Resumo
Os andarilhos de estrada percorrem longas distâncias a pé pelas rodovias do país e são praticamente esquecidos pelas instituições assistenciais. Esse artigo tem por finalidade apresentar as condições de acesso dos andarilhos a essas instituições e discutir sobre as estratégias de controle utilizadas por elas sob o fluxo da errância no contemporâneo. A pesquisa foi realizada em quatro instituições assistenciais no Estado de São Paulo através de um roteiro de entrevista semi-estruturado na qual participaram sete entrevistados. Os resultados indicaram que as formas de acesso dos andarilhos às instituições assistenciais acontecem de modo espontâneo ou pelas rondas de vigilância comandas pela polícia militar, guarda municipal e concessionárias de pedágios. Essas condições de acesso institucional são estratégias biopolíticas utilizadas pelo Estado que sob os efeitos da sanção normalizadora controla e distribui os andarilhos pelos espaços abertos das rodovias brasileiras.
Psicologia institucional; controle social; ajuda
Abstract
Brazilian highway wanderers are individuals that walk long-distance on foot and practically forgot of assistance institutions. This paper aims to present the access conditions of Brazilian highway wanderers to institutional assistances and discuss about the control strategies used by them under contemporary wandering flow. This research was conducted in four assistance institutions in São Paulo State by means of a semi-structured interview with participation of seven interviewed. The results showed that access conditions to the Brazilian highway wanderers arrive at help institutions happen through spontaneous way or patrol surveillances commanded by military police, municipal guard and tollgates. These institutional access conditions are biopolicies strategies used by State that under the social normalization effects control and distribute these individuals toward opened spaces of brazilian highways.
Institutional psychology; social control; assistance
A errância no contemporâneo se configura como um fenômeno complexo e multifacetado na qual os andarilhos de estrada podem ser tomados como um de seus exemplos mais radicais. Trata-se de indivíduos que percorrem longas distâncias a pé pelas rodovias do país com um saco às costas onde carregam todos os seus pertences e sem destino certo e objetivo definido. Inseridos nos corredores constituídos pelas rodovias, os andarilhos parecem viver hoje uma condição de desenraizamento sem precedentes sobre a qual incide sobre eles várias injunções do contemporâneo tais como a desterritorialização, o abrandamento de filiações e vínculos psicossociais, a fragmentação afetiva, sendo a perambulação constante uma de suas características mais significativas (NASCIMENTO; JUSTO, 2014a, 2014b, 2014c, 2015; JUSTO, 2011, 2012; JUSTO; NASCIMENTO, 2012; NASCIMENTO, 2008).
A maioria desses indivíduos vive pelos acostamentos das rodovias e só adentra as cidades quando necessita de comida, agasalho, troca de roupas e calçados ou quando é vitimada por algum problema de saúde grave. Os andarilhos se identificam no “trecho”, ou seja, os acostamentos das rodovias como eles próprios denominam, pois já se familiarizam com esse modo de vida on the road onde tudo é descartável, volátil e efêmero, dadas as condições de fluidez que grassam a modernidade líquida segundo Bauman (2001). Inseridos nesses corredores de circulação e desterritorialilidade, os andarilhos representam de forma emblemática essa “vida líquida” que se adapta conforme as circunstâncias do meio ao qual está inserida sem precisar sofrer uma tensão rígida para moldar-se a essas formas fluidas de existência no mundo contemporâneo.
A vida dos andarilhos de estrada comporta, ainda, outras situações extremamente adversas onde é impossível estabelecer quaisquer perspectivas futuras num cotidiano que conjuga insegurança e incerteza para manter a própria sobrevivência. No contexto da errância, merece destaque outros grupos que diferente dos andarilhos também transitam a pé pelos acostamentos das rodovias tais como os “trecheiros” e os “pardais” sem. Os primeiros são indivíduos que percorrem a pé as rodovias do país de cidade em cidade em busca de trabalho temporário enquanto os segundos são grupos de salteadores de andarilhos e trecheiros que transitam a pé pelas rodovias sem, contudo, se distanciarem de sua cidade de origem num trajeto pré-determinado. Cabe assinalar, ainda que esses grupos da estrada se caracterizam pela transitoriedade nos espaços abertos das rodovias e se diferem das chamadas populações de rua por não habitarem o espaço urbano das cidades como modo de existência (NASCIMENTO, 2008; JUSTO, 2011, 2012).
No caso das populações de rua, Vieira, Bezerra e Rosa (2004) apresentam algumas diferenças existentes entre os indivíduos que ficam na rua com aqueles que estão na rua e são da rua cujas situações nem sempre podem estar associadas genericamente à vagabundagem. Segundo as autoras, “ficar na rua” está relacionado a uma situação circunstancial de precariedade socioeconômica vinculada, geralmente, ao desemprego na construção civil onde o indivíduo não consegue vagas nos albergues da cidade. Por outro lado, “estar na rua” expressa a situação daqueles que recentemente adotaram a rua como local de pernoite, tentando sobreviver através do recolhimento de materiais recicláveis devido ao desemprego prolongado e despejo dos próprios familiares mediante tais situações. E “ser da rua” significa morar nela permanentemente em função das várias tentativas fracassadas de o indivíduo encontrar saídas das condições desfavoráveis, passando a sobreviver quase que exclusivamente da assistência social.
No contexto da errância, podemos dizer que os andarilhos são relativamente ignorados tanto pelas ciências humanas quanto pelas políticas públicas e filantrópicas de assistência pelo fato das populações de rua possuir maior visibilidade no espaço social devido às condições precárias de sobrevivência. No caso das instituições públicas, a prioridade de atendimento são os moradores de rua e as famílias em situação de risco ou vulnerabilidade, conforme as diretrizes elaboradas pelo Sistema Único de Assistência Social (BRASIL, 2007). Nas instituições filantrópicas, não há uma prioridade de atendimento e as atividades assistenciais se vinculam às práticas caritativas fundamentadas na moral do cristianismo sem se atrelar, necessariamente, às políticas socioassistenciais do Sistema Único de Assistência Social. De acordo com Vieira, Bezerra e Rosa (2004), as instituições filantrópicas podem ser classificadas por meio de três grupos aparentemente diferenciados quanto à moral cristã: o grupo espírita, o grupo católico e o grupo evangélico que utilizam a distribuição de alimentos e agasalhos como estratégia para a pregação do evangelho visando, segundo as autoras, à evolução espiritual do indivíduo ou sua conversão aos princípios religiosos doutrina cristã.
Vale ressaltar que nem todos os andarilhos utilizam os serviços das instituições assistenciais sejam elas públicas ou filantrópicas. Muitos deles evitam, inclusive, adentrar as cidades e procuram manter distância do espaço urbano, seja como forma de resistência aos poderes instituídos, seja por verem nesses serviços assistenciais uma ameaça à sua forma de ser e viver. Nesses casos, quando eventualmente adentram as cidades, são conduzidos para as instituições assistenciais contra a própria vontade e muitos se veem obrigados a pagarem a comida, o banho e a troca de roupa com algum trabalho “voluntário” nas hortas comunitárias ou na limpeza da própria instituição (NASCIMENTO; JUSTO; FRANÇA, 2009).
Alguns trabalhos encontrados na literatura nacional apontam, também, que as instituições destinadas a dar alguma assistência aos andarilhos acabam produzindo um efeito de perambulação constante desses indivíduos pelos espaços abertos das rodovias por não serem prioridades de atendimentos estabelecidas por ambos os modelos de gestão (NASCIMENTO, JUSTO, 2014a, 2014b, 2014c, 2015). Nesse contexto, albergues noturnos, casas de passagem e demais instituições de assistência que acolhem os indivíduos em condições de extrema precariedade social funcionam como pontos frágeis de acolhimento devido ao tempo de permanência ser provisório e limitado em poucos dias. Partindo dessas considerações, o presente artigo tem por objetivo identificar as condições de acesso dos andarilhos de estrada em algumas instituições assistenciais do Estado de São Paulo e discutir sobre as estratégias de controle e seus impactos sob o fluxo da errância dos andarilhos pelos espaços abertos das rodovias brasileiras. Para tanto, tomaremos como referencial de nossas discussões as contribuições de Michel Foucault referentes à biopolítica e à normalização social, responsáveis pelos processos de subjetivação dos indivíduos nas redes de inteligibilidade do poder e do saber que grassam mundo contemporâneo.
Método
Para a realização dessa pesquisa, utilizamos uma abordagem qualitativa entendendo que esse é um dos caminhos viáveis para a compreensão da maneira como os indivíduos, historicamente constituídos, apreendem a realidade e se posicionam frente a ela produzindo sentido (RICHARDSON, 2010). A pesquisa foi realizada em quatro cidades no Estado de São Paulo (duas públicas e duas filantrópicas) por serem cidades-referências para as ramificações do fluxo da errância e rotas obrigatórias para todos os andarilhos que circulam pelo Estado. Tais cidades estão localizadas nas principais malhas rodoviárias que cortam o Estado de São Paulo e incluem o sistema Anhanguera-Bandeirantes por sem o principal corredor rumo ao Triângulo Mineiro e Goiás; as vias Washington Luís e Marechal Rondon por ligar as regiões leste, oeste e noroeste do Estado e a rodovia Raposo Tavares por ser o eixo de ligação para o Mato Grosso do Sul.
Essa pesquisa contou com a colaboração de sete participantes sendo que quatro foram os dirigentes responsáveis diretos pela administração dessas instituições e os outros três funcionários subordinados a eles, sendo a maioria com formação em serviço social e do sexo feminino. O instrumento norteador foi um roteiro de entrevista semiestruturado por permitir que o pesquisador explore os conteúdos elaborados pelo entrevistado, ampliando e decodificando as informações emitidas durante o processo interativo da comunicação e por ser um dos principais instrumentos utilizados em pesquisas qualitativas na área da psicologia (RICHARDSON, 2010).
As entrevistas foram realizadas pelos próprios pesquisadores nas instituições assistenciais que aceitaram participar, espontaneamente, dessa pesquisa após a aprovação formal do Comitê de Ética em Pesquisa (parecer nº 36/2009). O registro das entrevistas, realizadas individualmente, foi feito com o recurso de um gravador a partir do momento em que os participantes concordaram com o uso desse equipamento. Os relatos das entrevistas foram sistematizados por meio da técnica de análise de conteúdo (BARDIN, 2011). Essa opção se justifica pelo fato de considerar os aspectos semânticos mais relevantes (os núcleos de sentido) presentes nos enunciados emitidos pelos entrevistados, além de fornecer uma sistematização favorável para a compreensão do fenômeno a ser investigado. Tal técnica de análise consiste, resumidamente, nas seguintes etapas: transcrição na íntegra das entrevistas gravadas; leitura flutuante do corpus (pré-análise); análise temática e sistematização do conteúdo em categorias e subcategorias.
Resultados e Discussão
Vale ressaltar que há várias maneiras de se apresentar a análise das categorias e subcategorias de uma pesquisa qualitativa utilizando a técnica da análise de conteúdo. Assim, dependendo do estilo assumido pelos autores as subcategorias podem ser analisadas e discutidas uma após a outra ou conjuntamente no término da apresentação de todos os relatos referentes à mesma categoria. Nesse caso, optamos por fazer uma discussão conjunta da categoria e subcategorias de análise após a apresentação dos relatos dos participantes da pesquisa. Como se trata de relatos de entrevistas, utilizaremos o código “P” para nos referirmos aos “participantes” visando manter o sigilo e o anonimato das informações. O Quadro 1, a seguir, apresenta o perfil dos participantes nas instituições assistenciais pesquisadas, bem como a profissão, o tempo de trabalho e a função ocupada.
Conforme podemos verificar no Quadro 1, a idade dos participantes variou de 34 a 56 anos e o tempo na instituição de 02 a 29 anos, sendo a maioria do sexo feminino com formação em serviço social. Vale destacar que a Instituição Filantrópica I é administrada por um dirigente formado em administração de empresas com atuação de 22 anos, seguido da assistente social com 29 anos nessa a instituição, contrastando com os dados da Instituição Pública II onde a dirigente e a funcionária apresentam um tempo de atividade relativamente curto, inferior a 04 anos. No caso da Instituição Pública II, o pouco tempo de atuação da dirigente e da funcionária está relacionado com a mudança da gestação municipal devido às eleições para prefeitos e vereadores ocorridas alguns meses antes do período de realização das entrevistas.
Apesar de sabermos que a errância dos andarilhos se constitui pela perambulação a pé pelas rodovias do país, era necessário indagar junto aos participantes da pesquisa como que esses indivíduos chegam às instituições assistenciais em busca de auxílio para suas condições de sobrevivência. Mediante os relatos apresentados pelos dirigentes e profissionais, constatamos que as formas de acesso dos andarilhos aos serviços assistenciais acontecem de modo espontâneo ou por meio das rondas de vigilância, conforme apresentadas e discutidas a seguir.
Modo Espontâneo
A chegada de modo “espontâneo” dos andarilhos nas instituições assistenciais é apontada em quase todos os relatos sem maiores aprofundamentos em torno dessa questão tanto pelos dirigentes quanto pelos profissionais entrevistados. Esses relatos parecem sugerir que o modo “espontâneo” é visto por eles como algo natural nesse contexto de assistência. Exemplos:
Em sua grande maioria a procura é espontânea e chegam por conta própria em busca de alimento [...] (P1).
Geralmente eles chegam sozinhos, pedem comida e vão embora [...] (P2).
Na maioria dos casos, os andarilhos chegam por vontade própria [...] (P3).
Uma grande maioria vem por estar no trecho que eles falam. A maioria chega aqui sozinha e de forma espontânea [...] (P4).
Bom, o esquema é assim: ele chega espontaneamente e fica aguardando atendimento da assistente social [...] (P5).
Normalmente, eles procuram espontaneamente o serviço em busca de ajuda [...] (P6).
A maioria vem de forma espontânea, passa em algum lugar e alguém indica e aí eles então aparecem... a maioria chega aqui à pé [...] (P7).
Rondas de Vigilância
Além da chegada de forma “espontânea” dos andarilhos às instituições assistenciais, muitos são encaminhados de maneira forçada tanto pela polícia militar e guarda municipal quanto pelas concessionárias de pedágios que monitoram as principais malhas rodoviárias no Estado de São Paulo. Os relatos indicaram a presença de uma vigilância cuidadosa a incidir na vida desses indivíduos, seja através das rondas policiais ou pelas câmeras de monitoramento instaladas nas praças de pedágios obrigatórios distribuídas pelas principais malhas rodoviárias. Exemplos:
Temos um serviço de ronda noturna realizada pela guarda municipal que ao identificar um morador de rua ou mesmo andarilho, ela aborda e traz para cá. Outros também chegam pelo serviço de acolhimento da prefeitura que faz a abordagem das pessoas que vivem em situação de rua. Além desse serviço, temos também a Autoban [concessionária de pedágio] que traz muitos andarilhos para cá (P1).
Tem casos de andarilhos que a guarda municipal traz, tem também o pessoal da Autoban [concessionária de pedágio] que de vez em quando também trazem. Às vezes o pessoal do Samu [Serviço de Atendimento Médico de Urgência] é acionado por alguém que encontra eles desmaiados nas rodovias [...] (P2).
Olha, ou vem de espontânea vontade ou a nossa ronda busca, que nós temos um trabalho de ronda aqui [...] Aí a nossa ronda vai, nós conversamos com eles [...] e os que querem ir para a Cetrem irão e os que não querem terão que sair do viaduto e seguir adiante (P3).
A perua [automóvel modelo Kombi] passa cada dia num bairro. Passa também nos viadutos da Via Norte [concessionária de pedágio] [...] Essa ronda é feita o dia todo, de manhã, na parte da tarde e à noite. A Autovias [concessionária de pedágios] já trouxe um aqui outro dia que estava caminhando na Anhanguera meio alcoolizado [...] (P4).
Antigamente existia um trabalho de ronda da própria instituição. Hoje a ronda é feita pela polícia militar [...] (P5).
Chegam alguns andarilhos encaminhados pela polícia ou de albergues de outros municípios [...] Existe hoje na região um trabalho que chama resgate. Existe aqui no município de Gália [SP]... quando pegam esses andarilhos nas rodovias, eles recolhem e trazem até o albergue numa ambulância [...] Eles rondam essa rodovia aí de Bauru a Marília [SP 294] [...] Aqui também na rodovia [SP]225 entre Bauru [SP] e Jaú [SP] tem uma ambulância que recolhem andarilhos e pertence a Centrovias [concessionária de pedágios] [...] Então, muitas dessas ambulâncias levam esses andarilhos para os albergues próximos das localidades onde estão rondando (P6).
Às vezes a polícia rodoviária que patrulha o sistema Anchieta-Imigrantes [SPs 150 e 160] liga para ver se tem vaga e trazem (P7).
No que diz respeito ao modo “espontâneo” de acesso dos andarilhos às instituições assistenciais, os relatos parecem indicar uma visão coerente com os mecanismos sutis e estratégicos da normalização social dentro da proposta foucaultiana de investigação. Segundo Ewald (1993), o processo de normalização social é um mecanismo sutil de controle e distribuição dos indivíduos por todo espaço social, resultante do entrecruzamento nos campos de força do saber e do poder a produzir efeitos de “verdade” através da comparação das desigualdades e homogeneização das diferenças onde normalidade e anormalidade, por exemplo, são componentes estratégicos que o Estado utiliza para manter suas ações biopolíticas no governo da população.
No entrecruzamento desses campos, encontram-se, também, os dispositivos disciplinares que impingem, tanto no sujeito quanto no corpo, uma série de procedimentos atrelados a obrigações e deveres, obediência e submissão com a finalidade de torná-lo dócil e produtivo. Desse modo, podemos considerar que a deambulação dos andarilhos e sua recorrência de modo relativamente “espontâneo” nessas instituições assistenciais efetivam os dispositivos da ação normalizadora pelo fato delas se tornarem estrategicamente “casas de passagens” ao acolher esses indivíduos que estão apenas “de passagem” cuja finalidade é colocá-los sempre em marcha pelas rodovias visando à distribuição e o controle de suas condutas pelos territórios da marginalidade social.
Isso nos permite considerar que as instituições assistenciais funcionam nesse contexto como um “não-lugar” apropriado para os efeitos da sanção normalizadora porque tudo aí é provisório, efêmero, anônimo, circulante e não habitado de maneira estável em quaisquer situações (AUGÉ, 2004). Por essa linha de raciocínio, podemos considerar, então, que essa forma “espontânea” de chegada dos andarilhos a essas instituições assistenciais é comandada pela normalização social que subordina e mantém todos os sujeitos sob uma constante vigilância sem pivôs fixos.
O efeito da sanção normalizadora é complexo. Ele parte da premissa de que todos os indivíduos são formalmente iguais. Isto conduz a uma homogeneidade inicial a partir da qual se estabelece a norma de conformidade. Porém, uma vez posto este aparelho em movimento, há uma diferenciação e uma individuação cada vez mais sutis, que separam e organizam os indivíduos objetivamente (DREYFUS, RABINOW, 2010 p. 175).
Com efeito, a normalização social pode ser compreendida como um conjunto de medidas capaz de classificar, distribuir, hierarquizar, controlar, categorizar e comparar todos os indivíduos indistintamente de modo que as heterogeneidades e tantas outras formas de constituição subjetiva sejam também consideradas em suas particularidades já que elas são examinadas em sua distância ao modelo padrão de normalidade visando fixar e distribuir cada indivíduo objetivado e homogeneizado pelo biopoder (FOUCAULT, 2010, 2008). Portanto, a ação da norma parte do princípio de que todos os indivíduos são formalmente iguais e isso conduz a uma homogeneidade inicial a partir da qual se estabelece a diferenciação e a individuação que separa, organiza e distribui as multiplicidades humanas nas diversificadas redes de inteligibilidade do espaço social.
Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo. Evitar as distribuições por grupos; decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas, maciças ou fugidias... estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos [...] vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos (FOUCAULT, 1984, p. 123).
Assim, sob os efeitos da sanção normalizadora, os andarilhos são distribuídos para os espaços da rodovia onde não representam a priori possíveis ameaças à ordem preestabelecida. É por essa razão que os andarilhos têm o passe “livre” para circular pelos acostamentos da rodovia por um laisser-aller estratégico no sentido de deixar as coisas andarem, pois a norma controla e deixa as circulações se fazerem, se deslocarem sem cessar, separando as boas das ruins, mas “[...] de uma maneira tal que os perigos inerentes a essa circulação sejam anulados” (FOUCAULT, 2008, p. 85). Entretanto, essa aparente ideia de liberdade parece ser outro elemento estratégico utilizado pela norma no controle e na distribuição do fluxo da errância e isso explicaria os modos pelos quais as instituições assistenciais de nossa pesquisa permitem a permanência dos andarilhos por apenas dois dias, liberando-os, posteriormente, para o espaço “livre” das rodovias porque sem a presença de liberdade não há relações de poder.
O poder só exerce sobre “sujeitos livres”, enquanto “livres” - entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de possibilidade onde diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer [...] mas apenas quando ele pode se deslocar e, no limite, escapar (FOUCAULT, 2010, p. 244).
Isso significa dizer que essa ideia de liberdade posta em circulação faz os indivíduos acreditarem ter diante de si um vasto campo de possibilidades onde diversas condutas, reações e modos de comportamentos podem acontecer sem a interferência do controle e da vigilância. Contudo, esse acesso às instituições assistenciais de modo “espontâneo” verificado nos relatos parece não ser de forma tão espontânea assim pelo fato deles só recorrerem a elas quando não encontram alternativas viáveis para suprir suas necessidades emergenciais. Isso nos leva a considerar, então, que o acesso “espontâneo” a essas instituições é, na realidade, estratégias utilizadas pela biopolítica para controlar o fluxo da errância dos andarilhos pelos acostamentos das rodovias sob a supervisão da norma que captura e distribui objetivamente esses sujeitos por esses territórios da invisibilidade social. Desse modo, se não há alternativas viáveis para os andarilhos se socorrerem em momentos de extrema dificuldade, essa forma dita “espontânea” de acesso aos serviços assistenciais deixa de existir porque no emaranhado das redes de inteligibilidade do poder e do saber, esses serviços são ferramentas estratégicas utilizadas pela biopolítica para gerenciar as multiplicidades humanas no espaço social (FOUCAULT, 1979, 2008). Portanto, podemos considerar que as instituições assistenciais dessa pesquisa se configuram de fato como “casas de passagens” para os andarilhos, pois sob a operacionalidade da norma efetivam distribuição desses sujeitos pelos acostamentos das rodovias a fim de manter a estabilidade nos campos de força do poder e do saber.
No que se refere às rondas de vigilância, podemos dizer que elas funcionam na rodovia como dispositivos de segurança a serviço das tecnologias de controle sobre a vida dos andarilhos cuja finalidade é o rastreamento específico e globalizante de suas movimentações por esses espaços abertos de circulação. Nesse sentido, as rondas de vigilância policial têm por finalidade controlar todos os espaços de uma área a ser administrada, pois nada pode escapar a esse controle que identifica, analisa e captura quaisquer movimentações estranhas que possam representar riscos e ameaça à segurança estabelecida pela biopolítica no governo das condutas. Em outras palavras, essas rondas de vigilância se configuram no contexto da errância como um dispositivo de segurança que, segundo Foucault (2008), trabalha, cria, organiza, planeja e antecipa uma situação antes mesmo dela ocorrer num meio específico, ou seja, nos lugares em que se faz a circulação de pessoas nos quais é preciso intervir objetivamente.
Contudo, esse modelo de controle e vigilância sobre a circulação dos indivíduos no espaço urbano das cidades é proveniente das antigas tecnologias políticas implementadas no século XVII onde a polícia, segundo Foucault (2008), tinha como objetivo assegurar a segurança e o “bem-estar” do Estado por meio de procedimentos cuidadosos que intervinham diretamente sobre o corpo, a saúde, a higiene e as formas de se alimentar e morar. A polícia exercia nesse período mais que um poder repressivo, pois ao assumir a função reguladora de todas as coisas referentes ao “bem-estar” social, servia também como consolidadora do poder político do Estado na governalidade dos problemas de ordem pública. Além de garantir a segurança nas ruas, a polícia tinha por função nesse período assegurar a saúde pública e cuidar para que os indivíduos portadores de alguma doença contagiosa não contaminassem o espaço urbano com suas enfermidades. Portanto, a polícia era quem se ocupava de manter a lei e a ordem para a proteção e segurança do Estado, além de retirar os mendigos, os vagabundos, os doentes e os salteadores das ruas da cidade e levá-los para as instituições públicas ou filantrópicas de assistência conhecidas nessa época por “Birô de Caridade” (FOUCAULT, 2008).
Segundo o autor, tais procedimentos operatórios de controle e vigilância policial nas ruas das cidades estavam relacionados com o surgimento da peste, lepra e varíola que nesse período oferecia risco de contágio aos indivíduos considerados saudáveis e produtivos com sua força de trabalho. Foucault (2008) enfatiza que o surgimento da peste nesse período proporcionou uma nova dimensão conotativa no imaginário social relacionado à higienização e serviu para a implementação de outros dispositivos de controle e vigilância de outras “pestes” sociais encontradas nas revoltas, nos crimes, na vagabundagem, na promiscuidade, na loucura, na homossexualidade, dentre outras. Por essa linha de raciocínio, podemos considerar que a ronda de vigilância policial verificada nos relatos dessa pesquisa pode ser comparada metaforicamente a essa organização sanitária de controle e assepsia das enfermidades no espaço social do século XVII porque seu objetivo é assegurar a manutenção, a saúde e a higienização das ruas, retirando de circulação na cidade todos os trecheiros e andarilhos que são depositados nos abrigos assistenciais para serem despejados nas municipalidades vizinhas ou nas próprias rodovias para seguirem suas perambulações erráticas sem a possibilidade de contaminar os habitantes urbanos (NASCIMENTO, 2008).
Nesse caso, as rondas de vigilância têm por finalidade evitar que os andarilhos adentrem o espaço urbano das cidades, pois sob o pretexto de promover o “bem-estar” e a segurança nas ruas das cidades, atuam nos espaços abertos para controlar os riscos que estes indivíduos possam proporcionar ao suposto equilíbrio da ordem social. Isso significa dizer que uma vez identificada a presença dos andarilhos no espaço urbano da cidade, as rondas de vigilância os impedem de transitar pelas ruas e rapidamente são retirados de circulação e depositados nos albergues noturnos, casas de passagem e demais instituições assistenciais para em seguida serem postos nos corredores de circulação constituídos pelas rodovias. É por essa razão que as instituições assistenciais pesquisadas permitem um tempo curto de permanência dos andarilhos no interior de seus estabelecimentos porque é mais interessante e estratégico deixá-los na perambulação errática pelas rodovias que prendê-los na própria instituição por um tempo relativamente longo. Ou seja, a distribuição dos andarilhos pelos espaços abertos das rodovias é uma estratégia biopolítica que além de manter a execução dos programas de “bem-estar” assistencial, garante a operacionalidade da norma como tecnologia de controle desses indivíduos pelos territórios da transitoriedade.
Merecem destaque também nessa análise as concessionárias de pedágios que administram as principais rodovias brasileiras com a instalação de câmeras de monitoramento para o controle dos espaços abertos, conforme podemos observar nos relatos dos dirigentes e profissionais das instituições assistenciais pesquisadas. As câmeras de vigilância instaladas nos postos de pedágio funcionam como uma tecnologia de monitoramento dos espaços abertos e, nesse sentido, se difere do panoptismo da sociedade disciplinar que se ocupava apenas da observação dos sujeitos nos espaços fechados das prisões (FOUCAULT, 1984). No modelo do panoptismo o que estava por trás de todos esses procedimentos de controle e vigilância sob a vida dos indivíduos era a presença invisível do “olho do poder” considerado como uma maquinaria extremamente sofisticada onde ninguém possuía privilégios porque circunscrevia a todos de forma homogênea, tanto aqueles que exerciam o poder quanto aqueles sobre os quais o poder se exercia.
No caso das concessionárias de pedágios, o controle abrange os espaços abertos das rodovias onde ninguém escapa ao poder das “câmeras de vigilância” que monitora por meio de satélites cada vez mais sofisticados a movimentação dos indivíduos em tempo integral por todo o espaço social. Essas câmeras de monitoramento funcionam, assim, como um dispositivo de segurança que, associado ao Serviço de Atendimento ao Usuário juntamente com o Serviço de Atendimento Médico de Urgência presente em algumas cidades de médio e grande porte, tem por finalidade manter esse espaço de transitoriedade protegido contra qualquer comportamento que represente ameaça ou risco aos demais transeuntes que trafegam pela rodovia. Tais serviços de atendimento parecem atuar como estratégias de fiscalização do fluxo da errância dos andarilhos, pois sob o pretexto de prestarem socorro, contribuem para o encaminhamento desses indivíduos para as instituições assistenciais das cidades mais próximas que se encarregarão de distribuí-los objetivamente para outras malhas rodoviárias do país compondo, assim, uma rede integrada de controle e vigilância sobre o espaço pedagiado pelas concessionárias.
Entretanto, suspeitamos que muitos andarilhos ao descobrirem que estão sendo controlados pelas câmeras de vigilância das concessionárias, acabam circulando por estradas vicinais e rodovias alternativas ainda não monitoradas e isso explicaria, talvez, a relativa queda de circulação deles, a olho nu, pelas principais malhas pedagiadas no Estado de São Paulo, embora tais observações careçam de pesquisas futuras para maiores aprofundamentos e análises esclarecedoras. Se por um lado tais instituições endossam a errância dos andarilhos, reforçando o caráter contínuo e permanente da perambulação pelas rodovias do país, por outro lado, as rondas de controle e vigilância, constituídas pela polícia militar, guarda municipal e concessionárias de pedágios, procuram impedi-los de circularem pelas ruas das cidades por meio de medidas administrativas visando à prevenção da desordem que a vida desses indivíduos representa tanto para a gestão pública municipal quanto para as próprias companhias responsáveis pelo monitoramento das principais malhas rodoviárias do país.
Dessa forma, monitorados pelas câmeras instaladas nos pedágios, os andarilhos acabam sendo recluídos temporariamente para as instituições assistenciais quando são identificados por esses grupos de vigilância do asfalto e despejados novamente para as rodovias ou localidades circunvizinhas a partir da expiração do tempo de permanência permitido para a estadia. Seja como for, o fato é que essas concessionárias de pedágio se apresentam como uma tecnologia de controle da vida dos andarilhos e demais indivíduos em situações semelhantes nesses espaços abertos de circulação onde todas as dimensões de espaço, tempo e movimento são levadas em consideração pelos dispositivos da biopolítica.
As reflexões aqui apresentadas acerca das estratégias de controle sobre o fluxo da errância no contemporâneo nos permitem considerar que as instituições assistenciais pesquisadas e as concessionárias de pedágios se vinculam de maneira indissociável para formar uma rede de controle e distribuição dos andarilhos sobre os espaços abertos constituídos pelas rodovias. Em outras palavras, essas formas de acesso dos andarilhos que combinam ações da biopolítica e sanção normalizadora operam de maneira minuciosa e objetivante a demarcar todos os espaços de uma área a ser ordenada de modo a não haver espaço perdido, nem interstício, nem margens livres nessa rede de inteligibilidade por circulam os andarilhos.
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Ago 2016
Histórico
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Recebido
21 Set 2013 -
Aceito
7 Jul 2016