Resumo
O presente artigo propõe que os parâmetros conceituais do enfoque em “Cadeias Mercantis” possibilitam férteis recursos de formulação, exploração e desvendamento de problemas na geografia humana. Em seu teor confere um destaque para a articulação entre geografia econômica e a geografia agroalimentar, embora a referida proposta também alcance articulações entre outras subáreas. Com estes fins, se realizou um estudo de natureza exploratória, procedendo um levantamento bibliográfico, documental e de dados e se vale de uma concisa análise de caso do sistema produtivo-comercial da sojicultura brasileira. Formula-se a concepção de “Teia Geoeconômica” para salientar fatores socioinstitucionais na dimensão geopolítica da economia. Chega-se à compreensão de que estes marcos conceituais são propícios para problematizar questões a respeito de dinâmicas de inserção e posicionamento de subestruturas nas economias nacionais, destas economias na economia mundial e das relações de poder nestes espaços.
Palavras-chave: Cadeias Mercantis; Conceitualização; Teia Geoeconômica
Resumen
Este artículo propone que los parámetros conceptuales del enfoque de “Cadenas de Mercancías” posibilitan recursos fértiles para la formulación, exploración y desentraño de problemas de la geografía humana. En su contenido, enfatiza la articulación entre geografía económica y geografía agroalimentaria, aunque la propuesta antes mencionada también alcanza articulaciones entre otras subáreas. Para estos efectos, se realizó un estudio exploratorio, procediendo con un relevamiento bibliográfico, documental y de datos y se realizó un conciso análisis de caso del sistema productivo-comercial de la soyicultura brasileña. El concepto de “Telaraña Geoeconómica” se formula para resaltar los factores socioinstitucionales en la dimensión geopolítica de la economía. Se comprende que estos marcos conceptuales son adecuados para problematizar cuestiones sobre la dinámica de inserción y posicionamiento de las subestructuras en las economías nacionales, de estas economías en la economía mundial y de las relaciones de poder en estos espacios.
Palabras-clave: Cadenas de Mercancías; Conceptualización; Teleraña Geoeconómica
Abstract
This article proposes that the conceptual parameters of the focus on "Commodity Chains" offer fertile resources for the formulation, exploration, and unraveling of problems in human geography. To this end, an exploratory study was carried out, beginning with a bibliographical, documentary, and data survey followed by a concise case analysis of the productive-commercial system of Brazilian soybean production. The "Geoeconomic Web" concept was formulated to highlight socio-institutional factors in the geopolitical dimension of the economy. It is understood that these conceptual frameworks are suitable to problematize issues about the dynamics of insertion and positioning of substructures in national economies, of these economies in the world economy, and power relations in these spaces.
Keywords: Commodity Chains; Conceptualization; Web Geoeconomic
INTRODUÇÃO
A construção de marcos conceituais e a reapreciação da consistência analítica daqueles pré-existentes, possibilitam a estruturação de abordagens de estudos nas áreas e subáreas dos campos científicos. Este exercícios teórico-metodológicos nos oportunizam conexões e sistematizações de fenômenos a partir de recursos interpretativos com os quais convertemos dados em informações epistemologicamente fecundas.
Neste estudo, de natureza exploratória, defendemos o emprego de um campo conceitual profícuo para a geografia humana, notadamente por meio da articulação entre geografia econômica e a geografia agroalimentar. Pretendemos contribuir para reformular enfoques de problemas e descortinar perspectivas analíticas, conectando a questão da “locacionalidade” na geografia econômica com reconfigurações na geografia agroalimentar de ordem técnico-institucionais e socioeconômicas. Discutimos a concepção de “Cadeia Mercantil”, formulada sob a perspectiva da Análise do Sistema Mundial Moderno, propondo o conceito de “Teia Geoeconômica”, visando contemplar as suas dimensões geopolíticas.
O encadeamento da análise está ancorado em levantamento bibliográfico, documental e dados secundários. A análise se debruça sobre o sistema produtivo-comercial da soja, por meio do qual serão elucidadas as dinâmicas de inserção e posicionamento de economias nacionais na economia mundial, as relações de poder no espaço, os discursos e as performances retóricas, desveladas a partir da articulação entre “Cadeia Mercantil” e a concepção de “Teia Geoeconômica”.
A DIMENSÃO GEOECONÔMICA
A emergente estrutura do “Estado Nacional”, desde as cidades-estado italianas do século XII ao XV, teve um papel crítico em propulsionar uma espécie de “fagocitose” dos espaços de comércio locais (GEERTZ, 1989; NOREL, 2004; SCHWARTZ, 1995). O fez monetizando territórios, integrando vias de comunicação, articulando-se com capitalistas e corporações. Adicionalmente criou-se sistemas jurisdicionais que formatavam as economias nacionais a partir da conexão com os mercados mais vastos. Le Goff (2014) aponta que o despontar do capitalismo foi marcado pela absorção dos mercados locais pelas redes econômicas internacionais, rompendo muitas convenções espirituais e sociais que pautavam o comportamento e convenções nas escalas locais.
No debate historiográfico econômico especializado, a perspectiva de que a dinâmica econômica brasileira no século XIX permaneceu balizada e encarrilhada pelo mercado externo foi desafiada por Fragoso (1992; 1993). O autor postulou que, ainda no Brasil Colônia e até a metade do século XIX, reproduziam-se várias economias regionais importantes cuja produção não respondia às demandas do mercado internacional, mas a uma dinâmica própria, destacando as relações comerciais entre o que hoje são chamadas regiões Sudeste e Sul. Contudo, trabalhos que analisaram seus argumentos, como de Mariutti et al. (2001) e Ferline (2009) apontam que mesmo economias aparentemente independentes estavam interligadas a produtos importados e/ou a um comércio de exportação. Crescia uma demanda interna significativa que suscitava produções agropecuárias de abastecimento, de insumos, além de transporte. Concomitantemente, esta demanda também estabelecia importações de produtos industrializados europeus cuja concorrência dificultava produções nacionais.
Sendo assim, o Brasil já estava com sua economia organicamente integrada aos mercados internacionais por correias de transmissão de excedentes de capital, em uma configuração hierárquica possibilitada pela funcionalidade das produções de mercadorias na economia nacional para com a economia mundial. Por sua vez, as relações de poder no interior da economia nacional retransmitem estas pressões.
Ferreira (2002) fez um levantamento a respeito dos marcos analíticos com os quais a geografia agrária se debruçou sobre fenômenos com estas características, despontando nos anos 1980, sendo o eixo a constituição das integrações e das transformações no campo impulsionadas pelas feições de dadas fases de ciclos da reprodução capitalista. Todavia, é necessário ir mais além, imergindo a reflexão nas relações de sujeitos sociais diferenciados com processos, com tecnologias, com fluxos, com signos e discursos, com elementos institucionais, em elos e redes de variadas amplitudes de categorias sociais, econômicas e políticas. Tal análise deve tratar das ações e das articulações entre estes elementos, junto ao conjunto da estrutura econômica mais ampla.
POR SERRAS E PRAÇAS: AS CADEIAS MERCANTIS
Immanuel Wallerstein (1974) inaugurou a ciência da Análise de Sistemas-Mundo com algumas preocupações fulcrais, dentre elas, a de superar a clivagem de duas filosofias de método irreconciliáveis nas ciências sociais: a nomotética – que proclama a proeminência do foco em leis generalizáveis nas buscas explicativas - e a ideográfica – que proclama o foco nas particularidades descritivas. Enfatizou que, na arena da ação humana coletiva, há um entrelaçamento em um conjunto de padrões e superposições no qual operam as várias estruturas econômicas, políticas, sociais e culturais. A análise de sistemas-mundo forneceria possibilidades entre a clivagem “generalização transistórica x narrações particularistas”.
Nesta abordagem, a unidade de análise “sociedade” manifesta-se sob uma outra perspectiva, a de “sistemas históricos”, frisando sua localização espacial e transcorrimento temporal. Estruturas que formam unidades, com dinâmicas internas de reprodução, de crise, de começo e possibilidade de fim do sistema. Em tais entidades, “simultaneamente sistêmicas e históricas”, toma-se como “as fronteiras definidoras de um sistema histórico aquelas dentro das quais o sistema e as pessoas são regularmente reproduzidos por meio de algum tipo de divisão contínua de trabalho” (WALLERSTEIN, 1999, p.459).
A propriedade distintiva dos sistemas históricos “é a existência dentro dele de uma divisão do trabalho” (WALLERSTEIN, 2001, p.74), com a qual se engendra setores nos quais se aloca, se produz e se distribui os elementos para atender as necessidades de reprodução do sistema em sua rede de processos. A divisão do trabalho no capitalismo histórico é mais do que uma estrutura funcional e ocupacional. Ela passou a ser geográfica por excelência: distribuída pelo sistema em função não apenas das condições ecológicas, mas em função de sua organização social do trabalho. Assim, configura, amplia e aprofunda possibilidades de hierarquias econômicas e sociopolíticas em vista de um processo implacável de acumulação de capital e apropriação do excedente (WALLERSTEIN, 1974, p. 230, 244).
O sistema histórico capitalista, cuja emergência se deu no despontar do século XVI, logrou ser o primeiro sistema mundial, ao integrar o que se convencionou chamar “Leste Asiático” em sua divisão internacional do trabalho no século XIX. Formou-se assim o Moderno Sistema-Mundial.
Para Wallerstein, o capitalismo histórico possui como eixo motriz, em sua dinâmica primária da atividade social, a acumulação exponencial de capital. Ela potencializa o prevalecimento hierárquico, ao longo do tempo, de agentes e de instituições mais funcionalmente úteis para sua reprodução. Isto dá impulso à necessidade de que “as mercadorias se liguem em chamadas Cadeias Mercantis”, cuja extensão “determina as fronteiras da divisão de trabalho da economia mundial” (WALLERSTEIN, 2002, p. 92). As matérias-primas que devem ser incluídas nas cadeias, as tecnologias de logística e comunicações e, em especial, “o grau em que forças dominantes da economia capitalista mundial têm poder político para incorporar novas áreas”, influem sobre a amplitude espacial das Cadeias Mercantis (WALLERSTEIN, 2001, p. 92).
Falar de Cadeias Mercantis significa falar de uma divisão social estendida do trabalho, a qual, no curso do desenvolvimento histórico do capitalismo, tornou-se mais funcional e geograficamente extensiva, e simultaneamente mais e mais hierárquica. Esta hierarquização do espaço na estrutura dos processos produtivos levou a uma polarização cada vez maior entre as zonas centrais e periféricas da economia mundial, não só em termos de critérios distributivos (níveis reais de renda, qualidade de vida), mas ainda mais importante nos locus da acumulação de capital (WALLERSTEIN, 2001, p.28).
Wallerstein e Hopkins (1977) entabularam o conceito de “Cadeias Mercantis” como redes de processos de trabalho e produção para transacionar uma mercadoria final (WALLERSTEIN; HOPKINS, 1977; 1986, p. 128). “Em termos da estrutura da economia mundial capitalista, as Cadeias Mercantis podem ser pensadas como a urdidura e a trama de seu sistema de produção social” (WALLERSTEIN; HOPKINS, 1994, p. 17, tradução nossa)1. Dougherty (2008) aponta como distinções-chave no estudo sobre “Cadeia Mercantil”:
1) os fundamentos sociais dos processos pelos quais coisas adquirem valor na economia global, 2) a dinâmica relacional das economias de distintos níveis de escala, 3) a mecânica (como) e a lógica (por que) da divisão global do trabalho, 4) a lógica da organização e comportamento das firmas e relações inter-firmas, 5) as origens históricas e progressivas do subdesenvolvimento, e 6) a organização do trabalho em produção econômica” (DOUGHERTY, 2008, p. 1, tradução nossa)2.
As zonas geográficas em que maiores proporções de valor adicionado são internalizadas - ou seja, em um processo relacional com outras zonas - se constituem como as centrais (com maior poder de socializar externalidades negativas para as periféricas). Havendo também as zonas semiperiféricas que possuem relações centrais com as periféricas e relações periféricas com as centrais (DUNN, 2005; COSTA LIMA, 2007). Atividades que em dado cíclico estão em posições periféricas enfrentam uma estrutura de maior competitividade entre si. Não há “países centrais” e “países periféricos”, mas “estruturas geográficas de fluxos econômicos” (centrais, semiperiféricas, periféricas) nas quais os países encontram-se (WALLERSTEIN, 2001, p. 28-29). Tanto as burocracias e políticas regulatórias estatais quanto a geopolítica influenciam a análise de uma Cadeia Mercantil (GELLERT, 2003). Neste enfoque, se rechaça tomar como básico um modelo em que uma estrutura de mercado, de delimitação às economias nacionais, evolui progressivamente para o comércio internacional.
O escopo das Cadeias Mercantis contempla o conjunto de insumos, de processamentos e de serviços necessários para se chegar neste item, considerando as matérias-primas, os sistemas de logística e de comunicação, bem como o fluxo de força de trabalho em cada um dos processos. Estudos mais recentes ressaltaram a pertinência de incluir o design, o marketing, a governança, o atacado e varejo (GEREFFI, 1999; FERNANDES, 2010). Vieira (2012) sublinha que:
O conceito de cadeia mercantil também impede separar o que a busca do lucro e do poder uniram e, ao mesmo tempo, força situar num mesmo continuum governantes, negociantes, consumidores e trabalhadores dos vários espaços ou jurisdições políticas onde estão localizadas as atividades em que se decompõem os processos de produção, comercialização e consumo de uma mercadoria (VIEIRA, 2012, p. 231).
Gereffi (1994; 1995) indicou também as principais dimensões de análise para estas cadeias: a matriz insumo-produto; a territorialidade em que se configura geograficamente; a estrutura de governança (discernindo processos de controle de dados de participantes da cadeia sobre outros e apropriação do valor por parte de empresas líderes - “impulsionadores da cadeia”); o contexto institucional, ou as “regras do jogo” do funcionamento das Cadeias Mercantis. A partir do conceito de Cadeias Mercantis “orientadas ao comprador”, enfatizou a expansão do sistema de subcontratação por parte de transnacionais que não mais atuam na fabricação dos produtos, concentrando-se no estágio de concepção, de projeto e de vendas. Gibbon (2001), focalizando as cadeias de produtos “primários”, sugere que nelas a governança centra-se nas “tradings” - as “atravessadoras” transnacionais - e não nos produtores ou compradores em si.
Bair et al. (2013) abordam a análise de Cadeias Mercantis chamando a atenção para as “geografias desniveladas” do capitalismo, reproduzindo-se de forma a provocar “des/articulações”, movimentos dialéticos das “conexões conjunturais de mercadorias, pessoas e lugares, e processos complexos de separação e exclusão, que juntos constituem circuitos de produção de mercadorias” (BAIR et al., 2013, p. 2545. Tradução nossa3). Operam-se forças de des/articulação, desde as gentrificações em áreas residenciais urbanas que acarretam exclusão dos tradicionais moradores de baixa renda à expropriação territorial de camponeses com a implantação de “projetos de desenvolvimento”.
Um exemplo da aptidão da abordagem das Cadeias Mercantis para analisar as mercadorias particulares e elucidar as relações sociais nelas incorporadas é a obra de Clelland (2014). Nela se examinou minuciosamente as partes da cadeia do iPad, da Apple. A empresa é tida como emblema de dinamicidade inovadora de ponta e de reconhecimento de marca e, por isso, liderou entre 2008 e 2013 o ranking “As Empresas Mais Admiradas do Mundo”, da Forbes. Clelland, inquirindo sobre como se distribuía a apropriação de valor ao longo dos nós da rede de produção dos iPads, notou que a Apple externaliza não somente as atividades “tangíveis” da cadeia para redes de fornecedores independentes, mas também algumas das atividades “intangíveis” que propiciam agregações de valor.
Desagregando as etapas e sistemas de montagens dos produtos publicamente disponíveis na produção do iPad, analisou o custo de determinados componentes e identificou as empresas fornecedoras. Discerniu vários graus de exercício monopsônico da Apple sobre fornecedores e exercício monopolístico nos elos de desenvolvimento e design de produtos, da governança da cadeia de suprimentos, do marketing e do varejo. Estes exercícios seguem a estratégia de (CLELLAND, 2014, p. 91, tradução nossa):
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projetar inovações que atraiam uma grande fatia do mercado global;
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controlar os direitos de propriedade intelectual;
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governar a Cadeia Mercantil através de relações oligopolistas com fornecedores,
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controle da distribuição e comercialização de produtos, e
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externalização de custos para fornecedores5.
Tais estratégias permitem gerir a majoração entre custos e preço de venda, administrar reduções de custos de produção e otimizar os lucros operacionais.
Clelland articulou os conceitos de “valor nítido” (bright value), excedente de capital cuja apropriação e distribuição podem ser, ainda que imperfeitamente, mensuradas, e de “valor turvo” (dark value), "força de trabalho não paga e externalidades não contabilizadas que não são transformadas em valor nítido, mas estão embutidas em mercadorias como valor além do preço que beneficia os consumidores" (CLELLAND, 2014, p. 103, tradução nossa)5. Dentre as fontes de valor turvo distinguidas nos nós da cadeia do iPad, estão o sistema de subcontratações – incluindo firmas com sedes em uma jurisdição e fábricas em outros. No sistema chinês hukou de registro doméstico, trabalhadores temporários migrantes são desprovidos de vários direitos civis dos residentes e assim submetidos às condições precárias e intensivas de trabalho, tais como: força de trabalho familiar não remunerado e trabalho doméstico sub-remunerado; externalização de custos ambientais – como p. ex. emissões químicas, descargas de metais pesados, poluição do ar e degradação da água.
Deste “valor turvo” provém o “excedente do consumidor” para os compradores finais, especialmente de países na zona central. Por “excedente do consumidor”, entende-se a diferença do preço que o consumidor estaria marginalmente disposto a pagar por uma unidade de um bem em relação ao preço efetivamente pago. Pode-se dizer que a não precificação do “valor turvo” em dados bens de consumo no varejo funciona também para o aparato ideológico da propaganda de dadas empresas e das “virtudes do mercado”.
Gwynne (1998) analisou Cadeias Mercantis da fruticultura na região de Guatulume, no Chile, integrando agricultores familiares (chamados pelo autor de “small-scale” - pequena escala), grandes fazendeiros e transnacionais. O estudo demonstrou o aprofundamento da desigualdade nesta cadeia, com a integração aos mercados internacionais. A especialização crescente nas unidades produtivas, se estruturando em torno da uva como monocultura, resultou na dependência aguda em relação as transnacionais de insumos e tecnologia, das tradings6, do setor financeiro e de varejistas. O mercado se apresentou marcantemente volátil ao longo do tempo. Tal conjunto sistêmico de fatores levou à falência sobretudo os agricultores familiares, dado que os grandes proprietários possuíam maior capacidade de barganha e opções contratuais diante das transnacionais.
Vieira (2012) aborda o ciclo cafeeiro no Brasil do século XIX até as primeiras décadas do século XX a partir da ótica analítica da Cadeia Mercantil. Ressaltou como sua inserção no comércio internacional induziu mudanças socioeconômicas e socioespaciais estruturais no Brasil, refletindo em correlações internas de forças sociais e articulação de infraestrutura, de logística e em setores de serviços encadeados. Também atentou para o posicionamento funcional do sistema produtivo-comercial cafeeiro no Brasil na Cadeia Mercantil de forma subordinada ao controle de nódulos da cadeia por agentes internacionais. Especialmente da hegemonia britânica vigente e da estadunidense em emergência, como agentes intermediários na comercialização e financiamentos. Isto se ilustra com a necessidade de importação de aço destes países para fabricação de máquinas para produção e para o preparo do café para a exportação, bem como para construção da malha ferroviária que dinamizou o transporte. A autonomia dos entes setoriais brasileiros ficava relativamente mais restrita, sujeita também às políticas governamentais dos agentes posicionados na zona central da economia-mundo, como a política de estoques estadunidense (VIEIRA, 2012, p. 273-278).
Esta apresentação deixa patente a potencialidade de contribuição desta perspectiva para a pesquisa geográfica da realidade brasileira. A abordagem pode ser profícua nos estudos sobre os setores agroindustriais, minerais, energéticos etc., em suas interconexões com outras cadeias em nível mundial, com serviços, com tramas políticas, com a estrutura da divisão do trabalho, sobretudo, com formas de externalizações de custos na perspectiva da concorrência pela apropriação do excedente de capital (o âmago da questão locacional).
AS CADEIAS MERCANTIS NA CONFORMAÇÃO DA HIERARQUIA NO SISTEMA-MUNDIAL
A pesquisa de Costa Lima (2007) identificou uma estratificação de conjuntos de economias nacionais representativa da estrutura “centro-semiperiferia-periferia”, no período entre 1950 e 2003, a partir de medidas de Produto Interno Bruto per capita – PIBpc. Encontrou distintivos grupos estáveis desta estrutura triádica, com maior estabilidade se dando na periferia (cerca de 74 e 75 países), situada na proximidade de 10% do PIBpc dos EUA. Apontou um conjunto de 30 países na semiperiferia, que após um vislumbre de aproximação do centro entre 1957 e 1982, sofreu um declínio para a marca de 20% PIBpc dos EUA. O Brasil aparece em consolidada média representativa do grupo da semiperiferia (COSTA LIMA, 2007, p. 79).
O autor chama atenção para o fato de que o emprego do PIB per capita como indicador pode proporcionar uma distorção, por causa da disparidade de populações nos países. Isto subestimaria economias nacionais com forte inserção, mas população grande, dando mais vulto para países com populações menores, mas com maior inserção em algumas cadeias no mercado mundial. Ele sugere articular procedimentos que contemplem o papel das Cadeias Mercantis, em especial a contribuição tecnológica (COSTA LIMA, 2007, p. 78).
Arend et al. (2017) articularam o conceito de Cadeias Mercantis com o escrutínio da hierarquia no sistema interestatal, empregando metodologias possibilitadas pelos dados do Atlas da Complexidade Econômica. Verificaram uma correlação positiva entre os índices de complexidade econômica e nível de renda per capita entre os países. Com a aplicação do indicador do “espaço produtivo”, avaliaram a característica tri-modal do sistema interestatal quanto a estrutura produtiva dos países.
Esse indicador “espaço produtivo” foi desenvolvido por Hidalgo et al. (2007; 2014) como uma medida da “distância” entre os produtos considerando as capacidades requeridas para sua confecção. Por meio do indicador é possível estimar as conexões entre itens presentes nas capacidades produtivas de dois bens com as relativas probabilidades de serem exportados sincronicamente por países, configurando-se uma rede de estrutura produtiva entre mercadorias exportadas. Quanto mais primários os produtos, mais tendem a se situar nas periferias da rede, implicando em menor conexão intersetorial. A relação inversa ocorre com produtos de composição mais intensa em tecnologia. Neste processo,
Países com estrutura produtiva e pauta de exportação complexa possuem atividades econômicas com elevados retornos crescentes de escala, elevada taxa de inovação tecnológica e amplas sinergias decorrentes da divisão do trabalho. Países com uma estrutura produtiva complexa possuem em geral atividades econômicas onde predominam a concorrência imperfeita, mercados com estrutura de oligopólio, e elevado valor adicionado por trabalhador. Também, suas estruturas produtivas demandam elevada presença de fornecedores locais com conhecimentos avançados. Produtos de baixa complexidade não demandam redes sofisticadas de fornecedores e produtores locais (AREND et al., 2017, p.9).
Desta forma mensura-se a capacidade produtiva de economias nacionais “pela sua capacidade de reter, criar, modificar, organizar, distribuir e utilizar as capacidades embutidas nos trabalhadores” (AREND et al., 2017, p.13). Os autores apresentaram correlações entre países que possuem estrutura produtiva mais sofisticada e maior capacidade de inserção nas Cadeias Mercantis da economia mundial com a zona central. Também, a correlação dos intermediários com a semiperiferia e dos graus mais baixos da periferia com as menores rendas per capita. Contudo, há algumas importantes anomalias na representação, como países de renda per capita elevada aparecendo na semiperiferia (Austrália, Canadá, Noruega) e países do leste europeu de renda per capita média aparecendo no centro (Eslováquia, Eslovênia e República Tcheca).
A pesquisa de Resende e Romero (2017) fornece um refinamento relevante para este problema. Os autores realizaram uma análise comparativa da estrutura produtiva da Austrália, Brasil e Canadá a partir de 1960, ponderando as suas pautas de exportações, destacando que o Índice de Complexidade Econômica para os três países é muito baixo, com o Canadá estando bem abaixo do Brasil, conquanto Austrália e Canadá estejam entre o conjunto de países de renda per capita elevada e o Brasil na renda média.
A participação de produtos primários e manufaturados baseados em primários é muito alta na pauta exportadora australiana, acima da brasileira. Enquanto no Canadá é significativamente menor entre os três, ainda que importante. A razão entre a quantidade dos produtos industrializados em relação ao total de produtos exportados produz um coeficiente chamado “Vantagem Comparativa Revelada” (VCR). Com ele se indicaria a competitividade da economia nacional proporcionada por um “conhecimento tácito”. A VCR das economias australianas e canadenses não seria comparativamente importante, considerando a razão dos respectivos produtos exportados sobre o total de exportações mundiais. Sendo assim, a elevada renda per capita de ambos constitui um problema para falsear a correlação do desenvolvimento com a complexidade econômica.
Porém, Resende e Romero (2017, p. 109) utilizaram-se do expediente de ajustar o número de indústrias dos países com coeficientes de VCR de média e alta tecnologia, com o tamanho das economias nacionais.
Dito de outra forma, do ponto de vista do desenvolvimento da estrutura produtiva, para o Canadá, algo em torno de 21 indústrias de média tecnologia e 7 de alta tecnologia com VCR parecem ter sido suficientes para gerar um PIB per capita de 42.157,93 dólares em 2009. Enquanto isso, no Brasil, 26 indústrias de média tecnologia e 1 de alta tecnologia com VCR não foram capazes de gerar mudança estrutural suficientemente grande, gerando PIB per capita de 8.553,38 dólares no mesmo ano. Na Austrália, por outro lado, 7 indústrias de média tecnologia e 1 indústria de média tecnologia foram capazes de gerar PIB per capita de 49.927,82 em 2009 (RESENDE; ROMERO, 2017, p. 109, grifo dos autores).
Empregam, a partir daí, uma metodologia de ponderar o quantitativo de indústrias de média e alta tecnologia com VCR por milhão de habitantes. Com um indicador, chamado Índice de Desenvolvimento Estrutural (IDE), apuraram a geração de níveis de PIB per capita proporcionado pela estrutura produtiva.
Os números para os países então se invertem. Entre 1962 e 2009, o IDE evoluiu para chegar ao nível de 0,41 na Austrália e 0,83 no Canadá. O Brasil apresentou o nível de 0,14, ficando posicionado junto a países de renda menor, com o Canadá situando-se nos maiores estratos de renda per capita.
A Austrália também sobe expressivamente quando se pondera índices de qualidade (com nível favorável de preços nas exportações líquidas, alcançando mercados mais distantes) dos produtos industriais que participam de suas exportações. Em 2009, a qualidade média das exportações australianas era de 11,25; a das canadenses 8,38; as brasileiras totalizaram 6,10. Somente no setor de bens primários o Brasil possuía número de empresas com qualidade acima da média, no nível dos outros dois países (cujo perfil de indústrias com elevada qualidade distribui-se entre diversos setores), ocupando a 39ª posição no mundo.
A Austrália apareceu na 13ª e o Canadá na 15ª. Os parâmetros do IDE e de índices de qualidade indicariam que “as VCRs parecem ser mais relacionadas a ganhos de qualidade do que a ganhos de eficiência produtiva, via custos, como comumente interpretado” (RESENDE; ROMERO, 2017, p. 115).
A perspectiva da análise das Cadeias Mercantis sinalizaria que a configuração da estrutura produtiva brasileira, na dinâmica da evolução da economia-mundo, se formou mais como o reflexo de uma “periferização” de setores que, anteriormente, se integravam às cadeias de atividades centrais.
O BRASIL E A SOJA NA CONDIÇÃO DE CADEIA MERCANTIL
Uma maior aproximação pode ser feita na inserção do Brasil no espaço produtivo da economia mundial com o sistema produtivo-comercial da soja, pelo ângulo da complexidade econômica.
Na Safra de 2018-2019 o país estava em processo de se tornar o maior produtor mundial da oleaginosa, superando os Estados Unidos, embora ainda sendo o segundo em exportação (GOVERNO DO BRASIL, 2018). A soja representou 14% das receitas das exportações brasileiras em 2018, 12% em 2019 e 17,5% em 2020. Neste ano se consagrou como o principal produto da pauta de exportações7.
De janeiro a dezembro de 2020 (COMEX STAT) no Brasil as exportações de soja tiveram alta de 12% ante a 2019, sendo que 73% foram destinadas à China. Em seguida, muitíssimo de longe, foram para a Holanda, com quase 4%, Espanha, Tailândia e Turquia com pouco mais de 3% cada. Foi o segundo maior registro de exportações de soja da série histórica, mas também houve o maior registro de importações de soja em 17 anos. O país importou também quase 83 milhões de toneladas, uma expansão de 470% em relação ao ano de 2019. Mas em receita, o resultado do acumulado do ano foi 2,5 bilhões de dólares menor do que o de 2019. Foi gasto 503% a mais do que no ano anterior, uma média de quase 333 dólares por tonelada de soja importada, enquanto recebeu uma média de 344 dólares por tonelada exportada. Nos meses finais do ano o saldo ficou mais desfavorável. Em novembro foram pagos cerca de 402 dólares por tonelada de soja importada, enquanto foram recebidos cerca de 387 dólares; em dezembro, se pagou cerca de 387 dólares por tonelada importada, enquanto se recebeu cerca de 378 por tonelada exportada.
A soja ocupa 50° lugar como produto mais comercializado na economia mundial. A China é o principal importador e México, Holanda e Japão, aparecem consideravelmente após, com o valor na casa de 1,6-1,45 bilhões de dólares. O Índice de Complexidade Econômica (ICE) ranqueia 1.238 produtos, dentre os quais a soja ocupa a 1.129ª posição. Considera o conjunto de capacidades específicas requeridas para produzir um bem e a seguir dimensiona o grau de presença da sua produção no quantitativo de países da economia mundial, atribuindo um valor chamado “Product Complexity Index” (Índice de Complexidade do Produto) - PCI. O PCI da soja é – 1,56, sendo o 1.129º produto no ranking de complexidade. O óleo de soja possui PCI de -1,164, ocupando a 311ª posição, 818 acima da soja grão. O farelo de soja possui PCI de -1,131, na posição 1.038ª, 89 à frente da soja grão.
Distinguindo alguns dos principais insumos para os sistemas produtivos da soja, o Brasil é o segundo maior importador de adubos potássicos e o maior de adubos químico-minerais mixados em geral – os quais têm a China como a maior exportadora. O país também é o maior importador de agrotóxicos. China e Alemanha constam no topo do ranking dos maiores exportadores de agrotóxicos, seguidas pelos EUA. A Alemanha lidera a exportação de tratores agrícolas, destacando-se também a economia holandesa – com uma população de cerca de 8% do total da população brasileira.
Agrotóxicos e fertilizantes ocupam uma grande magnitude na pauta de importações brasileiras. Os adubos potássicos possuem o valor de PCI de -0,846, na posição 950ª do ranking PCI, 179 posições à frente da soja. Os adubos químico-minerais mixados em geral possuem PCI de -0,808, 797 posições (166ª) acima da soja. Os agrotóxicos possuem PCI 0,0154, no patamar de 611° no índice de complexidade - 518 posições acima da soja. Os tratores agrícolas possuem PCI de 0,861, número que tende a crescer dada a sofisticação que vêm adquirindo com a incorporação de tecnologias digitais e fotossensoriais. Ocupando 876 posições acima da soja, aparecem como 253° no ranking PCI.
Figura assim um quadro de uma Cadeia Mercantil na qual o Brasil despende recursos em importar produtos complexos para exportar um produto não complexo, relação que ocorre até mesmo, em grande parte, diretamente com outros países8. Estudos contemporâneos como Delgado (2012; 2020) e Lamoso (2020) têm circunscrito esse fenômeno ao processo de reprimarização e desindustrialização da economia: “A evolução da participação relativa das exportações de básicos superou a participação de manufaturados e semimanufaturados no ano de 2010” (LAMOSO, 2020, s/p).
Os valores expressos na maior exportação relativa de produtos primários em relação aos produtos industrializados, colocam o país na contramão dos patamares alcançados já na década de 1970, na qual o país já havia alcançado um patamar robusto de exportações de produtos manufaturados, superiores aos bens primários, como salienta Lamoso (2020). Para Delgado (2020), o “boom” das commodities manifesto na primeira década de 2000, estendendo-se até 2013 no Brasil (e parte da América Latina), puxado pelas exportações agrícolas e minerais, impulsiona o atrelamento das políticas públicas ao crescimento econômico ancorado na reprimarização, redundando em alguns casos na desindustrialização de algumas unidades da federação, como apresentado no estudo de Lamoso (2020).
TEIAS GEOECONÔMICAS
A pesquisa de Filomento (2012) descortina que, no bojo de ações dentro da estratégia de posicionamento hegemônico por parte dos EUA, procedeu-se a imposição de marcos institucionais de propriedade intelectual no sistema produtivo da sojicultura sul-americana a partir do início da década de 1980. Estes marcos fortaleceram o poder relativo de empresas ofertantes de pacotes tecnológicos para a produção, aumentando a dependência por parte dos sojicultores. Especialmente no tocante a irreprodutibilidade e consequente compra de sementes a cada safra. O processo transcorreu na esteira de uma competição no agronegócio da soja entre Argentina, Brasil e Paraguai pelo alcance de mercados internacionais, num contexto de profunda crise de dívida externa que forçava os países a buscarem receitas de exportação.
À medida em que tribunais estadunidenses concederam jurisprudências favoráveis aos detentores de patentes, o Estado daquele país barganhou e articulou reestruturações regulatórias internacionais, orquestrando chantagens – incluindo sanções comerciais - para que países renitentes conformassem instrumentos legais, ampliando o alcance dos direitos de propriedade intelectual correspondente. O Brasil sofreu sanções contra exportações até a assinatura de termos atinentes no seio do “Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio”, em 1994, reforçadas em 1996 com a Lei de Propriedade Industrial.
Atentando para a dimensão analítica sobre as forças socioinstitucionais e sociopolíticas atuando na Cadeia Mercantil, se constrói o conceito de “Teia Geoeconômica”9. Este conceito colabora para ampliar o enfoque da dimensão de análise em termos do “ambiente político-econômico mais amplo em que as cadeias operam, incluindo os fatores institucionais e sistêmicos que moldam as Cadeias Mercantis e condicionam os resultados associados a elas” (BAIR, 2005, p.154, tradução nossa10). O propósito essencial é realçar a preocupação substancial com a distribuição de recursos dentro dos elos da teia.
A Teia Geoeconômica não possui existência independente da Cadeia Mercantil, mas não é restrita a ela. Se interrelaciona com esferas intraestatais, interestatais e paraestatais – vide o caso mencionado do estudo de Filomento (2012). Expressa, em níveis de ramificações, o modus operandi daquilo que Braudel (1970, Tomo II) apontou como a esfera extramercado eminentemente capitalista - hierarquias de trocas desiguais que driblam os constrangimentos concorrenciais da economia. Em meio ao “agronegócio” atuam entes que fazem parte da constituição da Teia Geoeconômica que envolve as cadeias de commodities agropecuárias no Brasil e suas interconexões. Por exemplo, o emaranhamento de fios entretecendo corporações de mineração e comercialização de adubos, a alienação de ativos do ramo de fertilizantes da Petrobrás, a investida para aumento da importação de fertilizantes da Rússia, o ensejo da escalada bélica na Ucrânia e sanções à Rússia para atacar a legislação de salvaguarda de direitos territoriais indígenas - sob pretexto de provimento de insumos fertilizantes para o agronegócio nacional - favorecendo marcos institucionais para a especulação fundiária dado a escalada dos preços das terras e a inflação das commodities agrícolas.
Os atores constitutivos da Teia Geoeconômica das Cadeias Mercantis agroindustriais operam mecanismos para assegurar posições hegemônicas na economia e sociedade11. Esse processo ocorrer com a atuação política formal, nas esferas do poder executivo e legislativo, além de influência e participação direta e indireta em postos no judiciário. Manifestam-se ainda por meio da influência e cooptação de entidades de ensino, fomento, pesquisa e regulação. O investimento em capital simbólico, através de orquestração de laços de dependência e hegemonia (à jusante e à montante) nas estruturas de mercados, que asseguram o controle territorial.
Em processos históricos e geográficos formam-se relações assimétricas de poder que repercutem potencialidades assimétricas no balanço de externalizações/internalizações de custos e impactos. No interior das Cadeias Mercantis, a busca de posicionamento vantajoso, modula o poder manifesto na Teia Geoeconômica, conforme os jogos de interesse entre atores que ora podem se associar, ora podem se antagonizar. Compreender estas relações de poder nas interações entre corporações de insumos, traders e grandes produtores agropecuários, se constitui no principal atributo da Teia Geoeconômica como ferramenta analítica.
Por isso, pode-se considerar simplistas, abordagens que analisam relações capitalistas pressupondo-se comportamentos dirigidos rigorosamente na lógica de mercado, como se institucionalidades sociopolíticas e simbólicas fossem fatores exógenos. Mesmo em meio aos altos círculos das grandes corporações e dos especuladores na Cadeia Mercantil, desenrolam-se estratégias de superar constrangimentos mercadológicos. O mercado é um meio. Pela compreensão da Teia Geoeconômica se apreende que, nas esferas capitalistas, existem táticas oportunistas e engenharias políticas e socioinstitucionais para não se submeter às restrições dos mecanismos de “concorrência perfeita”, o que é vital para a escala de acumulação ampliada de capital que move a economia-mundo no sistema histórico vigente.
Enquanto diversas ciências sociais têm suas ferramentas para analisar dimensões específicas destas relações, a geografia possui um conspícuo poder de analisar suas manifestações entrelaçadas, na incidência e no posicionamento locacional e na movimentação e articulação espacial, bem como investigar, subjacente às manifestações, as forças causais e mecanismos que operam formando os fenômenos. A pesquisa sobre Teias Econômicas é multidisciplinar e interdisciplinar por natureza, mas a geografia ganha um papel destacado, podendo encadear, nos esquemas de representação, as escalas macro, meso e micro dos eixos, dos fluxos, dos nódulos e das instalações. Essa abordagem multiescalar é essencial para o exercício da totalidade espacial.
CONCLUSÃO
A análise das “Cadeias Mercantis”, formulada no bojo das “Análises de Sistemas-mundo”, aprofunda-se em desenredar as tramas das relações estruturais formadas nas inserções de economias nacionais na economia mundial. Nas peculiaridades das suas ênfases conceituais e analíticas, tais como na “divisão axial do trabalho”, como nas relações de poder referentes à “apropriação desigual do excedente econômico”, também como a da “economia-mundo” e os “sistemas interestatais de estrutura periferia-semiperiferia-centro”, suas sínteses são proficientes para pesquisas acerca dos sistemas produtivos e comerciais agropecuários integrados industrialmente e financeiramente.
O sistema-produtivo-comercial da soja no Brasil encaixa-se num quadro da inserção da economia nacional nas macroestruturas de redes econômicas e institucionais em que atuam as empresas, na economia-mundo capitalista e nos processos de competição no âmbito da hierarquia tripartite do sistema interestatal. Das manifestações mais substanciais desta competição, encontram-se as formas pelas quais se busca capturar e internalizar mais os excedentes de capitais, em meio aos setores e nichos, e externalizar mais custos para outras espacialidades.
A Cadeia Mercantil da soja se tornou um eixo primário para a inserção da economia brasileira no Sistema Mundial. Todavia, um eixo pouco dinamizador no tocante ao quadro dos aspectos de complexidade econômica e o papel que desempenha quanto a abertura de chances para melhorar o posicionamento na estrutura desigual deste sistema.
A Teia Geoeconômica permite desvelar as relações de poder manifestas por múltiplos arranjos institucionais, que hegemonizam as ações do Estado brasileiro, submetendo a economia nacional à uma inserção-subordinada no sistema-mundo, pautando-se nas exportações das cadeias de commodities, e seguindo a retórica do “consenso de commodities” destacado por Maristela Svampa. O resultado mais emblemático desta “opção brasileira” é a manutenção da concentração fundiária, a progressiva retirada de direitos sociais que haviam sido conquistados na Constituição Federal de 1988, o aprofundamento do caráter predatório da biodiversidade e a consolidação de uma via de desenvolvimento que traça um caminho de difícil retorno: a reprimarização e desindustrialização brasileira.
NOTAS
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1
“In terms of the structure of the capitalist world-economy, commodity chains may be thought of as the warp and woof of its system of social production” (HOPKINS AND WALLERSTEIN, 1994, p. 17).
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2
1) the social underpinnings of the processes by which things acquire value in the global economy, 2) the relational dynamics of economies of distinct scalar levels, 3) the mechanics (how) and logic (why) of the global division of labor, 4) the logic of firm organization and behavior and inter-firm relations, 5) the historical and ongoing origins of underdevelopment, and 6) the organization of work in economic production (DOUGHERTY, 2008, p. 1).
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3
“[...] conjunctural connections of commodities, people, and places, and complex processes of separation and exclusion, that together constitute circuits of commodity production” (BAIR et al, 2013, p. 2545).
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4
“How then has Apple constructed such a strong degree of monopoly? In the case of the iPad, Apple’s degree of monopoly lies in its track record at:
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designing innovations that attract a wide share of the global market,
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controlling intellectual property rights,
-
governing the commodity chain through oligopolistic relations with suppliers,
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control of product distribution and marketing, and
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externalization of costs to suppliers” (CLELLAND, 2014, p. 91).
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5
"unpaid labor and uncosted externalities that are not transformed into bright value but are embedded in commodities as value beyond price that benefits consumers"(CLELLAND, 2014, p. 103).
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6
As tradings companies regem elos de comercialização e distribuição das cadeias mercantis de commodities agrícolas, orquestrando no sistema financeiro o gerenciamento de risco dos negócios e alguns serviços aos produtores. Entre as mais poderosas estão ADM, Bunge, Cargill, Louis Dreyfus, Noble Group, Wilmar, Vitol, Cofco (MEDEIROS, 2014).
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7
Dito isto, é importante frisar que a participação da exportação de bens e serviços como percentagem do PIB no Brasil ultrapassou pouco mais de 15%. O produto interno bruto do país é movido pelo mercado interno.
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8
Significativo é que no contexto da pandemia mundial de Covid-19, as exportações de máscaras por parte da China superaram, em dólares, o montante das exportações brasileiras de soja e derivados, de carne bovina e de cana-de-açúcar (UOL, 2020).
-
9
A ideia de “rede” comporta mais noções de estruturas dissipadas e acêntricas, enquanto a de teia pode refletir noções de estruturas espiraladas com pontos fulcrais
-
10
“the broader political-economic environment in which chains operate, including the institutional and systemic factors that shape commodity chains and condition the outcomes associated with them” (BAIR, 2005, p. 154).
-
11
Vide a matéria “Agronegócio e mercado financeiro avançam, de mãos dadas”, de O Joio e o Trigo (2021), que aponta que corporações de especulação financeira se inserem na economia das commodities concomitante fortalecem seu poder de influência institucional na esfera do lóbi político do agronegócio.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Jul 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
12 Abr 2022 -
Aceito
15 Abr 2022 -
Publicado
15 Maio 2022