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A vida pessoal de trabalhadoras do sexo: dilemas de mulheres de classes populares

The private life of sex workers: dilemmas of working class women

La vida personal de trabajadoras del sexo: dilemas de mujeres de clases populares

Resumo

O artigo considera como mulheres prostitutas articulam suas relações afetivo-sexuais, condições econômicas e vida profissional. Observando suas experiências e seus relatos de relações com parceiros pessoais, antes e depois do início da prostituição, trata de aproximar a vida e os dilemas de trabalhadoras do sexo dos de outras mulheres, especialmente brasileiras de classes populares. Ao fazê-lo, aborda questões como gênero, maternidade, conjugalidade e suas tensões. Além disso, considera as especificidades de relacionamentos íntimos colocadas pela prostituição, e situações de envolvimento amoroso entre prostitutas e clientes. Atravessando os diversos temas, aparecem conexões entre afetos, sexualidade, dinheiro e trabalho.

Palavras-chave:
prostituição; classes populares; gênero; sexualidade; conjugalidade

Abstract

This paper examines how affective and sexual relations, economic issues, and the professional life are articulated by sex workers. Through the observation of their experiences and narratives about personal relationships, before and after starting sex work, their life and dilemmas become closer to those of other women, specifically Brazilian women from lower classes. Issues and tensions of gender, maternity, and conjugality are analyzed; as well as the specificities in romantic relationships created by sex work and romantic involvements between sex workers and clients. Intersected by these themes are connections concerning emotions, sexuality, money and labor.

Key words:
sex work; working classes; gender; sexuality; conjugality

Resumen

El artículo considera como mujeres prostitutas articulan sus relaciones afectivo-sexuales, condiciones económicas y vida profesional. Observando sus experiencias y sus relatos de relaciones con parejas personales, antes y después de su inicio en la prostitución, el análisis intenta aproximar la vida y los dilemas de trabajadoras del sexo a la de otras mujeres, especialmente brasileras de clases populares, luego son abordados asuntos como género, maternidad, conyugalidad y sus tensiones. Además, son consideradas las especificidades de las relaciones íntimas relativas a la prostitución y situaciones de involucramiento amoroso entre prostitutas y clientes. A partir de las intersecciones entre los diversos temas, aparecen conexiones entre afectos, sexualidad, dinero y trabajo.

Palabras-clave:
clases populares; género; sexualidad; conyugalidad

Introdução

Em "A morte de um gigolô: fronteiras da transgressão e sexualidade nos dias atuais”, Claudia Fonseca (2004bFONSECA, Claúdia. 2004b. “A morte de um gigolô : fronteiras da transgressão e sexualidade nos dias atuais”. In: PISCITELLI, A.; GREGORI, M.F. & CARRARA, S. (eds.). Sexualidade e Saberes : Convenções e Fronteiras. Rio de Janeiro: Garamond. p. 257-281.) escreve que as experiências pessoais das trabalhadoras do sexo são muitas vezes semelhantes às de outras mulheres. Com efeito, desde o início de meu contato com mulheres prostitutas dos hotéis da zona boêmia de Belo Horizonte, em 2003, a proximidade de suas narrativas e vivências com as de outras mulheres, principalmente de origem social parecida, chamou a minha atenção. Percebi analogias quando falavam de suas vidas privadas, das relações com os homens, de suas condições de subsistência, de trabalho e do lugar da maternidade em suas vidas. As semelhanças aparecem em suas trajetórias antes da entrada na prostituição, mas também enquanto a exercem, apesar de importantes especificidades criadas por esse trabalho em seu cotidiano, suas histórias de amor e arranjos familiares.

Investiguei em meu doutorado1 1 Fiz uma etnografia da zona boêmia de Belo Horizonte, mas também fiz campo e entrevistei mulheres cisgênero e travestis de outros locais de prostituição de Belo Horizonte e brasileiras no Bois de Boulogne (Paris), o que contribuiu para identificar especificidades e continuidades com a zona boêmia. Nos últimos anos, continuei participando de atividades e projetos da Associação de Prostitutas de Belo Horizonte e realizando entrevistas na região. (França, 2011FRANÇA, Marina. 2011. Intérêts, sexualités et affects dans la prostitution populaire: le cas de la zone bohème de Belo Horizonte. Tese de Doutorado em Antropologia, École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris.) as diferentes transações sexuais e afetivas das prostitutas nos hotéis da zona boêmia de Belo Horizonte. Estes hotéis são qualificados como de baixa prostituição, devido aos preços módicos dos programas,2 2 Os programas são encontros tarifados e negociados entre prostitutas e clientes. à expressiva circulação de clientes por dia e ao fato de grande parte das prostitutas e dos clientes pertencer a classes sociais desfavorecidas. Tratei também da presença de afetos nas relações das prostitutas com os clientes e das similaridades da prostituição com outros trabalhos, como os comerciais e os que envolvem cuidado corporal.

Neste artigo, o foco está voltado para as relações afetivo-sexuais e familiares das prostitutas e seus paralelos com as de outras mulheres, buscando tirar a extraordinariedade da personalidade das trabalhadoras do sexo e de certos aspectos de sua vida. Não se trata de banalizar a prostituição, mas de problematizar as similitudes e as singularidades entre trabalhadoras do sexo e outras mulheres (Fonseca, 2004bFONSECA, Claúdia. 2004b. “A morte de um gigolô : fronteiras da transgressão e sexualidade nos dias atuais”. In: PISCITELLI, A.; GREGORI, M.F. & CARRARA, S. (eds.). Sexualidade e Saberes : Convenções e Fronteiras. Rio de Janeiro: Garamond. p. 257-281.; Olivar, 2013OLIVAR, José Miguel Nieto. 2013. Devir puta: políticas da prostituição nas experiências de quatro mulheres militantes. Rio de Janeiro: EdUERJ.).

É preciso considerar as escolhas e as experiências das trabalhadoras do sexo em um contexto social, econômico e político mais amplo em que o gênero está imbricado, se entrecruza e se coproduz com outros marcadores sociais - como classe, raça e idade (Kergoat, 2009KERGOAT, Danièle. 2009. “Dynamique et consubstantialité des rapports sociaux”. In: DORLIN, E. (ed.). Sexe, race, classe : pour une épistémologie de la domination. Paris: Presses Universitaires de France .) - o que afeta as posições das mulheres no mercado de trabalho e nas relações privadas. Voltar-se para a vida pessoal das prostitutas e contrastar suas relações profissionais e privadas com homens levantam questões de como são marcadas pela normatividade de gênero e pelas relações de poder entre os sexos, e de como a dinâmica dessas relações se altera no programa. As aproximações com a vida de outras mulheres são feitas principalmente com aquelas de meio social semelhante, porque a interconexão entre gênero, classe e raça produz distinções nas experiências.

A problemática da separação entre uma sexualidade remunerada e uma não remunerada não é nova nos estudos socioantropológicos. Na Europa, especialmente francófona, os estudos sobre prostituição foram marcados pelo trabalho da antropóloga italiana Paola Tabet (2004TABET, Paola. 2004. La grande arnaque: sexualité des femmes et échange économico-sexuel. Paris: L’Harmattan .), que em 1987 desenvolveu a ideia de um continuum entre as relações que implicam uma "troca econômico-sexual", tendo por extremos, de um lado, o casamento e, de outro, um programa com uma prostituta, passando por relações consideradas mais e menos "legítimas". A negociação da remuneração, da delimitação dos serviços e do tempo se torna cada vez mais explícita, aproximando-se do extremo da prostituição. Tabet reconhece resistências e rupturas no continuum, mas para ela o conceito de "troca econômico-sexual" tem como base a denúncia da subordinação das mulheres, estruturante das relações sociais de sexo (Broqua & Deschamps, 2014BROQUA, Christophe & DESCHAMPS, Catherine. 2014. “Transactions sexuelles et imbrication des rapports de pouvoir”. In: ___ (eds.). L’échange economico-sexuel. Paris: Éditions EHESS. p. 7-17.; Handman, 2016HANDMAN, Marie-Elisabeth. 2016. Conférence inaugurale: “Transaction sexuelles et sexualité négociée, et leurs client.e.s”. Colloque “Les échanges sexuels et leurs clients”. Université Paris Ouest. ).

Na última década, pesquisadores francófonos procuraram expandir a noção de "troca econômico-sexual", considerando a imbricação entre diversos marcadores sociais e construindo uma visão mais "relational, situacional e historicizada das relações de poder" (Broqua & Deschamps, 2014BROQUA, Christophe & DESCHAMPS, Catherine. 2014. “Transactions sexuelles et imbrication des rapports de pouvoir”. In: ___ (eds.). L’échange economico-sexuel. Paris: Éditions EHESS. p. 7-17.: 15, tradução minha). A noção de “sexualidades negociadas” foi proposta para analisar as negociações sexuais em termos monetários, simbólicos e afetivos, muitas vezes imbricados. Leva em conta práticas heterogêneas, incluindo interações que não se inserem em um script heterossexual, que podem ou não ser remuneradas (de diferentes maneiras), ter o sentido das transações invertido ou as relações de poder deslocadas (Combessie & Mayer, 2013COMBESSIE, Philippe & MAYER, Sylvie. 2013. “Une nouvelle économie des relations sexuelles?”. Ethnologie française, Sexualités négociées. Vol. 43, nº 3, p. 381-389. Paris: Presses Universitaires de France. ).

Também a produção anglofônica e trabalhos na/sobre a África, Ásia e América Latina têm se ocupado com a complexidade das trocas envolvendo sexualidade e com o refinamento de sua conceitualização. Na introdução do livro Global sex workers: Rights, Resistance and Redefinition, Kamala Kempadoo (1998KEMPADOO Kamala. 1998. “Introduction: Globalizing Sex Worker’s rights”. In: KEMPADOO, K. & DOEZEMA, J. (eds.). Global sex workers: Rights, Resistance and Redefinition. New York: Routledge.) define o termo trabalhadora do sexo (sex worker), destacando a abordagem da prostituição como trabalho, e enfatiza a variabilidade de formas de trabalho do sexo e suas similaridades com outras dimensões da vida de pessoas trabalhadoras. Kempadoo salienta a existência de interesses econômicos em relações fora da prostituição, em diferentes classes sociais, mas "aproxima todas essas modalidades de intercâmbios ao trabalho sexual” (Piscitelli, 2011PISCITELLI, Adriana. 2011. “Amor, apego e interesse: trocas sexuais, econômicas e afetivas em cenários transnacionais”. In: PISCITELLI, A.; OLIVAR, J.M.N. & ASSIS, G.O. (eds.). Gênero, sexo, amor e dinheiro: mobilidades transnacionais envolvendo o Brasil. Campinas: Unicamp/Pagu. p. 537-582.: 551).

Amalia Cabezas utiliza o conceito de “sexo tático”, considerando a existência de arranjos que envolvem intercâmbio de sexo por dinheiro ou benefícios materiais sem que a mulher se identifique necessariamente como trabalhadora do sexo, mesmo que as interações envolvam "diferenças em relação à raça, à classe socioeconômica, à cidadania e à idade" (Cabezas, 2016: 4CABEZAS, Amalia. 2016. “Mulheres dominicanas invisíveis: discursos de tráfico de pessoas em Porto Rico”. Cadernos Pagu. Vol. 47.). Opõe-se à ideia de que o amor é necessariamente desprovido de interesse econômico e pensa as ligações entre trabalho e sexo e entre afetos e dinheiro através de um continumm e de uma fluidez de fronteiras (Cabezas, 2004CABEZAS, Amalia. 2004. “Between love and Money: Sex, Tourism, and Citizenship in Cuba and the Dominican Republic”. Signs: Journal of Women in Culture and Society. Vol. 29, nº 4, p. 987-1015., 2016CABEZAS, Amalia. 2016. “Mulheres dominicanas invisíveis: discursos de tráfico de pessoas em Porto Rico”. Cadernos Pagu. Vol. 47.).

Viviana Zelizer (2005ZELIZER, Viviana. 2005. The Purchase of Intimacy. Princeton: Princeton University Press.) problematiza a oposição entre transações econômicas e relações íntimas, considerando tanto relações familiares e conjugais quanto relações comerciais. Sua análise é interessante por mostrar como os limites, as práticas e os modos de circulação do dinheiro são meticulosamente definidos em cada tipo de relação que envolve transações econômicas e intimidade, de maneira a diferenciá-los. Aponta também a participação de bens materiais na construção, no fortalecimento ou na desestruturação de relacionamentos íntimos.

Um dos trabalhos sobre prostituição pioneiros no Brasil, de Maria Dulce Gaspar sobre "garotas de programa" no Rio de Janeiro, publicado em 1985, já sinalizava um continuum de relações que combinam sexo e dinheiro na prostituição (Piscitelli, Gregory & Carrara, 2004PISCITELLI, A.; GREGORI, M.F. & CARRARA, S. 2004. Apresentação. Sexualidades e Saberes: Convenções e Fronteiras. Rio de Janeiro: Garamond . p. 9-35.). A produção brasileira, desde cedo, tem considerado os entrecruzamentos entre sexualidades, erotismo, gênero, família, sustento de filhos, conjugalidade, ocupação da cidade, mobilidades e conexões entre dinheiro e afetos (Olivar, 2014OLIVAR, José Miguel Nieto. 2014. “Pesquisando prostituição e mercados do sexo: contribuições, debates e novos desdobramentos”. Revista Ártemis. Vol. 18, nº 1, p. 3-11.; Piscitelli, 2016).

Nos últimos anos, a noção de “mercado do sexo” tem sido utilizada remetendo "ao vasto terreno dos intercâmbios materiais e simbólicos mediante os quais se organiza o social", englobando "intercâmbios caracterizados como 'comércio’, mas também outras trocas que não são assim concebidas e podem, até, ser pensadas como dádivas" (Piscitelli, 2016PISCITELLI, Adriana. 2016. “Economias sexuais, amor e tráfico de pessoas - novas questões conceituais”. Cadernos Pagu . Vol. 47. : 4). Tais abordagens vêm trabalhando igualmente a articulação entre gênero e outras categorias, como raça, classe, idade e nacionalidade, considerando tanto as posições sociais desiguais dos parceiros quanto a agência presente nos intercâmbios.

Adriana Piscitelli (2016PISCITELLI, Adriana. 2016. “Economias sexuais, amor e tráfico de pessoas - novas questões conceituais”. Cadernos Pagu . Vol. 47. ) escreveu recentemente que a noção de “economias sexuais”, utilizada internacionalmente para se referir ao amplo universo de trocas de sexo por dinheiro, tem a vantagem de não distinguir mercado do sexo e casamento, permitindo articulá-los. E diferentemente da noção de “sexo tático”, que se refere principalmente aos países do Sul, economias sexuais colocam em questão a sexualização/racialização desses países e, internamente, de suas classes mais baixas. Piscitelli identifica diferentes modalidades e intensidades de afeto nas trocas de acordo com o contexto do mercado do sexo. Considera importante investigar as "distinções nas socialidades envolvidas” (Piscitelli, 2011: 553) e nos deslocamentos entre as práticas e os estilos de afetos.

Com as questões das demarcações e das porosidades entre as relações íntimas e das desigualdades sociais e de gênero que influenciam as trajetórias das mulheres, volto-me para como as prostitutas vivem diferentes relações e intercâmbios com os homens. Considero as transações econômicas, mas também a importância dos investimentos afetivos e eróticos que motivam suas decisões e práticas (Piscitelli, 2016PISCITELLI, Adriana. 2016. “Economias sexuais, amor e tráfico de pessoas - novas questões conceituais”. Cadernos Pagu . Vol. 47. ; Handman, 2016HANDMAN, Marie-Elisabeth. 2016. Conférence inaugurale: “Transaction sexuelles et sexualité négociée, et leurs client.e.s”. Colloque “Les échanges sexuels et leurs clients”. Université Paris Ouest. ).

Baseio-me sobretudo na perspectiva de mulheres. O contato na zona boêmia desde 2003 e o reencontro com algumas delas ao longo desses anos permitiram acompanhar suas experiências em distintas fases de vida. Realizei conversas e entrevistas individuais, em dupla ou em grupo nos hotéis ou na casa de minhas interlocutoras, mas também em reuniões com trabalhadoras do sexo no Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS de Minas Gerais (GAPA-MG),3 3 Fiz um estágio no GAPA-MG em 2005, e frequentei a instituição como voluntária em alguns meses de 2007 e 2009. e na Associação de Prostitutas de Minas Gerais (APROSMIG), onde tenho atuado como assessora em algumas atividades e projetos. Mesmo tendo tido também como interlocutoras travestis e mulheres trans, dentro e fora da zona boêmia, centro-me na prostituição de mulheres cisgênero, porque até final de 2013, apenas estas podiam trabalhar nos hotéis. Considero também em minha análise entrevistas com clientes e funcionários dos hotéis.

Mulheres e conjugalidade nas classes populares

Os valores e os códigos sexuais das classes populares são muitas vezes identificados como “tradicionais”, baseados em uma concepção mais hierárquica das relações, enquanto se percebe nas classes médias valores “individualistas” ou modernos, baseados em condutas mais simétricas e igualitárias (Heilborn et al., 2006HEILBORN, Maria Luiza; BOZON, Michel; AQUINO, Estela & KNAUTH, Daniela (eds.). 2006. O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Garamond /Fiocruz.; Machado, 2010). Opor valores e modos de vida das classes populares brasileiras aos das classes médias vem se tornando cada vez problemático. Além de eles serem variáveis histórica e contextualmente, como indica Vaitsman (1997VAITSMAN, Jeni. 1997. “Pluralidades de mundo entre mulheres urbanas de baixa renda”. Estudos Feministas. Vol. 5, nº 2, p. 303-319.), com a heterogeneidade da sociedade brasileira e suas recentes transformações, os grupos urbanos socialmente desfavorecidos participam de diferentes mundos institucionais e simbólicos.

Mas como mostra uma série de pesquisas clássicas que envolvem gênero e sexualidade (Duarte, 1987DUARTE, Luiz Fernando Dias. 1987. “Pouca vergonha, muita vergonha: sexo e moralidade entre as classes trabalhadoras urbanas”. In: LOPES, J.S.L. (ed.). Cultura e Identidade Operária. São Paulo: UFRJ/Marco Zero/Proed. p. 203-226.; Fonseca, 2004aFONSECA, Claúdia. 2004a. Família, fofoca e honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS.; Heilborn et al., 2006HEILBORN, Maria Luiza; BOZON, Michel; AQUINO, Estela & KNAUTH, Daniela (eds.). 2006. O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Garamond /Fiocruz.), as classes trabalhadoras brasileiras têm configurações próprias, e suas especificidades culturais não devem ser apagadas (Salem, 2006SALEM, Tania. 2006. “Tensões entre gêneros na classe popular: uma discussão com o paradigma holista”. Mana. Estudos de Antropologia Social. Vol. 12, nº 2, p. 419-447.). A interseção entre classe social e gênero produz especificidades nas trajetórias e nas vivências de homens e mulheres.

Este texto trata das prostitutas como mulheres de classes populares de forma mais ou menos homogênea, mas é importante frisar que existe uma razoável heterogeneidade socioeconômica, racial e geracional entre elas. No entanto, considero que suas trajetórias pessoais e profissionais, especialmente em relação às questões de gênero, mais se aproximam do que divergem. A influência de valores tradicionais aparece em quase todas as entrevistas, mas também valores individualistas e a coexistência entre os dois modelos. Valores e normas sexuais parecem servir mais como guia de interpretação do que como definidores do que se pode ou não fazer (Heilborn et al., 2006HEILBORN, Maria Luiza; BOZON, Michel; AQUINO, Estela & KNAUTH, Daniela (eds.). 2006. O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Garamond /Fiocruz.).

O casamento4 4 O termo “casamento” é usado independentemente de um casamento oficial. acontece usualmente cedo em contextos de baixa renda. Os recursos limitados e a falta de projetos profissionais favorecem a percepção do casamento como uma forma de sair da dependência familiar (Heilborn et al., 2006HEILBORN, Maria Luiza; BOZON, Michel; AQUINO, Estela & KNAUTH, Daniela (eds.). 2006. O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Garamond /Fiocruz.). Além disso, de acordo com Luiz Fernando Dias Duarte (1987DUARTE, Luiz Fernando Dias. 1987. “Pouca vergonha, muita vergonha: sexo e moralidade entre as classes trabalhadoras urbanas”. In: LOPES, J.S.L. (ed.). Cultura e Identidade Operária. São Paulo: UFRJ/Marco Zero/Proed. p. 203-226.), a maternidade e o fato de "ter uma casa" aumentam o status social da mulher. Mesmo com as transformações sociais, educacionais e de gênero no Brasil nas últimas décadas, a divisão sexual do trabalho no casamento opera normalmente de maneira tradicional, ou seja, os homens têm a responsabilidade de ter um trabalho remunerado e de prover a família, e o trabalho doméstico e reprodutivo é atribuído à mulher. Machado (2001MACHADO, Lia. 2001. “Famílias e individualismo: tendências contemporâneas no Brasil”. Interface - Comunic, Saúde, Educ. Vol. 4, nº 8, p. 11-26.) se refere a um "contrato conjugal tradicional", no qual o homem tem o dever de sustentar a família e a mulher lhe deve exclusividade sexual, modelo também pensado através da noção de "reciprocidade" em estudos sobre grupos populares brasileiros (Fonseca, 2004aFONSECA, Claúdia. 2004a. Família, fofoca e honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS.).

De acordo com Tania Salem, nas classes populares há uma tensão estrutural entre o casal decorrente de uma oposição contrastiva central: “o pendor feminino para o vínculo x a vocação masculina para circular entre mulheres” (Salem, 2006: 425). A conjugalidade costuma se manter em equilíbrio, mas sua ruptura é também frequente. A impermanência dos homens na família e um número significativo de mulheres solteiras levam a uma alta porcentagem de famílias mononucleares chefiadas por mulheres nas camadas mais pobres.

Duarte (1987DUARTE, Luiz Fernando Dias. 1987. “Pouca vergonha, muita vergonha: sexo e moralidade entre as classes trabalhadoras urbanas”. In: LOPES, J.S.L. (ed.). Cultura e Identidade Operária. São Paulo: UFRJ/Marco Zero/Proed. p. 203-226.) assinala três tipos principais de comportamento do homem que rompem os arranjos conjugais: o "não trabalho", muitas vezes acompanhado de alcoolismo; a violência; e uma extraconjugalidade ostensiva. Separando-se, as mulheres tendem a desenvolver uma percepção dos laços conjugais como precários e a questionar o homem enquanto valor. Apesar das dificuldades econômicas que enfrentam, entram no mercado de trabalho e aumentam sua independência.

Depois de um relacionamento sem sucesso, é comum que as mulheres, especialmente com crianças, proíbam-se uma nova coabitação. Duvidam que seja possível dissociar o papel de provedor dos homens da autoridade exercida por eles (Machado, 2001MACHADO, Lia. 2001. “Famílias e individualismo: tendências contemporâneas no Brasil”. Interface - Comunic, Saúde, Educ. Vol. 4, nº 8, p. 11-26.). Tânia Salem identifica uma oscilação entre generalizações e exceções em relação aos homens: as “mulheres acreditam que a predisposição masculina para romper com o pacto entre gêneros pode ser neutralizada pelo encontro do ‘homem certo’” (Salem, 2006: 435).

Grande parte das prostitutas que encontrei casou e/ou foi mãe cedo. As narrativas sobre sua iniciação sexual indicam que valorizavam o desenvolvimento de um relacionamento amoroso, mais que a experimentação ou a diversidade de parceiros sexuais.5 5 Diferentemente de algumas interlocutoras de José Miguel Olivar (2013) que não pensavam em se casar e gostavam de sexo. Seus relacionamentos foram rompidos principalmente por dois fatores: um deles é a descoberta de que seu parceiro era casado ou tinha outras parceiras sexuais; os homens as abandonaram por outra mulher ou elas romperam a relação, não aceitando a “promiscuidade sexual” do parceiro.

Outro fator comum é o fracasso do homem em ocupar o papel de marido provedor, às vezes acompanhado de desemprego, alcoolismo e violência doméstica. As entrevistadas cujos maridos ficaram desempregados - e, por vezes, alcoólicos - vivem a separação com alívio, por se livrarem do fardo de sustentar seu companheiro e de relações violentas. O fracasso profissional do homem parece contribuir para essa desvalorização de sua imagem pela esposa (Singly, 1987SINGLY, François de. 1987. Fortune et infortune de la femme mariée: sociologie de la vie conjugale. Paris: Presses Universitaires de France .).

Além disso, algumas mulheres entrevistadas têm a sensação de que casaram muito cedo e descrevem-se como ingênuas na época:

Ele me maltratava muito e, na época, eu era muito ingênua. Eu conheci ele, tinha 16 para 17. Aí, a gente foi morar junto... eu tinha uns 18, 19. A minha mãe faleceu... Mas se eu soubesse que eu ia ser tão infeliz, tão machucada, como eu tenho mágoa dele até hoje, tem oito anos que eu estou separada dele, vai fazer nove, e eu ainda estou magoada. Queria mais ter ficado solteira do que ele ter me assumido, de tão infeliz que eu fui com o pai dos meus filhos (Denise, negra, 29 anos).

Ainda, algumas mulheres se deram conta, depois do casamento e de ter filhos, que não amavam seu parceiro ou que o casamento não era o que elas esperavam. Essas sensações não acontecem apenas na primeira relação. Catarina, negra de 30 anos, conta que foi morar com um parceiro, que conhecera recentemente, sem gostar dele, por já ter um filho e ainda morar com sua mãe. A conjugalidade permite ter a própria casa e prover a criação dos filhos. Mas nem sempre funciona como esperado. Após um tempo, o parceiro de Catarina parou de trabalhar, envolveu-se com drogas, e o acordo conjugal acabou se rompendo.

Minhas interlocutoras costumam questionar a viabilidade do “contrato conjugal tradicional” após as decepções vividas em seus relacionamentos. Muitas voltam seu foco de vida para a maternidade e o sustento da família. No entanto, mantêm o ideal do encontro de um homem provedor no horizonte, e um desejo de amor romântico, reciprocidade sexual, princípios de igualdade e autonomia.

Outros arranjos e a maternidade

Florence Vatin e François de Singly (2000VATIN, Florence & SINGLY, François de. 2000. “Avoir une vie ailleurs: l’extra-conjugalité”. In: SINGLY, F. Libres ensemble: l’individualisme dans la vie commune. Paris: Nathan. p. 313-350.) indicam que os homens associam o relacionamento conjugal à rigidez e aos problemas cotidianos, enquanto as relações extraconjugais são representadas como um espaço "à parte", onde as trocas pessoais e o erotismo são privilegiados. Isto é observado no discurso dos clientes e sobre os clientes no mercado do sexo. Eles são atenciosos com as prostitutas e se queixam de não haver diálogo e romance com suas esposas.6 6 Nem todos os clientes casados apontam este contraste. Alguns descrevem a vida sexual no casamento como satisfatória, mas procuram a prostituição para ter uma variedade de parceiros/parceiras sexuais. Relatam a falta de desejo sexual da esposa, um envolvimento grande demais com a maternidade, cansaço, “chatice”, sem considerar que a maior parte das queixas vem de consequências da divisão sexual do trabalho.

Há prostitutas que encontrei que tiveram casos extraconjugais com homens casados antes de entrarem na prostituição. Mesmo não sendo a esposa “oficial”, o casal funciona segundo a lógica do contrato tradicional, a fidelidade tendo um duplo padrão. Nesses relacionamentos, as mulheres destacam a cumplicidade na relação e a disponibilidade de seu parceiro, contrastando com a descrição das que viveram como mulher "oficial" de parceiros desengajados e irresponsáveis. O sustento provido pelo parceiro ajuda a reforçar os laços da relação, e pode ser visto como uma demonstração de cuidado e de sentimentos. Bárbara, negra de 23 anos, comenta a relação que tinha com um homem casado.

Eu tinha 17 anos; ele tinha 44. Foi um relacionamento legal. Inclusive, ele via minha dificuldade em arranjar emprego, então ele me ajudou o tanto que ele pôde! Ele pagou o curso que eu fiz. [...] Eu fiquei tão acostumada a ser mantida por ele, mantida MESMO! Porque até a casa em que eu moro hoje, que não é a casa da minha mãe, foi ele que alugou, foi ele que montou... Assim, ele não é um cara rico, ele é motorista de ônibus. Mas mesmo assim, tudo que ele tinha era pra mim, ele investia em mim. Só que eu estava ficando meio cheia, mesmo... A situação não estava me agradando, me agradou no começo... Ainda mais quando ele me negava as coisas.

Por outro lado, vemos com Bárbara que com o enfraquecimento do laço afetivo as transações econômicas podem começar a ser vistas como insuficientes. Depois de um rompimento, a mulher que depende financeiramente de seu parceiro tem que encontrar outro meio de subsistência. Uma opção é achar outro parceiro; assim, as mulheres pobres têm menos condições que as mulheres de classes privilegiadas de rejeitar um novo casamento (De Singly, 1987SINGLY, François de. 1987. Fortune et infortune de la femme mariée: sociologie de la vie conjugale. Paris: Presses Universitaires de France .). Outra opção é a prostituição: uma vez classificada como "impura", a mulher pode começar a se identificar mais com a cortesã do que com a dona de casa (Pheterson, 1996PHETERSON, Gail. 1996. Le prisme de la prostitution. Bibliothèque du féminisme. Paris: L’Harmattan.).

Nas classes populares, a maternidade é valorizada, mas nem sempre a gravidez é acolhida pelo parceiro ou pela rede de parentesco da mulher. Pelo menos até a década de 1980 muitas mulheres grávidas solteiras que contavam ao parceiro sobre a gravidez eram abandonadas, ou o homem tentava persuadi-las a abortar ou a dar o bebê para adoção. Ainda hoje se percebe que "a mulher que consente em dar o filho em adoção foi, ela mesma, ‘abandonada’ - pelo companheiro, pelos pais e pela sociedade” (Fonseca, 2012FONSECA, Claúdia. 2012. “Mães ‘abandonantes’: fragmentos de uma história silenciada”. Revista Estudos Feministas. Vol. 20, nº 1, p. 13-32.: 17).

Algumas mulheres da zona boêmia foram abandonadas por seus parceiros quando ficaram grávidas e relatam demandas de aborto ou adoção. Diversas delas não receberam apoio de sua própria família em função da condenação da gravidez fora de conjugalidade, afastamento da família ou porque os pais já tinham falecido. É possível que laços familiares mais fortes contribuam para restringir o acesso à prostituição, tanto porque fornece apoio material e ajuda com o trabalho reprodutivo quanto pela censura do "desvio" (Tilly & Scott, 1987TILLY, Louise & SCOTT, Joan. 1987. “Les femmes célibataires dans l’économie familiale”. In: ___. Les femmes, le travail et la famille. Paris, Marseille: Rivages. p. 49‑61.). A referência ao desemprego causado pela gravidez também aparece nas narrativas. Os pais das crianças de mães solteiras ou separadas tornam-se normalmente ausentes, às vezes secundários nos cuidados domésticos e financeiros. Sem conjugalidade, além do trabalho reprodutivo, a mulher passa a ter a responsabilidade financeira pelos filhos.

Iniciando o trabalho do sexo

Em caso de separação ou de viuvez,7 7 Há diversos casos de morte do parceiro, o que pode estar relacionado ao nível elevado de mortalidade entre os jovens da classe trabalhadora causada por homicídios e acidentes. as mulheres encontram muitas vezes dificuldades para encontrar um emprego por estarem fora do mercado de trabalho, terem baixo capital escolar e profissional, e se depararem com empregos precários e mal remunerados. A maioria de minhas interlocutoras trabalhou - antes, ao mesmo tempo ou após a saída da prostituição - como empregada doméstica, ou teve outros empregos tipicamente femininos, como o de costureira, garçonete ou vendedora.

Sem entrar na atração pela prostituição ou em suas condições de trabalho, do ponto de vista econômico, a decisão de iniciar essa atividade pode acontecer diante de graves dificuldades econômicas, mas, mais comumente, como uma forma de melhorar sua situação de vida e/ou a de seus filhos, ou no caso de mulheres solteiras, de aumentar seu padrão de consumo ou pagar seus estudos. A prostituição oferece condições de trabalho iguais ou melhores que outros subempregos femininos, possibilita maior renda e “não atrela o futuro da mulher a um indivíduo qualquer” (Blanchette & Silva, 2009BLANCHETTE, Thaddeus & SILVA, Ana Paula. 2009. “Amor um real por minuto: a prostituição como atividade econômica no Brasil urbano”. Paper apresentado no Diálogo Latino-Americano sobre Sexualidade e Geopolítica, Rio de Janeiro. : 15). Não se atrelar a um único indivíduo é importante, já que a independência adquire valor para as mulheres separadas. Emma Goldman (2011GOLDMAN, Emma. 2011 [1910]. “Tráfico de mulheres”. Cadernos Pagu . Vol. 37, p. 247-262. [1910]) ligava a entrada na prostituição à dupla moral sexual (que negava a autonomia sexual das mulheres e condenava as que fizessem sexo fora do casamento), às condições de trabalho de domésticas e de mulheres da classe operária, assim como ao modelo de consumo no sistema capitalista.

Em Belo Horizonte, é forte o discurso das prostitutas sobre a falta de confiança nos homens e a dedicação delas aos filhos. Precisamos, por um lado, como apontado por Gabriela Leite,8 8 Em entrevista concedida em 2006. estar cientes das justificativas apresentadas pelas trabalhadoras do sexo para entrarem na prostituição, sempre atribuídas a uma outra pessoa. A maternidade funciona como modo de absolver a sua atividade para si mesmas e para seu ambiente social, inclusive para seus próprios filhos, dizendo que trabalham por eles, dando-lhes “do bom e do melhor”.

Por outro lado, não podem ser ignoradas as dificuldades profissionais e econômicas das mulheres de classes desfavorecidas, assim como o valor social e os encargos atribuídos à maternidade. A entrada na prostituição produz independência econômica e aumento de renda. Mesmo prostitutas que expressam mais insatisfação com o trabalho do sexo se sentem orgulhosas de ganhar dinheiro nesta atividade, proporcionar uma boa condição de vida para seus filhos e poder comprar produtos que não lhes eram acessíveis. Acontece de apontarem diferentes lados da história de sua entrada na prostituição, “não se trata de contradições, nem muito menos de mentiras, mas da enorme complexidade e ambiguidade que constituem essa memória” (Olivar, 2013OLIVAR, José Miguel Nieto. 2013. Devir puta: políticas da prostituição nas experiências de quatro mulheres militantes. Rio de Janeiro: EdUERJ.: 77).

O casal no trabalho do sexo: articulações e incompatibilidades

O que acontece em suas relações afetivo-sexuais quando as mulheres entram na prostituição? Se muitas mulheres mantêm o estereótipo de que todo homem é “galinha” (Goldenberg, 2001GOLDENBERG, Miriam. 2011. “Sobre a invenção do casal”. Estudos e Pesquisas em Psicologia. Vol. 1, nº 1, p. 89-104. ), as prostitutas, observando homens casados, realizando programas e demandas sexuais consideradas socialmente desviantes, comentam constantemente que os homens são “todos infiéis” ou “perversos”. Sousa também relata a desconfiança de prostitutas quanto aos homens, como Fernanda, que comenta que “homem é tudo lixo”, “homem é ilusão” (Sousa, 2012: 16SOUSA, Fabiana & Oliveira, Maria W. 2012. “A noite educa: saberes de experiência consolidados no trabalho sexual”. Congresso Internacional de Pedagogia Social IV, São Paulo.).

Em boas condições de trabalho, as prostitutas deslocam as relações típicas entre os sexos. Diversos pesquisadores se referem “aos limites simbólicos corporais” que as trabalhadoras colocam no programa (Pasini, 2000PASINI, Elisiane. 2000. “Limites simbólicos corporais na prostituição feminina”.Cadernos Pagu . Vol. 14, p. 181-200.), a um educar-se “com o pé atrás” (Sousa, 2014SOUSA, Fabiana. 2014. “Entre o medo e a ousadia: educando-se na prática da prostituição”. Revista Ártemis . Vol. 18, nº 1, p. 61-66. ), à “malandragem” e à “lábia” para negociar com os clientes (França, 2014FRANÇA, Marina. 2014. “Quando a intimidade sobe e desce as escadas da zona boêmia de Belo Horizonte”. Cadernos Pagu . Vol. 43, p. 321-346.), e à maldade para conversar, antecipando o que o cliente está pensando adiante, um empoderamento que neutraliza a sedução e a malandragem do cliente (Olivar, 2013OLIVAR, José Miguel Nieto. 2013. Devir puta: políticas da prostituição nas experiências de quatro mulheres militantes. Rio de Janeiro: EdUERJ.).

Embora essa desconfiança se expanda a outras experiências, as prostitutas demonstram que “lá fora” voltam às vezes a ser “bobas”. Inverte-se novamente a posição, de “espertas” com os clientes caem na posição de “trouxas” (Olivar, 2013OLIVAR, José Miguel Nieto. 2013. Devir puta: políticas da prostituição nas experiências de quatro mulheres militantes. Rio de Janeiro: EdUERJ.). Envolver-se emocionalmente as torna mais vulneráveis e os homens tornam a dar as cartas na relação. Muitas prostitutas demoraram a sair de situações de violência doméstica ou em que os homens as “enrolavam”.

Aqui, eu conheci uma figura, um traste desses aí, e foi paixão, que até hoje eu não entendo como, nem por quê. Não me pergunte o que eu vi, o que aconteceu, não sei! Sei que eu caí de quatro, mais o estepe, por causa dessa criatura, e não deu certo! Aí, larguei, né, de trabalhar, peguei todas as economias que eu tinha juntado, montei uma empresa, botei ele como sócio (Priscila, branca, 50 anos).

A empresa faliu e Priscila descobriu que o namorado a traiu, o que não tolera. Para ela, o casamento deve ter cumplicidade, não negligência, de ambos os lados. Priscila não consegue entender como algumas prostitutas vivem uma vida de casada, como o homem aceita de a mulher fazer sexo com vários parceiros e continua a respeitá-la. Sara, negra de 27 anos, que terminou o segundo grau e chegou a ser funcionária de uma prefeitura no interior de Minas, acha que um homem "de verdade" não deixaria sua esposa "ir" com outro, mas que uma mulher aceitaria.

As mulheres costumam ser mais tolerantes à infidelidade masculina que à feminina, e as de classe trabalhadora são mais tolerantes à infidelidade masculina que mulheres mais abastadas (Heilborn et al., 2006HEILBORN, Maria Luiza; BOZON, Michel; AQUINO, Estela & KNAUTH, Daniela (eds.). 2006. O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Garamond /Fiocruz.). É constante a ideia de que os homens são naturalmente infiéis, têm maiores necessidades sexuais que as mulheres e são pouco tolerantes à infidelidade feminina. Isto coloca as trabalhadoras do sexo em uma posição mais complicada para se enquadrarem no contrato conjugal tradicional. Muitas dizem que o trabalho do sexo é incompatível com o casamento e que um "verdadeiro homem" não se engajaria com uma prostituta.

Apesar disso, na zona boêmia, é comum que as trabalhadoras saiam com homens conhecidos no trabalho, sejam clientes ou funcionários, o que as libera de passarem pelo dilema da revelação da atividade e pelas tensões de sua ocultação. Além disso, a probabilidade dos encontros está ligada à proximidade social e física. Frequentar um mesmo ambiente e repetir o contato potencializam a formação de casais, e alguns empregos favorecem estas condições (Bozon & Héran, 2006BOZON, Michel & HÉRAN, François. 2006. “La ‘Formation des couples’ : genèse, raisons et fruits d’une enquête”. In: ___. La formation du couple : textes essentiels pour la sociologie de la famille. Paris: La Découverte. p. 5-26.). As prostitutas da zona boêmia têm a possibilidade de conhecer frequentemente novos homens e do contato ser repetido.

Além disso, a proximidade socioeconômica com os clientes se enquadra na tendência à homogamia na formação de casais. Há homens que iniciam relacionamentos e moram com mulheres conhecidas nos hotéis. Diferentemente de contextos de turismo sexual, são os pares sociais das prostitutas que estão disponíveis para um envolvimento amoroso e uma vida compartilhada.

Quando há uma atração durante o programa, o cliente volta ou um deles propõe um encontro. Algumas entrevistadas expressam a preocupação de que o homem pode estar apenas querendo sexo gratuito, interessado em seu dinheiro ou planejando roubá-las. Os clientes e os funcionários entrevistados também apontam o medo de que a prostituta se envolva com eles apenas por interesse econômico, para conseguir realizar seus projetos, abandonando-os em seguida. O fantasma da combinação entre dinheiro, sexo e sentimentos assombra.

Dependendo do desenrolar do namoro, aparece a questão de continuar ou parar o trabalho do sexo. Grande parte das mulheres se sente desconfortável em continuar fazendo ​​sexo pago quando estão apaixonadas. No entanto, sair da prostituição envolve uma série de questões. Precisam calcular o investimento de seu parceiro, porque muitos homens não assumem inteiramente a relação (em alguns casos, são casados). A questão da renda também as preocupa. À medida que os clientes têm rendimentos iguais ou menores que as prostitutas, como manter as condições econômicas a que essas mulheres e seus filhos estão acostumados? Como será ser economicamente dependente de um homem que não é o pai de seus filhos e da distribuição do dinheiro que ele fará?

Algumas mulheres decidem parar logo o trabalho do sexo; outras continuam, planejando juntar dinheiro ou observando como o relacionamento evolui. Dentre as mulheres que conheci, poucas moravam com um parceiro. Algumas tinham vivido uma conjugalidade alternando fases fora e na prostituição, voltando a trabalhar em momentos de dificuldade econômica ou de crise no relacionamento. Uma jovem negra, Cibele, voltou à prostituição quando se separou: “A gente brigou, sabe, terminou, tudo. Ele foi embora para a terra dele, aí eu voltei para cá. A gente voltou de novo, aí, eu falei: ‘Agora, não vou sair não’, porque tipo assim, não é uma coisa segura, né?”.

As mulheres casadas dizem que seus parceiros não gostam que elas façam programa, mas aceitam. O marido de Cibele lhe faz diversas advertências:

“Se você pegar uma doença e colocar alguma doença em mim, eu te mato.” [ri] “Se a camisinha estourar e você engravidar e falar que é meu e tudo...”. Ele fala muita coisa, fala que aqui eu não vou ter futuro nenhum, que depois eu posso ficar velha aqui, igual um monstro.

As prostitutas relatam um ciúme acentuado dos parceiros principalmente fora do hotel; eles controlam seu comportamento e sua circulação para além do ambiente de trabalho. Eduarda conta de suas negociações com seu parceiro.

Ele tem muito ciúme de mim, mas é se eu tiver em casa. Se outro homem olhar pra mim. Mas aqui não, aqui ele sabe diferenciar, assim, sabe se comportar. Ele pode estar aí no corredor, se um homem estiver me dando o dinheiro, eu saio com ele para o motel, vou e deixo ele aí no corredor. Aí, ele liga pra mim: “O que você está fazendo?”, “Uai, não interessa o que eu estou fazendo”. Interessa? Não interessa. “É o meu local de trabalho, eu exijo respeito!”, não é? Ele sabe que eu estou ganhando dinheiro.

Eduarda faz com que este homem que conheceu nos hotéis há vinte anos respeite seu trabalho. Ela nunca deixou de fazer programas e ambos são independentes financeiramente. No entanto, Eduarda dá a entender que a vida afetiva e sexual do casal é quase inexistente. Comenta rindo que seu parceiro se tornou principalmente seu motorista e vigia da casa e que não faz mais sexo com ele, gostaria de um homem mais novo para isso. Sua fala me lembra a de uma mulher entrevistada por Letícia Tedesco, que “gigolea” os homens dentro e fora de casa, o que se refere sobretudo à “suposta submissão do parceiro, que cuida de seu filho e da casa, além de não interferir na autonomia de Dani”. (Tedesco, 2008: 66TEDESCO, Letícia. 2008. Explorando o negócio do sexo: uma etnografia sobre as relações afetivas e comerciais entre prostitutas e agenciadores em Porto Alegre. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, PPGAS-NACI/UFRGS. ).

Já Cristiane, 28 anos, negra, irritou-se com a posição de submissão do namorado, que caracterizou como passivo, fazendo tudo o que ela dizia. Moraram juntos alguns meses, mas não havia relações sexuais entre eles. “Para que um casal viva bem, os dois têm que ser iguais. Eu queria que ele fosse mais ativo, tivesse mais opiniões. Ele nunca ficava bravo!”. Cristiane verbalizou o desejo de uma relação mais igualitária e já rompeu aquelas em que seus parceiros não eram monogâmicos. Mas parece se incomodar de um modo particular com a inversão da posição de dominação-submissão entre ela e o homem.

Há casos de parceiros que ficam um tempo sem trabalhar, vivendo com o dinheiro da prostituição da mulher. Tereza conta de seu companheiro, que ficou dois anos desempregado. Ela sustentava a casa e investiu em um curso de vigia para ele. De acordo com Tereza, não havia incentivo dele à atividade da mulher: ele não gostava que ela fizesse programa, tinha ciúmes, mas com contas a pagar e os filhos para criar, “ele tinha que aceitar”. Tereza sofria também violência doméstica.

Na época, eu era boba. Desde que estou aqui, fiquei muito esperta. Ele me bateu muito, ele amolava meus filhos, mas nunca tocou neles. Eu ficava presa em casa, ia trabalhar e voltava direto para casa. Ele era ignorante, não tinha diálogo, a gente não conversava direito. Quando eu ia falar com ele, ele gritava, xingava, reclamava. Eu suportei muita coisa, a gente brigava muito. Quando eu me separava dele, ele pedia para eu voltar e eu voltava.

Ela se diz esperta desde que está na zona, mas esse casamento aconteceu depois que já havia trabalhado muitos anos como prostituta, o que sugere que, uma vez de volta ao ambiente doméstico, as relações com os homens retornam ao modelo “tradicional”. Ao mesmo tempo, parece-me que trabalhadoras do sexo saem de relacionamentos não satisfatórios ​​com mais frequência que outras mulheres.9 9 Comparo, por exemplo, com experiências de mulheres em situação de violência doméstica que atendi em Delegacias Especiais de Crimes contra as Mulheres. Além da dificuldade de romper o vínculo afetivo com o marido, sentiam-se amarradas pela dependência econômica e falta de perspectiva de trabalho. Sabem que podem se sustentar e, conversando com clientes e com colegas, adquirem mais conhecimentos sobre homens e relacionamentos.

Em uma entrevista, Eduarda e Fabiana, sua colega, discutem sobre os problemas de deixar o trabalho do sexo por causa de um homem. Depois de sair dos hotéis para viver com um ex-cliente, Fabiana teve um filho, separou-se e voltou à zona boêmia.

Eles ficam assim, logo de cara: “É, a gente vai ficar junto, você vai parar de ir naquele lugar, não sei o quê, vai viver uma vida assim decente”, exige muita coisa! Falei: “Não é assim não!”, não é assim pegando, achando que é um objeto, falar, “você saiu de lá, vai para o tanque, lavar, passar, cuidar de menino!”. Não é assim não. É aí que vêm os problemas. Porque é difícil uma mulher aceitar um homem que ganha um salário mínimo lá fora. Aqui de dentro é. Porque ela está acostumada com a vida, entendeu?

Mulheres de favelas no Rio de Janeiro percebem, às vezes, o casamento como uma "prisão" e, em outros momentos, especialmente quando estão com dificuldades econômicas, como uma “segurança” (Vaitsman, 1997VAITSMAN, Jeni. 1997. “Pluralidades de mundo entre mulheres urbanas de baixa renda”. Estudos Feministas. Vol. 5, nº 2, p. 303-319.). Valorizam sua independência - a qual se refere à possibilidade de consumir com sua própria renda, ver-se livre de maridos alcoólatras ou violentos, sustentar sua família e permitir que seus filhos tenham uma boa educação.

O casamento tem um status ambíguo para as prostitutas, mas muitas ainda cogitam encontrar “o homem certo”. Prostituição e casamento são frequentemente comparados segundo uma lógica de subsistência: as prostitutas explicam que deixaram o trabalho do sexo quando se casaram, (re)começaram este trabalho porque se separaram, queriam casar para ter uma boa situação de vida ou continuaram o trabalho do sexo porque seu parceiro ainda não as está sustentando. Encontrar um homem "bem de vida" lhes permitiria sair da prostituição. E enquanto esta é estigmatizada, o casamento tem prestígio social. Fonseca vê nas prostitutas “critérios bem convencionais de felicidade”, incluindo a avaliação de que as prostitutas que “deram certo” são as “bem casadas” (Fonseca, 2004b: 277). Ao mesmo tempo, há nelas uma inconformidade com relações nocivas e, como aponta Sousa (2014SOUSA, Fabiana. 2014. “Entre o medo e a ousadia: educando-se na prática da prostituição”. Revista Ártemis . Vol. 18, nº 1, p. 61-66. ), ousadia. Isto se acentua entre as prostitutas que defendem seu trabalho e reivindicam a liberdade e o prazer sexual na profissão.

Interesses, afetos e prazer

Em diversos contextos brasileiros (Piscitelli, 2011PISCITELLI, Adriana. 2011. “Amor, apego e interesse: trocas sexuais, econômicas e afetivas em cenários transnacionais”. In: PISCITELLI, A.; OLIVAR, J.M.N. & ASSIS, G.O. (eds.). Gênero, sexo, amor e dinheiro: mobilidades transnacionais envolvendo o Brasil. Campinas: Unicamp/Pagu. p. 537-582.), mulheres recebem presentes e ajuda financeira em troca de sexo e buscam parceiros pensando mais em termos econômicos do que românticos. Diante de seguidas decepções em seus relacionamentos afetivo-sexuais, as mulheres que encontrei falam em priorizar relações estratégicas em suas próximas ligações, mesmo que, concretamente, nem sempre o façam. Dada a interferência da situação de vida dos homens sobre a de suas parceiras, os cálculos econômicos participam da construção e da manutenção das relações. Calculam a estabilidade e as condições materiais dos homens e preveem suas próprias condições de subsistência, liberdade e atenção se morarem com eles.

Algumas prostitutas fornecem o "currículo completo" de seus pretendentes, evocando seu trabalho, propriedades, estado civil e personalidade. A responsabilidade do homem e sua generosidade são aspectos centrais. Observam se os homens pagam a conta quando saem juntos e ajudam-nas quando precisam. Características sexuais são também evocadas e um desempenho sexual desagradável ou sinais de "perversidade" desvalorizam o pretendente.

Cristiane expõe uma lista de vantagens de um homem, mais jovem que ela, que lhe propôs viverem juntos. Em comparação com outro que também gosta dela, o primeiro é mais jovem, tem um bom trabalho, é ambicioso, estuda línguas e tem uma sexualidade mais “normal”. Mas Cristiane se pergunta se a diferença de idade entre eles será notada socialmente e se, no futuro, este rapaz irá sentir ser um fardo sustentá-la e seus três filhos.

Acompanhando seus discursos e suas trajetórias ao longo dos anos, percebo que minhas interlocutoras consideram estratégias econômicas, mas não ficam com homens apenas por interesse. Costumam se envolver com homens por quem têm algum tipo de atração e buscam companheirismo, paixão, cumplicidade e/ou segurança.

Como aponta Adriana Piscitelli (2016PISCITELLI, Adriana. 2016. “Economias sexuais, amor e tráfico de pessoas - novas questões conceituais”. Cadernos Pagu . Vol. 47. ), as mulheres podem ter por seus parceiros outros sentimentos além de amor romântico, como respeito e consideração. Os sentimentos não são necessariamente excludentes, nem estáticos. A própria noção de amor pode ser questionada, havendo um lado instrumental do amor conectado ao apoio prático e à participação conjunta em atividades (Cancian, 1986CANCIAN, Francesca. 1986. “The feminization of love”. Signs: Journal of Women in Culture and Society . Vol. 11, nº 4, p. 692-709.).

Ainda, ter relações sexuais satisfatórias é um fator que conta para as mulheres com quem conversei. A valorização do prazer sexual feminino aumentou no final do século XX, mas a experiência sexual na prostituição parece ser uma diferença marcante em suas vidas sexuais. Algumas prostitutas apontam desconhecimento do processo reprodutivo, de seu corpo e sexualidade em sua iniciação sexual ou durante o casamento. Muitas não experimentaram o orgasmo com seus maridos.

Eu fiquei oito anos casada, nem sabia o que era isso! Ficava naquela vontade toda, achava que era aquilo. [...] Ele se satisfazia, eu achava que tava satisfeita já. Aí, quando acontece a primeira vez, você quer direto! (Juliana, branca, 28 anos).

Para você ter ideia, quando eu era casada, meu marido acabava de ter relação comigo, mas ele não me satisfazia sexualmente. [...] E aqui, geralmente, a mulher querendo ou não, ela acaba se tocando, ou o homem acaba tocando pontos assim, que ela vai descobrindo (Daniela, branca, 40 e poucos anos).

Falam da descoberta do orgasmo na prostituição, explicando-a principalmente pela quantidade de homens com os quais têm relação sexual, o que lhes permite identificar o que gostam. Algumas são mais mobilizadas por programas com aspecto romântico e presença de carinho, por homens “mais cheirozinhos, mais gostosinhos”, mas o orgasmo acontece também com clientes por quem não sentem atração.

Mais que o adultério, a comercialização do corpo significaria a possibilidade de dispor-se ao acaso dos encontros regidos pela troca no mercado, de vivenciar a vertigem da aventura no desconhecido campo da sexualidade e de experimentar o êxtase que a ausência de vínculos anteriores entre os sexos proporcionaria (Rago, 1991RAGO, Margareth. 1991. Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo, 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra.: 219).

Dissociam prazer sexual e amor, mas a maioria das prostitutas da zona boêmia prioriza relações sexuais com sentimentos e prefere tê-las com um parceiro pessoal.

Projetos de vida

O futuro das mulheres entrevistadas é geralmente pensado fora do trabalho do sexo, não apenas através do casamento. Muitas mulheres pretendem economizar dinheiro para abrir seu próprio negócio. Daniela, com mais de dez anos de atividade, adquiriu sua casa e estava quase com o dinheiro suficiente para investir em um cybercafé. Paola comprou imóveis, pagou os estudos universitários de sua filha e, depois de vinte anos trabalhando na zona boêmia, encerrou sua carreira. As duas são mulheres brancas, com cabelos louros, o que nos leva a pensar que sua cor pode ter facilitado ganhar mais dinheiro na prostituição (seus quartos estavam constantemente ocupados), e que sua origem social mais elevada que de outras mulheres da zona favoreceu o conhecimento para administrar o dinheiro.

Outras mulheres estão gradualmente deixando de fazer programas, trabalhando ao mesmo tempo como faxineiras ou garçonetes. Há também trabalhadoras do sexo financiando seus estudos. Os bens e as economias obtidas pelas entrevistadas são bastante variáveis: algumas têm casa própria, outras vivem um dia de cada vez ou passam por dificuldades financeiras. A educação dos filhos e a manutenção do domicílio já são uma grande fonte de despesas. Inúmeros filhos de prostitutas estão na universidade e, em alguns casos, em universidades federais.10 10 A filha de Julia está atualmente fazendo doutorado na Europa. Mesmo com a expansão do ensino superior no Brasil, isto indica investimento na educação e na mobilidade social de seus filhos.

Conclusão

A trajetória das entrevistadas - a conjugalidade precoce e as razões de sua ruptura, as expectativas afetivo-sexuais, a importância da maternidade e as opções de empregos - tem semelhanças importantes com as de outras mulheres das classes trabalhadoras. Suas questões prioritárias e seus valores são próximos. Ainda assim, vemos que a prostituição coloca diferenças importantes. O estigma do trabalho sexual é um fator complicador em sua vida afetiva e familiar. Várias mulheres escondem o tipo de trabalho que fazem de seus filhos, mesmo que suspeitem que eles sabem.

Além disso, as trabalhadoras aprendem mais sobre homens, relações de gênero e sexualidade e isto interfere em suas experiências. Ainda mantêm a referência do “contrato conjugal tradicional” e de um modelo de masculinidade hegemônico, mas eles passam por deslocamentos e pela coexistência com valores como igualdade e autonomia, reciprocidade de sentimentos, prazer sexual e, às vezes, fidelidade masculina. Tentando costurar os fios e conciliar vida pessoal e profissional, as trabalhadoras do sexo fazem arranjos entre diferentes ideais, expectativas e práticas. Endossam o papel de "mães provedoras” e ganham mais frequentemente independência do que amor.

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  • ZELIZER, Viviana 2005. The Purchase of Intimacy Princeton: Princeton University Press.
  • 1
    Fiz uma etnografia da zona boêmia de Belo Horizonte, mas também fiz campo e entrevistei mulheres cisgênero e travestis de outros locais de prostituição de Belo Horizonte e brasileiras no Bois de Boulogne (Paris), o que contribuiu para identificar especificidades e continuidades com a zona boêmia. Nos últimos anos, continuei participando de atividades e projetos da Associação de Prostitutas de Belo Horizonte e realizando entrevistas na região.
  • 2
    Os programas são encontros tarifados e negociados entre prostitutas e clientes.
  • 3
    Fiz um estágio no GAPA-MG em 2005, e frequentei a instituição como voluntária em alguns meses de 2007 e 2009.
  • 4
    O termo “casamento” é usado independentemente de um casamento oficial.
  • 5
    Diferentemente de algumas interlocutoras de José Miguel Olivar (2013) que não pensavam em se casar e gostavam de sexo.
  • 6
    Nem todos os clientes casados apontam este contraste. Alguns descrevem a vida sexual no casamento como satisfatória, mas procuram a prostituição para ter uma variedade de parceiros/parceiras sexuais.
  • 7
    Há diversos casos de morte do parceiro, o que pode estar relacionado ao nível elevado de mortalidade entre os jovens da classe trabalhadora causada por homicídios e acidentes.
  • 8
    Em entrevista concedida em 2006.
  • 9
    Comparo, por exemplo, com experiências de mulheres em situação de violência doméstica que atendi em Delegacias Especiais de Crimes contra as Mulheres. Além da dificuldade de romper o vínculo afetivo com o marido, sentiam-se amarradas pela dependência econômica e falta de perspectiva de trabalho.
  • 10
    A filha de Julia está atualmente fazendo doutorado na Europa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    24 Fev 2015
  • Aceito
    30 Ago 2016
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