Resumo
Este artigo apresenta certas linhas singulares de subjetivação experimentadas pela juventude enquanto produção estético-cultural que configura a periferia como território existencial. Pretendemos contribuir para a discussão da relação entre hierarquização socioespacial das cidades e os processos de subjetivação de forma crítica aos processos de vitimização, criminalização e estigmatização juvenil. Buscamos nos orientar por um estudo com os sujeitos e não sobre os sujeitos. Três jovens envolvidos em ações culturais autônomas no território (como sarau, cinema, hip hop) foram acompanhados nestas e em outras atividades de seu cotidiano numa perspectiva etnográfica, descrita no diário de campo, bem como por meio da realização de entrevistas em história oral. Estas foram transcritas, textualizadas, transcriadas e organizadas em categorias temáticas. Privilegiamos as categorias relativas ao “território” e às “invenções estéticas na periferia” que nos permitiram evidenciar que o engajamento da juventude na produção estética na periferia opera como tática, estratégia de luta diante dos estados de dominação hegemônicos e de estigmatização aí presentes. A arte agencia possibilidades de invenção de territórios existenciais e de novos modos de subjetivar-se quando o estigma se converte em emblema; no orgulho de ser jovem, negro, pobre e periférico.
Palavras-chave: juventude; periferia; subjetivação; narrativas; arte urbana
Abstract
This article presents certain singular lines of subjectivation experienced by youth as aesthetic-cultural production that configures the slum as existential territory. We intend to contribute to the discussion of the relationship between socio-spatial hierarchization of cities and the processes of subjectivation in a critical way to the processes of victimization, criminalization and juvenile stigmatization. We seek to guide a study with the subjects and not on the subjects. Three young people involved in autonomous cultural actions in the territory (such as sarau, cinema, hip hop) were accompanied in these and other activities of their daily life in an ethnographic perspective, described in the field diary, as well as through interviews in oral history. These were transcribed, textualized, transcribed and organized into thematic categories. We privilege the categories related to “territory” and “aesthetic inventions in the slum” that allowed us to show that the engagement of youth in the aesthetic production in the periphery operates as a tactic, a strategy of struggle against the hegemonic states of domination and stigmatization present there. The art agency possibilities of invention of existential territories and of new ways to subjectivate itself when the stigma becomes emblem; in pride of being young, black, poor and peripheral.
Keywords: youth; slum; subjectivation; narratives; urban art
1 - Introdução
A hierarquização socioespacial das cidades e sua relação com certos processos de subjetivação, em particular os que se dão nos territórios periféricos, tem sido objeto de diferentes estudos, com destaque para algumas contribuições da antropologia e sociologia urbana (CALDEIRA, 2000; FRÚGOLI JÚNIOR, 2000; FELTRAN, 2011; ROSA, 2008). Tais contribuições têm dado lugar às abordagens relacionais quanto à produção e apropriação de tais espaços, investigando, por exemplo, as dinâmicas socioespaciais por meio de trajetórias urbanas e evitando perspectivas excessivamente dicotômicas derivadas de certas premissas conceituais como exclusão e segregação (FELTRAN, 2011; ROSA, 2008; RIZEK, 2013).
Dentre esses estudos, encontramos críticas às perspectivas homogeneizadoras e estereotipadas sobre tais espaços e seus moradores, que oscilam, muitas vezes, entre a sua vitimização e criminalização (ZALUAR; NORONHA; ALBUQUERQUE, 1995; FELTRAN, 2011) e fazem, de certas condições políticas, sociais e econômicas, traços identitários. Um exemplo bastante conhecido dessa modulação é aquele relativo à associação juventude-pobreza-violência, responsável pela produção de um imaginário social sobre as juventudes como “classe perigosa”.
Este texto, que se alinha a esta perspectiva crítica, é uma releitura atualizada de parte dos resultados de pesquisa de doutoramento da primeira autora (TAKEITI, 2014), desenvolvida “com” jovens (e não “sobre” os jovens) de dois territórios periféricos da Zona Norte da cidade de São Paulo, engajados em distintos coletivos culturais - sarau de literatura marginal, produção audiovisual popular e movimento hip hop - que desenvolviam ações culturais relativamente autônomas e de caráter autogestionário, desvinculadas de organizações não governamentais.
Propomo-nos, aqui, apresentar certas linhas de subjetivação que configuram a periferia como um território existencial em relação a um modo de produção estético-cultural contra-hegemônico e que faz ver e faz falar modos de afirmação coletiva singular de setores juvenis na periferia da metrópole.
Na medida em que as tecnologias políticas se fazem cada vez mais tecnologias de produção de subjetividades (ARCE, 1999; DIÓGENES, 2008), pretendemos evidenciar que o engajamento da juventude na produção estética na periferia tem operado como estratégia de luta contra os estados de dominação hegemônicos e de estigmatização aí presentes. A subversão pela arte agencia possibilidades de transformação na periferia da cidade e novos modos de subjetivar-se, quando o “estigma se converte em emblema”, no orgulho de ser jovem, negro, pobre, da favela (REGUILLO CRUZ, 1991; TAKEITI; VICENTIN, 2016).
2 - Caminhos metodológicos da pesquisa
De forma a acompanhar os singulares modos de vida e de subjetivação dos jovens e a não reificar a associação violência e juventude, consideramos importante adotar perspectivas processuais de pesquisa que pressupõem a “habitação” de um território e a “colheita” de dados em estreita relação com os participantes da pesquisa (PASSOS; BARROS, 2010). Trata-se, ainda, como aponta Ferreira Neto (2008, p. 191), de “uma tentativa de modificar o que se pensa e mesmo o que se é”, reposicionando o ethos do pesquisador no seu campo de pesquisa.
Para a realização deste estudo, lançamos mão de uma “caixa de ferramentas” que inclui a escrita diarística, a imersão intensiva no campo de pesquisa, praticada por meio da orientação etnográfica e a realização de entrevistas dialogadas em história oral de vida, como modo de exercitar uma política da narratividade (PASSOS; BARROS, 2010) à altura dos modos singulares de vida e de subjetivação dos jovens.
Convidamos três jovens a participarem da pesquisa. Foram escolhidos jovens que faziam parte de coletivos com ações culturais relativamente independentes, desvinculadas de ações governamentais ou mesmo de organizações não governamentais, com maior exercício de autogestão, portanto. Para o encontro, o convite e a pactuação da pesquisa com esses jovens, contamos com o apoio de profissionais e organizações não governamentais que desenvolviam políticas culturais de engajamento juvenil nos circuitos culturais da periferia, particularmente aquelas que se davam na Zona Norte da cidade.
As narrativas foram transcritas, textualizadas, transcriadas (MEIHY; HOLANDA, 2010) e organizadas a partir de categorias temáticas, conforme proposto por Bardin (2016). Neste texto, privilegiamos as categorias relativas ao “território” e às “invenções estéticas na periferia”, que subvertem a lógica dominante de produção estética urbana.
3 - A periferia como território existencial
Há muitas maneiras de nos referirmos à periferia; a depender do modo como a olhamos, a ela nos vinculamos e a significamos. Estamos diante de uma nova invenção do que seja periferia? Aqui, preferimos inicialmente pensá-la a partir das várias formas de representação desse espaço que é da ordem geográfica, mas também política, social, afetiva, histórica, cultural, de pertencimento e reconhecimento. Gueto (WACQUANT, 2008), favela (SILVA et al., 2009), quebrada (MALVASI, 2012) são noções forjadas por pesquisadores e moradores para nomear a periferia, naquilo que a distingue do centro da cidade. Mas não é apenas uma questão semântica do termo com que nomeamos aquilo que evidenciamos como o território geográfico da paisagem urbana. Seguimos com Santos (2000) na compreensão de que o território deve passar por uma análise social, considerando seu uso e pensando com aqueles que vivem no lugar. Por isso não é possível definirmos uma única forma de concebermos a periferia, a partir de uma dimensão limitada de território físico da pobreza; mas, como afirma este mesmo autor, devemos concebê-lo como “território-vivo”, lugar das pluralidades e diferenças, de produção de múltiplas subjetividades.
Nessa perspectiva, entendemos a subjetividade a partir de uma constante produção coletiva e plural desse território. São modos de viver, de sentir e se afetar nesses espaços. Modos de olhar o mundo e a si mesmo, de se apaixonar, de construir amizades e desfazê-las. Modos de cozinhar, apreciar e degustar. Jeitos de ouvir, falar, pensar. São muitas as experiências subjetivas territoriais. São fabricações em multiplicidades. Fogem a qualquer contorno ou delimitação, bem como a uma teorização ou explicação universal e totalizante.
Nossas apostas pretendem compreender a subjetividade enquanto produção de modos de existência/resistência do sujeito jovem. Entendemos com Foucault, Deleuze e Guattari (DELEUZE, 1995, p. 135) que a subjetivação constitui “um modo intensivo e não um sujeito pessoal”, pelo qual se produz a flexão ou a curvatura de um certo tipo de relação de forças. Os processos de subjetivação então, para os referidos autores, nada têm a ver com a “vida privada”, mas designam a operação pela qual indivíduos ou comunidades se constituem como sujeitos, à margem dos saberes constituídos e dos poderes estabelecidos, podendo dar lugar a novos saberes e poderes.1
Jorge, um dos jovens interlocutores desta pesquisa e fundador do Sarau Poesia na Brasa, ao dar início à sua narrativa, vai cartografando o espaço geográfico que também é existencial, pois cada ponto, fragmento ou emenda compõe parte da sua vida, tecida neste local:
Você sabe exatamente onde está? Não? Então vou te explicar […] Está vendo o terminal de cargas da João Dias? É considerado o maior terminal da América Latina, começa naquele canto e percorre, se não me engano, até Francisco Morato, em Caieiras. O Jardim Peri fica logo ali, entre esse primeiro morro que é o Cachoeirinha e o lado de cá. Para trás, nessa direção, começa a Brasilândia, que percorre toda a mata, ou seja, a Serra da Cantareira. Moro um pouco para baixo daquela torre à esquerda. Está vendo aquela ponta de lá? Aquela favela toda faz parte do Jardim Peri. Mais para a direita fica o bairro de Santana. Depois vem Tucuruvi, bairro do Limão e Casa Verde. Tudo isso forma os distritos da Brasilândia e Freguesia do Ó e Cachoeirinha (Jorge)
Descrever o território, para o jovem, funciona como ponto de partida, de referência e ancoragem para dar início à sua narrativa-memória. Cada pedaço, no seu tempo, vai revelando as tramas de um longo processo vivido, atravessado por muitas outras histórias - a história do seu bairro, as histórias de violências, as histórias familiares e de amizade, a história com o coletivo cultural do Sarau da Brasa. As linhas curvas que desenham o itinerário são a ponte encontrada por ele que liga a sua história de vida à da Brasilândia.
O contexto das periferias e favelas brasileiras quase sempre é apresentado e reconhecido pelos altos índices de violência que apresentam. São Paulo, considerada o epicentro econômico do Brasil, com índices crescentes de desenvolvimento e expansão urbana, expressa também os contrastes mais agudos de uma metrópole, reconhecida dentre aquelas com níveis de violência, de desemprego e pobreza expressivos (KOWARICK, 2000 apud FRÚGOLI JÚNIOR, 2000). Extremamente populosa e povoada por migrantes que aqui vieram em busca de trabalho e melhores condições de vida, os extremos da Zona Norte de São Paulo guardam em si muitas histórias de lutas e batalhas, de conflitos e interesses, de sofrimentos e resistências. A criminalização a que muitos jovens estão expostos impõe limites também no momento da procura por trabalho. Muitas vezes, o local de moradia diz, de antemão, quem é o sujeito e o penaliza pelas condições de pobreza regulando quem deve ou não ser inserido no mercado formal de trabalho. O jovem aponta de que forma tal segregação espacial afeta consideravelmente suas chances de inserção social:
Lembro-me, de quando éramos moleques, na fase de procurar serviço, procurar trabalho, procurar alguma coisa para ganhar dinheiro, tínhamos que falar que éramos da Freguesia do Ó. Se disséssemos que éramos da Brasilândia, não conseguia trabalho. Porque a fama de quem mora na Brasa é de que é bandido! E isso dava uma vantagem em relação aos caras que falavam que eram da Brasilândia. É claro que quando puxavam o CEP, logo constatavam que não éramos da Freguesia do Ó. Coisa boba de você comprar um armário e os caras não entregarem porque o endereço era na Brasilândia (Jorge).
Essa dimensão tem sido tratada por Caldeira (2000) como regras que organizam o espaço urbano em padrões de diferenciação social e de separação. Essas regras variam cultural e historicamente, revelando os princípios que regem a vida pública e indicam como os grupos sociais se inter-relacionam no espaço urbano. Valladares (2005) ressalta a importância de se compreender as representações sociais em torno da favela para dar lugar a análises mais contundentes sobre esses espaços, passando de uma favela “inventada” para a concretude do que realmente se concebe como favela. Pesquisando as representações que se formaram em torno das favelas cariocas, a autora propõe a desmistificação do problema-favela aproximando-se mais às dimensões ético-político-econômicas que a atravessam.
Jorge, ao narrar sobre seu território, explica como o bairro se constituiu à custa dos processos de exclusão e marginalização da classe trabalhadora, fragmentando ainda mais o tecido urbano. Nessa direção, Anderson, jovem do coletivo de hip hop e do Cinescadão, revela a ocupação do território do Jardim Peri onde mora, dando destaque para o movimento suscitado pelo “povo da quebrada” com vistas à construção da moradia própria. Diz do lugar:
É uma área invadida. Dizem que o terreno é da Sabesp. Engraçado que, na mesma rua, de um lado é terreno particular e do outro, área invadida. É uma região de brejo, onde as casas costumam ser muito úmidas, pois não tem por onde a água vazar, por isso fica constantemente úmido, cheirando a bolor. […] Onde eu morava, as casas eram barracos. O pessoal começou a substituir estes barracos por alvenaria. Só que as obras começavam e paravam um pouquinho por conta das condições do povo. Nessa época, no governo da Erundina, eles começaram a asfaltar a rua. O pessoal foi lá, fez todo aquele sistema de pavimentação, jogou os pedregulhos para poder fazer o asfalto da rua. Pedregulho grosso e fino. A vizinhança inteira pegou as pedras para fazer as casas e eles acabaram não asfaltando rua alguma (Anderson Jocker).
Assim, tanto o território da Brasilândia quanto o Jardim Peri constituem-se não apenas em lugar de pertencimento e moradia desses jovens, mas fundam também outros modos de ser, produzem subjetividades inventivas, acionam outros modos de se fazer ver (Cinescadão) e se fazer falar (Sarau da Brasa), produzindo outros territórios existenciais. Um novo estilo de vida é construído para o jovem e pelo jovem na periferia da cidade.
Afinal, a constituição de um território subjetivo depende sempre de uma exterioridade decisiva: são os agenciamentos que podem alterar os territórios autoexistenciais e vice-versa. Os fluxos, as linhas de força que atravessam a produção de subjetividade são compostas por uma heterogeneidade (GUATTARI, 2006) de elementos materiais e simbólicos que nos fazem conceber (ou incluir) as tecnologias políticas que produzem hoje um sujeito jovem na periferia da cidade.
4 - Do estigma ao emblema: a arte como modo de (re)existência periférica da juventude
No Brasil, desde a década de 1950, vemos o aparecimento de grupos juvenis que se uniram em torno de uma determinada cultura, considerada genérica do ponto de vista da produção cultural, porque seu estilo estava marcado por uma criação para as massas, ou seja, por uma cultura popular. É a partir da década de 1980 que o fenômeno das culturas juvenis explode, particularmente nas periferias da cidade do Rio de Janeiro e São Paulo, com o movimento punk, o funk e o hip hop, todos, de algum modo, surgidos nas periferias e favelas (ABRAMO, 1994; COSTA, 2000; HERSCHMANN, 2000; VIANNA, 1997).
Aqui é onde surgiu o movimento punk, atravessou a avenida, estamos na Carolina, mais adiante, na Freguesia, no Peruche. Na época só tinha duas coisas para se ligar, o rap, que comia solto, e o punk, que desde antes tinha uma presença na mídia, nas discussões. Tinha a cultura black, muito mais em pauta, muito mais atacado. Enquanto meus amigos estavam ligados em se vestir bem para ir ao baile, em curtir o Tio Sam, pois no gueto você queria se vestir bem, nós, do movimento punk, estávamos ligados no rockn’roll, andávamos todos rasgados. Sem saber, foi uma das formas de inclinação que o punk me trouxe […]. E a minha história com o audiovisual começa mesmo no movimento punk. Queríamos gravar clipe nos anos 90 (Fábio).
Por ostentar comportamentos agressivos e violentos, fora dos padrões convencionais socialmente aceitos, tais grupos passaram a ser estigmatizados e criminalizados pela sociedade e pela imprensa, notadamente reconhecidos como gangues juvenis (COSTA, 2000). Entre a “rebeldia” e a agressividade de seus comportamentos, de um lado, e uma forma de resistência e expressão cultural, de outro, alguns estudiosos passaram a conceber tais agrupamentos como fazendo parte das “culturas juvenis”, nas quais a multiplicidade de atitudes e experiências conformava um modo de viver e reexistir na modernidade.
Hoje, tem sido por meio de alguns estilos e invenções coletivas como o movimento hip hop, a literatura marginal, a produção audiovisual periférica, os saraus, que eles se produzem como sujeitos, inventam distintas formas de viver a condição de ser jovem na e da favela, agenciam diferentes maneiras de produzir suas identidades, rompendo com a referência dominante dos discursos em torno da imagem de jovem pobre, popular urbano, vitimizado e perigoso. São jovens que produzem saberes, colocam em prática as experiências de recusa à exclusão e marginalização, tensionam outros discursos sobre a vida, a (in)diferença, a segregação e a racialização, e resistem aos modelos dominantes social e historicamente constituídos em torno da juventude popular urbana.
Minha história com o Sarau da Brasilândia se cruza quando eu começo a trabalhar na fábrica de luminárias, depois da vida de feirante. A vida do chão de fábrica me levou a conhecer outros jovens que viviam as mesmas situações que eu. Eram todos meninos pobres, daqui da Brasilândia, que sonhavam um dia fazer revolução, mudar a realidade de dentro de casa e a do bairro. […] Sarau é um espaço em que você bota o microfone lá, liga e organiza quem vai falar, quem vai fazer o quê […] Nosso barato é esse, não ganhamos grana. Quem ganha grana é o dono do bar […] A ideia, no início, era montar um centro cultural […]. Arrumamos um bar, conversamos com o dono e combinamos tudo. Um amigo emprestou um amplificador de uma guitarra, o outro emprestou um microfone de um videokê e, tudo ligado, fomos embora! Éramos um coletivo de doze pessoas ligadas querendo fazer esse sarau acontecer […] O amigo chamou o amigo, que chamou a mãe, que chamou o primo, que chamou todo mundo. O primeiro sarau parecia uma verdadeira reunião de família, tinha mãe de um, tia de outro, tinha aproximadamente umas cinquenta pessoas (Jorge).
A periferia, para os jovens que nela residem, não tem apenas uma conotação geográfica, mas se refere a um território de existência, no qual identidades são construídas e reconstruídas cotidianamente. Há uma contínua e acelerada produção de subjetividades; e seus efeitos aparecem no corpo, na linguagem, na estética, nos vínculos sociais e nos laços afetivos (NOVAES, 2006).
Eles expressam - por meio da música, da poesia, da dança, do desenho, da palavra - a vida, as violências presentes local e globalmente. Tais efeitos estéticos são de ordem política, singular, mas igualmente coletiva, dando mais visibilidade às redes territoriais e sociais existentes. Esses jovens contribuem para a construção de espaços públicos nas periferias e favelas, privatizadas pelo tráfico e submetidas às violências e a todas as formas de vulnerabilidades. Fábio afirma como a experiência com o Cinescadão produz efeitos singulares e coletivos:
A experiência, como a do Cinescadão, se conjuga com várias outras linguagens […] A oficina de vídeo popular na quebrada reúne muita gente. É uma experiência legal, interessante para falar de cinema, pensar o audiovisual como arte, mas também como expressão da cultura de periferia. As pessoas precisam passar por esta experiência audiovisual. Quando, dentro dessa experiência, algumas pessoas que já tinham o audiovisual como uma questão pessoal, se desenvolvem criativamente, descobrindo esta via como realizador, pronto: está aí mais um parceiro no rolê. É, simplesmente, como fazer uma oficina de literatura, em que você tenta sensibilizar uma galera para as artes literárias.
Jorge, ao fazer parte de um coletivo juvenil, traz à tona como o estigma de ser jovem, negro e pobre na periferia vai ganhando um novo lugar. Diz ele: “Comecei a fazer esse tipo de investimento em mim e na comunidade”.
Outros territórios existenciais têm se constituído a partir das histórias, das experiências, dos acontecimentos que se cruzam no espaço da periferia, especialmente no bojo dos coletivos culturais, enquanto movimentos sociais nos quais os jovens se engajam, principalmente naqueles desenvolvidos no campo das culturas ou das invenções estéticas.
Essas experimentações estéticas reposicionam o lugar discursivo das juventudes brasileiras, particularmente daquelas que habitam as periferias.
Problematizar a condição dessa juventude pobre2 implica perspectivá-la não a partir dos “problemas” que ela enfrenta, mas como um campo epistêmico e político que convoca conhecimentos múltiplos e entendimentos diversos e que se dão na processualidade de uma construção compartilhada (FERNÁNDEZ, 2006).
Trata-se, assim, de privilegiar uma perspectiva ético-estético-política que considere também as dimensões de classe social, geração, etnia, gênero, religião etc., assim como sua cotidianidade, apropriação e invenção. Como sinaliza Freire Filho (2007, p. 10): “a vida cotidiana conceituada não somente como um espaço de sujeição e alienação, mas como uma plataforma de fomento e expressão de micropolíticas de resistências”. Estariam esses “modos de vida contra-hegemônicos” da juventude urbana periférica, quando criam estratégias singulares e coletivas a partir da arte e da cultura urbana, transformando a vida local?
Alguns jovens apontam caminhos para problematizar as condições sociais em que se encontram.
Os parcos investimentos que ocorreram (na Brasilândia) é porque as pessoas boas, com vontade, mobilizadas, é que procuram fazer alguma coisa para a população. Um exemplo disso são os coletivos culturais que acontecem e estão se espalhando pela periferia. São organizados por nós mesmos - grupos de hip-hop, oficinas de rap, encontros de literatura, bibliotecas comunitárias, oficinas de audiovisual, fotografias, cinemas na praça e arte, biblioteca móvel (Jorge).
Jorge já afirmava em sua fala que os escassos investimentos no bairro da Brasilândia e em outros espaços afora mobilizam diversos coletivos de jovens moradores a inventarem outros modos de fazer acontecer no território. Não são raros os espaços públicos como a rua, a biblioteca, a praça, o campinho de futebol, o bar de “quebrada”, o salão da igreja que se transformam em lugares da cultura, com saraus, apresentações do hip hop, ou que viram cineclubes. Assim, esses dispositivos têm possibilitado aos jovens e à comunidade local não só colocarem em cena a vida cotidiana vivida na periferia, como também praticarem uma política da reexistência e da afirmação das potências do lugar.
Pesquisadores que discutem a arte na periferia (DAYRELL, 2007; TOMMASI, 2013; TAKEUTI, 2010) consideram importante, no entanto, problematizar o dispositivo da cultura como “tábua de salvação” das questões que atravessam a periferia urbana, assim como um empreendimento social que, de certo modo, captura e regula a conduta das populações juvenis, como é o caso dos chamados “jovens de projeto” (TOMMASI, 2013).
Mas como vender tais produções estéticas sem fazer desaparecer o conflito, a carga de ruptura, a crítica à ordem vigente? Como não ser cooptado pelas grandes empresas, nichos de mercado, perdendo o valor e os ideais de mudança que a arte/cultura pretende provocar? Para Tommasi (2013), a valorização dessas “culturas de periferia”, como parte da produção de um novo regime discursivo, busca promover o “encontro”, cada vez mais intensificado, do centro com a periferia, da favela com o asfalto. Fábio, por exemplo, faz críticas em relação ao mercado audiovisual, indicando que o movimento na quebrada tem rompido com os processos coletivos mais compartilhados de intervenções urbanas, em que grupos e coletivos audiovisuais têm objetivado se inserir no mercado, perdendo, dessa forma, toda a crítica do processo de produção popular local. Jorge, nesta mesma direção, aponta em sua fala que os dispositivos acionados no campo da juventude e da arte/cultura procuram organizar esse meio, no sentido de traçar caminhos a serem trilhados, as ações a serem empreendidas, as palavras de ordem a serem defendidas:
Agora no coletivo da Brasa estamos montando uma organização que vai se chamar Agência de Desenvolvimento Social (AGENTES). Está sendo criada em parceria com o pessoal de Perus, Pirituba, Brasilândia e do Cicas (Centro Independente de Cultura Alternativa e Social) na Vila Sabrina. Desejamos criar essa organização para produzir arte visual na gráfica, música em estúdio. Sabemos das nossas responsabilidades, ao mesmo tempo temos a plena consciência de que não temos esta obrigatoriedade. A obrigação não é nossa, mas do Estado. O pessoal às vezes fala que o hip-hop tem que fazer isso, fazer aquilo ou que o movimento de arte nas quebradas tem que fazer mudança. Quem tem que proporcionar tudo isso é o Estado, essa coisa de leitura, quem tem que fazer é o Estado […] queremos investir na geração de renda para os jovens. Porque existem várias pessoas formando ONGs, pegando dinheiro em nosso nome. Penso que se ela tem que existir, ela tem que estar na nossa mão. Havia alguns editais públicos de arte que nunca pegávamos, porque outras ONGs sempre chegavam na frente. E o retorno para a comunidade? Nenhum! […] Nesses quatro anos de intervenção, já publicamos quase onze livros na brasa. Pensamos: “Por que não montamos uma gráfica? Poderíamos empregar vários jovens pagando trezentos reais por mês ou até mais. A ideia é criar organizações que sejam capazes de produzir renda própria” (Jorge).
5 - Considerações finais
As relações de poder investem e inventam novos modos de ser jovem na periferia hoje e são agenciadas pela insuficiência e ameaça das condições sociais que as vulnerabilizam. Ditando um novo estilo de vida juvenil nas comunidades pobres, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, essa nova “marca” coletiva e identitária coloca em evidência a figura do menino pobre da favela e toda a dimensão política desses movimentos que contestam, por meio da música, do grafite, da dança, as contradições da sociedade que pouco oferta espaços e possibilidades para esses jovens usualmente segregados, inferiorizados ou silenciados pela cultura dominante.
As tecnologias de arte/cultura utilizadas por esses jovens têm sido forjadas como ferramenta de inclusão, participação, engajamento político, gestão e fruição das ações sociais e culturais locais. Elas encarnam dimensões ética, estética e política (GUATTARI, 2006), pois: por meio do exercício do pensamento, avaliam situações e acontecimentos, afirmam escolhas e caminhos como potencializadores de vida; exercitam a dimensão da invenção criativa, já que não há conhecimentos universais para serem aplicados, mas uma diversidade de injunções que desafiam o pensamento, a ação e a sensibilidade para a produção de novos processos de existência que vão na contramão dos processos culturalmente hegemônicos.
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Deleuze (1995) destaca a importância de percebermos que o poder (FOUCAULT, 2006) se constitui enquanto relação entre forças, sempre no plural, e que a força se define por seu poder de afetar e de ser afetada por outras forças, constituindo assim afetos ativos - incitar, suscitar, produzir, etc. - e afetos reativos - incitado, suscitado, etc. Esses últimos nunca são passivos, pois a força sempre produz efeitos. O poder se constitui entre forças e sempre produz resistência. Em outras palavras, não existe poder sem resistência. Ressalta Foucault (2006, p. 232): “é mais a luta perpétua e multiforme que procuro fazer aparecer do que a dominação morna e estável de um aparelho uniformizante”.
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Tomamos aqui a ideia de juventude pobre que vive em contextos de periferia não apenas como referência à classe social na qual ela se insere, mas pensando conforme Novaes (2006), como lugares que permitem diversas inscrições existenciais, onde se produzem novas subjetividades juvenis.
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Esta pesquisa contou com financiamento da CAPES.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
20 Dez 2019 -
Data do Fascículo
Dez 2019
Histórico
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Recebido
03 Out 2018 -
Revisado
12 Maio 2019 -
Revisado
28 Maio 2019 -
Aceito
03 Jun 2019