Open-access A atenção psicológica: reflexões entre psicanálise e cinema1

Psychological attention: reflections between psychoanalysis and cinema

Atención psicológica: reflexiones entre psicoanálisis y cine

Resumo

Este artigo investiga possíveis analogias entre a escuta e o olhar do documentarista Eduardo Coutinho e a atenção psicológica psicanaliticamente orientada. A filmografia de Eduardo Coutinho questiona a simples dualidade entre realidade e ficção. Também a psicanálise questiona essa dualidade, a partir de noções como realidade psíquica e realidade material, por exemplo. Freud chegou a afirmar que o aparelho psíquico se constitui enquanto ficção, problematizando os limites entre a realidade objetiva e o vivido. Em uma situação de análise, é por meio da associação livre por parte do paciente e da escuta interessada que acredita na verdade do sujeito por parte do analista que podem ocorrer transformações, de modo que representações sejam modificadas, situações traumáticas elaboradas, o sofrimento dirimido. Nesse caso, tanto a atenção psicológica quanto a de Eduardo Coutinho estariam atestando a existência dos sujeitos por meio de uma abertura radical à alteridade e tomando a existência também em sua vertente ficcional.

Palavras-chave: cinema; psicanálise; Eduardo Coutinho; alteridade

Abstract

This article investigates possible analogies between the documentarian’s, Eduardo Coutinho’s, listening and view, and psychoanalytical attention. Coutinho’s filmography questions the simple duality between reality and fiction. Psychoanalysis, too, questions this duality, from notions such as psychic reality and material reality. Freud went on to affirm that the psychic apparatus is constituted as fiction. In a situation of analysis, and through free association, by the patient, and interested listening, which believes in the subject’s truth, by the analyst, transformations may occur, in a way that representations can be modified, traumatic situations elaborated, suffering settled. In this case, both psychoanalytical, as well as Eduardo Coutinho’s listening, would be attesting the subject’s existence through a radical opening to otherness and taking existence in its fictional aspect.

Keywords: cinema; psychoanalysis; Eduardo Coutinho; otherness

Resumen

Este artículo investiga posibles analogías entre el estilo del documentalista Eduardo Coutinho y la atención psicológica de orientación psicoanalítica. La filmografía de Eduardo Coutinho cuestiona la dualidad entre realidad y ficción. El psicoanálisis también cuestiona esta dualidad, a partir de nociones como realidad psíquica y realidad material, por ejemplo. Freud planteó que el aparato psíquico se constituye como una ficción, problematizando los límites entre la realidad objetiva y lo experimentado. En una situación de análisis, es a través de la asociación libre por parte del paciente y de la escucha interesada del analista que cree en la verdad del sujeto que pueden ocurrir transformaciones, de manera que se modifican representaciones, se elaboran situaciones traumáticas, sufrimiento esta resuelto. En este caso, tanto la atención psicológica como la postura de Eduardo Coutinho estarían dando fe de la existencia de los sujetos a través de una apertura radical a la alteridad y tomando también la existencia en su aspecto ficcional.

Palabras clave: Cine; Psicoanálisis; Eduardo Coutinho; Alteridad

Realidade e ficção na psicanálise

A discussão acerca das correspondências e dos limites entre realidade e ficção é cara à psicanálise. Quando, n’A interpretação dos sonhos, Freud (1900/2020) afirmou que realidade material e realidade psíquica, conquanto se comuniquem, não coincidem, colocou-se a hipótese de o aparelho psíquico ser regido pela ficção. A esse propósito, afirmam Laplanche e Pontalis (1979, p. 65): “O aparelho psíquico tem para Freud um valor de modelo, ou, como ele próprio dizia, de ‘ficção’”.

Daí, ao abandonar o método catártico e a técnica da hipnose, a preocupação de Freud deixar de ser por revelar a verdade oculta por trás de um sintoma, mas utilizar “a arte da interpretação essencialmente para reconhecer as resistências que nela surgem” (FREUD, 1914/2010, p. 195). Não se busca acessar uma verdade tirando de cena a resistência (como ocorria na hipnose) e tampouco a interpretação é utilizada enquanto expressão de uma verdade. Em vez disso, o trabalho incide sobre a resistência, de modo que o analisando possa, ao tomar contato com suas defesas, ressiginificar suas experiências.

“Nota sobre o Bloco Mágico” (FREUD, 1925/2011) é um texto elucidativo dessa acepção. Nesse ensaio, Freud apresenta a analogia entre o aparelho psíquico e o brinquedo chamado bloco mágico (posteriormente conhecido como lousa mágica):

O Bloco Mágico é uma tabuinha feita de cera ou resina marrom-escura, com margens de papelão, sobre a qual há uma folha fina e translúcida, presa à tabuinha de cera na parte superior e livre na parte inferior. Essa folha é a parte mais interessante do pequeno aparelho. Consiste ela mesma de duas camadas, que podem ser separadas uma da outra nas bordas laterais. A camada de cima é uma película de celuloide transparente, a de baixo é um papel encerado, ou seja, translúcido. Quando o aparelho não é utilizado, a superfície de baixo do papel encerado cola-se levemente à superfície de cima da tabuinha de cera (FREUD, 1925/2011, p. 270).

Os traços ficam permanentemente marcados na cera, embora possamos levantar a dupla folha que a cobre e supostamente “apagar” o que fora escrito, de modo que novas marcas venham a ser incorporadas.

Assim como no bloco mágico, “nosso aparelho psíquico [...] tem ilimitada capacidade de receber novas percepções e cria duradouros - mas não imutáveis - traços mnemônicos delas” (FREUD, 1925/2011, p. 269). As marcas e as inscrições das relações que estabelecemos com o mundo ficam permanentemente registradas no inconsciente. Por isso, para que um acontecimento do passado se faça presente, é necessário um acontecimento novo - que o reative. Daí a noção freudiana de temporalidade après-coup (FREUD, 1916/2010). O vivido é representado só-depois, já que as marcas só são ativadas quando relacionadas entre si.

Como afirma Fábio Herrmann (1999, p. 51): “Dele [do inconsciente] só sabemos pela interpretação”. E, por meio de uma interessante metáfora, explicita o autor: “Tudo se passa como naquele jogo em que se coloca um papel de seda sobre uma moeda. Risca-se e, devagar, vai aparecendo a efígie da moeda no papel superposto. Tal qual a moeda, o desejo não é visível diretamente” (HERRMANN, 1999, p. 36).

Pensemos, pois, o encontro analítico, encontro que dá visibilidade às relações transferenciais e se movimenta a partir delas:

Tal como nos sonhos, o doente atribui realidade e atualidade aos produtos do despertar de seus impulsos inconscientes; ele quer dar corpo a suas paixões, sem considerar a situação real. O médico quer levá-lo a inserir esses impulsos afetivos no contexto do tratamento e no da sua história, a submetê-los à consideração intelectual e conhecê-los segundo o seu valor psíquico. Essa luta entre médico e paciente, entre intelecto e vida instintual, entre conhecer e querer “dar corpo”, desenrola-se quase exclusivamente nos fenômenos da transferência (FREUD, 1912/2010, p. 146).

Freud já havia afirmado, em “Fragmento de análise de um caso de histeria” (1905/2016), o caso Dora, que a análise revela a transferência, mas não a cria. Essa proposição é importante, porque considera que somos muitos e convocamos o outro (que também nos convoca) a partir de múltiplos lugares. A propósito, em “Recordar, repetir e elaborar” (FREUD, 1914/2010, p. 201), escreve o psicanalista: “Devemos estar preparados, portanto, para o fato de que o analisando se entrega à compulsão de repetir, que então substitui o impulso à recordação, não apenas na relação com o médico, mas para todos os âmbitos da situação presente.”

Em uma situação de análise, contudo, a amplitude da transferência é o que marca a especificidade do trabalho: “Nessa situação, a palavra é proferida sob transferência e emoldurada pelo contrato da associação livre, o que potencializa uma de suas dimensões, qual seja, a de comportar, quando pronunciada, mais do que aquilo que o sujeito falante sabe, de si e do que fala” (FERRAZ, 2015, p. 15-16, grifos do autor).

É necessário que o analista exercite uma atenção interessada que acredite de antemão na verdade do sujeito. Assim, a partir do encontro com o analista, o sujeito tem a possibilidade de elaborar situações traumáticas, porque rememora o vivido diante de um outro, uma testemunha, que, conforme a citação acima, “acredita em sua verdade”. Mas a verdade não é aquela objetivamente apreensível - se é que há uma - senão, considerando o aparelho psíquico em Freud, uma ficção.

Eduardo Coutinho

A ambiguidade entre realidade e ficção foi trabalhada nos filmes do documentarista e ensaísta Eduardo Coutinho, um dos cineastas brasileiros que mais se abriu à alteridade: “O cineasta dos outros” (OHATA, 2013, p. 5). Seus documentários se destacam pela força do relato de pessoas comuns, quase sempre desconhecidas do público, a quem o diretor oferecia a câmera e a escuta. Mas, antes de se notabilizar como um dos principais documentaristas do cinema mundial, Coutinho trabalhou como jornalista e participou como roteirista e diretor em filmes de ficção.

Desde os seus primeiros trabalhos, a importância da palavra se fazia notar. Em 1975, motivado pela estabilidade financeira e pelas possibilidades para filmar que a televisão proporcionava, Coutinho aceitou o convite para integrar a equipe do programa Globo Repórter, da Rede Globo. Nesse período, ele dirigiu uma série de documentários rodados em 16 mm. Sobre essa fase, João Moreira Salles (2013, p. 367) escreve:

Tão crucial quanto retirar dali o seu sustento pelos anos seguintes foi tomar contato com o documentário e se tornar um assalariado com prazos a cumprir. Coutinho aprendeu a lição preciosa da imperfeição: “Não dava para ser artista. Na terça tinha de pôr no ar”. Com seu apego ao que chama de “as impurezas do mundo”, preza ferrenhamente essa rendição aos limites da vida concreta, que proíbem toda utopia. “Odeio a pureza e a perfeição”, ele dirá.

O trabalho no Globo Repórter seria decisivo, então, para o desenvolvimento do seu estilo. Nos filmes desse período, Coutinho passou a se ater aos restos, aos vestígios do real, e, nesse sentido, Seis dias em Ouricuri (1976) foi seminal. Rodado em um vilarejo do interior de Pernambuco, o documentário se voltou aos impactos da seca para a população. Ocorre que, em determinado momento do filme, um homem agachado mostra uma série de raízes que os moradores dali, fustigados pela fome, eram obrigados a comer. O relato, tocante em sua tragicidade, resulta em um plano-sequência de mais de quatro minutos - uma eternidade para o tempo em televisão:

Não seria exagero dizer que todo cinema de Coutinho será tributário desse único plano, que jamais teria existido sem o encontro fortuito entre um diretor disposto a ouvir e um personagem que percebe ter diante de si alguém que deseja escutá-lo. O plano foi ao ar sem cortes, e Coutinho se deu conta do valor da duração: “Depois daquilo, senti que não queria fazer outra coisa”. Virara um documentarista (SALLES, 2013, p. 368).

Com efeito, o documentarista Eduardo Coutinho não se interessará pela busca de depoimentos que atestem uma tese previamente formulada. Em outra direção, em seus filmes, “a valorização da oralidade é o modo de combater os limites desta nas situações usuais do cinema e da TV; é o modo de combater a situação de assimetria na divisão dos poderes” (XAVIER, 2004, p. 186).

Emblemático nesse sentido, Cabra marcado para morrer, dirigido por Coutinho em 1984, é considerado um dos filmes brasileiros mais importantes de todos os tempos. Rodado inicialmente em 1964, reconstituiria o assassinato de João Pedro Teixeira, líder da liga camponesa de Sapé, na Paraíba, morto a mando de latifundiários, e os próprios camponeses interpretariam os papéis. Ocorre que as filmagens foram interrompidas em decorrência do golpe militar de 64, e Coutinho retomou o projeto em 1981, quando voltou à região em busca da viúva de João Pedro, Elizabeth Teixeira, e de seus filhos. O resultado foi um documentário, cujo mote foi o filme outrora interrompido.

O êxito de Cabra marcado para morrer encorajou o diretor a abandonar a televisão e se dedicar exclusivamente ao cinema. No entanto, como o sustento com cinema autoral era difícil, Coutinho passou a realizar uma série de filmes institucionais, até que o lançamento do filme Santo forte (1999) viesse para marcar mais uma virada na obra de Coutinho:

Em 1997, [Coutinho] achou que era o momento de fazer um filme em que as conversas não fossem somente a ilustração ou mesmo a “comprovação” de um argumento prévio. Num movimento de grande ousadia, resolveu filmar um longa-metragem baseado prioritariamente na fala de pessoas comuns, sem narração, sem depoimentos de especialistas ou qualquer outro recurso de contextualização. A simples curiosidade do cineasta substituía a apreensão sociológica e o autoritarismo intelectual (MATTOS, 2019, p. 181).

Então, a partir de Santo forte, filme que selou a parceria de Coutinho com o também documentarista João Moreira Salles, que passaria a produzir seus filmes, o cineasta foi depurando um estilo, um método de fazer cinema, um cinema de conversação. Ele lapidou e tematizou esse método no ciclo que abarca, além de Santo forte, os filmes Babilônia 2000 (2000), Edifício Master (2002), Peões (2004), O fim e o princípio (2005), Jogo de cena (2007), Moscou (2008), Um dia na vida (2010), As canções (2011) e Últimas conversas (2015, póstumo).

No documentário Eduardo Coutinho - 7 de outubro (2013), dirigido por Carlos Nader, Coutinho discorre sobre algumas dessas regras que definiram seu estilo, tais como o lugar único para a filmagem, a câmera imóvel e, geralmente, não entrevistar pessoas do seu convívio pessoal. Essa “pena imposta a si mesmo”, isto é, estar preso ao “presente da filmagem”, segundo ele, era o que poderia levar à libertação. E, para Coutinho, a libertação era a descoberta de personagens reais. Assim, ele se lançava à incerteza, de forma que os depoentes pudessem tomar contato com a sua própria história, legitimada pela presença do diretor e pelo olho da câmera. “Quem fala”, segundo Coutinho, “é o corpo”, e o que “pode criar vida” é a “realidade do diálogo na justa distância”, algo da ordem do “sexual”, posicionar-se bem próximo ao entrevistado, uma “co-presença” (Eduardo Coutinho - 7 de outubro, 2013).

Com efeito, ao descobrir personagens reais, o cinema documental de Eduardo Coutinho privilegiou também a perspectiva da criação:

Mas o documentário, ao contrário do que os ingênuos pensam, e grande parte do público pensa, não é a filmagem da verdade. Admitindo-se que possa existir uma verdade, o que o documentário pode pressupor, nos seus melhores casos - e isso já foi dito por muita gente -, é a verdade da filmagem. A verdade da filmagem significa revelar em que situação, em que momento ela se dá e todo o aleatório que pode acontecer nela (COUTINHO, 2013, p. 23).

Em suma, do ponto de vista dos dispositivos cinematográficos, os filmes de Eduardo Coutinho são simples, já que o aparato é propositalmente explicitado. Mas seu cinema - a verdade da filmagem - é extremamente sofisticado quanto à reflexão sobre o significado da realidade que suscita. Diz o diretor: “Geralmente o filme, quando dá certo, não termina com uma resposta-síntese. [...] Se fosse para obter uma resposta fechada, também não valeria a pena fazer filmes com som direto” (COUTINHO, 2013, p. 25). E isso se potencializa por se tratar de documentários que questionam, na forma e no conteúdo, a relação (aparentemente) dual entre ficção e realidade.

Jogo de cena

Jogo de cena (2007), filme que questiona a simples oposição entre realidade e ficção, talvez seja a sua obra mais inventiva. No palco de um teatro, sentado de frente para a plateia (vazia), Coutinho conduz uma série de entrevistas com mulheres. Em algumas delas, no meio de uma frase, entra em cena outra mulher. Às vezes uma mesma história é contada em outro momento do filme. Em muitas sequências, o espectador não distingue quem de fato viveu o drama e quem o está representando: atrizes desconhecidas podem estar representando, atrizes conhecidas podem contar eventos de suas vidas pessoais, muitas são as possibilidades - os pressupostos são postos em sobressalto.

Acompanhemos uma de suas sequências.2

Inicialmente, há o plano-sequência de uma moça subindo a escada que leva ao palco (o set de filmagem). Apreensiva, ela faz comentários enquanto caminha, como “isso não acaba nunca...”, e ao chegar diz: “Quanta gente!”. Há um corte para um plano frontal dela, da perspectiva de Coutinho. Eles começam a conversar; a mulher refere-se à dificuldade em dar prosseguimento às histórias. Ato contínuo, há uma tomada da atriz Fernanda Torres, que, ao se sentar diante do diretor, comenta, exatamente como a moça da cena anterior: “Quanta gente!”. Coutinho a cumprimenta pelo nome, “Nanda”, e aponta o fato de ela ter feito “igualzinho”, gesto que a desconcerta e a tira da personagem. Diferentemente das outras sequências, aqui a conversa metalinguística entre diretor e atriz ocorre no início.

Mais à frente, no meio de uma frase, Torres sai do texto e diz: “Que doido, cara, muito doido”. Interrupções dessa ordem voltam a ocorrer. A atriz fala para Coutinho: “Nossa, parece que eu estou mentindo para você”. Acrescenta que, quando passava o texto em casa, não tinha essa sensação; mas, diante do diretor, é como se a fala viesse antes da memória que tinha da personagem, circunstância que a incomoda porque “eu não separo ela do que ela diz, entende?”. Ora, a atriz entra no set com a mesma espontaneidade da outra moça. É provável que o comentário inicial de Eduardo Coutinho, tirando-a da personagem, tenha sido disparado pela estranheza que ele experimentou enquanto espectadora. Não sabemos se, não fosse essa intervenção inicial, Torres viveria o desconforto que se seguiu. De qualquer forma, diante de uma testemunha, o embaraço de se passar por outra pessoa, tendo se aproximado dela tão intensamente, foi tamanho que chegou a paralisá-la.

Fernanda Torres diz: “Que doido”, “que engraçado”, “que vergonha”, “parece que eu estou mentindo para você” - falas que apontam para o sentimento de desconcerto por ser “pega no flagra”. O embaraço se potencializa, uma vez que se trata de um “jogo de faz de conta” no qual, todavia, as personagens são reais, e, como diz Fernanda Torres: “A realidade esfrega na sua cara”. Nessa medida, o desconcerto - que paralisa a atriz, mas é também emblema de uma comunicação fascinante - é disparado pelo tema do duplo, ou seja, Fernanda Torres é testemunhada (pelo diretor, pela câmera) passando-se por outra. Ou ainda: no encontro com o olhar do outro, Torres surpreende-se encontrando a outra em si. Descoberta tão infamiliar quanto familiar, podemos dizer em companhia de Freud (1919/2019).

No ensaio “O infamiliar”, a partir de um minucioso estudo da palavra Unheimliche em diversos idiomas e da consideração para as circunstâncias que despertam em nós o sentimento do infamiliar, Freud afirma que “o infamiliar é uma espécie do que é aterrorizante, que remete ao velho conhecido, há muito íntimo” (FREUD, 1919/2019, p. 33). O criador da psicanálise problematiza, dessa forma, a mera oposição entre familiar e infamiliar. Em alguns casos citados por ele, o significado de “familiar” coincide com o seu oposto. A essa constatação, Freud acrescenta a observação de Schelling, segundo o qual “infamiliar seria tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas que veio à tona” (FREUD, 1919/2019, p. 45), e propõe, então, a tese segundo a qual o infamiliar é um tipo de familiar: trata-se do “infamiliar referente ao retorno do mesmo” (FREUD, 1919/2019, p. 79) e que, nesse sentido, só é infamiliar conquanto se corresponda com aquilo que temos de mais familiar.

Nessa medida, ao explicitar que “nós somos muitos”, Jogo de cena empreende o trânsito entre os pares de (à aparência) opostos, provocando o efeito infamilar nas atrizes entrevistadas por Coutinho e no espectador do filme. Assumimos uma série de papeis de acordo com cada situação e, analogamente, somos convocados a partir dos mais diversos lugares. Se, como afirma Merleau-Ponty (2009, p. 23), “toda tentativa de elucidação traz-nos de volta aos dilemas”, Jogo de cena nos mostra que é a partir da cadeia interminável de dilemas que saltam as histórias.

Assim, mantendo as especificidades das linguagens e dos métodos implicados tanto no cinema quanto na psicanálise, pode-se propor a analogia entre a construção de personagens reais, presente nos documentários de Eduardo Coutinho, e as transformações que a atenção psicológica pode oferecer aos sujeitos.

Cena do jogo

Segundo André Green (2010, p. 226), “perceber não é conhecer, mas re-conhecer; re-conhecer é percorrer novamente a trajetória de um movimento definido por seu valor substitutivo a um tocar qualificado como desejável ou indesejável ou, em lugar disso, como aceitável ou inaceitável” (grifos do autor). Green refere-se aos efeitos do trabalho no negativo, uma de suas contribuições mais relevantes.

A esse respeito, sintetiza Cintra (2013, p. 66): “O trabalho do negativo traça a fronteira entre um irrepresentável que, por seu excesso, é traumático, e o âmbito do figurável e representável”. Com efeito, André Green nos chama a atenção para a importância de os objetos deixarem-se esquecer, isto é, para a função constitutiva marcada pela falta, pelo objeto reconhecido em sua falha, em suma, pelo objeto negativado. Por isso, “quando há uma ausência de ausência ou uma presença de presença, o que no fundo é a mesma coisa, pois ambas desconhecem o vazio, o processo de constituição psíquica fica obstruído” (CINTRA, 2013, p. 70, grifos da autora).

Desse ponto de vista, o analista acreditar na verdade do analisando, isto é, em sua ficção, implica a disponibilidade daquele em ser continente para os conteúdos deste, muitas vezes repletos de toxicidade, traumáticos em seu excesso. A presença do analista oferece a possibilidade do resgate de espaço interno - uma concavidade - para uma constituição em bases mais consistentes, criativas, singulares. Green (2010) refere-se a essa concavidade enquanto uma estrutura enquadrante, isto é, um quadro no qual o mundo representacional do bebê pode ser projetado. Se o processo transcorrer bem, haverá a possibilidade para o esquecimento, quer dizer, para o trabalho do negativo.

Com efeito, assumir a ambiguidade entre realidade e ficção, na clínica psicanalítica, é estar às voltas com questões para as quais não existem respostas prontas, tampouco definitivas, o que implica um cuidado especial em relação à técnica. Nesse sentido, parece razoável afirmar que o sucesso de um processo analítico não depende apenas do trabalho de interpretação.

Para seguir a discussão sobre a “cena do jogo” clínico, acompanhemos alguns apontamentos de Sandór Ferenczi (1928/1992) a respeito da elasticidade da técnica.

Escreve o autor: “Mas o que é o tato? A resposta a esta pergunta não nos é difícil. O tato é a faculdade de ‘sentir com’ (Einfühlung)” (FERENCZI, 1928/1992, p. 27, grifos do autor). Ferenczi não se posiciona a favor de uma atitude exclusivamente empática; antes, salienta os riscos implicados no “fanatismo da interpretação”. Quer dizer, a interpretação como único recurso técnico pode resultar em elaborações inautênticas e frágeis, daí a importância dos elementos que são da ordem do diálogo dramático. Assim, “podem-se acessar as associações possíveis ou prováveis do paciente, que ele ainda não percebe, e poderemos - não tendo, como ele, de lutar com resistências - adivinhar não só seus pensamentos retidos mas também as tendências que lhe são inconscientes” (FERENCZI, 1928/1992, p. 27).

O uso excessivo da interpretação pode ser emblema de uma configuração marcada por racionalizações por meio das quais se contribui para o jogo da inautenticidade. Dessa perspectiva, voltamos à analogia entre a construção de personagens reais, que resulta da verdade da filmagem nos filmes de Coutinho, e os efeitos que podem advir da escuta disponível do analista. Em ambas as situações, o que parece estar em jogo é a autenticidade da experiência, bem como suas modalidades de comunicação. Viver o sobressalto inerente à ambiguidade entre realidade e ficção implica, em vez de falsamente resolvê-la, potencializá-la, o que nos convoca à complexidade de que somos parte, incluídas aí, evidentemente, as questões acerca da abertura à alteridade.

Como escreve Coelho Junior (2004, online): “No contato com um outro, posso me surpreender, ser traumatizado, ter experiências de estranhamento ou de familiaridade [...] posso, enfim, ser constituído pelo outro ou constituí-lo, ou vivenciar processos de mútua constituição” (grifos do autor). Assim, é como se a cena do jogo da clínica psicanalítica e o jogo de cena dos documentários de Eduardo Coutinho explicitassem a verdade como uma construção que se dá na medida em que pode ser dividida por, pelo menos, dois sujeitos dispostos ao jogo transferencial e contratransferencial no qual está implicada alguma noção de realidade passível de ser compartilhada.

Referências

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    » https://www.sescsp.org.br/programacao/eduardo-coutinho-7-de-outubro
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  • FREUD, Sigmund. O infamiliar [Das Unheimliche] (1919). In: Obras Incompletas de Sigmund Freud Tradução de Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. v. 8, p. 26-125.
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  • 1
    Trabalho financiado pelo Programa Nacional de Pós-Doutorado PNPD/CAPES.
  • 2
    Uma primeira análise dessa sequência foi apresentada por nós em trabalho anterior. Ver Tardivo (2018).

Editado por

  • Editora responsável pelo processo de avaliação:
    Ana Carolina Fioravanti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2018
  • Revisado
    05 Maio 2021
  • Revisado
    04 Jan 2023
  • Aceito
    28 Jun 2023
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