Open-access Resenha de Franco Ferrari. Introdução a Platão. 1ª edição. Tradução de André da Paz. São Paulo: Paulus, 2022, 239 pp., ISBN 9786555624984

Ferrari, Franco. Introdução a Platão. . 1ª edição. Paz, André da. São Paulo: Paulus, 2022. 239. 9786555624984

Platão termina o Hípias Maior, um dos diálogos sobre o Belo, com um provérbio que ele mesmo ajudou a eternizar: “As coisas belas são difíceis”. No nível da atual pesquisa sobre Platão, é visível a veracidade desse adágio assim na literatura especializada como na literatura de divulgação. É difícil, porém muito belo, comentar com profundidade uma única obra de Platão; mas quiçá seja ainda mais difícil, e ainda mais belo, ser capaz de lançar olhar de conjunto sobre os diálogos e introduzir o leitor de forma responsável, erudita e cativante, ao universo sublime e existencialmente transformador do Corpus Platonicum. De forma geral, eis o que pode ser dito sobre o livro do prof. Ferrari: é um belo livro, pois ele faz com que a clareza de suas explicações sobrenade aos intrincados debates especializados, sem que os ignore ou simplifique em demasia.

Publicado em excelente edição pela Paulus, na coleção Cátedra, coordenada pelo prof. Gabriele Cornelli, o livro é uma tradução muito competente (de André da Paz) da obra homônima de 2018.1 De redação limpa e fluente, ele divide-se em oito capítulos temáticos que discorrem sobre os principais acordes da filosofia platônica, os debates de interpretação e possíveis soluções a certos impasses. Embora a interpretação algo “pitagórica” de Ferrari transpareça em momentos cruciais, sobretudo aos olhos do leitor especialista, o livro expõe a filosofia de Platão sem adotar posições hermenêuticas extremas. Nesse sentido, ele diferencia-se de outras introduções disponíveis no Brasil, as quais são às vezes excessivamente marcadas pela interpretação do autor. Claro que isso não é um problema em si, porque o debate é a alma da filosofia; porém, não raro tais abordagens, no caso de introduções, direcionam a compreensão do leitor leigo para um horizonte específico e ocultam-lhe outros caminhos possíveis. A atenção que o prof. Ferrari devota às doutrinas não-escritas, sobremodo influentes no Brasil e na Itália, é sinal disso: ele não diminui sua inegável importância como paradigma hermenêutico e explica seus principais argumentos e fontes; todavia, analisa-as com tal ou qual distanciamento, sem cair nos matizes mais ideológicos que caracterizam os defensores fervorosos de tal escola.

A organização temática do livro é uma de suas vantagens, pois permite ao autor percorrer os problemas fundamentais do platonismo e assinalar como aparecem em diferentes obras. Assim, trata-se de leitura literariamente unitarista, pois a obra de Platão é tomada em conjunto; porém, esse unitarismo não é completo no que se refere às doutrinas, pois que o autor aceita em parte a cronologia de composição dos diálogos, conquanto consciente de seus problemas (p. 16), e chega a um conjunto de três fases da atividade de Platão: os diálogos relativos ao método de Sócrates (Íon, Laques, Lísis, Cármides etc.); os diálogos de maturidade (Górgias, República, Fédon etc.); e os diálogos da última fase (Sofista, Timeu, Filebo, Leis etc.) (p. 17). Essa divisão não o compromete com a leitura evolucionista de Platão porque, para ele, Platão permaneceu um socrático até o fim; entretanto, ele admite que Platão passou por mudanças de posições, sem que isso afete a profunda coerência interna de sua obra (p. 18).

O primeiro capítulo apresenta a vida e a obra de Platão, com ênfase nas expedições a Siracusa, nos debates em torno da publicação e ordenação das obras, na questão das doutrinas não-escritas, na crítica platônica à escrita e na escolha do diálogo como expressão da filosofia. Neste último ponto, transparece outra das qualidades do livro: atento às principais tendências da hermenêutica contemporânea de Platão, ele descreve o pensador ateniense como um autor de dramas filosóficos, i.e., de textos profundamente miméticos que comportam personagens, cenas e cenários, e que refletem um estilo pedagógico-existencial cujo intento é criar uma identificação pessoal com o leitor e iniciá-lo na purificação das falsas opiniões (p. 18-19). Ressalta-se esse ponto porque, verdade seja dita, depois dos estudos de Leo Strauss e seus seguidores, sem mencionar outros trabalhos independentes, é impossível desconsiderar o caráter literário da obra de Platão. Portanto, é bem-vinda uma introdução que à partida aceite esse fato, já que livra os pobres professores do trabalho ingrato de ter de mostrar aos alunos e alunas, semestre após semestre, que estamos defronte de um texto literário-filosófico, e que a crítica platônica à poesia e à retórica tem laivos profundos de ironia, sendo em parte desconstruída pela própria obra de Platão.

O segundo capítulo possui apresentação panorâmica do espaço filosófico em que Platão desenvolveu suas ideias, o que ajuda o leitor a entender a origem histórica do platonismo. Aqui, chama a atenção a importância que o prof. Ferrari confere aos sofistas: explicando de forma concisa, porém certeira, o relativismo sofístico e o debate entre lei e natureza, ele descreve a filosofia platônica como uma resposta a uma série de desafios teórico-práticos. Por conseguinte, a centralidade da alma, o primado da razão sobre os sentidos, o repúdio ao hedonismo, a política preocupada com o Bem e a virtude e a ontoepistemologia dos universais, pois, emergem como alternativas antropológico-existenciais ao modelo antagônico dos sofistas (p. 40). Novamente, trata-se de um dos méritos do livro. Embora nada diga do que Platão absorveu desses mestres da palavra, algo compreensível em uma introdução, o autor aponta aquela que é talvez a principal fonte de emulação do platonismo. E para os antigos, como sabido, escolher um inimigo é algo tão importante quanto escolher um aliado.

O terceiro capítulo trata basicamente de política, descrevendo o homem justo na cidade justa e explanando sobre os principais contornos daRepública, doPolíticoe dasLeis. Destarte, escrutinam-se assuntos como a antropologia contratualista, a isomorfia entre cidade e indivíduo, a degeneração da cidade perfeita, a técnica política e a função indireta das leis. Nesse ponto, a capacidade de síntese do prof. Ferrari é deveras admirável: em poucas páginas, ele resume os problemas daRepública e revela a coerência das respostas de Platão. Dois pontos da exposição chamam a atenção: a ideia de politização da alma, presente na isomorfia entre cidade e indivíduo, e a antropologia algo pessimista de Platão, o qual, ao contrário Sócrates, reconhece com certa facilidade o conflito intrapsíquico dos indivíduos e seus componentes irracionais (p. 65). Como o autor ressalta, porém, o aspecto mais importante desse reconhecimento é a possibilidade de educar os elementos irracionais da alma e harmonizá-los com a razão (p. 65).

O quarto capítulo é já mais técnico e trata do saber do filósofo, envolvendo questões como ser e devir, conhecimento e opinião, a alma e as ideias, a reminiscência e a caracterização do filósofo platônico. Todas as explicações relativas a esses problemas são baseadas em passagens inteligentemente selecionadas, o que confere muita clareza, por exemplo, sobre a natureza axiológica das ideias, suas relações com a linguagem e com os valores etc. (p. 91-2). Além disso, o capítulo possui discussão da crítica à teoria das ideias contida noParmênides,onde o autor argumenta de forma persuasiva que Parmênides não seria o apóstolo da dialética, como sustentado por muitos, senão um filósofo reducionista que entende a participação das ideias de forma literal e, como consequência, cai no famoso problema do terceiro homem (p. 100). Longe de insolúvel, esse problema aparece quando se assumem a autopredicação e a não-identidade das ideias, ignorando-se que o modo de ser dos particulares é diferente do modo de ser dos inteligíveis (p. 101). Para Ferrari, a filosofia platônica pode responder a contento aos desafios de um Parmênides engabelado pelo pressuposto equiparacionista. Ao contrário do sábio de Eleia (Prm. 130b), Platão julga que as ideias e os entes sensíveis não são duas ordens simetricamente separadas; as ideias é que são separadas dos particulares, sem que esses o sejam delas, tal como ocorre com um homem e sua sombra (p. 102). Logo, a relação de dependência ontológica e de causação é bastante visível e escapa às aporias levantadas no diálogo.

O quinto capítulo, também de natureza técnica, investiga a dialética e temas correlatos, como a hierarquia dos saberes, as formas de racionalidade, os gêneros supremos, o limitado e o ilimitado, o Bem e a teoria dos princípios. Sublinham-se aqui dois pontos. Primeiramente, é notável o reconhecimento e a explicação da existência de dois tipos de dialética. Não obstante controversa na literatura secundária, essa distinção é sobremodo fundamental para Platão, e o autor salienta a diferença entre o método hipotético-dedutivo dadiánoia, que se vale de imagens, e o método da dialética noética, que não apenas vai até o princípio, como procede com puros conceitos e pode dar razões de suas teorias (p. 117-119). Em segundo lugar, o autor tenta mostrar, em concordância com certoconsensus sapientium, como haveria continuidade entre esses métodos e a dialética de junção e disjunção doFedroe doSofista,a partir da qual se derivam os gêneros supremos (p. 126). O autor assume a opinião assaz difundida de que, nos primeiros diálogos, Platão estaria mais interessado nas relações das ideias com os entes sensíveis (participação), ao passo que, nos diálogos mais tardios, voltaria sua especulação para as relações intraeidéticas (p. 127).

O sexto capítulo, “Mecanismos de Persuasão”, trata de temas platônicos bastante valorizados nos últimos anos, como é o caso do mito, da crítica à poesia, da retórica, da educação na cidade, da escatologia, de Eros etc. Consciente de que a obra platônica é prenhe de componentes miméticos (p. 165), Ferrari discute a crítica à poesia sobretudo em sua função política, pedagógica e psíquica. Para ele, Platão rejeita a épica e a tragédia porque elas causam a fragmentação do eu do espectador e, ademais, não contribuem para a coesão do corpo político (p. 146). Em seu lugar, o filósofo propõe novo corpo mitológico que fortalece a união da pólis (p. 148). No que toca à retórica, a despeito de criticar seu emprego comezinho, Platão admite seu uso filosófico e a utiliza em sua obra conforme o modelo do Fedro. Em muitos casos, como nos mitos escatológicos, é a retórica que garante como que um surplus aos argumentos filosóficos em favor da vida justa (p. 153). Por fim, o capítulo comenta a importância de Eros como elemento suprarracional ou extralógico que propicia conhecimento (p. 174). Mais do que um sentimento psicológico, Eros é uma força metafísica que exemplifica à perfeição a natureza da própria filosofia, envolta entre tensão e aspiração ao saber, e figura assim no centro da estratégia educacional de Platão (p. 178).

O capítulo sete, “O universo e o homem”, é uma análise da cosmologia platônica baseada em grande parte no Timeu e no Filebo. Ele trata da estrutura do cosmo, das operações do intelecto, da alma e do corpo, dos prazeres e da semelhança com o divino. Depois da exposição dos principais temas do Timeu, máxime da geração do cosmo, Ferrari pontua que o discurso de Timeu não deve ser interpretado literalmente: apesar de sua razoável descrição do mundo físico, cientificamente mais confiável do que as investigações dos pré-socráticos, ele permanece um discurso verossímil e, em muitos casos, como no recurso às gerações divinas, pode ser uma concessão de Platão a um gênero literário em voga (p. 184). O capítulo explica a classificação entre os prazeres, em seguida, e descreve o Filebo como a posição derradeira de Platão no interior de acalorado debate da época (p. 201). A despeito de certa reabilitação dos prazeres, contrária à fase mais ascética dos diálogos da maturidade, o Filebo mantém, defende Ferrari, a superioridade dos prazeres intelectuais diante da dimensão corpórea (p. 203).

Por fim, o capítulo oito trata brevemente da Academia. Ferrari menciona o pouco que se sabe das posições de Espeusipo, Xenócrates e Eudoxo, deixando de lado a fase cética da escola. Ele reconhece o ambiente de liberdade de ideias que vicejava entre os alunos de Platão (p. 209) e, no que tange às fontes, comenta que dependem sobretudo de Aristóteles, o que costuma ser um problema, pois o espírito polêmico do discípulo tende a destruir qualquer objetividade de suas citações (p. 210). Não obstante curto, o capítulo mostra a variação de posições da Academia ao longo da história.

Esse breve esboço do livro, imperfeito por seu espaço, pode talvez dar aos leitores e leitoras noção do que têm em mãos. Acima de tudo, trata-se de um livro que, por sua admirável capacidade de síntese, seu indubitável conhecimento dosDiálogose da bibliografia secundária, ensina muito e pode também servir como ferramenta didática em escolas e universidades. Certo que, para o leitor especializado, haverá pontos de discordância. Por exemplo, não parece ser tão claro, como julga o prof. Ferrari (p. 10), que Platão tenha repudiado tanto a democracia: o próprio caráter multifacetado de sua obra - verdadeiro bazar polifônico de indivíduos e constituições, de ideias e discursos (p. 21) - como que retrata (e assim elogia) a Atenas clássica e democrática de sua juventude. Tampouco é fácil de admitir que o Filebo, o Timeu e a República possam ser conciliados; ou que as considerações sobre a cidade-ideal, assentadas na metodologia admitidamente insuficiente do caminho mais curto e da diánoia, reflitam a posição de Platão. No entanto, essas divergências não desabonam a qualidade o livro, e antes contribuem para gerar aquele gênero de jogo, de criação e de salvação dos discursos que constitui, segundo Platão, o ideal de educação filosófica. Em suma, embora seja difícil persuadir os demais colegas platônicos das nossas posições, é sempre belo tentá-lo.

Bibliografia

  • Franco Ferrari. Introdução a Platão 1ª edição. Tradução de André da Paz . São Paulo: Paulus, 2022, 239 pp., ISBN 9786555624984
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    Alguns detalhes que passaram na revisão: p. 12 filósofos rei > filósofos-reis; Trasilo > Trásilo; p. 27, doutrinas não escritas > doutrinas não-escritas; p. 37, Críticas > Crítias; p. 78, secretario > secretário; p. 87, tedesco > alemão; p. 107, Em o Fédon > No Fédon.
  • ENGLER, M. R. (2024). Resenha de FERRARI, F. (2022). Introdução a Platão. Archai 34, e03418.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Jun 2023
  • Aceito
    04 Jul 2023
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