Resumo
Este relato de experiência, calcada na perspectiva ergológica, apresenta questões que moveram uma intervenção em uma Secretaria de Trabalho, Emprego e Renda de um município do Espírito Santo e alguns dos efeitos observados entre os participantes deste trabalho. Procuramos demonstrar que a produção de um gênero profissional em serviço público se dá em uma tripla temporalidade: uma temporalidade caracterizada pela marcação cronológica do que se vive no aqui-e-agora, fortemente influenciada pela superação cotidiana das demandas do serviço; uma temporalidade dos acontecimentos sucessivos ao longo do tempo, como a sucessão de gestores do serviço; e uma temporalidade não cronológica e intermediária, constitutiva das regras partilhadas pelos trabalhadores, onde se conjugam os meios de se enfrentar as ambiguidades impostas pela intensidade dos tempos mais longos, e as impostas pelas demandas do dia a dia. A produção desse gênero profissional envolve diálogos e enfrentamentos constantes com outros gêneros que operam nesse tipo de serviço, em particular o gênero das relações político-partidárias. Uma intervenção nesse cenário requer a compreensão dessa complexidade de coletivos e histórias ali presentes, para que seus efeitos sejam mais efetivos.
Palavra chave: Secretaria de Emprego e Renda; clínicas do trabalho; Ergologia; gênero profissional
Abstract
This report, based on the ergological perspective, presents questions that guided an intervention in a Secretariat of Labor, Employment and Income of a municipality of Espírito Santo and some of the effects observed among the employees. We seek to demonstrate that the production of a professional genre in public service takes place in a triple temporality: a temporality characterized by the chronological marking of what is lived in the here and now, strongly influenced by the daily overcoming of service demands; a temporality of successive events over time, such as the succession of service managers; and a non-chronological and intermediate temporality, constitutive of the rules shared by the workers, which combine the means of confronting the ambiguities imposed by the intensity of the longer times, and those imposed by the demands of everyday life. The production of this professional genre involves constant dialogues and constant confrontations with other genres operating in this type of service, in particular the genre of political party relations. An intervention in this scenario requires the understanding of the complexity of collectives and stories present there, so that its effects are more effective.
Keywords: Secretary of Labor; Employment and Income; clinics of work; Ergology; professional genre
O presente artigo refere-se ao relato de experiência de intervenção de um grupo de alunos de graduação do curso de psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo junto a uma Secretaria de Trabalho, Emprego e Renda de um município do Estado do Espírito Santo, onde se oferece o serviço de apoio ao trabalhador do Sistema Nacional de Emprego (Sine). Orientada pela perspectiva ergológica (SCHWARTZ; DURRIVE, 2010), e articulando conceitos das clínicas do trabalho (BENDASSOLLI; SOBOLL, 2011), em particular a da Clínica da Atividade (CLOT, 2010), essa intervenção propiciou, no âmbito acadêmico, desenvolver conceitos que contribuem para compreender processos de gerenciamento e intervenção em serviços públicos sustentados em indicações de cargos em comissão. Inicialmente, em conversas informais com as psicólogas de uma Secretaria de Trabalho de um município do Espírito Santo, foi-nos demandado auxílio teórico-técnico para resolução de problemas identificados nos modos de organização e gestão do trabalho de profissionais do Sine e seus efeitos na saúde e satisfação dos trabalhadores, principalmente naqueles que atuavam no atendimento direto à população. Segundo as psicólogas, estes problemas acarretavam rotatividade de profissionais, elevado absenteísmo e piora dos serviços prestados aos munícipes.
Pactuou-se por uma ampla intervenção junto ao grupo de trabalhadores mais afetados por esses problemas - os atendentes dos usuários - a qual fosse capaz de abarcar também os elementos estruturais que tornam inviável a recomposição de saberes desses profissionais em direção à oferta de bons serviços e satisfação no trabalho. Nesse sentido, embora o foco final de trabalho fosse a melhora das condições de trabalho dos profissionais atendentes, ficou evidente a necessidade de ampliar os métodos de intervenção para outras áreas da organização em questão.
Bases teóricas da intervenção
Antes de tudo, considera-se o trabalho desenvolvido nessa organização como uma atividade de trabalho. Para tanto, recorremos ao suporte teórico-metodológico da Ergonomia da Atividade (FALZON, 2007), da Clínica da Atividade (CLOT, 2010) e da Psicodinâmica do Trabalho (DEJOURS, 2012), coordenados e operados pelas orientações epistemológicas da Ergologia (SCHWARTZ; DURRIVE, 2010). O uso de perspectivas teóricas distintas, algumas das quais possuem em suas bases epistemológicas teorias às vezes opostas, foi realizado a partir da escolha de uma perspectiva filosófica, a Ergologia, que serviu de orientação geral, propiciando articular conceitos dessas diferentes abordagens em uma mesma intervenção que minimizou os riscos das possíveis divergências teóricas dali advindas. O uso desse conjunto diverso de ferramentas se deveu à necessidade de lidar com um fenômeno complexo e que propiciasse, também, a familiaridade dos alunos com uma gama ampla de métodos, teorias e instrumentos possíveis de intervenção. Reiteramos que a ancoragem dessa intervenção na Ergologia, e compreendendo que todas as abordagens utilizadas partilhavam entre si vários eixos analíticos em comum, garantiu uma intervenção adequadamente alinhada aos propósitos definidos pela equipe de intervenção.
Dessas diversas abordagens teóricas, detivemos, sobretudo, a concepção de que cada trabalho não se conhece e não se define apenas pelas condições, tarefas e expectativas que estão dadas previamente ao trabalhador quando exerce suas atividades e os produtos produzidos a partir dessas condições. Pelo contrário, há contínua incompatibilidade entre aquilo que se antecipa e prescreve e aquilo que cada situação momentânea exige. Há sempre algo de inusitado, imprevisto, variável; há sempre uma surpresa. Na busca de superar essa distância entre o que se exige do trabalhador e o que a situação exige, o trabalhador se mobiliza, procurando recentrar o meio a partir de si (SCHWARTZ; DURRIVE, 2010), o que se configura como um aspecto sempre potencial de expressão de sua vida singular e humana. É no exercício mesmo do seu fazer que se abrem espaços para inventividades e reservas de alternativas (SCHWARTZ; DURRIVE, 2010). Mais que vítimas, é no concreto, na ação cotidiana de trabalho, que se desenrola uma dramática, uma história mais ou menos carregada de afetos e tensões (SCHWARTZ; DURRIVE, 2010) e de negociações (SATO, 2002) que se furta a formas de antecipação totalmente conhecíveis. Ali os trabalhadores são também agentes.
O trabalho executado pelo trabalhador se ancora em apostas de que os efeitos das ações escolhidas (ou possíveis) por cada um, e pelo coletivo em geral, serão capazes de atender às exigências que se lhes impõem. Tais apostas serão, ao mesmo tempo, produtoras de saúde para si, de um trabalhar melhor e de um trabalho bem feito (CLOT, 2010; SCHWARTZ; DURRIVE, 2010). Em outras palavras, o trabalhador se arrisca, lançando mão de contínua inventividade e mobilização do corpo-si para que a produção ocorra (SCHWARTZ; DURRIVE, 2010), uma vez que a atividade laboral nunca é mera repetição das tarefas determinadas pela gerência, seja por exigências corporais, cognitivas e subjetivas dos trabalhadores, por problemas existentes nos meios de produção, ou mesmo por acasos. Nesse processo, a saúde se produz no momento em que tal mobilização pessoal se dá, tornando viável a realização das tarefas, a produção de identidade e sentido do trabalho, bem como seu reconhecimento por si ou por outros (CLOT, 2010; DEJOURS, 2012).
Entretanto, nem sempre essa aposta resulta em escolhas que viabilizam a produção de saúde e de um trabalho bem feito. A partir das perspectivas filosóficas canguilhemianas, de que a saúde é a capacidade normativa (CANGUILHEM, 2011), podem-se generalizar os processos de adoecimento no mundo de trabalho como a impossibilidade de se reinventar saídas individuais e coletivas às exigências impostas pela incongruência entre o que as tarefas impõem e a realidade permite. Em situações como essas, muitos trabalhadores não conseguem criar alternativas aos modos de realizar um bom trabalho, o que acarreta doenças físicas ou mentais (DOPPLER, 2007). Sendo assim, compreender o processo de adoecimento desses trabalhadores requer compreender não só as condições de trabalho a que estão submetidos, ou suas características pessoais, mas também como trabalhadores e a organização do trabalho (DEJOURS, 2012) dialogam e são geridos no labor cotidiano.
A concepção do trabalho como atividade transforma os modos como se produz uma intervenção de psicólogos no campo do trabalho. De um lado, requer que sua ação seja menos centrada em instrumentos e conceitos determinados a priori e mais na maneira como tais instrumentos e conceitos utilizados contribuem ou não para que os trabalhadores tenham condições de escolher a melhor maneira de se mobilizarem na atividade. De outro lado, torna inevitável a recusa do papel de especialista do psicólogo, já que reconhece que qualquer uma de suas práticas, se não quer se tornar uma usurpação (SCHWARTZ, 2009), será sempre renormatizada e retrabalhada pelos próprios trabalhadores a que elas se dirigem.
Além dessas condições, observam-se aí outras exigências que devem ser respeitadas: 1) os protagonistas da intervenção nunca são somente os psicólogos, exatamente porque, ao final, os trabalhadores são os agentes últimos de suas atividades; 2) ao mesmo tempo, a intervenção dos psicólogos não depende somente de suas ações e a dos trabalhadores, sendo fundamental, em boa parte da intervenção, o envolvimento de setores responsáveis pela prescrição das tarefas (DANIELLOU; BÉGUIN, 2007); 3) essa postura não implica a desresponsabilização das ações dos psicólogos, já que as ações de outros envolvidos relacionam-se também às suas; e 4) as intervenções são sempre produtoras de saberes, tanto entre os trabalhadores quanto entre os que intervêm; daí a exigência ergológica de que os psicólogos repensem, durante a após as intervenções, os conceitos previamente utilizados; trata-se de colocar o conceito à prova do real (SCHWARTZ; DURRIVE, 2010). Nesse vaivém entre conceito e experiência, é o desenvolvimento desses dois eixos - trabalhadores e psicólogos - que se observa como fruto de uma boa intervenção dos psicólogos no trabalho.
Em busca de atender à demanda anteriormente apresentada, e tendo por subsídio os conceitos supracitados, realizamos uma intervenção que nos permitiu analisar e descrever como o modo de funcionamento daquele serviço relacionava-se com os efeitos observados tanto na saúde quanto na produção de subjetividade dos envolvidos (gestores, trabalhadores e usuários - e, por que não, em nossa equipe de pesquisa-intervenção) e na qualidade do serviço prestado.
Métodos da intervenção
A intervenção se desenvolveu durante quase dois anos, em duas etapas, ambas contando com a participação de 12 alunos e 3 professores (esse quantitativo se refere ao total de participantes ao longo do tempo, embora em determinados períodos o número não tenha sido exatamente esse), que realizaram as seguintes atividades. Na primeira etapa, mais próxima do que se chama regularmente de diagnóstico situacional, o grupo objetivou compreender aspectos gerais do funcionamento do Sine na perspectiva dos trabalhadores e as demandas de emprego, formação, qualidade do serviço e aspectos de melhoria do Sine; avaliar algumas características culturais das relações e trabalho na Secretaria; identificar e analisar as condições de trabalho da organização; compreender a (in)satisfação dos trabalhadores com sua atividade profissional e possíveis determinantes desse processo. Para tanto, realizaram-se visitas institucionais a fim de se observar o funcionamento do serviço, as relações entre os trabalhadores e deles com o serviço e o trabalho, entrevistar os trabalhadores acerca das atividades profissionais e acompanhar atendimentos realizados. Ademais, objetivando validar as impressões obtidas nas visitas institucionais, foram efetuados encontros grupais com os trabalhadores, bem como o registro das impressões em diários de campo, impressões e diários que eram comparados às de outros alunos.
No segundo ano do projeto, a partir do que se produziu na etapa anterior, iniciamos um programa de formação para os servidores da Secretaria, visando fortalecer a política pública de trabalho, emprego e renda e qualificar o atendimento ao usuário, sendo que este foi um dos temas apontados pelos participantes da intervenção. O curso visava não apenas produzir conhecimentos e habilidades técnicas relativas às funções dos trabalhadores, mas também sobre os processos em que suas tarefas estavam inseridas e o funcionamento da máquina pública. Visamos, desse modo, ampliar as competências ‘na’ organização (ZARIFIAN, 2011), mas também ‘sobre’ a organização.
Alguns resultados
Verificamos, ao longo de um ano de diagnóstico, que o serviço era utilizado pelos gestores e pelas forças políticas do município com objetivos ambíguos: se de um lado a implementação do serviço se coadunava com anseios legítimos de desenvolvimento regional (facilitação da colocação de munícipes em empresas locais), de outro, a dinâmica organizacional sustentava uma prática de oferta de vagas em troca de apoio político, já que muitos usuários que procuravam emprego aceitavam “pular a fila” ou acessar certas “reservas especiais de vaga”, por meio de barganha política. Os operadores dessa dinâmica eram funcionários indicados (a maioria) que se dedicavam à manutenção desse modelo, fazendo reservas de vagas, em detrimento das tarefas impessoais preconizadas pela política.
Em meio a esse processo, parte dos atendentes, a maioria estagiários de nível médio, se dedicava a operar a “máquina burocrática” sem as ferramentas necessárias para viabilizar um ou outro objetivo, mais ou menos explícito, do trabalho. Restava-lhes apenas o atendimento ao usuário, sem compreender claramente seu papel na política promovida pelo serviço ou na oferta de vagas em troca de apoio político. Os atendentes e outros servidores que não se encontravam nas condições citadas, não conseguiam partilhar modos de ação nessa Secretaria que não implicassem prejuízo à saúde, uma vez que não encontravam meios de compatibilizar a ambiguidade de tarefas, formais ou informais, aí exigida. Como consequência, muitos servidores abandonavam a atividade, grande número de licenças-saúde, pouca qualidade do serviço prestado, pouca eficiência do serviço, a despeito da dedicação da maior parte dos trabalhadores.
A formação que desenvolvemos se desenhou em torno de reflexões coletivas sobre a condição encontrada, na medida em que impunham problemas que precisavam ser solucionados. Entre estes, a contínua rotatividade não permitia a consolidação de saberes sobre o atendimento e sobre as políticas de trabalho. Paradoxalmente, existia uma forte e consolidada cultura de clientelismo entre os trabalhadores, o que significaria, talvez, quase um gênero profissional de trabalhadores comissionados desse município, que têm como principal objetivo o trabalho social de cooptação política e busca de voto a partir dos serviços da prefeitura. As tarefas fins, e formais, dos serviços eram quase secundárias.
Esse duplo interesse (dos padrinhos políticos e dos usuários) se sustentava em um mundo de valores (SCHWARTZ, 2009) que mediavam as relações entre as pessoas e que eram, por si só, complexos, contraditórios ou conflitantes e que requeriam dos profissionais múltiplas decisões. Exatamente por essa pluralidade de valores é que as diferentes atividades em jogo - cooptação política ou a política de trabalho e renda -, mesmo as impedidas (CLOT, 2010), nem sempre encontravam saberes socialmente partilhados e adequados para situações continuamente cambiantes. Até porque muito dos saberes e “macetes” disponíveis não eram estilizações, variações pessoais de um modo coletivo de se fazer (CLOT, 2010), mas diversidade de gêneros em jogo - gêneros da atividade política vs. gêneros da atividade profissional - que não vinham encontrando, por meio da atividade dos trabalhadores, uma compatibilização salutar.
Esses diversos gêneros em atividade eram precariamente resolvidos a partir de normatizações mais ou menos cristalizadas e deslocadas da realidade, baseadas em valores mais ou menos contraditórios, em um serviço cujos interesses eram frequentemente ambíguos. A resultante desse processo eram conflitos, enfrentamentos e sofrimento da parte mais frágil, os atendentes alheios a essa lógica. Durante o período eleitoral, essa condição conflituosa se exacerbou enormemente.
Alguns percalços no percurso
Após a eleição, houve troca da gestão dos grupos políticos da Prefeitura, acarretando mudanças em várias secretarias, entre as quais a que trabalhávamos. Resulta que o quadro acima apontado mudou abruptamente sem, necessariamente, se transformar: quase todos os antigos servidores indicados foram demitidos, permanecendo ali apenas os efetivos (2) e poucos comissionados (3). Pessoas mudaram, algumas práticas de oferta de vagas em troca de apoio político parecem ter sido minimizadas, mas as práticas de nomeação de cargos comissionados por apadrinhamento político se perpetuou. Por outro lado, os novos gestores da Secretaria supriram, inicialmente, uma demanda que nos foi encomendada outrora, a saber, uma orientação mais definida do serviço para uma política de emprego e renda mais consoante à Política Nacional. Aliás, essa nova gestão contribuiu para a formação dos funcionários indicados, fornecendo saberes e trocas de experiências durante os meses iniciais de gestão. O principal instrumento para essas formações foram as reuniões com toda a equipe da Secretaria.
Porém, após esses meses iniciais, as reuniões foram se tornando cada vez mais raras, ficando a cargo da gerência a exclusividade de definição da organização e dos processos de trabalho. Esse monopólio era frequentemente justificado pela pretensa posse do saber-fazer, acumulado por membros da gerência em outras experiências profissionais. O saber (e não saber) dos demais trabalhadores da Secretaria os conduzia para uma posição de desvantagens de negociação, restando-lhes ouvir o que se apresentava nas reuniões. Estas, aliás, começaram a ser percebidas coletivamente como reuniões de transmissão de tarefas e não de debates de ideias ou de formação. Alternativa a essa condição, percebida pelos trabalhadores como autoritária, somente se estes lançassem mão da velha estratégia das relações político-partidárias ou relações pessoais com os membros da gerência, para que suas vozes fossem de algum modo ouvidas ali dentro.
E mesmo com as orientações técnicas inicialmente fornecidas pela gerência, os saberes transmitidos por ela não eram suficientes para lidar com imprevistos que o cotidiano inevitavelmente impunha, reconvocando os trabalhadores a se mobilizarem para dar conta deles. Em meio a esse movimento, iniciamos a segunda etapa do projeto, que resultou em outro curso de formação, cuja etapa final remeteria a um encontro dialógico entre trabalhadores - mais bem preparados para elaborar suas concepções sobre o trabalho - e os gerentes da Secretaria.
O curso se desenrolou por meio de reflexões e análises coletivas acerca do que se desenvolve nessa Secretaria, as diversas forças ali presentes e o papel da Política Nacional de Trabalho, Emprego e Renda. Foi exatamente nesse momento que a gestão do Sine cancelou o projeto, sob a alegação de que nossa intervenção aumentou as tensões entre a gerência e os trabalhadores, o que, segundo suas concepções, estava em desacordo com suas expectativas. Tentamos construir junto aos gerentes uma reflexão mais ampla sobre o processo em curso, mas estes foram relutantes em conduzir a intervenção até o final, deixando claro que suas expectativas não eram a de promover uma equação dos conflitos, ou mesmo institucionalizá-los, conforme preconiza Clot (2010), mas apenas reduzir os conflitos por meio da passividade e obediência dos trabalhadores em relação à gerência.
Mesmo terminando a intervenção antes do planejado, observamos alguns resultados:
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Os trabalhadores se mobilizaram com as reflexões propostas durante os momentos de formação, que se pode conceber como uma formação para e pela ação (NEVES et al., 2018), a ponto de, inúmeras vezes, requererem à gerência reuniões, mediados pela equipe de intervenção, para negociarem sobre a organização o trabalho;
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Mesmo a gerência evitando se reunir com eles, os trabalhadores começaram a recusar, sistematicamente, uma atuação passiva diante das exigências impostas. A partir de reflexões coletivas sobre algumas normas pactuadas entre eles, haviam constantes recusas sobre a atuação de um ou outro modo exigido de funcionar. E o monopólio dos saberes pela gerência foi sendo paulatinamente questionado.
Após alguns meses acompanhando à distância o trabalho nessa Secretaria, por meio de uma aluna que permanecera ali como estagiária, observamos a manutenção da mobilização coletiva dos trabalhadores, que nos sinaliza alguns efeitos positivos de nossa intervenção. Entretanto, se de um lado os indícios sinalizam alguns avanços, não devemos ignorar os impactos advindos de sua prematura interrupção.
Mesmo considerando que o rompimento do contrato deveu-se aos movimentos produzidos pela intervenção, e que isso pode ser considerado um trabalho bem feito, nossa incapacidade de conduzir esse processo de modo a evitar o rompimento prematuro do vínculo contratual impôs limites aos efeitos de longo prazo que idealizávamos por meio dessa ação. Por isso o questionamento da sua eficácia.
De todo modo, lembremos que o mais importante foi realizar um trabalho orientado por reflexões teóricas claras, que serviram de referência tanto para os trabalhadores envolvidos nesse projeto como para os atores da equipe de intervenção.
A partir do que foi apresentado até então, podemos considerar refletir teoricamente algumas questões que merecem ser retomadas.
Algumas generalizações possíveis e novas questões a partir da intervenção
Toda atividade se dá por meio de debate de normas em um mundo de valores que envolve uma triangulação dos seguintes polos: das dramáticas do corpo-si diante de situações singulares, dos saberes mobilizados e/ou retrabalhados por entidades coletivas relativamente pertinentes e das normas antecedentes que direcionam parcialmente essa atividade (SCHWARTZ; DURRIVE, 2010). Desta forma, podemos dizer que, para se realizar qualquer atividade, recorre-se sempre a saberes, que são frutos de um retrabalho coletivo, de um patrimônio, denominado de saberes em desaderência por serem parcialmente singularizados (SCHWARTZ, 2009), ainda que, para alguns, ele mantenha algo de genérico (CLOT, 2010). Os modos como esses saberes em desaderência se reorganizam em saberes mais ou menos estruturados (instrumentais ou normativos) vão depender, além do patrimônio de saberes acumulados, da capacidade que determinado meio de trabalho tem de absorver tais contribuições coletivas. A formação de um gênero profissional é exemplo desse processo, mas podemos indicar como outro exemplo a capacidade que alguns modos gerenciais contemporâneos têm de absorver as contribuições dos trabalhadores. Assim, se há sempre ressingularização e desaderência, por menor que seja, a produção de saberes e de saúde a partir dessa experiência pode ser facilitada quando são possíveis debates e controvérsias em um coletivo de trabalhadores, e deles com a gerência (CLOT, 2010).
Com nosso apoio, os trabalhadores dessa Secretaria intensificaram a produção e estabilização de patrimônio em um gênero profissional. Chamou-nos a atenção, porém, que se o patrimônio de saberes em torno dessa atividade foi se constituindo apenas lentamente a partir de apropriações comuns sobre as tarefas e o sobre o trabalho em si, os saberes relacionados à segunda tarefa - a gestão do serviço como um espaço de gestão relativamente partidária - estavam mais consolidados. Estes se calcavam principalmente em saberes de como se relacionar político-pessoal e partidariamente para se afirmarem nessa organização, relativamente independente dos saberes que possuíam sobre o trabalho, que permitiam aos trabalhadores se localizarem nessa complexa rede de relações entre outros agentes político-partidários. Em uma palavra, saber como se relacionar com um colega, indicado por outro vereador x, do partido y, com interesses políticos na comunidade z. Em meio a essa relação, uma tarefa a cumprir, uma atividade a gerir, em uma Secretaria determinada.
Extraímos dessa experiência algumas pistas a serem comprovadas em futuras pesquisas-intervenções em situações semelhantes. Em primeiro lugar, se não se partilham experiências de trabalho sobre o qual se lançam, seja por serem novos no serviço, seja por não terem tido formação suficiente, é usual que um coletivo partilhe algo em comum, que no caso em questão se tratou, de um lado, do vínculo com o sistema de indicação político-partidária e, de outro, da ainda frágil possibilidade de se articular com seus pares contra a gerência. Até porque parte dos “padrinhos” políticos era oriunda de quadros partidários que se opunham à gerência. Ora, se de um lado tal condição aproxima os trabalhadores, que partilham uma mesma condição empregatícia, de outro, trata-se de uma aproximação bastante frágil, porque um terreno minado por disputas que se dão em outros espaços não permite a partilha de confiança no colega - aspecto fundamental para uma deontologia do fazer (DEJOURS, 2012).
Porém, lembremos que a intervenção acima apresentada ocorreu em dois momentos distintos, diagnóstico e formação, e que esses momentos se deram com grupos quase completamente diferentes. Ora, a mudança quase completa da equipe não mudou profundamente o cenário analisado, nos colocando uma questão no que tange à importância da gerência: em que medida, no serviço público, suas características são suficientes para “modificar” as coisas, uma vez que há uma prática constante e quase cultural (um gênero?), com saberes e valores que são comumente mobilizados e atuam com grande força nos processos normativos e debates de normas das pessoas?
Interessante notar a existência de uma ambiguidade presente no coletivo de trabalho que, por um lado, como nessa Secretaria, apresenta uma série de ofícios em diálogo contínuo; enquanto que por outro não há uma história em comum do ofício, cuja construção tentamos auxiliar. Convém destacar, entretanto, que a existência de uma história em comum da cultura política configura-se como outro elemento crucial que também entra em embate. Assim, seria possível pensar em uma tripla temporalidade a se construir, sempre, em serviços públicos em que há uma grande quantidade de funcionários indicados politicamente. Há uma espécie de temporalidade na qual os acontecimentos marcam mais que a própria história do tempo cronológico, como por exemplo a sucessão de candidatos; há um tempo cronológico mais imediato, mais bruto, marcado pela superação cotidiana das demandas do serviço; e há, em meio a estes, uma temporalidade não cronológica intermediária, onde se conjugam, de maneira complexa, relativamente arbitrária, mas sempre socialmente ancorada, as ambiguidades impostas pela intensidade dos tempos mais longos, e as impostas pelas demandas do dia a dia; trata-se aqui, talvez, da temporalidade da constituição de regras partilhadas pelos trabalhadores, denominada por alguns de regras de ofício (DEJOURS, 2012), bem como a constituição de gêneros profissionais e de entidades coletivas relativamente pertinentes (SCHWARTZ; DURRIVE, 2010). Essa temporalidade intermediária, fundamental para articular as outras duas de modo a evitar adoecimento e propiciar a ampliação de reservas de alternativas, parece ser o desafio fundamental a se produzir. Daí que as intervenções desse tipo devem girar em analisar sobre quais histórias e quais valores orientam as práticas cotidianas e em como transformá-las.
Vemos, então, que nesse caso nunca se trata somente de uma análise do trabalho como atividade considerando-se apenas a atividade presente. Em nossa intervenção, outra atividade emerge como foco de análise, que é a atividade política, com o prazo cronológico da eleição, e que se exerce por meio dos vereadores, deputados e prefeitos que indicam os cargos ocupados pelos trabalhadores do serviço. E ali também se observa a existência de um coletivo em ação. Os operadores de tais ações são os trabalhadores que se deixam ser, mais ou menos, instrumentais a esses apelos. Ao mesmo tempo, a gerência também os instrumentaliza nesse paradoxo, seja afirmando as suas próprias orientações políticas, seja afirmando seus próprios interesses para os serviços públicos ali prestados. Resta aos trabalhadores criarem saberes que permitam exercer bem seus trabalhos, em ambas as demandas existentes, aquelas mais explícitas do dia a dia ou as outras, respaldadas em relações político-partidárias.
Nossa intervenção se pauta, portanto, por uma dupla problemática: de um lado o fortalecimento de coletivos profissionais por meio de estabilizações de gêneros e, de outro, algo relativamente inusitado, em desconstrução, ou redução da força de outros coletivos que transversalizam essa organização, calcados na cronologicamente longa história político-partidária institucionalizada no Estado brasileiro. Trata-se, portanto, de uma passagem, nunca fácil de se realizar, entre um coletivo e outro.
Deparamo-nos, na intervenção, com uma questão sempre recorrente: as escolhas éticas e os valores que orientam as ações cotidianas de cada um dos trabalhadores (SCHWARTZ, 2004) no serviço, e em nossa intervenção. Contudo, dada a complexidade da temática, não há espaço para a elaboração dessas questões neste texto.
Os instrumentos que escolhemos para se realizar essa intervenção foram calcados em uma tradição de trabalhos que se baseiam, de modo geral, no resgate das dimensões coletivas, perdidas ou inexistentes, de uma profissão qualquer. Teria sido essa escolha a mais adequada? Como dito, a ruptura prematura da intervenção talvez aponte para uma resposta negativa. De qualquer modo, se os meios não foram totalmente adequados, é nessa direção, e com as mesmas perspectivas teóricas, que ainda acreditamos que devemos caminhar. Talvez outros meios venham a ser desenvolvidos para que em novas intervenções, em situações semelhantes, os desafios observados aqui possam ser ponderados e mais bem conduzidos.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Dez 2019 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2019
Histórico
-
Recebido
25 Mar 2016 -
Revisado
06 Nov 2018 -
Revisado
04 Jul 2019 -
Aceito
16 Set 2019