Open-access “Mulher, você não precisa disso”: discursos em embate sobre a pílula e a supressão da menstruação

“Woman, you don't need this”: Negotiation of discourses on the pill and menstrual suppression

“Mujer, no necesitas esto”: Discursos en conflicto sobre la píldora y la supresión de la menstruación

Resumo

O discurso médico do século XIX listava uma série de desordens físicas e mentais associadas aos órgãos reprodutivos das mulheres (Rohden, 2009). Um fenômeno corporal até hoje frequentemente construído como patológico é a menstruação (Vieira, 2002), para o qual existe uma ferramenta médica de intervenção amplamente empregada: a pílula anticoncepcional. Como o período menstrual é muitas vezes visto como um problema, sua interrupção por meio da ingestão contínua da pílula é recorrentemente propagada como a solução (Kissling, 2013). À luz dessas ideias, analiso como duas mulheres autoidentificadas como feministas negociam significados sobre a pílula, a menstruação e a supressão menstrual em entrevistas orais semiestruturadas. O objetivo do trabalho é investigar como sentidos biomédicos sobre o corpo feminino são discursivamente reificados, desafiados e corporificados.

Palavras-chave supressão da menstruação; pílula anticoncepcional; medicalização; hormônios; natureza

Abstract

Nineteenth century’s medical discourse listed a series of physical and mental disorders caused by women’s reproductive organs (Rohden, 2009). A bodily function that until nowadays has been frequently constructed as pathological is menstruation (Vieira, 2002), for which there is a widely employed medical tool of intervention: the contraceptive pill. As the period is often seen as a problem, its suppression through the uninterrupted use of the pill is recurrently advertised as the solution (Kissling, 2013). In light of these ideas, I analyse how two self-identified feminist women negotiate meanings around the pill, menstruation and menstrual suppression in semi-structured oral interviews. The purpose of the work is to investigate how biomedical meanings of the female body are discursively reified, challenged and embodied.

Key words menstrual suppression; contraceptive pill; medicalisation; hormones; nature

Resumen

El discurso médico del siglo XIX enumeraba una serie de trastornos físicos y mentales asociados a los órganos reproductivos de la mujer (Rohden, 2009). Un fenómeno corporal que con frecuencia se interpreta como patológico es la menstruación (Vieira, 2002), para la cual existe una herramienta médica intervencionista ampliamente utilizada: la píldora anticonceptiva. Como el período menstrual a menudo se ve como un problema, su interrupción a través de la toma continua de la píldora se propaga recurrentemente como la solución (Kissling, 2013). A la luz de estas ideas, analizo cómo dos mujeres autoidentificadas como feministas negocian significados sobre la píldora, la menstruación y la supresión menstrual en entrevistas orales semiestructuradas. El objetivo de este trabajo es investigar cómo los significados biomédicos sobre el cuerpo femenino son materializados, cuestionados y encarnados discursivamente.

Palabras clave supresión menstrual; píldora anticonceptiva; medicalización; hormonas; naturaleza

Introdução

Na história da medicalização dos corpos das mulheres, a menstruação tem papel central, tendo sido considerada uma moléstia fisiológica no século XIX (Vieira, 2002) e associada a “desordens” tais como: ninfomania, cleptomania, neurastenia, histeria, epilepsia, prostituição, mania alucinatória, impulsões homicidas e suicidas (Rohden, 2009). Grande parte dos “distúrbios femininos” estão historicamente associados ao útero, aos ovários e, mais recentemente, aos hormônios sexuais (Foucault, 1985; Rohden, 2009; Vieira, 2002). A pretensão de “curar” tais males foi um dos motivos que levaram à consolidação da prática de intervenções biomédicas sistemáticas nos corpos das mulheres, história que se confunde com a história da consolidação da medicina como saber científico no século XIX (Rohden, 2009).

O sangue menstrual, por sua vez, foi extensivamente descrito em livros médicos como um produto inútil e indesejado em um processo reprodutivo defeituoso - ou seja, em que não havia ocorrido fecundação (Martin, 2001). Dessa forma, os discursos acerca da menstruação contribuíram para a construção da ideia de “natureza feminina”1, que pode ser caracterizada pela vinculação entre o corpo dito feminino, a função reprodutora e a patologia (cf. Foucault, 1985; Vieira, 2002; Rohden, 2009), bem como pela oposição entre os sexos masculino e feminino criada após o século XVII (cf. Laqueur, 2003). No Brasil, a literatura sobre menstruação e gênero aponta para o engendramento entre os significados negociados em torno da menstruação e a construção da feminilidade (cf. Sardenberg, 1994; Fáveri & Venson, 2007).

Por outro lado, diversos discursos sobre a pílula anticoncepcional, concebida nos anos 50 nos EUA, constroem-se em oposição à associação entre mulher e reprodução. Apesar de sua invenção e promoção terem sido marcadas não apenas pelo interesse na liberação de (algumas) mulheres, mas também por estímulos nos campos da eugenia e do controle populacional (cf. Oudshoorn, 2005; Pedro, 2010), sua praticidade e acessibilidade estabeleceu-a como um marco na luta contra a naturalização do corpo feminino e a associação entre mulheres e reprodução. Entretanto, nas duas últimas décadas, aproximadamente, pode-se notar a insurgência de discursos sobre a pílula que não enfocam sua função contraceptiva, mas que colocam em primeiro plano seu potencial amenizador ou mesmo supressor dos efeitos menstruais. Tais discursos biomédicos e/ou midiáticos participam de embates com os cada vez mais frequentes discursos virtuais de mulheres que criticam as sistemáticas intervenções bioquímicas impostas a seus corpos.

Tendo acompanhado discussões na Internet sobre o uso de coletores menstruais de 2014-2018 (durante a pesquisa para meu TCC e, em seguida, para o mestrado), fui frequentemente atravessada pela questão da contracepção hormonal vista sob uma ótica feminista. Dessa forma, o tema atravessou minha dissertação transversalmente, especialmente em sua relação com o sangue menstrual e a menstruação. Baseando-me nessa pesquisa prévia, analiso neste artigo2 discursos produzidos em entrevistas orais semiestruturadas com duas mulheres autoidentificadas como feministas, buscando entender as disputas de significados que se dão em suas construções de inteligibilidades sobre a pílula e a interrupção da menstruação, bem como investigar como sentidos biomédicos/midiáticos sobre o corpo feminino são discursivamente negociados.

Afastando-me de uma visão de linguagem referencialista - ou seja, aquela que pressupõe uma relação linear entre o mundo real, a ideia e o nome (Fabrício, 2016) -, alinho-me à ideia foucaultiana de discurso como acontecimento. Segundo o autor, “o discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos” (Foucault, 2014: 46). Em outras palavras, o discurso não seria um reprodutor, mas um criador de realidades. Portanto, as narrativas aqui analisadas não são entendidas como “exemplares” das questões apresentadas, mas como co-construtoras de tais questões/reflexões.

O principal elemento que orienta a análise é o olhar sobre as dicotomias projetadas ou desafiadas pelas participantes na disputa de sentidos e de regimes de verdade3 relacionados à menstruação, ao gênero e ao corpo, tais como: natureza/cultura, atraso/evolução, racionalidade/irracionalidade, bem como sobre as categorias emergentes em seus discursos, como feminilidade, (hetero)sexualidade, docilidade e utilidade.

A entrevista em questão teve lugar na casa de Helena no dia 27/11/2017, no centro do Rio de Janeiro, por volta das 12h30. Quando cheguei ao local, Helena (42 anos, professora universitária) me apresentou a Luiza (24 anos, estudante em sua segunda graduação), sua namorada, e me perguntou se ela também poderia participar da conversa. Assim, realizamos uma entrevista conjunta, que teve duração de 1h24min.4 As perguntas a partir das quais as falas se destacam neste artigo foram produzidas com o objetivo de abranger questões sobre a relação das entrevistadas com o período menstrual e com o uso da pílula anticoncepcional.

A pílula como uma droga de estilo de vida

Os discursos biomédicos e midiáticos apresentam a tendência a promover o uso da pílula com base na exposição de seus supostos benefícios secundários, como a diminuição da acne, da ansiedade, da irritabilidade, de inchaço e de dores de cabeça, além da regulação e diminuição (ou, mesmo, da supressão) da intensidade do fluxo menstrual (Nucci, 2012; Ramalho, 2013; Woods, 2013). Primeira droga na história da medicina a ser direcionada a pessoas saudáveis (Oudshoorn, 2005), a pílula anticoncepcional é frequentemente promovida como uma droga de “estilo de vida”, ou seja, um medicamento cujo “objetivo não é, primordialmente, o tratamento de uma doença, mas o aperfeiçoamento de determinadas performances ou aparências corporais” (Nucci, 2012: 128).

Nucci (2012), com base na análise de comerciais televisivos estadunidenses, e Klöppel (2021), em um estudo das práticas da ginecologia hegemônica brasileira, sugerem que os riscos associados ao uso da pílula são frequentemente colocados em segundo plano e seus benefícios “extraconceptivos” para o “estilo de vida da mulher moderna” ressaltados, “fazendo com que muitas vezes as pílulas se assemelhem mais a produtos de beleza e itens da moda do que a remédios” (Nucci, 2012: 137). Woods (2013) chega a conclusão similar e aponta para a marcante construção midiática das consumidoras alvo: mulheres “brancas, jovens, solteiras e heterossexuais [...]” (Woods, 2013: 275, tradução minha5).

Por um lado, a pílula pode trazer benefícios incontestáveis para mulheres que vivem um período menstrual incômodo e/ou doloroso (Rodrigues, 2020). Por outro, a escolha da amenização dos “sintomas” menstruais como destaque na construção de narrativas positivas sobre as pílulas parece ecoar sentidos patologizantes da menstruação (cf. Vieira, 2002; Rohden, 2009), delimitando-a a um problema em busca de uma solução médica(mentosa).

Na contramão de tais discursos, os posts da página “Um Veneno Chamado Anticoncepcional” e dos grupos “Adeus Hormônios: Contracepção não hormonal”, “Vítimas de Anticoncepcionais. Unidas a Favor da Vida” e “DIU (de cobre) tudo sobre todos os DIU” apontam para uma resistência aos discursos biomédicos e midiáticos que amenizam os riscos associados ao uso da pílula e prescrevem o medicamento de forma indiscriminada (Leal & Bakker, 2017; Santos, 2018; Pissolito, 2021). Segundo as autoras, nesses ambientes virtuais, os contraceptivos hormonais são frequentemente referidos como venenos e a troca para outros métodos contraceptivos como uma libertação. Dessa forma, os sentidos de liberdade frequentemente acoplados ao uso da pílula (cf. Leal & Bakker, 2017) são questionados.

Nessas redes, pode-se identificar o que Leal e Bakker (2017) denominam “ativismo antipílula” e o que algumas mulheres entrevistadas por Rodrigues (2020) qualificam como “ditadura antipílula” ou “nova moral do não use” (Ibid., 134). Tal movimento baseia-se na defesa de um corpo natural, livre de intervenções bioquímicas. Ainda que não possa ser considerado um movimento social, recusar o uso da pílula “faz deslocar uma série de concepções sociais que circundam e se encontram emaranhadas em corpos de mulheres” (Rodrigues, 2020: 48).

Portanto, em contraste com o tradicional discurso feminista de desnaturalização do corpo, surgem discursos em prol de uma naturalização, os quais “emerge[m] como resistência ao regime de saber-poder da medicalização” (Leal & Bakker, 2017: 11). O discurso medicalizante sobre o corpo feminino é também frequentemente construído com base na ideia de manutenção do “natural”, sendo o caso da supressão hormonal da menstruação particularmente representativo de como a noção de natureza pode ser flexibilizada na defesa de determinados interesses, como veremos a seguir.

A pílula como inibidora da menstruação

O mais famoso tratado sobre o tema da interrupção medicamentosa do período menstrual é provavelmente o livro Menstruação, a sangria inútil, escrito pelo ginecologista Elsimar Coutinho.

Manica (2011) descreve a linha argumentativa de que o médico faz uso para defender a interrupção hormonal da menstruação, a qual tem como postulado central a ideia de que menstruar não é natural. Segundo Coutinho (1996 apud Manica, 2011), por estar constantemente grávida ou amamentando e tendo uma expectativa de vida muito menor do que a atual, a mulher primata raramente experienciava a menstruação. Assim, o estilo de vida das mulheres modernas teria interferido na função principal da sexualidade (a reprodução) e criado uma sangria inútil, fruto da intervenção da sociedade sobre a natureza. Como afirma Manica, Coutinho “manipula as distinções entre natureza e cultura a fim de justificar os diversos contraceptivos que desenvolveu ao longo de sua trajetória” (2011: 224) e posiciona os cientistas não como interventores na ordem natural, mas como aqueles que buscam recuperar os desejáveis estados de natureza. Dessa forma, o médico constrói um referencial teórico que parece armá-lo contra possíveis críticas à artificialidade e ao intervencionismo dessa prática de interrupção.

É interessante observar que as ideias de Coutinho só poderiam fazer sentido em uma lógica de distinção entre natureza e cultura, a qual não raro é apropriada por discursos feministas e/ou de mulheres. No caso das mulheres que se posicionam contra a pílula,6 um dos principais argumentos é o de que a força mercadológica das indústrias teria como base a “desnaturalização” da mulher por meio de produtos como: protetores diários, que mascarariam o cheiro natural dos corrimentos vaginais; aparelhos de depilação, que impediriam o crescimento natural dos pelos; maquiagens, que esconderiam nossos traços naturais; contraceptivos hormonais, que alterariam a libido e a intensidade e frequência dos sangramentos menstruais; entre outras mercadorias. Assim, na construção de discursos que buscam questionar o status quo e a medicalização sistemática do corpo da mulher, não raro faz-se uso da mesma lógica de valorização do natural que sustenta trabalhos como o de Coutinho. Isso não significa que as ideologias com base nas quais prosperam as indústrias farmacêutica, da beleza e de higiene feminina não devam ser problematizadas, mas que seria necessário evitar a armadilha da legitimação de paradigmas que, caso sejam reificados, podem trabalhar contrariamente a nossos interesses.

Em contraste com as proposições de Coutinho, no início do trecho abaixo, Helena evoca um eu passado que recorre ao uso da pílula com o objetivo de suprimir a menstruação não para aproximar-se de um estado natural idílico, mas para distinguir-se da “primitividade” indesejável dos animais:7

Helena: E... e também muito- martelava muito na minha cabeça, acho que eu não tinha muita informação... essa coisa do... (risos) sei lá né, cara, parece um pouco... robô, inteligência artificial. Essa coisa martelava na minha cabeça: Nós não precisamos ser tão primitivos. Como os animais. E- meio que hoje em dia eu penso outra coisa né, sou pró-animalismo, me sinto, né, dentro do reino animal, porque é isso mesmo que nós somos, reino animal, até inferior. Como se os animais fossem inferiores e tal [...]. Eu sou inferior porque eu estou menstruando. Olha isso né. Que loucura is- e aí eu fiquei muitos anos inclusive tomando anticoncepcional direto pra não menstruar. De tanto que eu não queria que isso acontecesse. Depois com informação opa, peraí. Hormônio é uma coisa muito séria. Então... hoje eu diria assim, só se eu realmente tivesse um problema... Só se eu tivesse um... uma rejeição muito muito grande do meu corpo, quisesse fazer uma transição homem trans... aí valeria a pena eu me arriscar com hormônio, mas não por isso.

As construções “martelava muito na minha cabeça”, “acho que eu não tinha muita informação” e “parece um pouco... robô, inteligência artificial” posiciona a ideia “Nós não precisamos ser tão primitivos. Como os animais.” como uma noção imposta, absorvida a partir de um input externo repetitivo. A ideia do menstruar como uma experiência que posiciona o sujeito no patamar inferior da natureza, onde também estariam as fêmeas não humanas, aponta para sentidos associados à naturalização inferiorizante das experiências do corpo dito feminino (Vieira, 2002; Rohden, 2009). Ao atribuir a antiga adesão da entrevistada à ideia da inferioridade primitiva da menstruação à influência de uma força exterior artificial, a fala de Helena coloca essa noção no âmbito dos discursos hegemônicos sobre o corpo da mulher, ou seja, aqueles que “martela[m] muito na [nossa] cabeça”. Em contraste, as frases “hoje em dia eu penso outra coisa” e “depois com informação ‘opa, peraí’” sugerem um ponto de inflexão no pensamento de Helena, que é classificado não mais como decorrente da repetição, mas da “informação”.

Esse movimento de tomada de consciência assemelha-se ao identificado por Leal e Bakker (2017) e Santos (2018), em que as mulheres posicionam seus discursos como alternativos em relação a um discurso biomédico hegemônico. As frases “hormônio é uma coisa muito séria” e “aí valeria a pena eu me arriscar com hormônio” (grifos meus) também ecoam discursos de posts dos ambientes virtuais “antipílula” analisados pelas autoras citadas ao apontarem para a construção dos hormônios sintéticos presentes na pílula como venenos a serem ingeridos apenas em último caso. O trecho da entrevista com Helena indica uma passagem do entendimento da pílula como uma forma de dissociar-se da primitividade da menstruação - e, por extensão, vincular-se à civilidade do corpo não menstruante - para um movimento de questionamento da suposta inferioridade da natureza e da não civilidade acoplada ao corpo feminino que sangra. Portanto, pode-se dizer que tanto o discurso de Helena quanto o de Coutinho derivam de uma rejeição à naturalização inferiorizante do corpo da mulher. Todavia, ao passo que o segundo aponta para um desejo de desvinculação dessa inferioridade, assim a reificando, o primeiro indica a problematização da inferioridade em si, deslocando-a da posição de paradigma e relocalizando-a no âmbito das construções sociais da medicina.

É interessante apontar que, no contexto de elaboração da primeira pílula anticoncepcional, foi explicitamente pedido aos cientistas que não interferissem no período menstrual “natural” das mulheres, sob receio de que a intervenção não fosse bem aceita pela população. Essa orientação levou os pesquisadores a ajustarem o intervalo na ingestão do medicamento de forma a manter os dias de duração do sangramento considerados como o padrão (Oudshoorn, 2005). Posteriormente, com o advento das pílulas anticoncepcionais de uso contínuo, o padrão de normalidade menstrual anteriormente estabelecido seria um empecilho para o sucesso dos medicamentos que suprimem os sangramentos, o que parece pode haver contribuído para a emergência de discursos de desnaturalização da menstruação.

Isso não significa, entretanto, que a produção de tais discursos seja intencional e direcionada ao cumprimento de propósitos mercadológicos - como afirma Foucault (1985: 95), “deve-se conceber o discurso como uma série de segmentos descontínuos, cuja função tática não é uniforme nem estável”. Todavia, não se pode ignorar a centralidade dos atores dos âmbitos biomédico e farmacêutico no jogo de construção de significados sobre a natureza da menstruação. Dessa forma, discursos médicos como o de Coutinho (Manica, 2011) e farmacêuticos/publicitários como os analisados em Ramalho (2015) e Kissling (2013), por exemplo, apontam para uma flexibilização da noção do que é normal ou natural. Tal construção da vivência da menstruação como algo já superado e, portanto, fora do âmbito da normalidade pode ser percebida no discurso reportado por Luiza:

Luiza: Sabe, acho um absurdo, conheço pessoas que não menstruam mesmo, que escolheram, ai, não, mas Luiza as coisas tão evoluídas [estala os dedos algumas vezes], sabe, o mundo evoluiu, a gente não precisa mais disso não. Consigo imaginar um ginecologista falando isso tranquilamente, existe mesmo, a gente sabe.

Helena: Então, era a minha cabeça, a gente não precisa mais disso, depois que eu fui até ver que existe uma escola forte de médicos, coincidentemente... muitos homens, né. Ginecologistas que falam que mulheres não precisam mais...

A fala de Luiza projeta uma ordem de evolução cuja dimensão temporal é enfatizada pelo rápido estalar de dedos, que evoca a ideia de passagem de tempo. O discurso reportado pela participante constrói uma relação oposicional entre os elementos ciência-evolução-livre escolha versus ignorância-atraso-submissão à natureza, assim ironicamente posicionando aquelas que escolhem continuar menstruando fora do âmbito da “livre escolha”8. O emprego de “a gente” evoca a noção de comunidade, uma comunidade de mulheres evoluídas, que podem livrar-se do “fardo” da menstruação. A forma irônica como Luiza produz esse discurso (seu tom de voz, o estalar de dedos, a repetição de “evoluídas” e “evoluiu”) aponta para a desnaturalização do paradigma evolucionista projetado pela fala em questão.

Como vimos anteriormente, a partir do século XIX, a menstruação passa a ser interpretada por um viés medicalizante, sendo entendida por vários fisiologistas como uma moléstia fisiológica (Vieira, 2002). A evocação de um paradigma evolucionista para justificar a ingestão ininterrupta de hormônios aponta para tais discursos medicalizantes e normalizantes sobre o corpo feminino, já que sugere o entendimento da pílula de uso contínuo como uma solução médica contemporânea para um problema antigo.

Assim, enquanto a voz médica evocada por Luiza projeta uma ideia de futuro sobre o presente ao apontar para o uso ininterrupto de hormônios como uma evolução, o discurso de Coutinho projeta uma noção de passado sobre o presente ao classificar a intervenção hormonal como uma forma de neutralizar as mudanças longitudinais que afetaram o número de gestações das mulheres. Portanto, pode-se dizer que ambas as temporalidades projetadas, apesar de opostas, realizam um trabalho de circunscrição da escolha da interrupção hormonal da menstruação em um paradigma de confiabilidade científica.

A posição privilegiada dos médicos (homens) nas disputas de sentidos sobre o corpo feminino é também abordada na continuação do diálogo entre Helena e Luiza:

Luiza: A Vitória, que fazia curso comigo, não, a gente não precisa mais disso; Vitória, mas-; Não, já tá tudo comprovado, o meu ginecologista disse, ele me mostrou várias coisas, não preciso mais disso...

Helena: O meu gine- é, a palavra da ciência. Aí...

Luiza: É maravilhoso, você não sente cólica... aí eu- você não tem como- cê pode falar qualquer coisa, você não é médico, você... e mesmo se fosse... é um homem falando...

Helena: Ela já sacralizou a ciência, já tem várias coisas aí por trás, sacralizou a ciência, a autoridade do médico de falar, entendeu. O médico sabe muito mais do seu corpo do que você.

Luiza: Eu acho que mesmo se eu fosse uma médica não ia adiantar. É impressionante. Eu acho que mesmo se eu fosse uma médica não ia adiantar porque é ridículo um homem falando né, sobre a menstruação, mas eu acho que até nisso, pelo machismo, dariam mais valor a ele.

Helena: Como é ridículo falar de aborto, qualquer coisa, né. Mas é isso que eles vêm fazendo há algumas centenas de anos, né. O Estado, a Igreja e a Ciência falando do corpo da mulher e controlando o corpo da mulher.

A escolha da palavra “comprovado” e a ênfase em “várias coisas” - possivelmente, estudos acadêmicos -, bem como a evocação da autoridade do ginecologista, sugerem uma visão monolítica de circulação do discurso científico (Briggs, 2007), com base na qual interpretam-se as descobertas da ciência como blocos que viajam intactos do laboratório para os artigos, dos artigos para o consultório e do consultório para os corpos das pacientes. Assim, tais falas apontam para um alinhamento de Vitória (que parece ser evocada aqui como um arquétipo de demais conhecidas que optaram pela interrupção) à posição de sujeito autônomo e moderno que certos discursos biomédicos/farmacêuticos projetam para as mulheres (Kissling, 2013).

Em consonância com o discurso de Luiza, as falas de Helena indicam um questionamento do status paradigmático adquirido pela medicina (na qual o médico teria papel central como autoridade inquestionável) além de apontarem para a rejeição da posição de sujeito ignorante que é iluminado por essa autoridade. Esse discurso também sugere uma rejeição do modelo binário que projeta a mulher no âmbito da experiência particular e desinformada e que, simultaneamente, localiza os médicos no domínio do saber verdadeiro e generalizante. Cabe aqui lembrar que a medicalização do corpo feminino teve como base a naturalização do corpo da mulher e a construção de sua intrínseca degeneração, desqualificando os saberes produzidos sobre seus próprios corpos (Vieira, 2002).

Assim, ao longo da construção colaborativa de sentidos que se dá entre Luiza e Helena nesse trecho, ambas produzem discursos que localizam os entendimentos hegemônicos sobre a ciência em um solo menos estável do que o terreno sedimentado sugerido pelo discurso atribuído a Vitória. Na última fala de Helena, a produção de saberes científicos (além de religiosos e estatais) sobre o corpo feminino é situada historicamente, evidenciando o efeito diacrônico de “sacraliz[ação]” produzido sobre as construções sincrônicas do discurso médico. Uma dessas construções é a ideia de que a menstruação seria dispensável, a qual, ao ser repetidamente proferida (“martelada”) por representantes da medicina, pode adquirir status de verdade e incentivar uma adequação da conduta dos sujeitos aos sentidos de “normalidade”/”modernidade” alinhavados à escolha pela supressão hormonal da menstruação. Todavia, Helena e Luiza produzem discursos que desafiam esses sentidos, assim rejeitando as posições de sujeito que as narrativas médicas frequentemente projetam sobre as mulheres.

(Auto)disciplinando o corpo que sangra

Assim como os discursos médicos e midiáticos, que ressaltam os benefícios “extraconceptivos” da pílula para a “mulher moderna” (Nucci, 2012; Ramalho, 2013; Woods, 2013; Leal & Bakker, 2017), as propagandas de contraceptivos hormonais de uso contínuo também parecem apoiar-se em sentidos pós feministas neoliberais na construção de subjetividades para suas potenciais usuárias (Kissling, 2013). Segundo Gill (2007), a mídia atual produz a feminilidade com base em uma “sensibilidade pós feminista” intrinsecamente ligada a pressupostos neoliberais, promovendo ideias de escolha, empoderamento, individualismo e autodisciplina na produção do sujeito “mulher moderna”.9

Dessa maneira, ao mesmo tempo em que rejeitam o paradigma de objetificação feminina que apassiva as mulheres, tais discursos produzem uma subjetificação indissociavelmente relacionada a um modelo de escolha que (hetero)sexualiza os sujeitos femininos, assim promovendo a internalização do olhar masculino (male gaze) pelas mulheres (Gill, 2007). Para a autora, as escolhas femininas relacionadas ao uso de produtos, ao comportamento sexual e à intervenção corporal (cirúrgica ou não) são localizadas no âmbito da autodeterminação e do “agrado a si mesma”, assim despolitizando as atitudes das mulheres e posicionando os tempos de submissão feminina em um passado distante. Por fim, os discursos midiáticos também promoveriam a intensificação de uma autodisciplina direcionada à manutenção de uma feminilidade milimetricamente planejada e comodificada, porém aparentemente despreocupada com questões estéticas.

Para Gunn e Vavrus (2010) e Kissling (2013), os discursos médico e farmacêutico em favor da contracepção supressora da menstruação constroem-se com base em valores pós feministas, o que tornaria a proposta de intensificação da intervenção medicamentosa no período menstrual mais palatável em tempos de defesa da independência feminina. Tais discursos (principalmente, os da indústria farmacêutica), construiriam um sujeito feminino que exerce sua escolha individual ao optar por melhorar seu estilo de vida por meio da eliminação dos “inconvenientes” associados à menstruação. A produção de um corpo que não sente, não sangra e não transborda de seus limites estaria de acordo com a lógica neoliberal de governo dos corpos, a qual convocaria as mulheres a realizarem um trabalho de autovigilância e autodisciplina corporal fomentado pelo consumo de determinados produtos. Assim como afirma Foucault a respeito do sexo, pode-se dizer que o corpo sexualizado da mulher “dá lugar a vigilâncias infinitesimais, a controles constantes, a ordenações espaciais de estrema [sic] meticulosidade, a exames médicos ou psicológicos infinitos, a todo um micropoder sobre o corpo” (1985: 136-137). A interiorização dessa vigilância pelos sujeitos seria essencial para a produção de corpos ajustados à lógica capitalista (cf. Siebert, 1995).

A incompetência na realização do trabalho de autodisciplina tornaria as transgressoras passíveis de sofrer uma espécie de morte - não a morte literal, como ameaçava o poder soberano descrito por Foucault no primeiro volume de sua História da sexualidade, mas uma “morte social ou simbólica” (Gunn & Vavrus, 2010: 118). Como afirma Kissling (2013: 500): “A espontaneidade da menstruação, com seu potencial para vazamentos, inchaço indesejado e emoções aguçadas, prejudicaria a autoapresentação como um sujeito racional e autorregulado, o sujeito neoliberal ideal”. Como vimos anteriormente, os livros médicos dos anos 1980 analisados por Emily Martin apontavam para um entendimento do sangramento menstrual como um produto indesejável e incontrolável resultante de um processo produtivo ineficiente (Martin, 2001). Assim, os discursos em defesa da supressão da menstruação podem contribuir para a produção de um corpo feminino dócil, funcional, produtivo e “pasteurizado” (Leal & Bakker, 2017: 13), sempre disponível laboral e sexualmente. Como aponta Foucault (1985), o desenvolvimento do capitalismo exigiu a intensificação da utilidade e da docilidade dos corpos. A fala de Helena aponta para tais sentidos:

Helena: Não, porque... existe... uma escola de médicos misóginos, né, que dizem assim mulher, você não precisa disso. Ou seja, esteja sempre pronta, né? Pra ter uma relação sexual comigo, que você não vai engravidar... pra eu não ficar responsável, né? No limite, eu acho que isso, essa coisa nojenta que você- que sai de dentro do seu corpo não precisa. Isso, né, hoje em dia a [minha] cabeça é completamente diferente, então existe uma escola de médico muito forte falando pras mulheres isso. Gente, tomem hormônio direto, não menstrue e tal, não sei quê.

A fala “esteja sempre pronta [...] pra ter uma relação sexual comigo, que você não vai engravidar” aponta para a projeção de um olhar (hetero)sexualizante sobre as mulheres (Gill, 2007), bem como para a construção destas como sujeitos “úteis” no fomento da economia do prazer sexual masculino. Para o cumprimento dessa função de utilidade, as imprevisibilidades inerentes ao corpo dito feminino - como, por exemplo, a gravidez - devem ser pasteurizadas por meio da ingestão de um medicamento. Assim, ao passo que a história descreve o uso da função materna como um instrumento de controle das mulheres (Foucault, 1985; Vieira, 2002; Rohden, 2009), o discurso de Helena aponta para o entendimento da prescrição da pílula como uma técnica alternativa de sujeição, porém ainda relacionada à questão reprodutiva.

Já a fala “eu acho que isso, essa coisa nojenta que você- que sai de dentro do seu corpo não precisa” ecoa o sentido de inutilidade acoplado ao sangramento menstrual nos discursos médicos (Manica, 2011; Martin, 2001) e farmacêuticos (Kissling, 2013). A avaliação da menstruação com base em um paradigma de utilidade, aliada à referência ao sangue menstrual como “essa coisa nojenta [...] que sai de dentro do seu corpo”, pode apontar para a construção do corpo feminino ideal como útil e dócil, ou seja, “sempre pront[o]” para engajar-se em atividades sexuais ajustadas à heteronormatividade (Gill, 2007). No discurso de Helena, a excreção do sangue menstrual estaria em desacordo com uma performance de sexualidade adequada ao modelo heteronormativo (e, por extensão, ao modelo de feminilidade padrão), já que diminuiria a desejabilidade (“essa coisa nojenta”) e a controlabilidade (“esteja sempre pronta”) do corpo da mulher. A inevitabilidade e a espontaneidade da menstruação (Kissling, 2013), portanto, necessitariam ser evitadas por meio da (auto)disciplina dos corpos das mulheres, aqui representada pela ingestão contínua de hormônios sintéticos.

Gunn e Vavrus (2010) postulam que o estímulo à internalização de uma docilidade autodisciplinada estaria ancorado na construção pós feminista de um sujeito feminino empoderado por meio do consumo. Com base nas ideias foucaultianas de governo e de biopoder, as autoras propõem que a criação e a regulação de uma população de mulheres consumidoras autovigilantes de seus corpos menstruantes é realizada com base no “aparelho giniátrico” (gyniatric apparatus):

O aparelho giniátrico abrange elementos múltiplos: práticas que envolvem tudo desde a contracepção, o autoexame das mamas, as dietas [até] os hábitos relativos à higiene pessoal. [...] A lógica discursiva central que movimenta o aparelho giniátrico é a de uma patologia específica do corpo feminino. O aparelho giniátrico define o corpo feminino como um corpo fundamentalmente abjeto e regula a população desses corpos de diversas maneiras: mais recentemente, de formas especificamente ligadas à menstruação, utilizando o pós feminismo e sua retórica de autoempoderamento para cumprir essa tarefa. (Gunn & Vavrus, 2010: 113-114)10

Os discursos da indústria farmacêutica concernentes à supressão da menstruação fariam parte da construção de tal aparelho, “incrementando a utilidade sexual e econômica do corpo e, ao mesmo tempo, diminuindo sua força como poder político” (Kissling, 2013: 500). Entretanto, o funcionamento do aparelho giniátrico requer a escolha “livre” por uma performance docilizada de feminilidade, que seria efetivada por meio do uso de um contraceptivo inibidor de sangramentos feito com hormônios sintéticos. Pode-se notar que o trecho a seguir, retirado do livro de Elsimar Coutinho, aponta para tais sentidos: “A concepção de menstruação deste livro é talvez outro exemplo do ‘imutável’ na medicina sendo saudavelmente colocado no controle de mulheres individuais.” (Coutinho; Segal, 1999: xi apud Manica, 2011: 218)11. Nesse excerto, o “imutável” é subvertido e mulheres individuais tornam-se agentes de seu próprio corpo, ecoando discursos liberais de escolha individual. Dessa forma, apagam-se os múltiplos atores em jogo na proposta defendida pelo médico - como, por exemplo, a indústria farmacêutica e a posição de Coutinho como desenvolvedor de contraceptivos hormonais - em prol de uma suposta liberdade de escolha individual.

Considerações finais: discursos em disputa

Os sentidos, práticas e intervenções medicalizantes que circulam acerca da menstruação são abundantes, abrangendo desde o entendimento desta como uma moléstia ancorada na “essência” das mulheres (Vieira, 2002) até a defesa do uso da pílula para a amenização ou supressão total dos efeitos menstruais. Em sua última fala, Luiza se posiciona como um sujeito que escolhe resistir aos efeitos produzidos pelas indústrias nos corpos dos indivíduos por meio de pequenos atos de oposição ao que poderia ser considerada a ordem menstrual estabelecida:

Joana: [...] houve mudanças em como vocês encaram a menstruação depois do coletor?

Luiza: Ah, totalmente. Totalmente. É isso que- que eu falei assim, é... eu tinha... a dor era bem mais forte, é... a cólica que eu sentia era muito mais forte, eu pensava que eu menstruava muito mais, então... isso mudou totalmente assim, mudou a forma que eu trato- isso me fez assim, é... usar menos, agora quando eu sinto um pouco de cóli- falo não, segura um pouco mais, já não vou logo tomando remédio também né segura um pouco mais porque é todo um conjunto né, de coisas assim, poxa, já não tô usando essa coisa [absorvente], é... você fica meio anti... antimedicamentos mesmo, porque- não que eu seja antimedicamento, mas é uma coisa da farmácia também, da indústria, então cê quer ficar anti tudo isso assim [...].

O trecho aponta para um saber alternativo àqueles propagados pela indústria farmacêutica - frequentemente respaldada pelo discurso médico e pela mídia -, que projetam a mulher ideal com um sujeito racional, desejável e produtivo. Nesse sentido, escolher suportar um pouco da dor menstrual antes de recorrer a remédios, como sugere Luiza, pode apontar para a construção de um modelo de feminilidade alinhado a valores alternativos.

Por outro lado, desde minha conversa com as participantes, quando podia perceber que o tema do abandono da pílula vinha crescendo em destaque no Facebook, tem-se visto ganhar força relatos de mulheres que disputam os sentidos que Luiza e Helena acoplam ao medicamento. Para as mulheres que, apesar de já haverem obtido o que Helena chama de “informação”, seguem com o uso da pílula (devido à experiência de períodos menstruais extremamente dolorosos sem o remédio, entre outros motivos), a popularização dos questionamentos aos discursos biomédicos citados neste trabalho teria culminado em uma espécie de “ditadura antipílula” (Rodrigues, 2020), ou seja, na intensa repetição de discursos que associam o abandono da pílula a noções de “liberdade”, “autoconhecimento” e “empoderamento” (ironicamente, também invocadas em discursos hegemônicos sobre a indispensabilidade da pílula). Portanto, as disputas de significados acerca da menstruação e da pílula anticoncepcional ocorrem em diversas frentes, do macro (discursos biomédicos hegemônicos) ao micro (discursos divergentes que emergem em meios de tendência feminista).

Considerando que os significados acerca dos corpos são objetos de disputa entre diversos setores da sociedade (Louro, 2003), ao falarem sobre suas vivências corporais, as participantes deste trabalho entram no jogo de negociação dos sentidos que produzem o corpo feminino, que é perpassado por um silenciamento histórico (Perrot, 2003). Os relatos produzidos por essas mulheres contestam os sentidos neoliberais, pós feministas, (hetero)sexualizantes, docilizantes, disciplinarizantes e individualizantes que costumam permear a construção de inteligibilidades sobre a menstruação e sua interrupção e apontam um questionamento dos regimes de verdade que são, entre outros meios, linguisticamente construídos na reprodução de dicotomias como natureza/cultura, racionalidade/irracionalidade, atraso/evolução, conhecimento/ignorância.

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  • 1
    É importante destacar que a ideia de “natureza feminina” não era monolítica: “havia várias ‘naturezas femininas’: uma ‘natureza geral’, de acordo com a condição de sexo, e outras ‘naturezas’, de acordo com a situação social” (Vieira, 2002: 37).
  • 2
    O presente artigo é baseado em um capítulo de minha dissertação de mestrado, intitulada “Mulheres e menstruações: disputas de sentidos em discursos de mulheres feministas e usuárias do coletor menstrual”, defendida em 2018 no Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada (UFRJ) sob a orientação da Professora Fátima Lima. No trabalho original, cinco mulheres foram entrevistadas.
  • 3
    Segundo Foucault (2011: 85): “O problema será estudar os regimes de verdade, quer dizer, o tipo de relação que liga entre eles as manifestações de verdade com os seus procedimentos e os sujeitos que são seus operadores, testemunhas e, eventualmente, objetos. [Essa perspectiva implica] que se tome em consideração a multiplicidade dos regimes de verdade; que se tome em consideração o fato de que todos os regimes de verdade, sejam eles científicos ou não, comportam modos específicos de vincular, de qualquer modo constrangente, a manifestação do verdadeiro e o sujeito que o opera”. De acordo com Avelino (2008: 6): “Um regime de verdade define-se por uma relação de obrigação e de engajamento entre sujeito e verdade, pela junção entre a obrigação e o engajamento dos indivíduos com procedimentos de manifestação do verdadeiro. Para Foucault, é tão plausível falar em regime de verdade quanto falar em regime político, em regime penal etc.”
  • 4
    Os nomes foram modificados para preservar o anonimato das entrevistadas. O perfil das participantes foi traçado a partir de suas próprias descrições de si mesmas ao início e ao longo das entrevistas. Por questões de espaço, não será possível reproduzir neste artigo as falas completas em que essas autodescrições são realizadas, mas elas podem ser encontradas na dissertação de mestrado que deu origem a este trabalho. Como forma de valorizar as categorias que emergem em seus discursos sobre si mesmas, optei por não adicionar um questionário socioeconômico às entrevistas. Entretanto, em linhas gerais, pode-se dizer que as participantes deste artigo são mulheres que apresentam formação intelectual robusta (seja de origem acadêmica ou ativista) e habitam a Zona Central do Rio de Janeiro. Categorias de raça não foram evocadas pelas entrevistadas (direta ou indiretamente).
  • 5
    Todas as traduções de trechos originalmente em inglês foram livremente realizadas por mim. Para conferir maior fluidez ao texto, elas não serão sinalizadas daqui em diante.
  • 6
    Também pode-se encontrar a projeção dessa dicotomia nas pautas defendidas pela corrente estadunidense de ativismo menstrual “feminista-espiritualista”, que parte da “presunção de que o sangramento partilhado conecta todas as mulheres” (Bobel, 2010: 73) e em certas práticas de sociabilidade feminina da Wicca, que apostam na valorização do sangue menstrual como forma de “resgatar a sacralidade do feminino” (Cordovil, 2015: 432).
  • 7
    Convenções de transcrição: itálico: ênfase/discurso reportado direto; hífen: marca de corte abrupto; reticências entre colchetes: trechos cortados; palavras entre colchetes: meus comentários.
  • 8
    Para uma discussão de viés feminista sobre a problemática que subjaz a dicotomização do par constrangimento/livre escolha, ver Biroli (2016). Segundo a autora, “[e]m vez da oposição entre livre-escolha e constrangimentos, a questão é saber quais são os recursos, materiais e simbólicos, disponíveis no processo em que os indivíduos se constituem como sujeitos de suas vidas. O foco está no processo em que as preferências se constituem no momento em que as escolhas são feitas e nos desdobramentos dessas escolhas” (44, grifos da autora). Para um compêndio das críticas feministas ao conceito liberal de autonomia, ver Mattos (2012).
  • 9
    De acordo com Mattos (2012), a concepção de sujeito fundada no Iluminismo, ainda fortemente presente nos dias de hoje, é baseada nos ideais de racionalidade, individualidade, competitividade, autonomia, independência, controle das emoções e capacidade de pensamento lógico, entre outros.
  • 10
    É importante destacar que as autodisciplinas que mulheres vêm performando sobre seus corpos não estão limitadas ao consumo de produtos e medicamentos. Como afirma Santos (2018), a “libertação” hormonal está frequentemente associada à implementação do método sintotermal de contracepção, que envolve a performance de uma série de disciplinas corporais para a percepção da fertilidade - dentre estas, o olhar diário e atento ao aspecto/consistência do muco cervical e a medição matinal da temperatura corporal por via oral, vaginal ou retal. Portanto, ainda que se caminhe “na direção oposta da tendência de aprimoramento dos corpos através de dispositivos tecnológicos, [...] a função de tentar controlar as oscilações do corpo se mantém” (Santos, 2018: 120).
  • 11
    Trecho retirado do prefácio escrito pela pesquisadora estadunidense Kate Miller ao livro Is menstruation obsolete?, edição inglesa do livro Menstruação, a sangria inútil, citado em Manica (2011).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2019
  • Aceito
    06 Dez 2022
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