Open-access A percepção corporal no paradigma da mente encarnada

Body perception on the embodied mind paradigm

Resumos

Discuto algumas concepções teóricas a respeito da percepção eu-objeto a partir de influências filosóficas, da ciência cognitiva e da psicanálise, visando demonstrar como a oscilação entre a experiência adualista e dualista da relação eu-mundo pode estar associada a diferentes formas de significar a relação com o entorno. Essa experiência cognitiva e afetiva é baseada num know how que define a ética da ação no mundo. Como conciliar a percepção de si e do outro enquanto objetos simultaneamente distintos e contíguos? Que repercussões as diferentes formas de perceber-se no mundo podem trazer para a preservação da vida e do laço social?

Corpo; Objeto; Percepção corporal; Dualismo; Adualismo


I discuss different theorethical approachs of the perception self-object repporting some phylosophical influences, cognitive sciences and psychoanalysis, to show how an oscillation between adualistic and dualistic experience of the relation self-world could be associated to different forms of meaning the relation to the environment. This cognitive and affective experience is based in a certain know how that defines an ethical action in the world. How to conciliate the perception of self and self related to other as objects simultaneously distincts and contiguos? Which repercutions of these both perceptions could bring to the conservation of live and social bounds?

Body; Object; Body awareness; Dualism; Adualism


A percepção corporal no paradigma da mente encarnada

Body perception on the embodied mind paradigm

Marília Etienne Arreguy

Psicóloga pela UFMG, Mestre pela PUC-Rio; Professora substituta na FEUFF, Doutoranda no IMS/UERJ em co-tutela com a Université Paris VII. Endereço: Instituto de Medicina Social Uerj, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social. Avenida São Francisco Xavier, 524, campus do maracanã, 7º andar, blocos D e E. Maracanã. CEP: 20559-900 - Rio de Janeiro, RJ – Brasil. E-mail: lilarreguy@hotmail.com

RESUMO

Discuto algumas concepções teóricas a respeito da percepção eu-objeto a partir de influências filosóficas, da ciência cognitiva e da psicanálise, visando demonstrar como a oscilação entre a experiência adualista e dualista da relação eu-mundo pode estar associada a diferentes formas de significar a relação com o entorno. Essa experiência cognitiva e afetiva é baseada num know how que define a ética da ação no mundo. Como conciliar a percepção de si e do outro enquanto objetos simultaneamente distintos e contíguos? Que repercussões as diferentes formas de perceber-se no mundo podem trazer para a preservação da vida e do laço social?

Palavras-chave: Corpo. Objeto. Percepção corporal. Dualismo. Adualismo.

ABSTRACT

I discuss different theorethical approachs of the perception self-object repporting some phylosophical influences, cognitive sciences and psychoanalysis, to show how an oscillation between adualistic and dualistic experience of the relation self-world could be associated to different forms of meaning the relation to the environment. This cognitive and affective experience is based in a certain know how that defines an ethical action in the world. How to conciliate the perception of self and self related to other as objects simultaneously distincts and contiguos? Which repercutions of these both perceptions could bring to the conservation of live and social bounds?

Keywords: Body. Object. Body awareness. Dualism. Adualism.

Discutir a questão da corporeidade leva à investigação do início da vida e da percepção primitiva que o sujeito faz de seu corpo. Diversas são as perspectivas teóricas, desde aquelas filosóficas, carregadas dos problemas dicotômicos associados ao empirismo e ao dualismo racionalista, até as reflexões fenomenológicas com as sutilezas dos seus avanços em relação à metafísica especulativa e ao positivismo, que fomentam a discussão sobre as origens da percepção de si e do outro na concepção objetiva do corpo. Por outro lado, um olhar contemporâneo neo-pragmático procura delinear a constituição da corporeidade do sujeito a partir de sua ação no mundo, concebendo-o naquilo que se pode chamar de um monismo materialista naturalista não reducionista (RORTY, 1995, p. 17; BEZERRA JUNIOR, 2001, p. 15). Essas discussões se entrelaçam com a recorrente questão acerca da relação corpo-mente, que passa a ser melhor compreendida a partir do paradigma de mente incorporada (VARELA; THOMSON; ROSH, 1991), que, além de conceber a mente encarnada no corpo (embodied), define esse corpo em estado de imersão, inscrito (embeded) no mundo. A natureza indissociável do trinômio mente-corpo-mundo mostra que não há uma diferença ontológica essencial entre esses termos (BEZERRA JUNIOR, 2001). Em busca de uma definição profícua do sentido holista da existência, no qual a corporeidade é marcada pela idéia de continuidade com o mundo, encontra-se também o conceito de "experiência pura" de William James (1902-1910/1968), em que a metáfora central sugere à imaginação um fluxo de interferências mútuas entre sujeito e meio, partindo da concepção de que o sujeito afeta e é afetado pelo ambiente, concebendo o mundo exterior como parte de si mesmo e vice-versa, numa espécie de esfumaçamento das fronteiras entre o ser e o objeto, em que, em última instância, a distinção dicotômica entre perceptum e percepiens perde sentido, justamente por se tratar de uma visão representacionalista ultrapassada. Um estado de imanência seria, portanto, a forma mais adequada de compreender a experiência do corpo em seu aspecto ecológico incorporado.

Entretanto, com o desenvolvimento das funções cognitivas superiores, torna-se nítida a percepção de uma suposta descontinuidade entre mente e corpo na experiência subjetiva. Leder (1990) procura esvaziar a crítica sobre o dualismo buscando justificar o "erro de Descartes" a partir de critérios fenomenológicos e de uma releitura de textos de Descartes, como: Princípios de Filosofia, Meditações e Tratado sobre as Paixões da Alma. Ele fala de um "corpo imaterial", demonstrando por meio de uma analogia, de que forma o fenômeno perceptivo dado pela observação do cubo de Necker (LEDER, 1990, p. 104-106) pode ser associado a um certo "desaparecimento" do corpo. Leder considera o "aspecto recessivo" dos fenômenos corpóreos em relação aos fenômenos mentais e vice-versa assim como, ao vermos o cubo de Necker, só podemos visualizar uma posição do cubo de cada vez, sendo impossível atingir a percepção das duas coisas, figura e fundo, concomitantemente. Assim como não conseguimos observar as duas posições diferentes do cubo ao mesmo tempo, analogamente é "como se" o corpo deixasse de estar presente com a preponderância de certos processos mentais, ou seja, é como se o corpo se tornasse o fundo em relação à operação dos processos cognitivos que, em pleno funcionamento, dão a sensação de corresponderem a estados não-corpóreos. Assim, Leder (1990) considera que a crença na polaridade entre res cogitans e res extensa deve-se à percepção diferenciada entre os processos mentais e os processos corporais justamente por constituírem realidades fenomenológicas distintas. Ora sentimos o corpo, ora percebemos e agimos sobre funções mentais que exigem extrema concentração, praticamente "desligando" o sujeito de sua realidade corporal imediata. Trata-se de um efeito da concentração extremada e contínua em que corpo e mente parecem se apresentar fenomenicamente como realidades distintas.

Desse modo, reconduz-se a discussão acerca daquilo que vem-se delinear a partir de Leder (1990) como uma "experiência dualista" da mente em comparação à idéia de uma "experiência monista/adualista" discutida a partir do paradigma do embodiement, em que mente e corpo são concebidos como absolutamente integrados, constituindo uma realidade ontológica única e indissociável.

O objetivo geral desse trabalho, portanto, é demonstrar como a diferença entre as perspectivas a-dualistas e dualistas podem estar associadas a diferentes formas de estar e perceber-se no mundo, enfocando, especificamente, a construção da percepção subjetiva de si e de suas gradações na relação entre corporeidade e cognição na interseção e no distanciamento eu-objeto desde os primórdios da vida psíquica no infans. Como entender os benefícios e os desvios normativos inerentes à experimentação "dualista", por um lado, e "monista", por outro, dada na percepção de si mesmo e do outro enquanto objetos? Que repercussões essas diferentes formas de perceber-se no mundo podem trazer para a vida e para a preservação do laço social?

Ora, em diferentes momentos da vida, discrepantes contextos históricos e em culturas diversas, cada um desses modos de perceber a realidade de si como um corpo integrado ou destacado da mente e do todo parecem prevalecer. É na mesma proporção que nos tornamos cada vez mais individualistas e nossa atitude mais blasé1 em relação ao sofrimento alheio que uma percepção dualista do mundo parece predominar. É evidente que não se pode desconsiderar a importância da percepção da diferença, do respeito à alteridade, possivelmente uma medida da inalienabilidade da experiência dualista em prol da diferenciação em relação aos processos mentais e ao outro enquanto um ser distinto e dotado de subjetividade e dignidade. Por outro lado, a experiência de continuidade holística com o todo, ou seja, de uma percepção monista da existência, para além de poder representar formas patológicas, pode também redimensionar a condição ecológica do "ser-no-mundo", abrindo espaço à ternura, à solidariedade e à compaixão. Nesse sentido, é importante investigar e avaliar como ocorre a constituição desses estados desde os primórdios da vida psíquica do bebê, a fim de elaborar e construir um ethos do ser integral.

MEMÓRIA-CORPORAL: A PERCEPÇÃO EXTENSIVA DAS IMAGENS NOS OBJETOS

A imobilidade das coisas que nos cercam talvez lhes seja imposta pela nossa certeza de que essas coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento perante elas. A verdade é que, quando eu assim despertava, com o espírito a debater-se para averiguar, sem sucesso, onde poderia achar-me, tudo girava em redor de mim no escuro, as coisas, os países, os anos. Meu corpo, muito entorpecido para se mover, procurava, segundo a forma de seu cansaço, determinar a posição dos membros para daí induzir a direção da parede, o lugar dos móveis, para reconstruir e dar um nome à moradia onde se achava. Sua memória, a memória de suas costelas, de seus joelhos, de suas espáduas, lhe apresentava sucessivamente vários dos quartos onde havia dormido, enquanto em torno dele as paredes invisíveis, mudando de lugar segundo a forma da peça imaginada, redemoinhavam nas trevas. E antes mesmo que meu pensamento, hesitante no limiar dos tempos e das formas, tivesse identificado a habitação, reunindo as diversas circunstâncias, ele – o meu corpo – ia recordando, para cada quarto, a espécie do leito, a localização das portas, o lado para que davam as janelas, a existência de um corredor, e isso com os pensamentos que eu ali tivera ao adormecer e que reencontrava ao despertar (PROUST, 1913/1979, p. 9, grifo nosso).

O trecho acima pode representar uma metáfora daquilo que Bergson (1896/1999) designou como a "memória de hábito", em que a percepção dos objetos no mundo se dá através de uma ação aprendida, inscrita numa memória corporal, na interação entre sujeito e mundo. Nas palavras de Bergson (1896/1999, p. 176-177): "Há duas memórias distintas: uma, fixada no organismo [...] antes hábito que memória [...] a outra é memória verdadeira". Ao ancorar toda memória num estado de consciência nascente – "nossa consciência do presente já é memória" (BERGSON, 1896/1999, p. 176-177), o autor acentua o caráter dinâmico das memórias no decorrer tempo. Conceituando a memória sobre critérios fenomenológicos, Bergson (1896/1999, p. 177) afirma ainda que "nosso corpo não é nada mais que a parte invariavelmente renascente de nossa representação", evitando uma análise da memória por meio de perspectiva "localizacionista" cerebral, já que para ele não são as memórias que estão no cérebro e sim o contrário. Esse é um ponto problemático de sua obra, que defende a coincidência do ser com uma matéria-memória coletiva compartilhada e a-temporal, trazendo à tona o choque entre os limites da lógica de uma perspectiva epistemológica objetivista tradicional e a capacidade imaginativa de uma realidade que se constitui por imagens. As imagens mnêmicas se interpenetrariam vibrando no espaço, portanto, seriam intercambiáveis entre os corpos. Tese semelhante àquela elaborada por Jung acerca do inconsciente coletivo.

O estado letárgico do personagem proustiano antes de acordar ilustra o senso de si nascente através de uma memória que se atualiza no presente na tentativa de atingir a consciência plena, reflexiva, do estado de vigília.

Antes mesmo que meu pensamento, hesitante no limiar dos tempos e das formas, tivesse identificado a habitação, reunindo as diversas circunstâncias, ele – o meu corpo – ia recordando, para cada quarto, a espécie do leito, a localização das portas, o lado para que davam as janelas, a existência de um corredor, e isso com os pensamentos que eu ali tivera ao adormecer e que reencontrava ao despertar (PROUST, 1913/1979, p. 9, grifo nosso).

O corpo "se lembra" de todos os travesseiros e camas já experimentados e calcula a sua posição no espaço. Essa ilustração denota um caráter pré-reflexivo da ação cognoscente, por meio do objeto que se apresenta ao corpo de modo encarnado, constituído por lembranças somato-psíquicas. Para Bergson (1896/1999, p. 168), "os objetos situados em torno de nós representam, em graus diferentes, uma ação que podemos realizar sobre as coisas ou que podemos sofrer delas"; portanto, a extensão das lembranças no presente imediato caracteriza a apreensão dos objetos materiais por uma ação recíproca através do tempo e do espaço. "Meu corpo [...] procurava [...] determinar a posição dos membros para daí induzir a direção da parede, o lugar dos móveis [...]" (VARELA, 1995, p. 16), palavras que significam um certo know how, uma habilidade, savoir faire, ou seja, a capacidade de compreensão do mundo a partir do confronto imediato do corpo com o espaço. Na abordagem bergsoniana há uma interdependência (interpenetração) entre corpo e espírito, entre os objetos e o universo circundante, numa crítica fenomenológica contumaz ao dualismo.

A citação de Proust presta também a outra discussão, pois o corpo é percebido e descrito pelo personagem em terceira pessoa – "ele, o meu corpo, ia recordando" – de modo que o personagem observa as reações e indagações advindas de seu corpo como um outro destacado de si, constituído a partir dos outros objetos que pôde perceber na sua história de vida. De fato, para Bergson (1896/1999, p. 15) o mundo se constitui por imagens e o papel do corpo é de exercer sobre outras imagens uma influência real. Em alguma medida, é possível a qualquer pessoa evocar esse tipo de sensação ao acordar: a tentativa de se localizar no espaço, entre sono e vigília, recodificando qual especificidade da cama, do quarto, a posição da porta e das janelas, selecionando as imagens pelas quais reconhece o mundo. Experiência comum, um certo estado de torpor, em que o corpo se esforça por reconhecer o espaço contingente, se situar no tempo cronológico e atingir a consciência auto-reflexiva, já que no despertar do sono o aparato sensório-motor ainda está parcialmente suspenso.

Há, portanto, no estado de despertar, uma diferença de grau entre as imagens que se distanciam do "ser" e as que podem vir a "ser conscientemente percebidas" (BERGSON, 1896/1999, p. 35), esboçando o limiar entre um sentido pré-reflexivo e a reflexão consciente, conforme as memórias se re-atualizam na ação presente, numa percepção que depende das influências mnemônicas de um passado que não se esgota, não cessa de se apresentar, do presente imediato e de um futuro que se adianta na ação imaginada. O corpo do personagem de Proust parte de uma certa imobilidade, de um transe, um estado pré-consciente, embora durante o despertar seja capaz de discriminar sua condição de objeto entre outros objetos, expressando seu estado de ligação com o entorno. Para Merleau-Ponty (1945/2001; 1964/2000), o corpo se conecta aos objetos externos por meio do "quiasma" que o une ao mundo, aspecto invisível jogado entre o "visível e o invisível" de um conhecimento inconsciente.2 O corpo-vivo merleau-pontyano desaparece na obscuridade da interligação inconsciente com o todo e, ao mesmo tempo, insiste em sua visibilidade pela presença real na ação perceptiva consciente. Com efeito, é a partir do monismo fenomenológico de Bergson e Merleau-Ponty que se estabelecem importantes reflexões para a apreensão da relação corpo-mente-mundo.

Voltando à epígrafe de Proust (1913/1979, p. 9): "A imobilidade das coisas que nos cercam talvez lhes seja imposta pela nossa certeza de que essas coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento perante elas", de modo que nossa percepção presente se dá por recortes que fazemos na imobilização dos fluxos de imagens que transitam continuamente diante de nós (JAMES, 1902-1910/1968; BERGSON, 1896/1999).

O trecho de Proust remonta também à discussão feita por Cassam (2003), no texto Representing bodies, no qual articula as controvérsias entre uma posição empirista, apoiada em Locke, em que todo objeto material "possui" certas qualidades primárias fundamentais – "solidez, extensão, movimento ou repouso, forma e quantidade" –, e a posição de Kant onde a noção de "força movente" é uma qualidade imprescindível à percepção da solidez e impenetrabilidade dos corpos. A recuperação dessas premissas teóricas é importante pelo seu valor histórico-conceitual, que Cassam re-visita a fim de postular sua Body Awareness Thesis (BAT- tese do senso corporal). Ancorado no contexto da fenomenologia de Merleau-Ponty (1945/2001, p. 167), cuja afirmação central define que o corpo vivo possui "duplas sensações" (sensible-sentient), Cassam (2003) posiciona-se ao lado da crítica anti-dualista.

Cassam (2003) retoma a querela se, de fato, o corpo possui certas qualidades primárias intrínsecas como a solidez ou, se essas qualidades só são desenvolvidas a partir da realidade objetiva material e da possibilidade de movimento e interação de um corpo entre outros corpos. Conforme Cassam (2003), explicar como se adquire uma certa concepção do próprio corpo e da sua existência entre outros corpos envolve aspectos intuitivos, aspectos adquiridos, mas também um certo a priori dado nas qualidades primárias, pontos em que oscilam as definições teóricas desde Locke e Berkeley até Descartes e Kant, de acordo com suas próprias ênfases.3

Cassam (2003) questiona tanto as posições radicalmente empiristas como as radicalmente inatistas, quando afirma que as qualidades primárias não derivam exclusivamente nem da experiência, nem tampouco do substrato biológico. Mas, na medida em que o corpo possui certas qualidades primárias, o senso corporal (bodily awareness) pode vir a ser despertado pela ação. Assim, Cassam (2003) assevera que o senso do próprio corpo é um componente essencial das qualidades primárias, as quais provêm da inter-relação de si com a objetividade externa, aproximando-se do argumento kantiano de que o despertar da realidade objetiva depende de uma "força movente" e de capacidades corporais intuitivas (CASSAM, 2003, p. 15). A defesa do autor se dirige em pensar que as sensações corporais podem representar conteúdos não-conceituais (CASSAM, 2003, p. 8), o que denota um caráter pré-reflexivo do senso ou ciência de si. A percepção do próprio corpo depende, desse modo, da combinação de algumas experiências visuais, da movimentação e de outros sentidos corporais como o tato, cuja noção de força deriva do "engajamento corporal no mundo" (CASSAM, 2003, p. 11), de uma condição temporal (BERGSON, 1896/1999), portanto, da ação caracterizada por sua condição fenomênica, cuja contigüidade entre corpo-objeto parece bem ilustrada por Proust.

A INTERDEPENDÊNCIA ENTRE PERCEPÇÃO OBJETIVA, VISÃO E AÇÃO NAS CIÊNCIAS COGNITIVAS

Varela (1995, p. 23) descreve um experimento clássico de Held & Hein acerca da percepção visual em gatos recém-nascidos, os quais são separados em dois grupos. Em cada gato pertencente a um dos grupos são presas espécies de carroças em que cada um dos bebês gato do outro grupo é carregado. Após algumas semanas, os gatinhos que estavam presos nas carroças são postos em liberdade. No entanto, não conseguem se deslocar com perfeição, dando trombadas nos objetos e caindo com freqüência. Eles se tornaram cegos funcionais, ou seja, não desenvolveram plenamente o sentido da visão por terem sido privados da interação viso-espacial dada pela movimentação própria. Conclui-se pelo experimento que a movimentação é condição sine qua non para o desenvolvimento pleno da visão.

Como define Merleau-Ponty (apud CASSAM, 2003, p. 11) "visão e tato pertencem ao mesmo mundo [...] toda visão toma espaço em algum lugar no espaço tátil". Assim, quando não há chances de interagir com o mundo, o senso corporal de si fica prejudicado, não desenvolvendo aquilo que "possui" a priori na oposição com os objetos externos. Desse modo, a tese do senso corporal (bodily awareness thesis) é importante para definir como um corpo é capaz de atribuir materialidade à realidade objetiva, ou seja, a capacidade do corpo de perceber-se como um objeto entre outros objetos (CASSAM, 2003, p. 18), portanto, constituir vida. Conceber a distinção dos corpos materiais e do próprio corpo não exclui de todo modo a possibilidade de um corpo vir a se constituir como sujeito da própria existência. Contudo, um certo nível de objetividade pré-reflexiva parece ser prévio à consciência subjetiva auto-reflexiva do corpo como "si-mesmo": a sense of self as a self, conforme descreve Stern (apud BUTTERWORTH, 1998; BEZERRA JUNIOR, 2001).

As teorias cognitivas contemporâneas que versam sobre a concepção sujeito-objeto nos fazem re-visitar a "noção de permanência de objeto" de Piaget (1963/1970). Em seu estudo interacional sobre a construção da realidade em bebês, ele parte de um "adualismo" primário, pois defende que a plenitude da noção de objeto se opera ao longo do estágio "sensório-motor", ou seja, ao longo dos dois primeiros anos de vida e atinge seu apogeu apenas em torno de 9 meses do bebê. Posteriormente a isso, a criança passa a considerar os deslocamentos visíveis do objeto feitos pelo observador (PIAGET, 1963/1970, p. 65 et seq.) e somente em torno de um ano e meio que a criança é capaz de representar mentalmente os deslocamentos invisíveis do objeto (PIAGET, 1963/1970, p. 76).

Butterworth (1998), apoiado em experimentos mais recentes, defende a idéia de uma percepção objetiva de si em contraposição aos objetos externos desde os primórdios do desenvolvimento, chocando-se diametralmente com as abordagens psicológicas tradicionais de Piaget (1963/1970) e Freud (1930/1996). Butterworth (1998, p. 87, tradução e grifo nosso) nos remete a James Gibson a fim de evidenciar a percepção de si por meio de um "self ecológico", condizente com o paradigma da mente incorporada:

O senso de permanência e mudança do ambiente (percepção) é concomitante com a permanência e mudança do self (propriocepção no uso ampliado que faço do termo). Isso inclui o corpo e suas partes e todas suas atividades da locomoção ao pensamento, sem nenhuma distinção entre atividades chamadas mentais e aquelas chamadas "físicas". Um self e um corpo existem no tempo com o ambiente, eles são co-percebidos.4

Para Butterworth (1998) existe assim uma contigüidade entre os aspectos mentais e físicos, numa abordagem dita ecológica em que o sujeito e seu corpo "percebem e são percebidos" pelo ambiente, por assim dizer. O autor recorre a Neisser (1988, apud BUTTERWORTH, 1998) e a Edelman (1989, apud BUTTERWORTH, 1998) para estabelecer a distinção entre uma auto-consciência primária – resultado das sensações proprioceptivas – de uma consciência de ordem mais avançada – resultado das impressões mnêmicas, do pensamento complexo e da linguagem. No entanto, por meio de diversas pesquisas apoiadas em experimentos controlados , Butterworth (1998) demonstra que a percepção objetiva da diferença eu-mundo ocorre desde cedo, fortalecendo a idéia de um dualismo quase inato em contraposição à perspectiva piagetiana.5

Mas, em que medida o problema de saber se a percepção de objeto é primária ou desenvolvida é um real ou um pseudo-problema? Seria possível pensar que se essas duas formas – dualista e adualista – da objetividade de existir e perceber-se no mundo coexistem no corpo vivo sem que haja uma condição de precedência entre elas?

Talvez o problema maior não seja pensar o que vem primeiro, mas retomar o problema a fim de extrair dele aplicações consensualmente desejáveis.

"SER-OBJETO": A QUALIDADE PRIMÁRIA DO CUIDADO E DA FRUIÇÃO NA ABORDAGEM DOS AFETOS

Um "self ecológico" enquanto a possibilidade que se tem de "perceber e ser percebido" pelo entorno soa como uma qualidade fundamental para o senso de cuidado (BOFF, 1999). Por um lado, a distinção eu-mundo, a capacidade objetiva de perceber minimamente a diferença, a alteridade é estruturante de relações de objeto. Winnicott (1971), reforça uma tradição psicanalítica adualista das origens da vida infantil, que se inicia desde as idéias sobre o "sentimento oceânico" descrito por Freud (1930/1996). Mijolla-Mellor (2004, p. 20-24) esclarece que há uma grande diferença de conotação entre a o "sentimento oceânico" e o "desamparo" em Freud, de modo que a "não-integração" winnicottiana está diretamente ligada à primeira e não à segunda, caracterizando uma vivência arcaica diferente da "desintegração" patológica.

Por sua vez, Winnicott asseverou a idéia da existência de uma experiência cultural de "não-integração" na relação de uma mãe com seu bebê. Uma mãe que seria compreendida como a extensão do próprio ambiente vivencial do bebê. Sua teoria do psiquismo mostra como, a partir de um "objeto transacional", o bebê vai criando condições para se afastar da mãe e perceber o mundo objetivamente distinto, sendo capaz de aplacar as angústias e de estabelecer verdadeiras relações de objeto, ainda que com certa dependência inicial do objeto materno (VERTZMAN; GUTMAN, 2001, p. 66). O rumo à independência seria dado na possibilidade do "uso de objeto", na medida em que o bebê seria capaz de fruir do corpo próprio e também do corpo do outro, percebendo-se como objeto distinto, lançando-se no mundo por meio da preservação do espaço potencial. Caso não haja muito conflito na relação com essa ambiente e a mãe consiga se colocar numa posição good enough, certamente, haverá a capacidade de aceitação da dependência do outro e o bebê será também capaz de suportar a solidão importante a qualquer ser humano (VERTZMAN; GUTMAN, 2001, p. 67). Conforme Winnicott (apud VERTZMAN; GUTMAN, 2001, p. 66-67), "[...] depois que o 'sujeito relaciona-se com o objeto', temos 'o sujeito que destrói o objeto' (quando o objeto torna-se externo), e, então podemos ter 'o objeto que sobrevive à destruição pelo sujeito' [...] O sujeito pode usar agora o objeto que sobreviveu". Assim, de acordo com VERTZMAN & GUTMAN (2001, p. 67), "a sobrevivência à destruição [...] reitera a existência ao eu e lhe dá substância" para que venha a ser capaz do "uso de objeto", ou seja, da fruição e do distanciamento do outro, condição absolutamente precária nas psicoses.

EM BUSCA DE CONCLUSÕES

Parece-me que a "necessidade de perceber-se em continuidade com o outro", preservando parte da transitividade inicial é condição sine qua non para uma concepção integrada da subjetividade no mundo. Entretanto, quando não se estabelecem fronteiras discriminatórias firmes na percepção objetiva da distinção do próprio corpo e do entorno parecem advir estados patológicos "não integrados". Assim, a objetividade da diferença é condição mínima de distanciamento e respeito na fundação das relações afetivas confiáveis e próximas. A leitura de Leder (1990) sinaliza isso no sentido cognitivo, em que a experiência de um corpo recessivo desaparece com o estado de concentração típico do fluxo de pensamento, levando à inferência de que a percepção dualista da separação entre o ser e o objeto é também inviolável na discriminação perceptual e cognitiva do espaço próprio.

Porém, perceber-se como objeto ao mesmo tempo distinto e integrado ao ambiente, oscilar nos diversos tempos da vida e da existência a partir de qualidades primárias é o que permite relações ancoradas no cuidado ecológico do universo "uno". Talvez o conceito de "proto-ética" de Varela (1995) – um termo bastante complexo – seja interessante para pensar o senso pré-reflexivo do cuidado de si como o cerne da experiência afetiva fundada, paradoxalmente, na co-extensão entre os corpos e na capacidade de perceber os limites objetivos em relação ao outro. Com efeito, as indicações de Varela (1995) apontam para aspectos como: a importância dialógica no trato da transferência psicanalítica, a sabedoria do esvaziamento de si nas doutrinas confucianas, taoístas e budistas, a educação dos sentidos arraigada na experiência corporal e, enfim, o know how inerente à própria ação do ser no mundo.

Um novo olhar sobre a subjetividade deve levar em consideração a experiência ecológica incorporada, como atestam as noções de embodied/embeded de Varela. É redundante dizer que essa concepção também depende de conceitos de outros autores salientados aqui, como o conceito de "quiasma" de Merleau-Ponty (1945/2001; 1964/2000), ou mesmo de "experiência pura" em James (1902-1910/1968), como indícios cognitivos de uma concepção distinta da percepção dos objetos e da reorientação da ação subjetiva sobre eles. Esses conceitos servem também de justificativa da importância de uma visão de mundo monista não reducionista que amplie largamente a lógica de preservação do todo nos seres humanos. A aprendizagem da percepção da co-extensão "eu-mundo" impulsiona certamente ao desenvolvimento do primado da vida e do cuidado. Ora, sujeito e objeto, mente e corpo, razão e paixão ainda parecem demasiadamente cindidos na realidade subjetiva e no todo social. O sentido da ação estabelecido nas pessoas (de um modo genérico, sobretudo no ocidente) paradoxalmente não consegue ultrapassar o nível do know that (VARELA, 1995). Afinal, surpreendentemente, boa parte de nós sabemos explicar, discriminar e definir a diferença entre o que é certo e o que é errado, até onde vai o meu direito e o do outro, mas a maioria não sabe fazer o que é certo ou distinguir espaços alheios, questão ética fundamental que depende da concepção de outro que estabelecemos afetivamente com o ambiente. Atualmente, a percepção corporal e o senso de si na cultura consumo contemporânea parece apenas dilatar as dimensões narcísicas exacerbadas dadas por uma experiência dualista forte, em que o outro é estranho e não semelhante, impedindo o aflorar de uma experiência holística em que é possível surgir a compaixão, o respeito e a solidariedade.

NOTAS

Recebido em: agosto de 2006

Aceito em: março de 2008

Referências bibliográficas

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  • WINNICOTT, D. Playing and reality London: Tavistock Publications, 1971.
  • 1
    Cf. SIMMEL (1902/1987), traduzido de: The metropolis and mental life. In: WOLFF, K. (Org.).
    The Sociology of Georg Simmel. New York: Free Press, 1950. p. 409-424.
  • 2
    Ver também a relação entre o "invisível" em Merleau-Ponty e o "real" lacaniano (QUINET, 2002)..
  • 3
    Bergson (1896/1999, p. 3-4), por sua vez, considera um grande avanço o fato de Berkeley atribuir tanta realidade empírica às qualidades secundárias, como atenção, memória, consciência, quanto às qualidades primárias de solidez, figura, impenetrabilidade, etc.
  • 4
    "Awareness of the persisting and changing environment (perception) is concurrent with the persisting and changing self (proprioception in my extended use of the term). This includes the body and its parts and all its activities from locomotion to thought,
    without any distinction between the activities called mental and those called 'physical'.
    Oneself and one's body exist along with the environment, they are co-perceived."
  • 5
    Sabe-se que essa controvérsia também é presente no pensamento psicanalítico, oscilando entre escolas mais dualistas, como a lacaniana e a francesa, de um modo geral, e a escola inglesa, sobretudo entre os autores do chamado
    Midle Group (Balint, Winnicott, Bion), que consideram os primórdios da vida do bebê em um estado de indiferenciação com o ambiente (SOUZA, 2001).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2008

    Histórico

    • Recebido
      Ago 2006
    • Aceito
      Mar 2008
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