Com quatorze anos de história, Sexualidad, Salud y Sociedad é um periódico de referência voltado a publicação de artigos originais sobre as dimensões culturais e políticas das sexualidades em contextos latino-americanos. Desde sua fundação em 2009, a revista mantém uma linha editorial comprometida com a difusão de trabalhos e investigações alinhadas à defesa dos direitos humanos, com o intuito de contribuir para o debate público relacionado à construção de agendas políticas positivas para as diferentes minorias sexuais. Nos últimos anos, em função do recrudescimento de movimentos de extrema-direita no Brasil e em diferentes partes do continente, a equipe editorial de Sexualidad, Salud y Sociedad enfrentou grandes desafios. O campo das ciências humanas foi particularmente afetado pelo progressivo corte de recursos direcionados ao financiamento de projetos científicos, a partir de iniciativas alavancadas por intensos ataques às universidades públicas e à legitimidade do trabalho acadêmico (Carrara, 2021).
Com uma rotina de trabalhos vinculada ao Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM), no Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ao longo dos últimos anos, a equipe editorial de Sexualidad, Salud y Sociedad atuou em um contexto de enorme vigilância aos discursos públicos relacionados ao tema das sexualidades. Assim, é com enorme satisfação que apresentamos o Número 39 do periódico, construído ao longo do ano de 2023. Este é o primeiro volume a ser publicado após quatro anos de convívio com tensões delimitadas por constantes ataques aos direitos humanos, das mulheres e das populações LGBTQIA+ no Brasil.
O número é composto por dois dossiês - “Feminismo, gênero e sexualidade nas tecnologias digitais: perspectivas latino-americanas”, organizado por Horácio Federico Sívori, Carolina Parreiras e Paz Peña, e “Regulaciones sociales del género, la sexualidad y la edad: reflexiones sobre relaciones, prácticas y discursos desde una perspectiva regional”, organizado por Ana Cecília Gaitán e Pilar Anastasía González; além dos artigos recebidos em fluxo contínuo e de resenhas de obras de grande relevância ao campo. Nessa última seção, os livros de autoria de Veena Das, Timothy Eugene Murphy, Camila Fernandes e Rahul Rao foram respectivamente resenhadas por Lucas Freire, Alexandre Gaspari, Júlia Freire e Amanda Ferreira, a quem agradecemos pelas contribuições.
O dossiê “Feminismo, gênero e sexualidade nas tecnologias digitais: perspectivas latino-americanas” é fruto de parceria entre o CLAM/IMS/UERJ e a Rede Feminista de Pesquisas da Internet da Associação para o Progresso das Comunicações (FIRN/APC). Conforme seus organizadores, Sívori, Parreiras e Peña (2023), os trabalhos reunidos no dossiê devem ser considerados importantes contribuições ao ativismo feminista e às áreas dos internet studies, da antropologia e da sociologia digital - campos que apenas recentemente têm ganhado maior espaço no Brasil. Com a proposta do dossiê, Sívori, Parreiras e Peña (2023) buscaram “generificar os estudos sobre o digital” e “promover uma abordagem feminista no campo emergente de pesquisa na internet”, enfrentando as dificuldades impostas à circulação de investigações feitas nessa perspectiva a partir do Sul Global. Assim, em parceria estabelecida pelos organizadores com a FIRN/APC e com o Centro de Pesquisas para o Desenvolvimento Internacional (IDRC/Canada), todos os artigos que integram o dossiê puderam ser disponibilizados em mais de um idioma (espanhol e inglês ou português e inglês). Consideramos o dossiê “Feminismo, gênero e sexualidade nas tecnologias digitais: perspectivas latino-americanas” um marco no processo de internacionalização de Sexualidad, Salud y Sociedad e agradecemos aos organizadores pelas importantes reflexões que incentivaram e viabilizaram.
O dossiê “Regulaciones sociales del género, la sexualidad y la edad: reflexiones sobre relaciones, prácticas y discursos desde una perspectiva regional”, por sua vez, consiste em uma proposta inovadora ao campo, na medida em que adentra em um tema menos explorado no universo dos debates interseccionais sobre desigualdades, trazendo para o centro das discussões o modo como idade e diferenças geracionais atravessam regulações sociais de gênero e relações de poder. Os textos apresentados por Gaitán e González (2023) oferecem uma crítica ao viés “adultocêntrico” dos estudos de gênero e sexualidade e constituem uma admirável contribuição aos estudos sobre infância e juventude na América Latina.
O Número 39 contém trabalhos inovadores, construídos a partir de diversos contextos empíricos latino-americanos. Ademais, para além dos debates específicos promovidos por cada artigo original publicado, é interessante destacar que, tanto nos dossiês publicados como na seção reservada aos artigos recebidos em fluxo contínuo, podem ser encontradas contribuições que abordam direta e indiretamente disputas recentes e/ou em andamento no campo político dos direitos sexuais, em diferentes países do continente.
No dossiê “Feminismo, gênero e sexualidade nas tecnologias digitais: perspectivas latino-americanas”, os organizadores mencionam esta questão em sua apresentação, ao destacarem que estudos críticos sobre o digital precisam levar em conta o modo como a internet tem produzido, reproduzido e reiterado desigualdades, forjando uma “sociedade plataformizada”, regida por algoritmos, onde novos modos de violência se tornaram possíveis, abrindo novos espaços para ameaças ao exercício dos direitos e da cidadania. Essas violências, conforme demonstram diferentes contribuições selecionadas para compor o dossiê, foram acirradas com o avanço da extrema-direita.
Em sua apresentação, Gaitán e González (2023) também fazem questão de destacar como as reflexões propostas no dossiê que organizam - “Regulaciones sociales del género, la sexualidad y la edad: reflexiones sobre relaciones, prácticas y discursos desde una perspectiva regional” - foram atravessadas pelas disputas políticas mais amplas em torno da gestão das infâncias e pelo modo como o tema tem sido capturado por movimentos conservadores e extremistas para a criação de pânicos morais/sexuais em diferentes regiões do continente.
Ainda nessa direção, na seção reservada aos artigos recebidos em fluxo contínuo, publicamos o texto de Rick Afonso-Rocha sobre o cis-hetero-bolsonarismo e sua relação com outros movimentos reacionários na América Latina. Na mesma seção, disponibilizamos artigos sobre temas diversos, que têm sido frequentes no quadro dos debates difundidos por Sexualidad, Salud y Sociedad (Carrara et al, 2018). No campo dos estudos sobre HIV-AIDS, contamos com artigos de Leonara Maria da Silva e Luís Augusto Vasconcelos da Silva. O Número 39 apresenta também importantes aportes aos estudos sobre a história das sexualidades e do ativismo LGBTQIA+ na América Latina, com o artigo de Marisa Miranda sobre a “normalização das estratégias de sedução promovidas pela eugenia tardia” na Argentina; e o texto de Janice Aparecida de Souza e Alessandra Sampaio Chacham sobre confraria estabelecida por mulheres lésbicas em Belo Horizonte, no Brasil, no final dos anos 70.
Ainda na seção de artigos, disponibilizamos mais uma contribuição significativa aos estudos sobre práticas e perspectivas de cuidado, com a publicação do texto de Cintia Hasic sobre experiências de paternidade de homens jovens. Os trabalhos de Pedro Neiva em coautoria com Maria Jacyana Araújo e de João Vitor Saldanha de Oliveira em coautoria com Vanessa Leite, por sua vez, apresentam aportes importantes ao campo dos estudos sobre juventude, sexualidade e relações amorosas. Por fim, contamos com três análises feitas na interface dos estudos sobre saúde, biomedicalização e dispositivos de gênero e sexualidade. Nesse universo, temos o artigo de Fabíola Rohden sobre cirurgias estéticas íntimas e padrões corporais idealizados; o texto de Lúcio Costa Girotto, Flavia do Bonsucesso Teixeira, Stelio Marras, Richard Miskolci e Pedro Paulo Gomes Pereira sobre o lugar do timbre de voz em experiências de generificação vivenciadas por pessoas transexuais e travestis a partir do contato com práticas e tecnologias biomédicas; e a contribuição de Joana Castañon ao debate acerca “dos sentidos biomédicos sobre o corpo”, a partir de análise sobre a perspectiva de mulheres feministas a respeito do uso da pílula anticoncepcional e da decisão por suprimir a menstruação.
Composto por uma expressiva presença de reflexões relacionadas a disputas políticas recentes ou em voga na América Latina, o Número 39 de Sexualidad, Salud y Sociedad demonstra como as investigações no campo de estudos sobre gênero e sexualidade no continente vêm sendo atravessadas pelo fortalecimento do conservadorismo e da extrema-direita nos últimos anos. O novo número oferece ainda a possibilidade de conhecer os muitos caminhos percorridos por pesquisadores da área para lidar com esses atravessamentos, construindo densas análises sobre o cenário contemporâneo.
Desde sua construção, a proposta editorial de Sexualidad, Salud y Sociedad tem por objetivo promover a interlocução entre pesquisadores dos diferentes países da América Latina. Em um contexto político regional que tem influído na definição de desafios compartilhados, a viabilização dessa interlocução ganha renovada importância. Os dossiês e artigos publicados no Número 39 são mais um passo em nossa proposta de possibilitar essas trocas.
Referências bibliográficas
- CARRARA, Sérgio. 2021. “Editorial. Mudanças e continuidades na reflexão sobre gênero, sexualidade, raça e classe na América Latina”. Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro), n. 37, pp.5-9.
- ________________. ZILLI, Bruno; MORA, Cláudia; AGUIÃO, Silvia. 2018. “Editorial. Uma perspectiva para os dez anos de Sexualidade, Saúde e Sociedade - Revista Latino-Americana: atualizando problemáticas caras à região”. Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 30/dez, pp.10-14.
- GAITÁN, Ana Cecilia; GONZÁLEZ, Pilar Anastasía. 2023. “Presentación: Regulaciones sociales del género, la sexualidad y la edad: reflexiones sobre políticas, prácticas y discursos desde una perspectiva regional”. Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro), n. 39, pp.1-9.
- SÍVORI, Horacio Federico; PARREIRAS, Carolina; PEÑA, Paz. 2023. “Apresentação: Por que perspectivas latino-americanas sobre feminismo, gênero e sexualidade em tecnologias digitais”. Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro), n. 39, pp. 1-16.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023