Open-access Testemunho e construção: sobre o ensino da psicanálise na universidade

Testimony and construction: the psychoanalysis teaching at the university

Resumo

O presente artigo aborda o ensino da clínica na universidade, visando apontar os limites e as possiblidades de transmissão do saber psicanalítico na experiência de estágio de graduação em psicologia. A construção analítica é retomada em suas aproximações com a função do testemunho em psicanálise, indicando o modo de operar com o saber parcial e lacunar da experiência clínica como uma pista interessante para inspirar metodologias de trabalho, tanto para o ensino universitário quanto para a prática de profissionais com percursos heterogêneos. O testemunho é por sua vez pensado em relação com uma crise na verdade, aproximando os campos da literatura e da psicanálise a partir da constatação da impossibilidade de sua plena representação. Essa perspectiva abre uma via de acesso que leva a experimentar os limites do saber em circunscrever o valor sempre inédito da experiência clínica. Concluímos sobre a possibilidade de pensar o ensino e a transmissão da psicanálise através do que se testemunha na posição de aprendizes da clínica.

Palavras-chave: psicanálise; universidade; clínica; testemunho; construção

Abstract

This paper approach the clinical teaching at the university, aiming to identify the limits and possibilities of transmission of psychoanalytic knowledge in trainees graduate experience in psychology. The analytical construction is taken up in its relationship to the function of testimony in psychoanalysis, indicating the mode of operation with knowledge partial and incomplete clinical experience as an interesting clue to inspire working methods both for the university and for the practice professionals with heterogeneous routes. The testimony is in turn approached in relation to a crisis in truth, bringing the fields of literature and psychoanalysis from the finding of the impossibility of its full representation. This perspective opens a way of access that leads to experiencing the limits of knowledge in circumscribing the ever new value of clinical experience. We conclude about the possibility of thinking about teaching and transmission of psychoanalysis by that witness in the learners clinical position.

Keyword: psychoanalysis; university; clinic; testimony; construction

O estágio curricular é um requisito obrigatório da graduação em psicologia, podendo se dar em vários campos, dentre os quais a clínica. No presente artigo, abordamos o ensino da psicanálise na universidade a partir do trabalho de acompanhamento e orientação de estágio em clínica, de modo a apontar as dificuldades e possibilidades de transmissão do saber psicanalítico quando voltado para alunos de graduação, os quais, com percursos heterogêneos, muitas vezes não iniciaram uma análise, não havendo, portanto, experimentado a posição de analisante; frequentemente, nem mesmo sabem se desejam se tornar analistas. Realizamos, deste modo, considerações sobre a especificidade do saber psicanalítico como um saber sempre parcial e marcado pela falta (ANSERMET, 2003), demonstrando sua proximidade com o testemunho enquanto procedimento utilizado no campo literário, que estabelece um modo de relacionamento com aquilo que escapa ao campo das representações (MANDIL, 2005). Apontamos algumas dificuldades na preservação deste modo específico de saber na atualidade, que se ligam ao desgaste sofrido pela narrativa no mundo contemporâneo (MACEDO, 2010, online). A excessiva exibição e a exposição do íntimo são apontadas como fatores que contribuem para a banalização da narrativa na cultura, perdendo seu poder de atração. A descrença na palavra e em seus efeitos relaciona-se a uma dificuldade crescente no estabelecimento de laços afetivos duradouros, o que coloca novos desafios para o estabelecimento de uma relação transferencial e dificulta a manifestação do desejo de saber sobre o inconsciente e seu modo de funcionamento (BROUSSE, 2009). Nesse sentido, as situações de urgência assumem o protagonismo na clínica, como já indicava Lacan em 1976 ao destacar a necessidade de os analistas estarem cada vez mais a par destes casos, no sentido de fazer par com eles (LACAN, 1976/2003), ou seja, contribuindo para a reconexão dos sujeitos com a palavra em uma prática de testemunho. A inserção dos analistas na saúde pública brasileira, e em especial no campo da saúde mental, atende à necessidade salientada por Lacan (1953/1998) de reinvenção da psicanálise de modo a responder à subjetividade de cada época. Nesse sentido, os analistas têm ativamente trabalhado para incluir aqueles que não respondem ao dispositivo clássico e exigem um reordenamento das coordenadas de tratamento, de modo a viabilizar a reconexão do sujeito com sua história e possibilitar o reposicionamento diante do sofrimento (UHR; MUÑOZ, 2013). Este campo de atuação, fortemente marcado pelo trabalho multiprofissional, tem produzido formas de trabalho em equipe e metodologias que permitem demonstrar um modo de operar que leva em consideração e inclui o que há de único e singular em cada caso. Essa ampliação da clínica se dá no que se refere à clientela atendida, mas também ao modo de organização do trabalho, e traz consequências interessantes para o estágio em clínica, possibilitando que o aluno de graduação experimente um modo de trabalho orientado pela psicanálise que dialoga com a realidade dos serviços e de seus utilizadores. A inserção da psicanálise no campo da saúde mental trouxe contribuições interessantes para a organização do trabalho com profissionais de outras categorias, ou seja, não analistas, que podem orientar a construção de uma nova metodologia de ensino da clínica na universidade. Apontamos, contudo, alguns riscos relativos à aplicação da psicanálise ao campo da saúde mental, que devem também ser levados em conta no ensino da clínica na universidade.

Crise e testemunho: aproximações

A literatura de testemunho é definida como um gênero narrativo e artístico surgido no século XX, em resposta aos crimes de guerra, mais especificamente em torno da memória dos campos de concentração. Seligmann-Silva (2005) aponta que a Segunda Guerra Mundial instaura uma crise profunda na representação, já que os horrores cometidos escapam à possibilidade de representar. A ausência de um aparato conceitual para abarcar o acontecimento, faz com que este não possa ser inteiramente representado. O testemunho não pretende realizar um discurso totalizador ou completo dos fatos; a utilização de pequenas partes de memória serve como via de apresentação do acontecimento vivido e de seu impacto. Não é tanto o relato dos fatos que conta, mas a estranheza que causam, o modo como perturbam e alteram o cotidiano.

O testemunho surge, então, em consonância com uma crise na verdade, com a constatação da impossibilidade de sua plena representação. É nesse sentido que a psicanálise desenvolve uma relação com o testemunho que se aproxima do procedimento utilizado no campo literário. A ideia de trauma e escrita, associadas ao testemunho, inauguram uma nova modalidade narrativa na história da cultura (FELMAN, 2000). A partir do relato do sonho da injeção de Irma, Freud (1900/1987) incorpora o acidente produzido pelo encontro clínico, visando atingir uma verdade não inteiramente acessível, que não pode ser completamente desvelada. Ao invés da pretensão de escrever um enunciado sobre a verdade, a manobra freudiana possibilita um modo de acesso à verdade que parte de um encontro sempre pontual e particular. A escrita do sonho faz com que Freud se desloque de sua posição inicial em relação à sua paciente e permite que seu testemunho ressoe com o dela. O relato do sonho conta a história de um processo discursivo no qual uma verdade é gerada, mas que, no entanto, continua a escapar, realizando assim o testemunho particular de um acidente.

A crise, o acidente, deixa de ser um evento raro em nossa cultura e passa a povoar cada vez mais o cotidiano (SELIGMANN-SILVA, 2008). Nessa mesma direção, Laurent (2011) mostra que o laço social se torna cada vez mais frágil, levando os indivíduos a experimentarem seu caráter de ficção. É importante lembrar que o laço social depende, para sua existência, de um discurso que o ponha em marcha, ou seja, sua sustentação depende de que ele seja viabilizado através de um discurso (LACAN 1969-70/1992). A aliança do discurso científico com o discurso capitalista produz um leque de respostas prontas e pré-fabricadas que prometem o fim do mal-estar e atiçam o gozo, produzindo um sujeito universal e impessoal, isolado em seu gozo solitário e fechado sobre si mesmo (NAPARSTEK, 2005). Na atualidade, a tendência à normalização do sujeito faz com que este desapareça em sua diferença. Como indica Pinto (2008), a releitura efetuada por Lacan do pensamento freudiano tem por função reavivar a psicanálise e reafirmar o seu objeto, reinventando a investigação, o método da cura e a teoria, respondendo à exigência da psicanálise de adaptação do dispositivo aos desafios e ao modo de organização subjetiva de cada momento histórico. O movimento empreendido por Lacan convoca os analistas a manterem uma posição de busca constante por procedimentos táticos que respondam às condições produzidas pelas transformações da sociedade. Nesse sentido, autores do campo analítico têm apontado que a crise e seu manejo desafiam cada vez mais a clínica, exigindo que os analistas repensem seus instrumentos de ação (TARRAB, 2005; CALAZANS; BASTOS, 2008).

Viganò (2012) aborda a urgência e a crise como um momento da experiência de uma pessoa que ocorre em anterioridade lógica ao sintoma e que requer sua transformação em ato. Abre-se, assim, a via de possibilidade de assunção do sujeito, trazendo à cena a dimensão de uma escolha que não pôde se dar. Trata-se, então, de estabelecer, em cada situação, estratégias que possibilitem a emergência de um sujeito, ajudando a fornecer as coordenadas simbólicas necessárias à sua aparição. O autor aponta, ainda, que a crise não deve ser tomada como uma demanda de tratamento, mas como a manifestação de uma impossibilidade de testemunhar.

A prática fora dos consultórios exige novas estratégias que possibilitem a instauração de um laço transferencial com sujeitos que não respondem ao modelo clássico de apresentação do sintoma. A partir da posição de aprendiz da clínica, Zenoni (2000) situa o lugar de onde deve responder aquele que, orientado pela psicanálise, deseja sustentar casos graves que não obedecem a um tratamento padrão. O trabalho nas instituições e no campo da saúde mental tem implicado a aposta coletiva em invenções singulares, recolhendo indicações a cada caso, a partir do sintoma apresentado pelo sujeito. As intervenções são avaliadas a partir desse elemento único, singular, estabelecendo novas estratégias e efetuando reposicionamentos quando preciso, de modo a não atrapalhar o trabalho espontâneo do sujeito. Por isso a psicose é tomada como modelo para esta nova clínica, na medida em que não se ancora em nenhuma padronização e exige pensar, a cada caso, em como construir uma forma inédita de laço com o social. Toma-se o caso único como modelo de ação, evitando o risco de hierarquização do saber e instaurando o compartilhamento de responsabilidade no trabalho em equipe. O esvaziamento do saber prévio conduz ao estabelecimento de uma dispersão nas relações transferenciais em uma via diferente de um sujeito suposto saber, o que é mais condizente com a posição subjetiva da psicose, mas também com os chamados novos sintomas (RECALCATI, 2004, online; VILANOVA, 2012). Ou seja, adota-se uma perspectiva que inclui a clínica e o modo de organização subjetiva nos processos de trabalho e nos fundamentos da instituição.

O trabalho de construção de casos serve como via de orientação que se transmite ao campo da saúde mental, enquanto campo que acolhe saberes heterogêneo sobre a clínica (BURSZTYN, 2010) e envolve profissionais de várias categorias, não necessariamente analistas. Pensamos que este modo de operar pode nos fornecer pistas interessantes e inspirar metodologias de trabalho para o ensino da clínica na universidade, tanto pelo procedimento utilizado para o trabalho com profissionais com percursos heterogêneos quanto por apontar os novos desafios que surgem na abordagem de uma clientela que não responde ao modelo clássico de formação do sintoma.

A construção e a prática do testemunho em psicanálise

Conforme a indicação de alguns autores (VIGANÒ, 2010; LAURENT, 2003; MALENGRAU, 2003), uma das primeiras referências à noção de testemunho, empregadas no início do ensino de Lacan, indica o “ato de testemunhar de uma experiência clínica” (LACAN, 1955-56/2002, p. 49-50), o que permite aproximar essa ideia da construção tal como formulada por Freud. A construção designa em Freud (1937/1987) a relação que o analista estabelece com o que permanece recalcado, com o pedaço faltante na cadeia significante, ou seja, com aquilo que o trabalho analítico não consegue restituir pela via do sentido. Utilizando-se da metáfora do arqueólogo, Freud assemelha a tarefa de reconstruir as partes do mundo perdido à tarefa do analista em sua reconstrução do objeto psíquico, com a extração de repetições que resultam de fragmentos, restos, pequenos pedaços de lembranças que se apresentam no curso de uma análise, ainda que os significantes se percam ou que sejam esquecidos. Mas ele separa o objeto psíquico do objeto material da arqueologia, no sentido de que, “para o arqueólogo, a reconstrução é o objetivo final de seus esforços, ao passo que, para o analista, a construção constitui apenas um trabalho preliminar” (FREUD, 1937/1987, p. 294). A construção permite a realização de um trabalho preliminar que se modifica pelos novos elementos que surgem a cada vez, a cada sessão, remetendo-se ao que não pode ser rememorado e, portanto, aos momentos em que o analista se depara com um ponto perdido que não reaparece na fala do analisante. Já a interpretação é uma intervenção que incide em um fragmento de construção, ou seja, designa uma operação simbólica que visa reintegrar os significantes perdidos.

A construção diferencia-se da prática da apresentação de pacientes; nesta última uma plateia assiste à entrevista preliminar de um paciente, ao passo que na primeira o trabalho se dá em torno do texto do caso. Destacamos, ainda, a diferença entre uma prática de estudo de caso, que poderá simplesmente narrar, historicizar uma determinada teoria, sem testemunhar a contingência de cada encontro clínico, e uma prática de construção, que testemunha, no plano da enunciação e do texto do caso, o ponto cego da narrativa, sem engessar o impossível em jogo na experiência. Vemos, então, que essa modalidade de transmissão se afasta de uma simples comunicação ou compreensão consensual dos princípios clínicos e teóricos da psicanálise. Distancia-se, assim, da apresentação do caso como demonstração da teoria, geralmente reduzida ao diagnóstico diferencial do paciente, e das narrativas exaustivas ou vinhetas clínicas, situação na qual a condução do tratamento se encontra reduzida à exposição de um conjunto de significantes que acabam por excluir o real do ato (LAURENT, 2003).

A construção permite organizar o trabalho na saúde mental a partir da demonstração lógica das escansões que direcionam um tratamento, fomentando a autoridade clínica que orienta o trabalho em equipe, como uma autoridade que não pode ser pré-constituída, mas somente reconhecida a posteriori. A partir da elaboração de elementos extraídos das narrativas e dos registros de casos, tais como a discussão diagnóstica, a expressão singular dos sintomas, a relação transferencial, as demandas e os diversos momentos de um tratamento, realiza-se um recorte temporal que permite recolher os deslocamentos do sujeito no discurso. Tem assim a função de motor e impulsiona a equipe a ocupar um lugar no tratamento e a assumir os riscos que essa manobra envolve a cada vez e em cada situação. Convém ainda destacar a importância de tomarmos o caso como uma construção que envolve a escuta do sujeito em sua particularidade, as variáveis e transformações que se decantam de sua história, o enigma do sintoma, os atos falhos, entre outros elementos explorados sob transferência. A operação freudiana de construção é pensada, então, como manobra que possibilita bordejar um furo originário, restaurando sua topologia, como furo da falta que causa o desejo (VIGANÒ, 2010, online). Ela demarca a experiência analítica como essencialmente fragmentária e, portanto, diferenciada de “uma narração que visa à completude” (MILLER, 1996, p. 94).

Essa via nos fornece pistas para pensar o ensino da clínica na universidade, abrindo a possibilidade de transmissão da lógica do caso único, abordada não a partir de uma determinada teoria, mas a partir do testemunho de uma equipe no encontro com o não programado da experiência clínica, recolhido na narrativa de cada caso. Valoriza-se, assim, o testemunho das diversas fases envolvidas no trabalho, recolhendo o movimento do sujeito. Visa-se, com isso, a obtenção de um cálculo possível da posição a ser ocupada em cada caso, preparando a equipe para escutar a palavra do sujeito, quando esta vier (VIGANÒ, 2012). Ou seja, a construção tem por função viabilizar a reativação da relação do sujeito com a alteridade e com a linguagem, construindo condições para sua sustentação. É nesse sentido que oferece uma resposta nova ao trabalho com a crise, entendida como “manifestação contingente de uma insuportabilidade” (VIGANÒ, 2012, p.180).

Propomos tomar a prática da psicanálise nos novos dispositivos de saúde mental como referência para atualização de ferramentas de ensino da clínica, que transmitam o modo de operar da orientação analítica diante dos novos sintomas e abordagens terapêuticas que desafiam a formação profissional em um campo eclético de saberes. Encontramos, na construção de casos, condições para um trabalho de investigação pontual e parcial, cujo valor metodológico se sustenta na singularidade do caso clínico, que exploramos na posição de aprendizes diante do furo no saber, que exige constante elaboração sobre a prática como modo de circunscrever o real da experiência clínica (BURSZTYN, 2010).

O ensino da clínica psicanalítica na universidade: crise e testemunho

Felman (2000), a partir de uma experiência inovadora de ensino, estabelece aproximações entre psicanálise e literatura. A experiência como docente em um curso de literatura permitiu à autora problematizar a função do testemunho na experiência de ensino. Ao longo do curso, que abordava a relação da literatura com o testemunho, a autora se viu impactada diante da reação de seus alunos: após a apresentação de vídeos com relatos de sobreviventes de campos de concentração, inesperadamente foram levados a experimentar uma crise. A partir dessa experiência, a autora sinaliza a articulação inevitável do ensino com o imprevisto, bem como do processo de aprendizagem com a crise e seu atravessamento. A aprendizagem não pode ser pensada como uma simples aquisição de fatos ou informações, sendo um processo que envolve o acesso à crise, não tanto para encontrar novos modos de representá-la, mas para reintegrá-la em um novo enquadre. A crise provoca o surgimento de uma dimensão crítica e imprevisível que requer um manejo específico para bordejá-la. A reintegração da crise em novo enquadre implica o estabelecimento de relações com presente, passado e futuro. Isso leva a autora a afirmar que o processo de aprendizagem não se dá sem o testemunho, no sentido de que o ensino deve mobilizar o sujeito, colocando-o a trabalho e fazendo algo acontecer.

Essas considerações podem ser aplicadas ao ensino da clínica na universidade, a partir da lacuna de saber inerente ao campo psicanalítico. Figueiredo (2008), ao retomar as indicações freudianas a respeito das possibilidades de inserção da psicanálise na universidade, coloca o saber passível de ser transmitido na graduação ao lado de um saber sobre a psicanálise. Sugere que, diferentemente, na pós-graduação um saber a partir da psicanálise encontra terreno mais favorável para seu estabelecimento, já que os estudantes costumam possuir um percurso prévio na psicanálise que viabiliza a vinculação do estudo teórico a um campo de intervenção clínica. Entretanto, a autora aponta que o estágio na graduação também pode se configurar como campo privilegiado, na medida em que promove um encontro com o real da clínica que introduz uma relação diferenciada com a psicanálise. Sendo assim, é pertinente a criação, na universidade, de metodologias de aprendizagem da clínica que levem em conta o tipo especial de laço que a psicanálise entretém com o saber e que auxiliem o aluno a recolher os efeitos desse encontro em termos de transmissão. O risco a evitar, como assinala a autora, seria o de recair em uma análise selvagem no espaço de ensino.

O desafio consiste, portanto, em encontrar meios de transmissão, na universidade, de um saber parcial, lacunar e marcado pela falta. A clínica psicanalítica se constrói no caso a caso e em torno de um impossível de saber, colocando professor e aluno em posição de pesquisa, o que rompe definitivamente com a ilusão de um saber total, passível de ser transmitido integralmente. O saber psicanalítico encontra-se do lado de um desejo de saber, tornando oportuna a circulação da falta de saber entre professor e aluno, de modo a lançá-los “à busca de saber sobre como manejar os efeitos do trabalho do dito aprendiz que, ao se oferecer à escuta de um sujeito toma para si uma responsabilidade que o deixa inteiramente só em sua ação” (FIGUEIREDO; VIEIRA,1997, p. 90).

Como dissemos, o vazio de saber tem como marco a produção narrativa na experiência analítica fundada na associação livre, como um esforço de testemunho que esbarra em um limite intrínseco ao campo da representação. A experiência psicanalítica leva o sujeito não apenas a verificar a existência de um impossível na fala, mas a realizar um esforço para estabelecer modos de relacionamento com ele: “Essa relação não pode ter nenhum sentido se a impossibilidade demonstrada não for estritamente uma impossibilidade de pensamento, porque esta é a única demonstrável” (LACAN, 1971-1972/2012, p. 113). Sendo assim, o saber passível de ser extraído das formações do inconsciente, “do tropeço, do ato falho, do sonho, do trabalho do analisando” não é um saber suposto, mas “saber caduco, migalha de saber; submigalha de saber” (LACAN, 1971-1972/2012, p. 77). Freud já apontava, em seu caso clínico a respeito de Hans, que “todo o conhecimento é um monte de retalhos, e [...] cada passo à frente deixa atrás um resíduo não resolvido” (FREUD, 1909/1987, p. 94), acentuando que o jovem investigador havia chegado a essa conclusão cedo demais.

Pinto (2008) aponta que a psicanálise encontra, na universidade, um papel relevante em termos de veiculação do saber na cultura, mas não deve deixar-se seduzir pelo discurso universitário, situação na qual o saber psicanalítico correria o risco de se deixar suplantar pelo universal, transformando-se em um saber estabelecido a ser replicado. Propõe, como solução, que a pesquisa da psicanálise na universidade implique um processo de subjetivação da teoria, desfazendo-se da tentação de partir de afirmações como verdades a serem sustentadas. Indica, assim, que um estudo na universidade deve partir de uma questão que coloca o pesquisador, como sujeito, em movimento e mobiliza o desejo de saber. Um problema de pesquisa ou indagação deve conduzir o pesquisador à criação de modos próprios de lidar com a verdade, que aparece ligada à surpresa e à contingência. A desestabilização dos conceitos e as lacunas teóricas não são mais vistas como marca da insuficiência do saber, mas como material de trabalho que pode auxiliar na busca de “opções de escolha coerentes com as formas de aparecimento da verdade” (PINTO, 2008, p. 79).

Esta perspectiva parece-nos interessante para o ensino da clínica na graduação, tendo em vista que os alunos frequentemente chegam ao estágio clínico sem ter realizado uma análise pessoal e apenas com um primeiro contato da ordem de um saber sobre a psicanálise nas disciplinas teóricas cursadas. O desafio do ensino da clínica consiste em encontrar meios de promoção de uma abertura do aluno ao saber inconsciente, oferecendo uma leitura que se apresente como via para lidar com o real da clínica. Cabe, entretanto, enfatizar que embora a aproximação com os conceitos psicanalíticos e a experiência clínica possam ser suficientes para precipitar a procura de uma análise, este não é um efeito controlável e muito menos uma imposição, podendo ocorrer apenas de maneira espontânea e (co)lateral. Fica então o paradoxo de ensinar psicanálise àqueles que nunca a experimentaram... Tarefa impossível?

Ao associarmos o testemunho com a transmissão da psicanálise, incluímos nessa articulação o modo próprio da clínica psicanalítica de propor o relato e a construção dos casos ao campo eclético da formação universitária. Em linha direta com essa tarefa de transmissão, situamos a dimensão do testemunho na escritura clínica como uma demonstração que se oferece também à pesquisa em psicanálise. Assim, a função do testemunho convoca o aluno/aprendiz, na construção do caso ou na formalização de uma pesquisa, a experimentar os limites do saber em circunscrever o valor sempre inédito da experiência clínica.

Ao apresentar o tema do testemunho, concluímos que um de seus fundamentos designa o modo como o saber convoca ao trabalho, levando à subjetivação das hipóteses e elaborações dos conceitos na construção de casos. Essa orientação se remete à maneira como se emprega o valor metodológico do caso clínico na investigação psicanalítica: o caso ensina, e é a partir desse ensinamento que nos colocamos e conduzimos o trabalho da construção à pesquisa clínica. Situamos, portanto, um modo possível para pensar o ensino e a transmissão da psicanálise na universidade através do que se testemunha na experiência clínica.

Como mostra Berenguer (2009), Lacan se refere, ao longo de seu ensino, à obra freudiana como um testemunho, o que nos permite ver Freud em posição analisante, ou seja, fazendo do real, com o qual precisa se haver, causa de trabalho. Ressalta, ainda, que em psicanálise é impossível pensar o ensino separado do testemunho. Este, por sua vez, deve ser entendido como produção, discurso que é também forma de participação em uma experiência. É importante frisar que o testemunho comporta o falho, o ilegível, e por isso mesmo se constrói no limite do discurso e da formalização, permitindo operar com aquilo que no saber estabelecido fica escamoteado. O testemunho revela o limite do saber para circunscrever o real e faz aparecer aquilo que é opaco, mas que nem por isso deixa de estar em função no discurso analítico.

O trabalho de construção no ensino da clínica pode fornecer subsídios para operar diante de um ponto cego que aponta para a falta de saber, que constitui o sujeito e seu sintoma. Dito de outro modo, conduz a um modo de ensino da clínica orientado por esse encontro com algo inassimilável pela via do sentido, preservando, em seu processo, a transmissão do real em jogo no tratamento. E se sobre o real não se pode dizer e nem sequer representar, a dimensão do testemunho instaurada no trabalho preliminar da construção possibilita uma prática vivenciada a partir da posição de aprendizes da clínica no âmbito da formação universitária.

Embora consideremos o campo da saúde mental como um terreno fértil para experimentar as possibilidades e limites do trabalho psicanalítico na atualidade, o saber-fazer que deriva dessa prática pode seduzir o aluno, fazendo-o perder de vista aquilo que é central para a psicanálise e que diz respeito ao que não se encaixa e não se conforma às normas, o intratável do sintoma. Assim como no campo da saúde mental, a valorização de um modo específico de fazer pode dar a impressão de que a solução prevalece ou até mesmo anula o problema que a engendrou, ou seja, é preciso zelar para que a transmissão do saber-fazer não apague o ponto de impossível em torno do qual a operação clínica se estrutura. Ou seja, a transmissão da psicanálise requer um modo de relação com o não saber, caso contrário se incorreria em um modo de leitura simplificado, banalizado, que descarta justamente aquilo que se apresenta como invenção, como modo de superação de um impasse, sempre pontual e ligado a uma impossibilidade lógica. A transmissão da psicanálise na universidade deve conservar essa dimensão, sustentando junto ao aluno um modo de trabalho inventivo e original que não exclua a parcialidade do saber, mas que parta de seus pontos de tensão e daquilo que não pode ser integralmente assimilado. É preciso ter em mente que o saber do psicanalista não é generalizável, mas um saber particular, inédito, fundado no encontro com o caso único. O saber exposto da universidade é, assim, confrontado com o saber que não pode ser inteiramente dominado, a formação sendo por isso interminável, inacabada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    23 Jan 2016
  • Revisado
    28 Fev 2019
  • Aceito
    28 Fev 2019
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