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O analista está presente: performance e clínica

The analyst is present: performance and clinic

Resumo

O que pode a clínica? O que pode a arte? Qual a potência presente nesses domínios? Em que ponto a arte e a clínica se transversalizam, ou seja, em que ponto comungam? Este artigo tem estas questões como direção e busca respondê-las a partir de uma aposta na abordagem transdisciplinar da clínica. Transdisciplinaridade compreendida como contágio entre diferentes disciplinas, como experimentação das interferências que um domínio pode produzir sobre outro. A performance “A artista está presente” de Marina Abramovic é tomada neste artigo como canal de expressão para a arte do encontro entre analista e paciente, encontro produtor de novas possibilidades de vida. O trabalho da artista sérvia, preocupada com o que se passa entre artista e público, nos permite problematizar o que se passa entre analista e paciente e, para tanto, desenvolvemos o conceito de Presença, certa partilha afetiva que pode se dar no encontro com o outro.

Palavras-chave:
psicologia clínica; performance; Marina Abramovic; presença

Abstract

What can clinic do? What can art do? What is the power present in these areas? At what point art and clinic find a mainstream, that is, at what point do they commune? This essay has those questions as a direction and seeks to answer them based on a focus on a transdisciplinary approach to clinic. Transdisciplinarity understood as a contagion between different disciplines, as an experimentation on the interferences one domain can perform upon the other. The performance “The artist is present” of Marina Abramovic is taken in this article as an expression channel through the art of the analyst and patient encounter. A life-changing encounter. The work of this Serbian artist, worried about what goes on between the artist and the public allow us to problematize what goes on between the analyst and the patient, therefore developing the concept of the Presence, one affection share that can befall the encounter with the other.

Keywords:
clinical psychology; performance; Marina Abramovic; presence

Introdução

O presente artigo, em forma de ensaio, toma a performance “A artista está presente” de Marina Abramovic (2012MARINA Abramovic: The artist is present - the hardest thing is to do something which is close to nothing. Direção: Jeff Dupre e Matthew Akers. Produção: Jeff Dupre e Maro Chermayeff. USA: Show of Force, 2012. 1 DVD (106 min). ) como intercessor para a experiência clínica. O intercessor (DELEUZE, 1992DELEUZE, Gilles. Os Intercessores. In: ______. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 151-168.) diz respeito às interferências que um domínio pode produzir sobre outro, no caso, interferências da arte da performance sobre a clínica. A obra “A artista está presente” é tomada neste artigo como modo de expressão para a arte do encontro entre analista e paciente. Neste artigo, não nos debruçaremos numa análise crítica sobre a performance ou sobre o trabalho da artista, o que nos interessa aqui são as reverberações que podemos extrair do atravessamento entre a performance e a clínica. A performance de Abramovic, sensível ao que se passa entre artista e público, nos permite problematizar o que se passa no encontro entre analista e paciente.

Inicialmente, apresentaremos algumas considerações sobre a proposta da performance e a preocupação da artista em convocar o espectador a uma relação outra com o tempo por meio de um mergulho no momento presente. Em seguida, desenvolveremos o conceito de Presença por meio da apresentação de um caso clínico e dos atravessamentos conceituais de que podemos lançar mão ao abordar o trabalho de análise desde uma perspectiva transdisciplinar.

A artista está presente

Todos que entraram no Moma entre março e maio de 2010 depararam-se não com obras de algum artista já morto, nem com objetos de arte valiosos, encontraram na obra exposta, a artista; na artista, a obra exposta. Ela estava presente, e sua presença constituía a obra viva em exposição. Uma mesa e duas cadeiras, e posteriormente apenas duas cadeiras, eram os únicos objetos usados na performance, mas estes não obtinham nenhum protagonismo. Era a presença de Marina que conduzia a obra em progresso. Enquanto a cadeira à sua frente estava vazia, a artista permanecia com os olhos fechados e de cabeça baixa. A performance começava efetivamente a partir do momento em que alguém se sentava junto a ela, diante dela. Neste instante, a artista erguia a cabeça e abria os olhos. A performance iniciava-se, então, no ponto de encontro entre o olhar de Marina e o olhar do espectador que, ao receber dela a presença, era convidado a também se fazer presente. Aos que eram afetados pelo encontro com Marina, aos que conseguiam entrar no instante do aqui e agora, aos que aceitavam experimentar junto com ela o Espaço Carismático criado por suas presenças, abria-se passagem para a entrada no plano coletivo de forças, das forças que circulam em cada um e entre eles, abria-se o limite das formas de sentir e de estar ali a ponto de o espectador, por alguns instantes, se tornar tão somente “uma vida”. Neste estado, o espectador deixa de ser meramente espectador e passa a ser também agente da performance.

Diferentemente da literatura, da pintura e da escultura, que geram um produto exterior ao corpo do artista, como um quadro, um livro, uma escultura, a arte da performance vai tomar o corpo como centro do processo artístico. O corpo é deslocado da posição de instrumento para ocupar o lugar de objeto de arte, e mais do que isso, o corpo como objeto de arte é o corpo do próprio artista. O que a performance vai fazer com o corpo é desnaturalizá-lo, é fazer de cada performance um ritual de desconstrução dos hábitos, das crenças, das utilidades e da organização corporal. Nas performances de Abramovic, e especialmente em “A artista está presente”, o corpo presente no aqui e agora é operatória para a desnaturalização da relação deste com o tempo.

Desde a Revolução Industrial, quando a produção em larga escala passa a ser controlada pela lógica do “mais em menos tempo” e a vida nas cidades passa a girar em torno das fábricas, a temporalidade foi atravessada pelo tempo cronológico da produção, tempo este que exige agilidade e eficiência. Os desdobramentos da revolução, somados aos avanços tecnológicos formaram a base para o modo de produção capitalista que, globalizado, constitui o que Guattari (1992GUATTARI, Félix. Caosmose. São Paulo: Editora 34 , 1992.) denominou de Capitalismo Mundial Integrado. É próprio do capitalismo uma dupla violência em relação ao tempo: primeiro, o tempo dos trabalhadores desse modo de produção é roubado pelo dono dos meios de produção. A mais-valia de que nos falou Marx (1996MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Círculo do livro, 1996. livro I.) consiste exatamente no excesso quantitativo de trabalho, em que se produz mais em menos tempo, mas esse “menos tempo” não é convertido em redução da jornada de trabalho; fica restando tempo, um excedente, pelo qual o capitalista nada paga. Segundo, a aceleração própria do processo produtivo encarnou nas subjetividades, produzindo subjetivações aceleradas.

No contemporâneo, a relação acelerada com o tempo é intensificada com o crescimento das novas tecnologias, que nos mantêm conectados 24 horas por dia a nossos aparelhos celulares, tablets e à virtualidade das redes sociais. Mais do que falta de tempo, na atualidade, desdobramos o tempo na realização de diversas atividades, por vezes simultâneas. Efeito do Capitalismo Mundial Integrado, esse tipo de temporalidade produz subjetividade, aliás, o capitalismo só sobrevive porque é um grande produtor de subjetividade, subjetivações que o retroalimentam ao passo em que padecem de stress, depressão e burn out.

A arte da performance opera, como dissemos acima, no sentido de desnaturalizar o que ficou naturalizado. Nas performances de longa duração de Abramovic, a relação entre o corpo e o tempo é desnaturalizada. “Decodificar os movimentos, os gestos, os comportamentos, as distâncias, é colocar simultaneamente o espectador no tempo próprio do artista” (GLUSBERG, 2013GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2013., p. 53). Com sua performance, Marina convida o espectador a entrar no seu tempo próprio, que é o momento presente. Ao fazer isso, a artista constrói com o espectador uma nova temporalidade, diminui o ritmo frenético da vida cotidiana a fim de acessar um plano compartilhado: “Se vocês me derem seu tempo, eu lhes darei uma experiência” (ABRAMOVIC apud MARINA..., 2012MARINA Abramovic: The artist is present - the hardest thing is to do something which is close to nothing. Direção: Jeff Dupre e Matthew Akers. Produção: Jeff Dupre e Maro Chermayeff. USA: Show of Force, 2012. 1 DVD (106 min). ). Parafraseando a artista, diríamos: “Se vocês me derem seu tempo, eu lhes darei Presença”.

O momento presente

O que seria então esse momento presente, condição de possibilidade para a experiência da Presença? Quem nos ajuda a melhor responder a essa questão é o psicólogo Daniel Stern. Ao mesmo tempo em que questiona certo apreço da clínica ao passado e seus fantasmas, ele enfatiza a importância de poder atentar para o que está acontecendo aqui e agora. Este aqui e agora diz respeito tanto aos instantes sucessivos que compõem uma sessão de análise quanto ao momento presente da vida de uma pessoa.

Uma história vivida se desenrola dentro de cada momento presente. Ela é feita de muitas experiências pequenas reunidas no presente subjetivo. O enredo, ainda que mínimo, desloca-se sobre a forma de sentimento temporal dos afetos contornados (STERN, 2007STERN, Daniel. Explorando o momento presente. In: ______. O momento presente na psicoterapia e na vida cotidiana. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 25-76., p. 37).

Os afetos disparados no encontro com Marina são múltiplos e seus efeitos os mais diversos. Pessoas choraram, outras sorriram muito, algumas levaram as mãos ao peito, uma em especial tirou a roupa, outras pessoas inclinavam a cabeça para o lado, alguns respiravam de forma ofegante, outros estavam visivelmente relaxados e confortáveis ali. Mas nem todos foram afetados por Marina. Fazer-se presente, se conectar ao momento presente junto à artista era a via mediante a qual o público poderia esvaziar-se um pouco de si mesmo, de sua rotina, de seu ritmo e, com isso, experimentar sensações que estão para além da percepção e do sentimento, que escapam à consciência. E isso implica uma mudança na relação com o tempo. É preciso introduzir Kairós em Chronos.

Kairós, o deus da oportunidade, era filho de Zeus e de Tykhé, a divindade da fortuna e da prosperidade. Resplandecente e na flor da juventude, Kairós tinha duas asas nos ombros e nos joelhos, cachos de cabelo que caíam na testa e a nuca careca. Sempre sem roupas, ele corria rapidamente, e só era possível alcançá-lo agarrando-o pelo topete, ou seja, encarando-o. Depois que passava, era impossível perseguí-lo, pegá-lo ou trazê-lo de volta. Entre os romanos era chamado de Tempus, o breve momento em que as coisas são possíveis. Kairós tinha o poder do movimento rápido que podia passar despercebido aos olhos desatentos, tornando impossível recuperar a visão de sua passagem. Na mitologia grega e romana é a experiência do momento certo e oportuno. Kairós era o tempo em potencial.

Chronos era um titã que se tornou senhor dos céus após destronar seu pai, Urano. Temendo ser destronado, devorava todos os filhos que gerava. É descrito como o velho, o senhor do tempo, das estações, da pressão das horas ordenadas pelo relógio e pelo calendário. Cruel e tirano, Chronos controlava o tempo desde o nascimento até a morte, aquele tempo comum e visível, o tempo burocrático.

Kairós era o tempo que não podia ser cronometrado, o tempo que não pertencia a Chronos porque não era previsível, apenas acontecia, por isso chamado de momento ou oportunidade. Kairós marca os momentos que se tornam eternos, ainda que tenham sido breves. Os gregos acreditavam que com Kairós poderiam enfrentar o cruel tirano Chronos.

Curioso o fato de que, para alcançar Kairós, torna-se necessário “olhá-lo de frente”. A imagem de Marina e um espectador sentados um de frente para o outro parece ilustrar essa “janela de devir” (STERN, 2007STERN, Daniel. Explorando o momento presente. In: ______. O momento presente na psicoterapia e na vida cotidiana. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 25-76., p. 29) que é criada com a chegada de Kairós. A Presença vai se fazendo presente aos poucos, se desdobrando entre Marina e o espectador, abrindo lentamente janelas no meio de Chronos para que Kairós entre. A chegada do estado de Presença é semelhante à cena de Dickens comentada por Deleuze (2002DELEUZE, Gilles. Imanência: uma vida. Educação e realidade, Rio Grande do Sul, v. 27, n. 2, p. 4-18, 2002. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/31079/19291 . Acesso em: 22 ago. 2018.
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): um sujeito mau cai num lago e começa a se afogar. Aqueles que o odeiam, que de alguma forma foram afetados por sua maldade, assistem à morte lenta do moribundo. Num certo ponto de seu afogamento, correm para salvá-lo. “A vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal, mas singular, que desprende um puro acontecimento, liberado dos acidentes da vida interior e da vida exterior, isto é, da subjetividade e da objetividade daquilo que acontece” (DELEUZE, 2002DELEUZE, Gilles. Imanência: uma vida. Educação e realidade, Rio Grande do Sul, v. 27, n. 2, p. 4-18, 2002. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/31079/19291 . Acesso em: 22 ago. 2018.
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, p. 4). Há um intervalo entre a vida e a morte, que Deleuze, a partir de Dickens, chamou de “uma vida”. Entre a vida definida, individuada, predicada, e a morte há um limiar, um espaço-entre, um plano constituído por “relações de movimento e de repouso, de velocidade e de lentidão entre elementos não formados, relativamente não formados, moléculas ou partículas levadas por fluxos” (DELEUZE; PARNET, 1998DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998., p. 108). É o plano de forças, o intensivo.

Uma vida se dá entre a vida e a morte, mas não apenas ou necessariamente à morte absoluta, mas também à morte da forma, das formas de viver. Uma vida é tanto condição da existência da vida definida e predicada de alguém quanto é condição para a criação de predicações outras, de sentidos outros, de modos inéditos de ser no mundo. Uma vida indefinida, impessoal, plena de virtualidades produtoras de realidade coexiste com a vida definida de cada sujeito. Os recém-nascidos exprimem bem o que é uma vida. Numa maternidade, por exemplo, é quase impossível diferenciar um recém-nascido de outro. Eles são vida em estado nascente e não há nome que os defina, nem mesmo o nome próprio. Os recém-nascidos estão mergulhados no plano de forças e não têm nenhuma individualidade, “mas têm singularidades, um sorriso, um gesto, uma careta, acontecimentos, que não são características subjetivas. Os recém-nascidos, em meio a todos os sofrimentos e fraquezas, são atravessados por uma vida imanente que é pura potência” (DELEUZE, 2002DELEUZE, Gilles. Imanência: uma vida. Educação e realidade, Rio Grande do Sul, v. 27, n. 2, p. 4-18, 2002. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/31079/19291 . Acesso em: 22 ago. 2018.
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, p. 14). Fragilidade e potência estão presentes em uma vida. Fragilidade como vulnerabilidade à morte, mas também fragilidade como potência de criação de infinitas possibilidades de modos de vida.

A Presença é o acesso a uma vida, é a substituição do artigo definido pelo indefinido. “Um sentimento de beleza e amor incondicional de que não há fronteiras entre meu corpo e o ambiente” (ABRAMOVIC apud MARINA..., 2012MARINA Abramovic: The artist is present - the hardest thing is to do something which is close to nothing. Direção: Jeff Dupre e Matthew Akers. Produção: Jeff Dupre e Maro Chermayeff. USA: Show of Force, 2012. 1 DVD (106 min). ). Uma vida é o desmanchar parcial dessa fronteira, é a fissura que provoca viradas, mutações, novas sensações por tocar o intensível, o plano das sensibilidades que nos habitam. E esse plano sensível é matéria-prima da arte e também da clínica.

A artista e o analista estão presentes

“Desculpa o atraso, Lucas”. É a sexta vez que ouço Juliana proferir essa frase ao adentrar o consultório em passos largos. Um pouco descabelada, ela se joga no sofá e escorrega até pousar o pescoço no encosto, enquanto fala aceleradamente sobre os acontecimentos de sua semana. Juliana vinha tendo pensamentos e atitudes que, se formos seguir o psicodiagnóstico contemporâneo, afirmaríamos se tratar de sintomas do Transtorno Obsessivo Compulsivo - TOC. “Eu sinto como se tivesse uma voz na minha cabeça me dizendo coisas o tempo todo, mas é a minha voz. Estes pensamentos obsessivos estão me matando”, foi o que ela me contou na primeira sessão, empregando termos técnicos para se referir ao seu estado, como alguém que havia estudado sobre sua sintomatologia. “Acho que não ultrapassei a fase do espelho” apareceu na terceira sessão, quando falou que o único lugar onde se sentia segura era em casa, mas ao mesmo tempo era o lugar que lhe causava maior sofrimento devido às atitudes opressoras de sua mãe. Os pensamentos obsessivos de Juliana se traduziam em sentenças como: “Se você não pisar na faixa amarela do outro lado da rua, você vai morrer”. E ela se desdobrava para obedecer a seus pensamentos de modo que pudesse garantir sua sobrevivência. “Tenho medo de morrer”, ela formulou na décima sessão, ao contar que o pai havia falecido quando ela era criança. Uma sensação de morte iminente espreitava Juliana, que se refugiava em rituais obsessivos que a impediam de pousar em momentos presentes.

Ela fazia três faculdades ao mesmo tempo, vivia correndo de um campus a outro ao longo da semana, atolada em trabalhos acadêmicos. Chronos comandava sua rotina, e a cada encontro eu sentia que ela estava mais cansada, mais estressada e envolta em mais rituais e pensamentos obsessivos. “O que você está sentindo?”, interrompo-a durante uma sessão. Foi a terceira vez ao longo de uma hora em que emiti algo verbalmente. Juliana sorriu de um jeito como se dissesse que não havia entendido a pergunta. “O que você está sentindo agora?”, repeti. A paciente parou, olhou para baixo como quem procura algo dentro de si mesmo, começou a respirar mais lentamente e, por fim, me olhou. Fiquei com a sensação de que fazia tempo que Juliana não parava desse jeito. Eu sorri para ela. Comecei a sentir a aceleração que havia tomado conta do setting dar lugar a uma experiência de quietude. “Está sentindo?”, perguntei. Enquanto balançava a cabeça afirmativamente, juntou seus pertences espalhados pelo sofá e, sorrindo, disse: “Não sei dizer, mas sei”. O vínculo se fortaleceu entre mim e Juliana neste encontro, quando experimentamos juntos, ainda que brevemente, o estado de Presença.

Nesse estado, o mergulho na dimensão intensiva, pré-verbal, da experiência é seguido por um processo de elaboração, ou melhor, de tradução dos afetos. Claire Petitmengin (apud KASTRUP; PASSOS, 2013KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 25, n. 2, p. 263-280, 2013. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200004
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) diz que o que deve guiar esse processo de tradução é o felt-meaning. Desprovida de tradução para o português, a expressão equivaleria a “sentir o sentido” da experiência. O convite para que minha paciente se conecte com o sentido daquilo que sente tem potencial para transformar a própria relação que ela estabelece com aquilo que lhe acontece.

Na clínica psicológica é quando o paciente toma ciência desse plano da experiência que ocorrem avanços no processo terapêutico, e não o entendimento lógico e formal de seus problemas. [...] Os deslocamentos subjetivos resultam do acesso a essa dimensão concreta e imaterial da experiência (KASTRUP; PASSOS, 2013KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 25, n. 2, p. 263-280, 2013. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200004
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, p. 275).

Seguindo essa pista que Kastrup e Passos (2013KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 25, n. 2, p. 263-280, 2013. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200004
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) nos apresentam, quando Juliana, minha paciente, expressa não conseguir dizer o que está sentindo, este fato deixa de ser uma falha da linguagem ou uma defesa inconsciente e passa a ser entendido como a entrada dela em análise, mas uma entrada que se dá mediante o acesso ao felt-meaning produzido no nosso encontro, o que foi possível pela via da Presença, por meio de um mergulho no plano de forças que constitui o sensível. A fala que vem a partir desse mergulho não é uma fala sobre, mas uma fala com a experiência. Falar, então, deixa de ser representar algo para ser expressão de algo, torna-se ato, ato de fala. Entender a fala como expressão de algo, compreendê-la como ato significa deslocar o falar da função de representação ou descrição, que pressupõe a identidade entre o que foi vivido e o que é dito, para no lugar oferecer ao falar uma conotação de produção de realidade.

Esse engendramento demonstra a relação fronteiriça entre o linguístico e o não-linguístico da linguagem. Os signos possuem duplo funcionamento: no domínio do linguístico está a regularidade, as codificações e significações convencionadas; no domínio do não-linguístico estão os traços agramaticais, intensivos, partículas desviantes das convenções (TEDESCO, 2008TEDESCO, Silvia. Estilismo de si: ato de fala e criação. In: KASTRUP, Virginia; TEDESCO, Silvia; PASSOS, Eduardo (Org.). Políticas da cognição. Porto Alegre: Sulina, 2008. p. 177-197.). A fala, quando se dá como ato de fala, seria então o tilintar do encontro entre o linguístico e o não-linguístico que rompe a regularidade do domínio do linguístico e seus sentidos estabelecidos para inaugurar, em si própria, uma experiência. No ato de fala, portanto, não há descrição da experiência, já que é a experiência mesma quem fala. Se, por um lado, a linguagem precisa da estabilidade dos códigos e da repetição dos sentidos para atuar no mundo, por outro lado, ao se repetir, desestabiliza os códigos dotando de novidade o de novo.

A força performativa dos signos convive com a dupla natureza do signo e carrega a heterogeneidade do não-linguístico [...]. O valor pragmático das palavras não segue as orientações estabelecidas nos discursos existentes. No lugar, ele exalta a discrepência e a indiscernibilidade dos signos, desalinha a ordem instalada para exercitar-se na inauguração de novos sentidos e, com eles, novos mundos (TEDESCO, 2008TEDESCO, Silvia. Estilismo de si: ato de fala e criação. In: KASTRUP, Virginia; TEDESCO, Silvia; PASSOS, Eduardo (Org.). Políticas da cognição. Porto Alegre: Sulina, 2008. p. 177-197., p. 187).

Ao pensarmos a relação da arte da performance com a linguagem, evidencia-se o exercício de liberação e de criação de novos signos que essa arte vai operar a partir da movimentação e dinâmica corporal presente em todas as performances. Ainda que de forma não-verbal, o performer produz enunciação, emite signos. As performances só podem ser compreendidas como atos de fala devido ao fato de o corpo ser um instrumento semiótico que foi codificado ao longo da história pelos costumes e hábitos que os diferentes povos forjaram sobre si mesmos. O corpo funciona então mediante programas gestuais e comportamentais socialmente construídos e que tendem, por vezes, a ser tomados como naturais, como já dados.

Nas performances, esta estabilidade que proporciona identidade e segurança vai ser quebrada, convertendo-se num elemento perturbador: nem todos os gestos e movimentos são identificáveis, nem toda transformação é imediatamente suscetível a uma leitura (GLUSBERG, 2013GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2013., p. 90).

Ao descontruir códigos corporais vigentes, a performance acessa o plano sensível a partir do qual as codificações foram criadas, e, por se tratar de um plano infinito, abre-se para expressões inéditas, relações inesperaradas para com o corpo, criação de novos códigos sempre contingenciais e provisórios. A perturbação que a performance provoca tanto no artista quanto no espectador é efeito da condução do corpo ao limite dele mesmo, limite que não se confunde com limitação, mas um limite ultrapassável, passagem para o intensivo do plano do sensível.

Marina, presente na sala de um museu, sentada numa cadeira, convida o público a sentar-se diante dela e a partilharem a partir disso uma experiência. O corpo de ambos está quase imóvel na cadeira, mas junto ao corpo está “uma vida” que permanece em movimentação, movimento este que pôde ser sentido quando os funcionamentos corporais habituais foram convidados a silenciarem-se. No desenrolar da performance, o que vemos não é mais um espectador e uma artista, o que vemos é Presença. “O estado vivido é primeiro em relação ao sujeito que o vive”, nos dizem Deleuze e Guattari (2010DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. São Paulo: Editora 34 , 2010., p. 35), e esse primado do estado vivido que se dá na performance, e também na clínica, é o que chamamos de Presença.

Presença na relação entre analista e paciente

Quando perguntei a Juliana o que ela estava sentindo, o fiz por meio de palavras, de uma frase: “O que você está sentindo?”, questão que ao ser proferida produziu em nós e entre nós uma abertura. Abrir-me para o caso de Juliana fazia com que eu sentisse o sentido das vivências que ela havia partilhado comigo ao longo da sessão. Abrir-se para si mesma fazia com que a paciente pudesse se aproximar do sentido dos seus pensamentos e rituais obsessivos. Abertos, presentes, partilhamos um afeto que ela sozinha não podia suportar experimentar e nem ousaria nomear. Era o que sentia que a impulsionava para uma vida acelerada e, por vezes, desconectada do momento presente, ao mesmo tempo em que vivia obsessivamente transtornada para não correr o risco de sentir o que sentia. Como partilhar essa compreensão com a paciente? Não era pela via da racionalização de si mesma que Juliana poderia vir a prescindir dos rituais obsessivos, não adiantaria que eu explicasse a ela os porquês e os para quês dos seus sintomas. A racionalização, pelo contrário, era mais uma ferramenta que a paciente utilizava para se afastar do vívido das experiências, se afastar de si mesma, bloquear o acesso ao intensivo que a chacoalhava pedindo passagem. Para dizer à paciente o que eu vinha percebendo ao longo das sessões, era preciso certo manejo, ou, segundo Ferenczi (1992FERENCZI, Sándor. Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992., p. 31), certo tato psicológico:

Saber quando e como se comunica alguma coisa ao analisando, quando se pode declarar que o material fornecido é suficiente para extrair dele certas conclusões; em que forma a comunicação deve ser, em cada caso, apresentada; como se pode reagir a uma reação inesperada ou desconcertante do paciente; quando se deve calar e aguardar outras associações; e em que momento o silêncio é uma tortura inútil para o paciente.

A formulação de Ferenczi sobre o tato do analista mantém a indeterminação e a imprevisibilidade próprias da clínica. Não há prescrições objetivas a serem seguidas, não há um caminho definido a priori. Pelo contrário, é no processo analítico que o caminho vai sendo construído, passo a passo. Nas trilhas de cada caso, por vezes nos deparamos com labirintos, becos aparentemente sem saída e matas escuras. O tato seria a principal ferramenta de que dispõe o clínico em seu trabalho de construção de passagens e de territórios. “O tato é a faculdade de sentir com”, diz Ferenczi (1992FERENCZI, Sándor. Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992., p. 31). Por Juliana não ter condições de sentir sozinha o sentido do estado em que se encontrava, eu senti com ela, e não por ela, nem como ela. O afeto que sentimos era de medo.

Hubert Godard (2013GODARD, Hubert. Gesto e Percepção. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia. (Org.). Lições de Dança. 3 ed. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2013. p. 11-35.) chamou esse “sentir com” de empatia cinestésica ou de contágio gravitacional. De acordo com o bailarino, os nossos movimentos só podem ser realizados devido à dimensão pré-movimento que os constitui. Ao nos tornarmos bípedes passamos a lidar mais fortemente com a relação do nosso peso corporal com a gravidade. A capacidade de manter-se em pé implica inúmeros pré-movimentos que se dão na tensão do movimento de lenvantar-se com o eixo gravitacional que nos sustenta. O modo como ficamos de pé e o modo como nos movemos variam de acordo com as variáveis culturais, ambientais e pessoais que nos atravessam a todo instante e que produzem determinadas formas de se colocar fisicamente no mundo. Segundo Godard (2013)GODARD, Hubert. Gesto e Percepção. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia. (Org.). Lições de Dança. 3 ed. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2013. p. 11-35., é o sistema gravitacional que permite a expressão do aparelho psíquico, ou seja, os nossos movimentos estão dotados de desejo, inibições e emoções. Seriam os pré-movimentos, indiscerníveis para o próprio sujeito que se move - como, por exemplo, não percebemos o conjunto de músculos que se contrai antes e durante o movimento de esticar o braço para pegarmos um livro numa estante -, que acionariam tanto a dimensão mecânica quanto a afetiva de toda movimentação. Sendo assim, “toda modificação de nossa postura terá uma incidência em nosso estado emocional e, reciprocamente, toda mudança afetiva provocará uma modificação, mesmo imperceptível, em nossa postura” (GODARD, 2013GODARD, Hubert. Gesto e Percepção. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia. (Org.). Lições de Dança. 3 ed. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2013. p. 11-35., p. 14). O bailarino afirma, ainda, que os profissionais de dança sabem que, para melhorar ou alterar a qualidade de seus movimentos, precisam atingir todas as suas dimensões, inclusive acessar o pré-movimento. Da mesma forma que a gravidade orienta o pré-movimento, orienta também a percepção, ou melhor, o que antecede a percepção do mundo. Neste ponto, Godard (2013GODARD, Hubert. Gesto e Percepção. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia. (Org.). Lições de Dança. 3 ed. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2013. p. 11-35., p. 18) cita Kleist: “A afetação aparece quando a alma (vis motrix) encontra-se em qualquer ponto que não seja o centro de gravidade do movimento”. O movimento vira gesto quando podemos ser transportados através do que percebemos, quando o olhar não fica restrito à relação corpo/gravidade e temos a sensação de não saber se foi a nossa barca ou a que está ao lado que partiu da estação. Quem está se movendo? Questão que surge também num espetáculo de dança, na performance e na clínica, acrescentemos. Nestes casos, a distância que separa o bailarino/performer/analista do espectador/paciente vai variando no desenrolar do encontro, dando uma sensação parecida com a da partida das barcas. Quem está fazendo o pas de deux do balé? O bailarino ou o espectador? Se é apenas o bailarino, como explicar a sensação de movimento que toma o corpo de quem assiste? De quem é o afeto partilhado na performance? É o espectador que sente o afeto de Marina ou é Marina que sente o do espectador? Só conseguimos afirmar que ambos sentem, ambos foram transportados no pré-movimento do outro de modo que, ao levar a mão ao peito, um espectador sente como se Marina também o estivesse fazendo. Como é possível que Juliana me comunique, sem dizer uma palavra, que está sentindo medo? Senão por certa empatia cinestésica, certa partilha das sensações internas dos movimentos de nossos corpos? Godard (2013GODARD, Hubert. Gesto e Percepção. In: PEREIRA, Roberto; SOTER, Silvia. (Org.). Lições de Dança. 3 ed. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2013. p. 11-35., p. 24) vai dizer, a partir disso, que uma aventura política se inicia na dança, que bailarino e espectador passam a partilhar um território de tal modo que novas organizações do espaço e das tensões e emoções que nos habitam vão perturbar, afetar o espaço, as tensões e as emoções do espectador:

O movimento do outro coloca em jogo a experiência de movimento própria ao observador: a informação visual provoca no espectador uma experiência cinestésica imediata. As modificações e as intensidades do espaço corporal do dançarino vão encontrar ressonância no corço do espectador. O visível e o cinestésico, absolutamente indissociáveis, farão com que a produção de sentido no momento de um acontecimento visual não deixe intacto o estado do corpo do observador: o que vejo produz o que sinto e, reciprocamente, meu estado corporal interfere, sem que eu me dê conta, na interpretação daquilo que vejo.

Seria essa a definição para o conceito de empatia cinestésica ou de contágio gravitacional. A reflexão de Hubert Godard enriquece sobremaneira os modos de conceber a performance “A artista está presente” e também de pensar/fazer a clínica. Na sessão com Juliana, seus pré-movimentos, sua tensão corporal, sua impossibilidade de relaxar entram num estágio vibracional com os meus pré-movimentos e tensões, de modo que nessa empatia do corpo uma sintonia subjetiva é criada. Sinto que ela sente, ainda que ela não tenha podido sentir o que sentiu, e trabalho, junto a ela, na experimentação deste sentido e na produção de sentidos outros. Trabalhamos a construção de uma espiral do sentir intensivo no qual o “sentir que sentiu” cria um outro de si, uma decalagem, uma distância entre aquele que sente e aquele que sente que sente. Esta espiral de afetos permite a pluralização dos sentidos da experiência vivida pelo corpo-subjetividade ali em processo de criação. É importante clarificar que “sentir com” não é sentir igual, Presença não é fusão afetiva, mas sim uma disponibilidade para o outro, certa oferta do próprio corpo como passagem para aquilo que está pedindo passagem ao paciente e que ele, sozinho, não tem conseguido direcionar ou deixar passar.

Após sentir junto com Juliana o afeto de medo, toda minha movimentação corporal e verbal em direção a ela ganhou tonalidade ainda mais cuidadosa e, por vezes, protetora. A sensação de desamparo que tomava a paciente era a fonte de seu medo, e conseguir produzir no nosso encontro um espaço de amparo e confiança se tornou para mim o desafio principal. Isso implicou suportar lidar com a hostilidade que ela sentia do mundo e que passava a poder expressar ali, por vezes mascarada numa hostilidade a mim. Acolher seu afeto de raiva compreendendo que não era comigo exatamente, me permitia fazer a devolutiva de sua hostilidade de forma amorosa, o que gerava embaraço para a paciente ao mesmo tempo em que ela começava a sentir que não precisava ter tanto medo do que é aparentemente hostil, de que é possível dar sentidos e destinos diversos para aquilo que vem sobre nós em forma de ataque. “Isso é um ataque?”, perguntei a ela numa sessão. “Não sei”, ela respondeu, “não aguento ficar sentindo isso sozinha”. Podendo confiar em mim, Juliana passou a me enviar uma mensagem pelo Whatsapp toda vez que se sentia impelida a entrar num ritual obsessivo, ou toda vez que pensamentos que a pertubavam tomavam sua mente. Assim, passei a receber mensagens dela algumas vezes por semana, em horários diversos, e respondia cautelosamente. Ao longo das semanas, Juliana contou em sessão que não vinha mais lavando tanto a mão e que quase não se sentia impelida a fazer nenhum ritual obsessivo, como atravessar uma rua e pisar a faixa do outro lado como condição para que não morresse imediatamente. A Presença pode transbordar para fora do setting e ser vivenciada por meio de um aplicativo de celular. No caso de Juliana, foi um bom uso da nova tecnologia que permitiu que a Presença que partilhávamos em análise pudesse acompanhá-la em seu cotidiano, diminuisse seu medo, e, pouco a pouco, a paciente precisava cada vez menos me escrever. Nas vezes mais escassas em que passou a me enviar mensagens, um simples “Oi, Juliana”, era suficiente para sentir, para se localizar no momento presente e ser afetada pelo vívido das experiências e dos acontecimentos de sua vida, sentindo-se menos desamparada, com menos medo de viver e menos obsessiva. O analista estava presente e Juliana sabia disso, sentia isso. Sobre essa disponibilidade ao paciente, Ferenczi (1992FERENCZI, Sándor. Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992., p. 85) diz:

É uma vantagem para a análise quando o analista consegue, graças a uma paciência, uma compreensão, uma benevolência e uma amabilidade quase ilimitadas, ir o quanto possível ao encontro do paciente. Cria-se desse modo uma base graças à qual pode-se lutar até o fim na elaboração dos conflitos.

Considerações finais

Ao longo do processo terapêutico, Juliana e eu fizemos construções importantes. A paciente estava sempre antecipando sentidos a respeito de tudo o que lhe ocorria. No movimento de pensar nas possibilidades ruins que lhe podem ocorrer, Juliana se desconecta do que está lhe ocorrendo. Digo a ela que tenho percebido a dificuldade dela de estar no momento presente. A paciente afirma que precisa fazer planos B para tudo. “Se tudo der errado, eu terei para onde ir, não vou me frustar tanto”, ela supõe. Os planos B da paciente também são construídos em torno de ideias negativas, ainda que tenham como objetivo ajudá-la a enfrentar um acontecimento desagradável. O plano B é o plano que a sequestra do presente, antecipa, calcula, representa. Não é sentir, mas re-sentir, já que é o mesmo medo que retorna - surge um ressentimento e não uma experiência presente, que é condição necessária para viver o acontecimento.

Pudemos construir juntos o sentido de que a criação dos planos B acaba por desconectá-la do presente, a impossibilita de experimentar plenamente os planos que estão em construção a cada instante da experiência. Falta-lhe presença. Para ela, estar presente é correr o risco de uma ausência repentina, seja de um plano, de um trabalho, de um relacionamento. A morte repentina do pai quando ela ainda era criança e a dificuldade de lidar com a ausência do pai nos meses seguintes ao falecimento produziram em Juliana uma imagem super positivada desse pai, o que de certo modo acentuava sua tristeza. Mas a imagem super positivada do pai e a sua morte ganharam centralidade na vida de Juliana, e todos os sentidos produzidos nas suas vivências passaram a ser mediados por essa imagem. Lembro-a das queixas que havia me trazido a respeito de seu pai; ela havia dito que ele batia muito nela, que era violento, e que, por vezes, sentia medo quando ele chegava a casa. Parece que a ausência do pai também trazia em seu bojo algo de positivo, ou seja, ela não apanharia mais dele, não sentiria mais aquele medo; ao mesmo tempo em que ele era seu pai, o amava, e sentia sua falta de alguma forma.

Sentir que havia algo de bom nessa ausência gerava culpa, dizia ela, e então era levada a carregar de tintas cinza essa ausência enquanto idealizava a respeito de um pai amoroso e protetor que ela não teve. A Presença tem permitido a Juliana habitar esse paradoxo. De frente para mim, ela se aproximava do que lhe apavorava, e toda vez que ela se desconectava eu a interrompia e a chamava de volta para o que estava acontecendo na sessão, para o plano A das questões que trazia. Sentindo-se acompanhada, ela passou a conseguir se conectar com os momentos presentes de sua vida, com tudo o que eles trazem. A Presença experimentada no setting pôde ser transportada para os demais espaços em que ela circulava e, aos poucos, pôde se tornar uma forma de vivenciar as experiências de sua vida. A paciente estava presente.

Referências

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    Os dados completos dos autores encontram-se ao final do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2017
  • Revisado
    16 Mar 2020
  • Revisado
    17 Abr 2020
  • Aceito
    01 Jun 2020
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