanto isso, de Benoist continuará um caminho de aproximação com alguns dos temas das esquerdas, que resultará, mais de uma década mais tarde, n’O Manifesto: A “Nova Direita” dos anos 2000 (BENOIST; CHAMPETIER, 1999), que pretende uma nova lógica de convivência social em oposição ao capitalismo, ao colonialismo e ao imperialismo do mundo ocidental-globalizado de hegemonia norte-americana. O Manifesto sintetiza de maneira programática um aparente salto qualitativo na promessa de uma “terceira via” entre o comunismo e o capitalismo liberal, diferente do fascismo, concatenado não a um Estado corporativo, mas a um fracionamento dos atuais Estados-Nação em federações de “governos locais”, agregados no interior de Impérios. Essas sociedades seriam pautadas ao menos por três princípios: 1) a regeneração do que consideram antigos laços complementares entre o povo e a aristocracia; 2) o direito à diferença, através da separação entre áreas de homogeneidade étnico-cultural, em recusa a imposição de valores republicanos, permitindo a cada etnia e cultura o seu direito costumeiro em determinado território - o que, na perspectiva do movimento, é uma proposta antirracista; e 3) uma ecologia integral, através da limitação do crescimento do capital (SHEEHAN, 1981; VASCONCELOS, 2022).
As concepções de Faye, estarão, em realidade, mais próximas do movimento identitário branco Terre et Peuple,8 círculo muito marcado por suas aproximações com o hitlerismo (SILVA, G., 2019), liderado por Pierre Vial, também integrante do GRECE, e ligado ao Front National.9 A principal ênfase do movimento Terre et Peuple é o uso da história Antiga, em especial dos povos indo-europeu, grego, romano, gaulês e galo-romano, criando uma pretensa homogeneidade histórica e cultural, um “retorno à pureza original em uma sociedade racialmente mesclada” (SILVA, G., 2019, p. 183). A atualidade acentuaria os conflitos étnicos, “que sempre existiram e existirão sempre” [...] O único remédio é tomar consciência, lucidamente, desta realidade e dela tirar a consequência: a cada povo uma terra (VIAL, 1999, p. 1). O movimento retoma, nesse sentido, o discurso da “luta entre raças” (FOUCAULT, 2000), convertendo-o em princípio para a questão dos imigrantes na Europa: “[...] os imigrantes não europeus na Europa são desenraizados e sofrem as consequências disso por parte de um sistema perverso liberal-capitalista. A solução é o retorno às suas terras e seus povos de origem, onde encontrarão o pertencimento, as raízes, as respostas para seus problemas’’ (VIAL, 2004, p. 1). Esse é o pilar de sustentação da legitimidade das propostas xenófobas de diferentes grupos (SILVA, G., 2019), razão pela qual o grupo Terre et Peuple atua como forma de preparação para a iminência de um confronto maior e decisivo, que se anuncia através de uma guerra cultural, étnica e total (VIAL, 1995).
A partir de suas conexões com o Terre et Peuple, em 1997, Faye retorna ao GRECE e retoma de forma mais sistemática sua proposta intelectual e política, atuando no sentido de uma reorientação da Nouvelle Droite. O seu diagnóstico é de uma grande perda de influência da Nouvelle Droite desde o auge do GRECE nos anos 1970, devido a uma série de fatores, entre os quais: a concorrência com o Front Nacional, principal partido de extrema direita; a falta uma tática mais radical de intervenção no debate político-midiático, combinada com o que considera a persistência de uma “atração sentimental” pelo passado e por referências teóricas datadas; um “gramscismo” limitado a temas culturais, e não a problemas concretos; a falta de uma doutrina econômica específica; a desconexão com forças políticas concretas; um virulento anti catolicismo; e, por fim, uma virada “terceiro-mundista” e “pró Islâmica”, conduzindo a desentendimentos e resistências.
Esse conjunto de apontamentos revela a concorrência interna pela liderança da Nouvelle Droite entre, de um lado, Alain de Benoist e Charles Champetier e, de outro, Pierre Vial10 e Guillaume Faye, que também produzirá um Manifesto: Porquoi nous combattons: Manifeste de la Résistance Européenne (2001) que reitera o seu pensamento sobre a “decadência do Ocidente” sob a influência da sociedade americana e incute a necessidade de um engajamento político em torno de um redesenho da unidade entre Europa e Rússia.
A disputa entre as lideranças do GRECE se revelará bastante acirrada ao longo do tempo, a ponto de, quando do lançamento de La Colonisation de l’Europe(FAYE, 2000), De Benoist criticar o racismo de seu conteúdo, o que conduz à exclusão de Faye, uma vez mais, do GRECE, no ano de 2000, consolidando a liderança de De Benoist na Nouvelle Droite. Por outro lado, em 2007, Faye também é expulso do movimento Terre et Peuple, após a publicação do livro La Nouvelle Question Juive (FAYE, 2007), visto como demasiado sionista por nacional-revolucionários e católicos tradicionais. No livro, Faye se distancia do movimento em razão de suas ideias contrárias ao antissemitismo: para ele, os judeus e o Estado de Israel são aliados contra o inimigo maior, o mundo islâmico.
Assim, colecionando opositores até mesmo na extrema direita, apesar dos pontos de aproximação, o pensamento de Faye é visto, por seus opositores, como explicitamente racista, com ênfase em uma visão étnica baseada na ideia de “guerra civil racial” vinculada a linhagens de sangue e políticas eugenistas (LEBOURG, 2019). Faye parece ter atravessado as fronteiras entre o princípio da “luta entre raças” e o racismo de tipo eugenista. Para o cientista político Stéphane François, por exemplo, o Arqueofuturismo de Faye, projeto de reconciliação da tecnociência com “valores arcaicos”, seria uma combinação entre “filosofia pós-moderna, alguns elementos da contracultura Ocidental, e racismo” (FRANÇOIS, 2019, p. 91, tradução nossa).
Nas seções seguintes abordaremos algumas das principais obras de Faye no sentido de compreender melhor sua trajetória, suas concepções e conceitos principais.
Arqueofuturismo: paganismo tecnocientífico em um mundo “pós-catástrofe”
Guillaume Faye nunca construiu uma carreira acadêmica ligada ao mundo universitário especializado e apartada do mundo da ação cultural e política radical (FAYE, 2001). Desde sua primeira formação intelectual, no ensino jesuítico, Faye se orienta em confronto com o que nomeia de conformismo da sociedade burguesa e também com as utopias da esquerda marxista. Ele desenvolve um itinerário formativo eclético, conjugando leituras derivadas do “antigo humanismo greco-latino” e a filosofia nietzschiana. A partir dessa base, que se expressará posteriormente no seu conceito de paganismo, Faye tentará conciliar leituras que derivam de correntes filosóficas e sociológicas muitas vezes opostas. Nesse sentido, seu horizonte intelectual corresponde exatamente ao da Nouvelle Droite, pela síntese entre fundamentos essenciais do pensamento sociológico, filosófico e político de direita - principalmente da matriz dos idealistas românticos, aristocráticos radicais, “revolucionários conservadores” e Tradicionalistas - e temas, conceitos e táticas do pensamento de esquerda marxista e contemporânea.
Como indicado acima, o princípio que é reivindicado para coligar esse conjunto teórico plural é a ideia de paganismo que remonta ao esforço do romantismo alemão em busca de raízes culturais da nação e do Volk, mas também da reivindicação de cultos politeístas próximos a uma visão transcendente da natureza, praticados pelas populações não cristãs europeias desde a Antiguidade grega, helenística e romana. Mais do que uma recuperação dos diferentes “folclores” nacionais, trata-se de uma concepção filosófica e política que deriva, no pensamento de direita, para a reivindicação dos valores culturais aristocráticos de honra, virilidade, heroísmo, hierarquia e diferencialismo étnico, contra o igualitarismo e o individualismo das religiões monoteístas (especialmente o cristianismo) e as ideologias políticas hegemônicas na sociedade burguesa e de massas desde a Revolução Francesa (liberalismo e socialismo). O paganismo é assumido por uma série de autores com diferentes propostas, especialmente Julius Evola e, atualmente Alain de Benoist e o próprio Guillaume Faye que, apesar das diferenças, propõem uma ideia federativa de união político-cultural em torno de um “Império Europeu”.
No caso de Faye, o paganismo assume uma versão mais vitalista, exaltando a intuição e a ação:
[...] o Paganismo se organiza em torno de três eixos: enraizamento na linhagem e no solo, imersão cósmica na natureza e seus ciclos eternos, e uma “busca”, que pode ser uma abertura para o ‘invisível’ [...]. Nesse sentido, o paganismo é a religião mais antiga e natural do mundo. Inervou profundamente a alma europeia. Ao contrário dos monoteísmos, podemos até dizer que é a mais autêntica das religiões, pois “conecta” os homens de uma mesma comunidade no mundo real e concreto, em vez de ser, como o cristianismo ou o islamismo, uma crença codificada e um conjunto de decretos imperativos e universais que se dirigem apenas ao indivíduo que deseja “comprar” sua “salvação” de um Deus onipotente. Isso significa que as principais características do Paganismo são a união do sagrado e do profano, uma concepção cíclica ou esférica do tempo (ao contrário das escatologias da salvação ou do progresso, em que o tempo é linear e caminha para um fim salvador da história), a recusa em considerar a natureza como propriedade do homem (filho de Deus) que ele poderia explorar e destruir à vontade; a alternância de sensualidade e ascetismo; a apologia constante da força vital [...]; a ideia de que o mundo é incriado e se resume ao rio do devir, sem começo nem fim; o sentimento trágico da vida e a rejeição de todo niilismo; o culto dos ancestrais, da linhagem, da lealdade às batalhas, aos camaradas, às tradições (sem cair no tradicionalismo museográfico); a recusa de qualquer verdade universal revelada e, portanto, de qualquer fanatismo, qualquer fatalismo, qualquer dogmatismo e qualquer proselitismo forçado (FAYE, 2001, p. 2, tradução nossa).
O paganismo, portanto, é um princípio articulador de uma dialética histórica específica, cíclica, de uma relação “encantada” com a natureza - ou seja, o contrário da relação meramente instrumental da natureza - e de uma ética da ação e do respeito a uma ordem imanente inscrita em tradições, no senso de comunidade de destino e no próprio “indivíduo superior”, visto como potência divina e não como instrumento interior de um Deus onipotente. Esta concepção contrasta abertamente com a ética cristã da salvação, da compaixão e da igualdade, bem como com a ideia de que a natureza humana só pode ser modificada por Deus. Uma visão que se coaduna com a estruturação de uma sociedade hierarquizada e na qual a dominação do meio ambiente é refreada, mas a melhoria biogenética do ser humano não encontra sérios limites. Nesse sentido a ênfase de Faye na tecnociência como forma de melhoria da natureza biológica e social: o homem, inscrito no fluxo da história como constante transformação, é criador de si mesmo e manipulador da própria vida.
Faye retoma, assim, o Futurismo como projeto de representação antecipada de um futuro construído com base na tecnociência, mas dissociada da ideia de um progresso linear. Faye entende que a crença no progresso, inerente à Modernidade, resulta na globalização destrutiva, na poluição desenfreada, na proliferação de armas nucleares, no enfraquecimento dos controles políticos sobre máfias e no (res)surgimento de epidemias.
Porém, a tecnologia voltada ao aperfeiçoamento biogenético, bem como o aumento da produtividade e das formas de comunicação e integração tecnológicas são vistas como necessárias para a autossuficiência e autoaperfeiçoamento humano. A tecnociência é associada ao arcaísmo, no interior de uma concepção cíclica e pagã de história: não se trata de um retorno ao passado, como “demonização” da tecnociência, mas a “emergência de configurações sociais arcaicas em um novo contexto”, utilizando-se da tecnociência no sentido da criação de uma nova sociedade.
Ou seja, Faye propõe que sua orientação sobre o arcaísmo não seria o mesmo que estar preso a determinado passado histórico, percepção típica da própria Modernidade. O arcaísmo seria, de forma mais completa, o retorno à noção grega de arché, como “impulso fundador”, presente de forma imanente à realidade e associada à noção de criação de uma ordem no interior do movimento da história como “o eterno retorno do idêntico”, baseado em valores arcaicos “puramente biológicos e humanos”:
[…] a separação dos papéis de gênero; a transmissão de tradições étnicas e folclóricas, espiritualidade e organização sacerdotal; hierarquias sociais visíveis e estruturantes; o culto dos ancestrais; ritos e provas de iniciação; o restabelecimento de comunidades orgânicas (da família ao povo); a desindividualização do casamento (as uniões devem ser uma preocupação de toda a comunidade e não apenas do casal); o fim da confusão entre erotismo e conjugalidade; o prestígio da casta guerreira; desigualdade entre status sociais - não desigualdade implícita, injusta e frustrante e que encontramos hoje em utopias igualitárias, mas desigualdade explícita e ideologicamente legitimada; deveres condizentes com direitos, daí uma justiça rigorosa que dê às pessoas um senso de responsabilidade; uma definição de povos [...] como comunidades diacrônicas de destino ao invés de massas sincrônicas de átomos individuais […], o que leva ao isolamento do homem e à barbárie social (FAYE, 2010, p.40, tradução nossa).
É com base, portanto, no paganismo como princípio que Faye propõe novos caminhos ideológicos à Nouvelle Droite. O paganismo é traduzido, desta feita, em “vitalismo construtivista”, princípio ativo do anti igualitarismo, “uma estrutura geral que une uma abordagem orgânica e ousada da vida com as visões de mundo complementares da vontade de poder Nietzschiana, ordem Romana e sabedoria Helênica realista. Leitmotiv: ‘um pensamento voluntário concreto cria a ordem’” (FAYE, 2010, p. 24). E sobre a ideia de ordem, acrescenta: “De acordo com a visão de Platão, [...] ordem não é injustiça. Toda concepção de ordem é revolucionária e toda revolução é um retorno à ordem autêntica” (FAYE, 2010, p. 43, grifos no original).
Com o “vitalismo construtivista”, Faye propõe ultrapassar, em uma nova síntese, o pensamento “revolucionário conservador” e o futurismo, criando o Arqueofuturismo. A Modernidade, nesse sentido, torna-se obsoleta, diante do plano de construção do Arqueofuturismo, uma sociedade do futuro que combina progresso técnico-científico com o retorno ao arcaísmo. Uma abordagem que aproxima o projeto de uma construção civilizatória baseada em uma ética autônoma em relação a princípios humanitários e próximo a questões técnico-científicas, bioantropológicas e étnicas. Por essa razão, o pensamento de Faye é também compreendido como um “transumanismo11 conservador”, por valorizar ideais contrários ao florescimento da espécie humana como totalidade (GAYOZZO, 2018; 2019).
Um mundo “neo-arcaico” surgiria, então, somente através de vontades políticas articuladas que enfrentem desafios cruciais para moldar o mundo “pós-catástrofe”: a Modernidade teria se aproximado de um momento crucial, de “convergência de catástrofes” climáticas e ambientais; demográficas e étnicas; políticas e econômicas. Uma das principais “catástrofes” elencadas por Faye está ligada ao conflito entre povos do Sul contra os do Norte e o fortalecimento do fundamentalismo religioso, expressando-se na forma de uma “colonização demográfica” da Europa, liderada por um revanchismo anticolonial de povos árabes, africanos e asiáticos, mas sobretudo pela intenção de “reconquista” islâmica. A permissividade à imigração rumo às sociedades europeias, junto à influência cultural estadunidense, acentuaria a crise da sociedade europeia, que viria a perder paulatinamente sua identidade étnica e cultural. A Europa estaria sofrendo um processo de mudança no “substrato étnico” de sua civilização (maioria racial branca e sua herança cultural)12: uma tendência ao “suicídio étnico” através de uma “submersão” demográfica que conduziria a uma “guerra civil étnica” interna em várias frentes e posterior subjugação política. A esta questão Faye associa o conceito de “etnomasoquismo”:
etnomasoquismo é similar a sentir vergonha de si mesmo e ao auto ódio. É uma psicopatologia coletiva, ativada por um longo esforço propagandístico com a finalidade de gerar um senso fundamental de culpa sentido por europeus [ou brancos, em geral] em relação a outros povos, dos quais eles são considerados os “opressores”. É necessário, portanto, se arrepender e “pagar a dívida”. Esse esforço de arrependimento, uma verdadeira fraude histórica [...] também é a base das medidas anti natalidade que subrepticiamente objetivam limitar a reprodução de populações europeias. Implicitamente então, ele pode ser ligado a uma forma de “auto racismo” [...] Curiosamente, ele nega aos europeus [e brancos, em geral] a ideia de identidade étnica, mas a garante aos outros. Os europeus possuem o dever de se diluírem, mas outros povos, africanos por exemplo, não (FAYE, 2011, p. 01, tradução nossa).
Em La colonisation de l’Europe (2000), Faye sistematiza o seu pensamento a respeito da questão partindo de um revisionismo: a colonização europeia teria sido benéfica para o “terceiro-mundo”, como expansão de padrões de civilização; a colonização da Europa pelos povos do Sul, ao contrário, seria um processo de descivilização. A pobreza das ex-colônias não seria consequência do colonialismo ou do neocolonialismo, mas da falta de capacidade destes países em resolver suas próprias questões. Essa premissa conduz ao diagnóstico crítico da influência do cristianismo e do igualitarismo liberal como oportunidade para uma estratégia revanchista através da imigração. O etnomasoquismo seria, então, o sintoma do fracasso do projeto de sociedade multirracial promovida no período posterior à descolonização dos países africanos, marcado pela tolerância à imigração, fruto da hegemonia do discurso “revanchista anticolonial” e do “sentimento de culpa” do europeu.
Assim, a imigração “desenfreada” seria oportunidade para uma conquista territorial sobre a Europa, alicerçada em uma economia criminal insurrecional e pautada pela recusa da cultura europeia e pela agressividade contra as parcelas brancas da população e o Estado francês. Um contexto de guerra civil e revolta étnica associada ainda a dois fatores disruptivos: um “racismo de vingança” ou “racismo antifrancês” em uma sociedade “neotribal”; e o projeto cultural e civilizacional de dominação islâmica.
Sobre a primeira questão, Faye combina dois pontos de vista: o primeiro, mais próximo ao pensamento racial que entende as diferenças raciais como uma realidade intransponível. Ao mesmo tempo, o racismo seria produzido não por características biológicas, mas por fatores sociais: “O ‘Racismo’ - ou melhor, a alterofobia - nunca se deve ao reconhecimento de características biológicas coletivas, inatas, mas na verdade é o resultado da negação desta e da mistura forçada de diferentes populações dentro de um único território” (FAYE, 2000, p. 296) Ou seja, para o autor, a própria estratégia antirracista adotada cria condições para o acirramento do racismo, além de produzir formas novas e/ou múltiplas de racismo:
[...] sempre que fica claro que um ato supostamente racista foi cometido contra os europeus, o termo “racismo reverso” é aplicado. Por que ‘reverso’? É como se os europeus fossem inerentemente racistas e os não-europeus apenas cedessem ao racismo acidentalmente. Mais uma vez, o antirracismo se manifesta claramente como a forma mais sutil e maligna de racismo (FAYE, 2000, p. 300, tradução nossa).
No geral, Faye reitera uma concepção racial orgulhosa, buscando, sem ser muito convincente, defender-se da alcunha de “racista” através de uma valorização do etnocentrismo como princípio superior: contra o “universalismo” e o “etnopluralismo”, a ênfase em um “novo isolacionismo cultural” (FAYE, 2000, p.388) como forma de preservar o valor de cada civilização, sobretudo a europeia, vista por ele como superior (FAYE, 2000, p. 383).
Em relação ao projeto de dominação islâmica, Faye (2000) é explícito em sua condenação teológica e política do Islamismo, interpretado como um tipo de imperialismo: “A própria essência do Islã está em sua expansão agressiva e sem limites, juntamente com uma ética de violência, intolerância e exclusão” (FAYE, 2016, p. 151, tradução nossa). O autor contesta a ideia de um pacifismo e de um republicanismo islâmico: ela representaria, antes, uma versão do Islã apropriada a uma correlação de forças desfavorável. Tão logo a situação se modifique, com a conquista de maiores poderes, retoma-se a violência e a intolerância, consideradas como virtude, tendo em vista o combate e a conquista dos infiéis. Assim, a imigração forneceria a oportunidade para a politização do Islã através de um eleitorado orientado para a formação de um partido político muçulmano e, posteriormente, a formação de uma República Islâmica Teocrática.
Além do que, Faye entende como perigo interno à França as propostas de incorporação de países africanos do Magrebe (Marrocos, Algéria e Tunísia) à União Europeia, pois, segundo ele, levaria a uma “kosovarização” da Europa, projeto político favorável apenas aos interesses tanto do mundo árabe e islâmico como dos Estados Unidos (FAYE, 2016). A questão imigratória, nesse sentido, exigiria a utilização de meios repressivos, como a deportação em massa e a restrição às permissões de residência. Mas estas seriam medidas paliativas: “Nenhuma solução pode ser encontrada a menos que uma guerra civil estoure” (FAYE, 2016, p. 414, tradução nossa). Uma grande crise, ao mesmo tempo econômica, social e étnica, das sociedades europeias não seria apenas um risco, mas uma necessidade. Faye propõe, através de um “pessimismo ativo”, a preparação dos espíritos para um cenário de grande catástrofe, a partir do qual um novo mundo seria possível.
Assim, o combate à imigração, tema caro às direitas nacionalistas conservadoras, é atualizado como sinal crítico de uma crise anunciadora de um novo modelo civilizacional. Esta atualização significa também uma superação do nacionalismo convencional, associado ao Estado-Nação como forma política de integração social e cultural e de supervisão da economia. Sendo assim, a crise do Estado-nação em uma economia globalizada deveria ser solucionada pela superação do estatismo e do nacionalismo em direção a um “nacionalismo europeu”, associado a uma nova divisão étnica e econômica do mundo.
Arqueofuturismo: Império, ordem neomedieval e técnico-científica
Na tentativa de construir linhas de ação concretas, Faye se dirige aos meios culturais e políticos de direita, a exemplo do Front National. Mas, para ele, o nacionalismo nostálgico ou o micronacionalismo étnico da extrema direita deveria ser ultrapassado por um caminho de construção de um Império federal europeu; não mais o sistema de Estados-Nações, conforme existia no pré-guerra, nem o sistema liberal e impotente da União Europeia, mas uma federação, os “Estados Unidos da Europa” ou Eurosibéria, um “espaço econômico continental protegido e autocentrado” unindo Europa Ocidental e Rússia, e subdivido não em seus atuais Estados-Nação, mas em “setenta Länder, cada um protegendo sua própria autonomia e representando democraticamente a população local, e um governo central desburocratizado” (FAYE, 2010, p. 104-107, tradução nossa).
Percebe-se, na citação, uma determinada concepção de política, de sociedade, de democracia e de desburocratização que merece maior aprofundamento, posto que ela assume significados específicos. Em relação à política, por exemplo, para a construção do futuro arcaico, conforme vaticina Faye, torna-se central associar a política como “identificação do inimigo” em um “Estado de exceção” - ideias advindas do filósofo e jurista alemão Carl Schmmit (BIGNOTTO, 2008) -, mas também a identificação de aliados que fazem parte de uma “comunidade de destino”, bem como a iniciativa de transformação desta comunidade através da “ambição, espírito de independência, criatividade e vontade de poder” (FAYE, 2010, p. 41, tradução nossa).
Por sua vez, esta nova sociedade de um mundo pós-catástrofe deveria se basear no princípio fundamental de que o ser humano é um animal político, étnico e territorial, sendo necessário: um pacto comunitário e formas orgânicas de solidariedade entre vizinhos; o poder das unidades familiares investidas de autoridade e responsabilidades sobre seu entorno; o primado da punição sobre a prevenção; o poder da hierarquia social ritualizada; e, por fim, a reabilitação do “princípio aristocrático” da coragem e do serviço. Em suma: “aqueles que desempenharão funções ‘subordinadas’ nessas sociedades não igualitárias não se sentirão frustrados: sua dignidade não será questionada, pois aceitarão sua própria condição como algo útil dentro da comunidade orgânica” (FAYE, 2010, p. 47, tradução nossa).
Sobre essa estrutura social, apoia-se uma noção de democracia com sentido iliberal, composta por três elementos arcaicos, ligados também à ideia de desburocratização e descentralização: 1. Relação direta entre as aspirações e vontades populares, inspirada no modelo de autoridade da primeira república romana em que nem leis nem juízes estariam acima da “vontade do povo”; 2. Redução das distâncias entre o povo e os soberanos, devendo as decisões ser tomadas no nível do demos, entendido como vizinhança e distritos rurais, projetando uma Europa descentralizada, conforme o modelo do Império romano ou da Alemanha medieval; 3. Possibilidade de decisões por voto direto por meio de referendos realizados através da internet.
Em 2001, Faye organizou suas ideias na forma de um Manifesto. Pourquoi nous combattons: Manifeste de La Résistance Européenne resume de forma mais objetiva a sua proposta, seguido de um “Dicionário Metapolítico” com os principais conceitos da Nouvelle Droite. No estilo, o texto tenta se inspirar no célebre Manifesto Comunista escrito por Karl Marx, mas, em lugar da história como luta de classes, é apresentada a história como luta cultural (ou melhor, guerra cultural) entre povos e civilizações: “A história do mundo é uma história da luta entre povos e civilizações pela sobrevivência e dominação. É um campo de batalha de vontades de poder” (FAYE, 2001, p. 24, tradução nossa).
No contexto atual, a Europa estaria em desvantagem nesta luta, sitiada entre as pressões da Americanização, da Islamização e da “Terceiro-Mundialização”: “Existe, como tal, uma aliança objetiva entre os Trotskistas Verdes, os interesses Americanos e os Estados Muçulmanos” (FAYE, 2001, p. 62, tradução nossa). Uma Europa desarmada, energeticamente impotente (pela recusa à energia nuclear), colonizada por fluxos imigratórios e organizada em uma “pseudodemocracia” ou “oligarquia neo totalitária”. A proposta, mais uma vez, é a construção de uma civilização calcada na “autarquia dos grandes espaços” do “modelo imperial”, que, para Faye, só é aplicável entre “populações biológica e culturalmente aparentadas”, mas em uma proposta desprovida “de qualquer imperialismo, qualquer desejo de conquistar e dominar os habitats de outros povos e qualquer tentação de assimilar estes últimos” (FAYE, 2016, p. 292-293, tradução nossa).
A organização deste projeto, por sua vez, adquire o significado de um movimento de resistência, palavra-chave de organizações políticas antiocidentais na Alemanha do início do século XX, como o próprio nazismo, a direita prussiana e o nacional-bolchevismo, retomada, no século XXI, pela Nouvelle Droite na França e na Rússia. Uma resistência pela via do pensamento e da ação radicais “antissistema”; uma metapolítica direcionada a uma via mais engajada politicamente, baseada em uma concepção identitária étnica:
[…] no início dos anos 1980, a Nova Direita apoiou o conceito de “gramscismo de direita”. Nós começamos a abordar a questão invertendo a formulação e dizendo: qualquer civilização, incluindo suas tradições, seu nível tecnológico e seus aspectos políticos, é produto de um fundamento cultural, ou seja, fruto de certas mentalidades. Em outras palavras, a cultura é a fonte da civilização, e não o contrário. No entanto, hoje, essa posição anti materialista me parece altamente insuficiente. Por quê? Porque uma pergunta ficou sem resposta: quem ou o que determina a cultura? A resposta é: a composição biológica dos povos, suas qualidades e defeitos inatos, bem como seu atavismo antropológico, confluem para constituir a base de suas respectivas culturas, que por sua vez produzem civilizações. Em outras palavras, a infraestrutura mais profunda de qualquer civilização não é econômica nem cultural, mas biológica (FAYE, 2016, p. 293-294, tradução nossa).
A solução para a convivência entre diferentes raças e culturas, para Faye, deveria ser a superação do igualitarismo e do universalismo, através de uma humanidade dividida em blocos semi autárquicos em escala continental com diferentes sistemas econômicos, com homogeneidade étnica e cultural e funcionando à “duas velocidades”: núcleos civilizatórios baseados na tecnociência, restritos em sua abrangência, convivendo em separado com núcleos civilizatórios baseados em padrões sociais e econômicos arcaicos. De um lado, o retorno a uma economia “neomedieval” baseada na solidariedade, na proximidade e em ideologias religiosas; de outro, sociedades hiper tecnológicas restritas geograficamente, com menos danos à natureza, para uma minoria da população. Em seus próprios termos:
aqui está o cenário Arqueofuturista: Em primeiro lugar, a maior parte da humanidade voltaria a uma economia de subsistência pré-tecnológica baseada na agricultura e no artesanato, com uma estrutura demográfica neomedieval. A população africana, como a de todos os outros países pobres, estaria totalmente envolvida nessa revolução. A vida comunitária e tribal reafirmaria seus direitos [...] Em segundo lugar, uma porcentagem minoritária da humanidade continuaria a viver de acordo com o modelo econômico tecnocientífico baseado na inovação contínua, estabelecendo uma “rede global de intercâmbio” de cerca de um bilhão de pessoas. [...] Essa economia mundial de dois níveis combina, assim, arcaísmo e futurismo. A parcela tecnocientífica da humanidade não teria o direito de intervir nos assuntos das comunidades neomedievais que formam a maioria da população, nem - o mais importante - seria de alguma forma obrigada a “ajudá-las”. Sem dúvida, isso apresenta um quadro monstruoso para o espírito moderno e igualitário, mas em termos de bem-estar coletivo real - ou seja, justiça - um cenário revolucionário desse tipo pode se mostrar bastante pertinente (FAYE, 2010, p. 49, tradução nossa).
A citação acima demonstra o desenho de uma proposta teórico-política utópica, com supostas vantagens sobre outros modelos. Na visão de Faye, ao contrário do marxismo, que teria falhado por não prover uma descrição concreta da sua sociedade comunista, o arqueofuturismo apresentaria tanto um diagnóstico das catástrofes contemporâneas, como delinearia os aspectos gerais da sociedade do futuro.
Considerações finais
Por meio da síntese apresentada, podemos constatar o quanto Faye produz uma síntese utopista particular do Tradicionalismo e do Futurismo, revelando eixos gerais das concepções presentes na Nouvelle Droite na Europa, mas, ao mesmo tempo, em contraste com o pensamento de algumas de suas principais lideranças, seja na França, seja na Rússia.
As diferenças se fazem notar especialmente pela reivindicação identitária branca mais radical por parte de Faye. A particularidade de seu pensamento se mostra na recusa da convivência entre europeus, árabes, africanos e asiáticos no mesmo território; por sua visão biologizante das civilizações, ao mesmo tempo em que radicalmente orientada para o tema da tecnociência genética; e por seu radical utopismo associado à ação política concreta. Essas ênfases resultaram em seu distanciamento da abordagem hegemônica da Nouvelle Droite, representada por Alain de Benoist, que, na visão de Faye, teria feito da questão cultural/ideológica um substituto para a atividade política direta.
Esperamos ter demonstrado como esse distanciamento esteve associado pela ultrapassagem de certos limites políticos e morais, da concepção de “luta entre raças”, partilhada em geral pela Nouvelle Droite, ao racismo biológico e eugenista, em sua versão transumanista. Mesmo com sua recusa ao antissemitismo, o racismo explícito conjugado à “islamofobia” conduziu à sua recusa por parte da linha hegemônica da Nouvelle Droite, que busca uma forma de “multiculturalismo separatista” no interior da própria Europa. Além disso, a divisão explícita entre civilizações brancas, destinadas ao desenvolvimento tecnológico, e às civilizações negras, a quem se relega o não-desenvolvimento, é uma visão bastante simplificada e rude diante do cenário de possibilidades de alianças entre blocos civilizacionais multiétnicos com diferentes possibilidades de desenvolvimento.
Tão significativas quanto às diferenças, as similaridades demonstram como estamos diante de uma mesma “família ideológica”. Assim como Alain de Benoist e Aleksandr Dugin, Faye apoia os esforços intelectuais e políticos para a unificação das Novas Direitas. Ambos são críticos da Revolução Francesa e do modelo de Estado-Nação e reivindicam a unidade cultural e étnica dos povos europeus a partir do legado de discussões da intelectualidade reacionária, mas revolucionária, do século XIX. No mesmo sentido, apoiam-se no paganismo como princípio para entendimento da história e do seu movimento: uma concepção cíclica, na qual a atualidade é o tempo da decadência e da catástrofe. O objetivo é a fundação de um novo padrão civilizacional fundado no arcaísmo, no iliberalismo (EMPOLI, 2020) no elogio às aristocracias e hierarquias e ancorada, no plano internacional, na criação de um “mundo multipolar”, expandindo o princípio da “luta entre raças” (FOUCAULT, 2000) como forma de reconfigurar o mundo em blocos étnicos-civilizacionais reunidos sob o domínio de Impérios.
É tarefa para reflexões futuras indagar o quanto esse projeto, mesmo que se utilize de elementos discursivos de esquerda e anticoloniais, se orienta para projetar e fundamentar uma nova divisão geopolítica e étnico-racial que retome o equilíbrio de forças desejado pela extrema direita europeia desde o século XIX, interrompido pelo fracasso dos fascismos, pela independência das ex-colônias e pela hegemonia liberal: uma multipolaridade de Impérios autônomos, que abriria possibilidades, para além das desigualdades entre centros e periferias econômicas, para formas de colonialismo interno em cada bloco.
Um programa de pesquisa mais sistemático sobre o pensamento político da Nouvelle Droite precisa abarcar a complexidade dessa questão, discernindo diferentes tendências e seu desenvolvimento em associação com projetos expansionistas. No presente texto buscamos acrescentar mais uma contribuição para o estudo deste grande mosaico de tendências de renovação da extrema direita, que apenas recentemente vem ganhando atenção da universidade brasileira.
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VAZ, João José. De Alexandria ao identitarismo: presenças gnósticas na direita radical contemporânea. 2018. Dissertação. (Mestrado em Estudos sobre a Europa). Universidade Aberta, Lisboa, 2018. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/161639895.pdf Acesso em 25 jul. 2023.
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- WINOCK, Michel. Histoire de l’extrême-droite en France. Paris: Seuil, 2015.
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1
Pode-se dizer que as extremas direitas na França “nascem” em reação à Revolução Francesa, a partir da qual se desenvolverão teses conservadoras, reacionárias e/ou pessimistas sobre a sociedade e a política. Cf. WINOCK, 2015.
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2
Para uma visão abrangente das correntes que compõem as novas direitas, Cf. PRADO, 2021.
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3
O termo Nouvelle Droite é originado do debate público e midiático, com uma certa insatisfação por aqueles que eram assim classificados, mas ele é logo assumido como identificação entre as principais lideranças e aceita por estudiosos para designar a “escola” francesa.
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4
“Revolução conservadora” é termo criado no contexto alemão do fim do século XIX e início do XX, onde o pessimismo ou niilismo aristocrático era referência desde a tradição do pensamento reacionário iniciado após a Revolução Francesa (AUGUSTO, 2017). Parte desta nebulosa ideológica influenciou os regimes fascistas e nazista (TAGUIEFF, 1993). Sobre o Tradicionalismo, por sua vez, associado à busca de uma “filosofia perene” ou de um saber religioso originário, cf. TEITELBAUM, 2020; BAR-ON, 2012 e SEDGWICK, 2019. Já o Ariosofismo é uma doutrina mística ocultista que mistura teorias racistas com mitologia teutônica, cf. SILVA, R., 2019.
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5
Para o filósofo italiano Julius Evola (1898-1974) os regimes fascistas e nazista foram experiências falhas, sendo necessária uma “correção de rumos” na direção de regimes políticos aristocráticos fundados na ideia basilar do Império. Hoje, ideia semelhante é retomada pela Nouvelle Droite (VASCONCELOS, 2023).
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6
Historiador e integrante das mais importantes redes de ativismo do “nacionalismo europeu”, como Europe-Action e Jeune Europe. Tornou-se conhecido também em razão de seu suicídio, em 2003, na catedral de Notre Dame, Paris, como protesto contra o casamento gay na França.
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7
A trajetória Faye pode ser dividida em três momentos: 1. 1970-1987: primeiras reflexões sobre decadência do ocidente, sociedade do consumo, antiamericanismo e nacionalismo europeu; 2. 1987-1998: dedicação à comunicação social e à música, como apresentador da rádio Skyrock; 3. 1998-2020, retorno à produção teórica, com a tese do Arqueofuturismo, a “colonização” da Europa e a questão judaica. Cf. LEBOURG, 2019.
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8
Criado, em 1995, em torno da revista de mesmo nome, na qual a história e a arqueologia do mundo antigo e a “resistência identitária” são centrais (SILVA, G., 2019).
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9
Criado em 1972, o Front National (FN, atual Rassemblement National, desde 2018) é o principal partido de extrema direita francês, reconhecido pelo nacionalismo xenofóbico. A morte de um de seus principais líderes, François Duprat, será fundamental para o redirecionamento da Nouvelle Droite em sua distinção em relação ao FN. Cf. FRANCO DE ANDRADE, 2022.
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10
Champetier é ensaísta e jornalista francês, redator do jornal Éléments. Vial foi professor universitário e líder do Instituto de Estudos Indo-europeus, que encerrou suas atividades após denúncias de racismo e negacionismo (SILVA, G., 2019).
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11
O objetivo do transumanismo é direcionar a evolução da espécie humana a partir da aplicação direta de tecnologias avançadas no indivíduo humano (GAYOZZO, 2019).
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12
Ideias similares à tese da “grande substituição”, do escritor Renaud Camus em Le Grand Remplacement (2011), que prenuncia o desaparecimento da raça branca na Europa através da sua substituição por imigrantes.
INFORMAÇÕES ADICIONAIS
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Endereço para correspondência
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Instituto de Ciências Sociais Aplicadas. Av. da Abolição, 3- Centro, Redenção - CE, 62790-000
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Aprovação no comitê de ética
Não se aplica
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Modalidade de avaliação
Duplo-cega por pares.
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Editado por
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Maio 2024 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
14 Set 2022 -
Revisado
07 Dez 2022 -
Aceito
11 Dez 2022