Open-access Apresentação: Por que perspectivas latino-americanas sobre feminismo, gênero e sexualidade em tecnologias digitais1

Resumo

Fruto de uma parceria entre o Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ) e a Rede Feminista de Pesquisas da Internet da Associação para o Progresso das Comunicações (FIRN/APC), este dossiê reúne trabalhos das Ciências Sociais e Humanas produzidos tanto no âmbito acadêmico quanto em instituições da sociedade civil no Brasil, Chile e México, no encontro entre as tecnologias digitais e questões de saúde das mulheres; violência contra as mulheres; viés racista na inteligência artificial; ativismo de mulheres negras e migrantes; religiosidade e auto expressão das mulheres; auto empreendedorismo masculino; e redes de homens da extrema direita. Nosso objetivo não é tanto abordar um objeto singular ou preencher uma ausência, mas, ao contrário, conectar interesses temáticos a partir de diversas abordagens teóricas, metodológicas e disciplinares em um diálogo aberto sobre as maneiras pelas quais realizamos pesquisas no, do, para e sobre o digital no que se refere a gênero, sexualidade e feminismos na América Latina.

Palavras-chave: gênero; sexualidade; raça; feminismo; digital; tecnologias da informação e comunicação; América Latina

Resumen

Fruto de una colaboración entre el Centro Latinoamericano en Sexualidad y Derechos Humanos (CLAM/IMS/UERJ) y la Red Feminista de Investigación de Internet de la Asociación para el Progreso de las Comunicaciones (FIRN/APC), este dossier reúne estudios en Ciencias Sociales y Humanas realizados por investigadores e investigadoras tanto académicas como de la sociedad civil de Brasil, Chile y México. Sus contribuciones originales abordan el encuentro de las tecnologías digitales con cuestiones de salud de la mujer; violencia contra las mujeres; racismo e inteligencia artificial; activismo de mujeres negras y migrantes; religión y autoexpresión femenina; y el rol de las masculinidades con relación al fenómeno contemporáneo del empredorismo de sí y a las redes militantes de ultraderecha. Nuestro objetivo no es tanto abordar un objeto singular o cubrir una ausencia sino, más bien, conectar intereses temáticos desde diversos enfoques teóricos, metodológicos y disciplinarios en un diálogo abierto sobre las formas en que hemos investigado en, de, para y sobre lo digital en relación con el género, la sexualidad y los feminismos en América Latina.

Palabras-clave: género; sexualidad; feminismo; digital; tecnologías de información y comunicación; América Latina

Abstract

Fruit of a partnership between the Latin American Center on Sexuality and Human Rights (CLAM/IMS/UERJ) and the Association of Progressive Communication’s Feminist Internet Research Network (FIRN/APC), this dossier gathers works in the Social Sciences and the Humanities produced by academic and civil society researchers from Brazil, Chile and Mexico. In their original or newly translated contributions, digital technologies meet issues of women’s health; violence against women; racist bias in artificial intelligence; Black and migrant women’s activism; women’s religiosity and self expression; male self-entrepreneurship; and ultra right-wing men’s networks. Our aim is not so much to address a singular object or to cover an absence but, rather, to connect thematic interests from diverse theoretical, methodological and disciplinary approaches in an open a dialog about the ways in which we have carried out research in, of, for and about the digital as it relates to gender, sexuality and feminisms in Latin America.

Keywords: gender; sexuality; race; feminism; digital; information and communication technologies; Latin America

Se você engravida, seu telefone geralmente fica sabendo antes que muitas das suas amigas. (Tolentino, 2022)

Generificar o digital2

Desde a década de 90, muito tem sido falado e estudado a respeito das tecnologias digitais (ou as tecnologias de informação e comunicação - as TICs) e, especificamente, da internet. Entre visões utópicas e distópicas, passando pela previsão de futuros tecnologicamente mediados, a internet, nos últimos 30 anos, ganhou um lugar de destaque em nossas vidas e também em nossas pesquisas, figurando inclusive (ainda que tardiamente) como campo temático, como atesta a grande área dos internet studies ou mesmo as antropologia e sociologia digitais.

Desde encontros online, comunicação pessoal entre membros da família, e uso de plataformas de redes sociais, até a elegibilidade para programas de bem-estar social, benefícios de seguridade social e acesso à assistência médica, as tecnologias digitais têm sido incorporadas (Hine, 2015) - no duplo sentido deste termo: assimiladas a processos sociais, e incorporadas na experiência diária dos indivíduos e em formas coletivas de agência social em praticamente todas as esferas da sociedade, e em todos os aspectos da vida humana.

Nesse processo, apesar de ter expandido o acesso à informação e ter permitido formas inéditas de expressão e de contato, criando possibilidades para projetos emancipatórios, o potencial da internet como vetor de democratização tem sido ofuscado pelas duras realidades da vigilância em massa, do domínio irrestrito de extremismos de diferentes tipos, e a propagação de movimentos neofascistas online.

A ideia, predominante nos períodos iniciais de uso da internet, de que ela criaria ambientes mais diversos e igualitários, foi logo substituída pela constatação de que as tecnologias digitais se configuram, em muitos contextos, como domínios violentos e, sobretudo, onde diferentes desigualdades são produzidas, reproduzidas e reiteradas. Com a pandemia de Covid-19 e suas consequências, estas discussões se tornaram ainda mais urgentes e centrais, na medida em que a emergência sanitária deixou claro o quanto a internet se tornou um artefato cultural (Hine, 2000) cotidiano, vivenciado de inúmeros modos pelos sujeitos, ou mesmo um produto necessário e desejado em contextos de desconexão ou de conexões feitas com pouca qualidade, de forma intermitente e desigual.

Em um contexto de “plataformização” da vida, no qual arquiteturas, ambientes e ferramentas integrados pertencentes a grandes empresas de tecnologia - as chamadas big techs - passaram a mediar praticamente todos os aspectos de nossa existência cotidiana, há pouca margem para escapar desta economia de dados de base algorítmica, que parte de uma lógica mais ampla do que Zuboff (2019) chamou de “capitalismo de vigilância”. As plataformas certamente inauguraram formas mais rápidas e eficazes de compartilhamento e, ao mesmo tempo, criaram a ilusão de que estamos sempre no controle de nossas ações online. No entanto, como mostram van Dijck, Poell e de Waal (2018), se faz necessário levar em consideração a arquitetura técnica das plataformas. Mas o entendimento do que seria uma “sociedade plataformizada3” vai além. Nesse cálculo, além dos dados e dos algoritmos, entra também um modelo de negócios em que a produção, coleção e administração de quantidades massivas de dados se tornam a moeda mais valiosa e o mecanismo central que mantém este “ecossistema de plataformas” em funcionamento.

Como resultado, longe de concretizar um ideal de democratização do conhecimento e de autogestão colaborativa das comunicações, o monopólio dos usos sociais da internet por grandes plataformas globais permitiu que empresas privadas levassem a exploração do trabalho e seus modelos de extração e acumulação de riqueza a outra dimensão. A economia algorítmica aprofundou desigualdades existentes e criou outras, além de ter embasado a modelagem de uma infraestrutura de vigilância e de controle. Como afirma Morozov (2011), a configuração adquirida pela internet, ao invés de ser uma aliada na promoção da democracia, tem o efeito oposto4, além de “empoderar os fortes e desempoderar os fracos” (p. 19).

A vigilância algorítmica por parte dos Estados e de empresas de tecnologia tem complicado o exercício dos direitos e da cidadania. Nesse contexto, a impunidade facilitada pela gestão de dados privada e mal regulada também tem permitido o aumento de formas públicas e íntimas de violência online, principalmente contra mulheres e crianças. Mulheres, minorias racializadas, dissidentes sexuais e outros sujeitos marginalizados são atingidos por tecnologias digitais de maneiras muitas vezes alienantes e fora de seu próprio controle, aprofundando vulnerabilidades, e assim renovando sua sujeição a várias formas de tutela patriarcal.

Um conjunto recente de estudos busca mostrar diferentes faces da discriminação algorítmica. Esses trabalhos partem de uma perspectiva interseccional e interessada nos modos como diversas categorias de diferença funcionam como empecilhos ao acesso e ao uso da internet e das tecnologias. Poderíamos pensar, como proposto por Noble (2018), que estamos defronte a um “technological redlining”, que reforça opressões e cria barreiras algorítmicas automatizadas de caráter tanto estrutural quanto infraestrutural.

Apesar desses paradoxos, indivíduos e grupos desfavorecidos ainda renovam seu desejo e compromisso com formas de usar a tecnologia de maneira a propiciar sua resistência. Foi o caso da recente “explosão feminista” e das mobilizações contra a discriminação racial, juntamente com as inúmeras redes populares que tornaram isso possível e contribuíram para sua expansão, com efeitos duradouros e de grande alcance, tangíveis em várias esferas. Portanto, como lidar, como pesquisadores(as) engajados(as), com os efeitos variados, ambíguos e, via de regra, desiguais da internet, nas e sobre as vidas das pessoas? Para trazer essa questão para perto de nós: o que podemos descobrir sobre a distribuição desses efeitos em termos de gênero, sexualidade, raça, etc., e como estamos lidando com esse desafio na América Latina?

Na chamada para este dossiê, optamos por falar de gênero, sexualidade e feminismo nas tecnologias digitais. Ao adotar uma perspectiva sociotécnica, entendemos o digital não apenas como um contexto ou ambiente, ou sua mediação meramente como um veículo. Uma perspectiva sociotécnica, que compreende a atuação da tecnologia integrada às mais diversas esferas e registros da vida social, é fundamental para abordar a diferença social, a desigualdade, a resistência e a busca por justiça. Essa também é a tarefa de generificar o digital. E abordar essas questões como busca intelectual é indissociável de abordá-las na ação. Feministas - tanto na sociedade civil quanto na academia - se destacam como pioneiras nos estudos em que há a interseção de gênero, ciência e tecnologia e política sexual (Haraway, 1985, 1988; Fischer, 1996; Cockburn, 1994; Wajcman, 1991, 2004, 2015; dentre outras). De modo semelhante, os chamados Estudos de Ciência e Tecnologia racialmente críticos (critical race STS) têm sido fundamentais ao trazer a questão da raça para o centro dos debates sobre ciência, tecnologia e internet, caminhando, como mostra Benjamin (2021), de forma muito próxima às “abordagens feministas, pós-coloniais e de estudos críticos de deficiência” (p. 20).

Na América Latina, assim como em outros lugares, as pesquisas sobre gênero, feminismo, sexualidade e internet envolveram tanto acadêmicas e profissionais quanto ativistas. Isso mostrou uma dinâmica particular de produção de evidências empíricas para defender grupos cujo acesso e uso de tecnologias digitais são mais frequentemente governados por interesses corporativos. Em termos de abordagens disciplinares e temáticas, isso tem incluído estudos sociais, culturais, históricos, jurídicos, políticos, linguísticos e de comunicação, bem como ciência de dados e os campos emergentes de métodos digitais de pesquisa social e as humanidades digitais - apesar da sub-representação de mulheres e sexualidades não-heteronormativas em seus centros, fóruns e veículos hegemônicos. Isso significa que qualquer exercício de busca temática requer explorar tanto os canais acadêmicos quanto a versão digital da chamada “literatura cinza” (grey literature), documentação produzida por órgãos públicos e pela sociedade civil, meios jornalísticos tradicionais e alternativos, e também as grandes protagonistas atuais: as mídias sociais. Acrescentando a essa dispersão a hibridez disciplinar e a rápida evolução de seus objetos - e, consequentemente, os métodos usados para abordá-los -, os estudos sobre gênero, sexualidade e feminismo em tecnologias digitais estão desigualmente distribuídos entre o Norte e o Sul globais.

Um balanço detalhado das perspectivas latino-americanas neste campo demandaria um esforço significativo e recursos adequados.5 Nosso objetivo neste dossiê é menos ambicioso. Não se trata tanto de abordar exaustivamente um objeto singular ou de cobrir uma ausência, mas sim de conectar interesses temáticos a partir de diversas abordagens teóricas, metodológicas e disciplinares. Em consonância com o periódico Sexualidad, Salud y Sociedad, ele reúne trabalhos realizados na e sobre a América Latina, introduzindo perspectivas originais de um campo emergente. Acreditamos que esta diversidade nos ajuda a compreender os modos como temos realizado pesquisas no, do, para e sobre o digital na América Latina, colocando em questão conceitos e metodologias a partir de pesquisas contextualmente situadas e preocupadas em compreender as várias especificidades das muitas internets, que são continuamente modeladas pelos sujeitos e por sua interação com as tecnologias.

Pesquisa feminista para uma internet feminista

Este dossiê é patrocinado pela Rede de Pesquisa Feminista na Internet - FIRN (Association for Progressive Communications, 2022), um projeto multidisciplinar que envolve parceiros de pesquisa em várias localidades do Sul Global: Malásia, Índia, Bulgária, Brasil, e uma rede de pesquisa envolvendo cinco países da África Subsaariana: Etiópia, Quênia, Uganda, Senegal e África do Sul. Foi concebido pelo Programa de Direitos das Mulheres da Associação para o Progresso das Comunicações - APC com o apoio do Centro Internacional de Pesquisa para o Desenvolvimento - IDRC/Canadá. A FIRN tem como objetivo promover uma abordagem feminista no campo emergente da pesquisa na internet, construindo uma rede interdisciplinar e multissetorial para informar e influenciar o ativismo e a elaboração de políticas. Nessa conjuntura, a FIRN desafia a fictícia separação do conhecimento entre a academia e a sociedade civil, e entende que a geração de conhecimento ocorre em todos os espaços, por todos os sujeitos. Isso traz a ideia de uma internet feminista como meio de transformar as estruturas de poder de gênero existentes online e offline. As organizações e os indivíduos que participam da rede realizam estudos e pesquisas como forma de apoiar processos de mudança política e legislativa, e debates sobre os direitos na internet. De forma mais ampla, buscam garantir a representação de mulheres e a diversidade de gênero e sexualidade em debates e tomadas de decisão na internet.

O projeto da FIRN se baseia em um processo consultivo e de revisão de literatura que mapeou a pesquisa em gênero e tecnologia digital (Aavriti, 2018), e nos Princípios Feministas da Internet, um instrumento público coletivamente elaborado por feministas, ativistas e pesquisadores de comunicação. Este último foi esboçado no primeiro encontro Imagine uma Internet Feminista (Imagine a Feminist Internet), na Malásia, em 2014, e posteriormente expandido em outros workshops e encontros. Como uma ferramenta destinada ao ativismo, este documento fornece “uma perspectiva de gênero e direitos sexuais sobre direitos fundamentais relacionados à internet” como “uma estrutura para os movimentos das mulheres articularem e explorarem questões relacionadas à tecnologia” (Feminist Principles of the internet, 2016). O instrumento está disponível em 11 idiomas e é “hackeável”, ou seja, aberto a novas contribuições e usos criativos. Tais Princípios são atualmente 17, divididos em cinco agrupamentos por assunto: Acesso, Movimentos e participação pública, Economia, Expressão e Agência. Nessa linha, para a FIRN “a construção de uma internet feminista [é] crucial para promover a transformação das estruturas de poder de gênero que existem online e no terreno” (McLean, 2022).

Além de argumentar pela necessidade de uma internet feminista, as atividades e publicações concebidas pela FIRN (Aavriti; Hussein; Fossatti, 2022) propiciaram uma reflexão coletiva sobre as hierarquias existentes e o privilégio embutido nas epistemologias, métodos, ética e teorias que informam a pesquisa na, sobre, da e para a internet, e como a pesquisa feminista na internet pode desafiá-las. Também com o objetivo de preencher lacunas no escopo de uma internet feminista nas localidades do Sul Global, as principais áreas de pesquisa da FIRN são organizadas em torno do acesso (uso e infraestrutura); dataficação (inteligência artificial); violência online baseada em gênero; e trabalho generificado na economia digital. Questões de acesso incluem não apenas a disponibilidade de infraestrutura, barreiras, letramento e inclusão digitais, mas também as condições e normas sob as quais as TICs são usadas, quem as controla e quem dirige seu desenvolvimento, bem como um conceito de “acesso substancial significativo”, que inclui propósitos além do empoderamento econômico ou político, como a expressão sexual, para citar um de muitos, assim como o desejo por uma infraestrutura de internet feminista. Em suma, como concluíram os líderes de pesquisa da FIRN, este projeto tem significado: “construir uma compreensão matizada das preocupações da pesquisa feminista na internet localizada no Sul Global”, bem como “aprofundar nosso entendimento da ética feminista do cuidado, desenhando uma metodologia feminista e aprendendo as múltiplas formas de fazer pesquisa feminista em contextos variados” (Hussen; Aavriti; Raghavan, 2022).

Este dossiê foi concebido como uma atividade de disseminação da parceria da FIRN com o Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em parte, devido à tração do inglês como língua franca no Sul Global, e tendo desfrutado do privilégio de interagir com uma maioria de colegas africanas e asiáticas na composição da FIRN, sentimos que era nossa responsabilidade aumentar a presença da FIRN na América Latina e vice-versa. É por isso que, graças à política linguística de Sexualidad, Salud y Sociedad e ao apoio da FIRN, todas as contribuições para este dossiê são publicadas em dois idiomas: espanhol e inglês ou português e inglês. Desta forma, também pretendemos promover intercâmbios através da divisa espanhol/português na América Latina. Devido ao interesse primário da FIRN em promover pesquisas concebidas em âmbitos da sociedade civil, foi feito um esforço para incluir essas contribuições. Apesar da prevalência de pesquisas produzidas em âmbitos universitários (geralmente programas de pós-graduação nas ciências sociais e humanas), deve-se notar que afiliações múltiplas e híbridas, bem como a circulação de ida e vinda entre as esferas acadêmica, ativista e da elaboração de políticas, são bastante comuns entre pesquisadoras feministas e de outras identidades da internet. Esse é o caso entre nossos autores.

Composição Temática

Na maioria dos casos, por mais de uma década, e alguns por mais tempo, os autores deste dossiê têm conduzido pesquisas de campo, online e offline, investindo em uma reflexão contínua sobre o papel crítico das tecnologias digitais em uma variedade de campos temáticos. Os trabalhos incluídos neste dossiê exploram situações em que o digital vai ao encontro de questões de saúde feminina (Polo et al.); violência contra as mulheres (Ananías et al.; Lins); viés racista na inteligência artificial (Silva); ativismo de mulheres negras e migrantes (Josiowicz; Pelúcio); religiosidade e autoexpressão feminina (Mochel); autoempreendedorismo masculino (Denkin e Balieiro); e redes de homens da extrema direita (Ramos). Suas contribuições exploram os significados específicos que as tecnologias digitais adotam em diferentes locais latino-americanos e diaspóricos e para diferentes comunidades, grupos e membros de categorias cuja conexão é mediada pela internet, na maioria das vezes usando dispositivos portáteis e plataformas de redes sociais.

Todas as autoras e autores deste projeto compartilham a premissa de que o uso de tecnologias digitais, assim como as próprias tecnologias, são intrinsecamente influenciadas pelo gênero e criticamente marcadas por outras formas de classificação social e diferença. Baseadas em uma variedade de abordagens qualitativas: pesquisa etnográfica (Lins; Mochel), netnográfica (Ramos; Denkin e Balieiro) ou ambas (Pelúcio), e em alguns casos auxiliadas por métodos digitais para análise de redes de mídia social (Josiowicz), survey (Ananías et al.) e entrevistas (Polo et al.), os artigos originais deste dossiê destacam como o digital é político, ou seja, como redes, dispositivos, ambientes digitais e suas economias moldam e são moldados por relações de poder em diferentes níveis.

O artigo de Lorena Mochel traz uma relevante e inovadora reflexão sobre grupos evangélicos mobilizados por meio da plataforma WhatsApp. Esta é, sem dúvida, a plataforma mais popularmente utilizada no Brasil. Em sua etnografia, Mochel acompanha de forma minuciosa o dia a dia de um “ministério” de mulheres pentecostais por meio de áudios, imagens e mensagens textuais em um “grupo de oração”. Sua etnografia busca compreender como o uso de uma plataforma digital funciona como um meio de formação de novas comunidades evangélicas e de afirmação de práticas religiosas não-institucionalizadas. Para além dos dados etnográficos, a autora ainda propõe uma discussão sobre os desafios e possibilidades metodológicas oferecidos por grupos de Whatsapp, um campo ainda pouco explorado na literatura.

No texto de Larissa Pelúcio, encontramos uma análise do podcast “Femigrantes BR”, descrito como “um espaço de conversa de mulheres feministas e imigrantes pelo mundo”, que surgiu durante a pandemia de Covid-19. O podcast é um produto digital marcado pela oralidade, com baixo custo de produção e potencial alcance. Os episódios do Femigrantes BR trazem histórias de vida de mulheres brasileiras no exterior através das suas próprias falas. Neles, a autora busca analisar em que medida é possível divisar contribuições dos feminismos para o processo de empoderamento destas mulheres. Além disso, estas histórias de vida trazem narrativas que mesclam gênero, nacionalidade, sexualidade e raça, o que permite uma visão mais robusta dos modos como os meios digitais são ferramentas importantes nestes processos, bem como nos dão indícios do que significam as “experiências fronteiriças” dessas mulheres.

Como resumido pela FIRN (Association for Progressive Communications, 2022), a tomada de decisões baseada na computação de dados e a produção, coleta e administração de enormes quantidades de dados reforçam múltiplas formas de discriminação. Abordar a dataficação envolve considerar o impacto da coleta e da vigilância de dados em grupos e categorias desfavorecidos ou marginalizados com base em seu gênero, sexualidade, raça etc. A pesquisa feminista sobre os vieses dos algoritmos de vigilância pode evidenciar as experiências dos corpos não-normativos, uma vez que os danos e benefícios da dataficação estão incorporados e têm consequências específicas para certos indivíduos e comunidades. Algumas contribuições para este dossiê aprofundam como as realidades reproduzidas pelos algoritmos se tornam um domínio propenso à discriminação racial e ao reforço do binarismo de gênero. Ao mesmo tempo, eles também podem ser apropriados para a resistência cultural.

Em “Necropolítica Algorítmica”6, Tarcízio Silva começa com uma visão geral histórica de como, particularmente nos Estados Unidos e no Brasil, a hipervigilância e o controle violento das populações racializadas têm sido normalizados. Em seguida, ele mostra a continuidade dessas formas de controle pelo uso contemporâneo de sistemas de classificação algorítmica, como reconhecimento facial, policiamento preditivo e pontuações de risco. Com uma diferença fundamental: alinhados com as narrativas oficiais de harmonia racial e a justificativa meritocrática de uma política cega à cor, esses sistemas tecnológicos são considerados neutros por seus desenvolvedores, bem como pelos empreendimentos privados e órgãos públicos que os empregam, ignorando seus vieses. Enquanto isso, suas operações aprofundam a automação da discriminação e da segregação racial, com consequências letais em todo o mundo. Em suma, é impossível dissociar as tecnologias algorítmicas da história da exploração e das assimetrias que moldam as representações embutidas na forma como coletam, processam e valorizam os dados.

Nessa mesma linha, o estudo qualitativo das percepções dos usuários sobre aplicativos de monitoramento do ciclo menstrual na Cidade do México, conduzido por Ivanna Martínez Polo, Paola Ricaurte Quijano, Lilly Maldonado Domínguez, Ximena Rangel Zistecatl e Natalia Farah Doniz, revela os valores e os vieses sociais associados ao design e à implementação dos aplicativos. As narrativas coletadas em profundidade em 32 entrevistas com usuárias de aplicativos revelam como, apesar da variedade de experiências e da heterogeneidade das percepções das usuárias sobre eles, o binarismo de gênero incorporado em seu design normaliza uma concepção tendenciosa sobre corpos e pessoas que menstruam e desconsidera seu impacto na privacidade dos usuários. Concluindo, as autoras defendem a necessidade de uma perspectiva de design justo (Costanza-Chock, 2020) no design sociotécnico.

Por outro lado, o artigo de Alejandra Josiowicz explora o potencial dos sistemas algorítmicos para mediar a resistência nas bases. Para isso, analisa a prática de nomear intelectuais feministas anti-racistas latino-americanas no Twitter. Para tanto, como contribuição metodológica singular para este dossiê, auxiliada por um pacote de métodos digitais, ela considera a rede de citações dentre um conjunto de dados de tweets especialmente selecionados. Ela aborda essa forma de citação como uma prática cultural tecno-discursiva performativa através da qual, coletivamente, mulheres do Sul Global geram significado social usando plataformas digitais projetadas e pertencentes a atores baseados no Norte Global. Essa mudança é marcada pela apropriação de ferramentas de redes sociais por contrapúblicos lusófonos e hispanofalantes do Sul para desconstruir hierarquias e criar práticas discursivas potencialmente disruptivas. Essas práticas recriam e reexperimentam significados relacionados a uma história de exclusão, marcada por colonialismo, racismo e sexismo.

Desde a primeira década do século XXI, feministas têm alertado sobre a proliferação das formas variadas e complexas de violência de gênero (gender-based violence - GBV) online. Exposição pública e humilhação, assédio sexual, ameaças e abuso verbal somam-se às maneiras intrincadas pelas quais as violência física e psicológica mediadas pela tecnologia servem ao controle dos homens sobre as mulheres. A vulnerabilidade das mulheres, acentuada com a pandemia de Covid-19, conforme abordado por Ananías et al. em sua contribuição para este dossiê, também ressalta a relevância das perspectivas analíticas sobre o corpo, a moral e a política para entender os significados e as implicações da violência online e de outras formas de violência mediadas digitalmente, como também argumentado por Lins neste dossiê.

A pesquisa contemporânea sobre violência de gênero em geral considera o fluxo e a conexão entre a experiência online e offline, bem como formas de vitimização com relação a gênero, sexualidade, raça etc. No entanto, em vez de enfatizar abordagens punitivas, muitos(as) pesquisadores(as) e ativistas promovem uma discussão sobre violência de gênero online (GBV) e sobre discurso de ódio a partir de uma perspectiva de direitos humanos. Lidar com a violência de gênero envolve questões de proteção de direitos fundamentais e de responsabilidade corporativa, assim como as experiências vividas de mulheres e minorias, alvos de violência online, e a força e o potencial das respostas feministas, assim como a luta pelo reconhecimento das complexas formas de causar dano.

Além de questionar a classificação de online vs. offline ou público vs. privado como âmbitos separados, a pesquisa feminista atual, intervenções comunitárias e de advocacy, promovem uma compreensão interseccional da GBV (Sívori; Mochel, 2022). Além disso, como Lins demonstra em sua cuidadosamente elaborada etnografia sobre os itinerários das selfies nus, popularmente conhecidas como “nudes”, a ambiguidade da tecnologia digital reconfigura “as fronteiras entre consentimento e abuso, norma e transgressão, legítimo e imoral, saudável e violento”. Informados por projetos consagrados, como o Peguemos a tecnologia de volta (Take Back the Tech - Association for Progressive Communications, Women’s Rights Programme, 2015), eles apelam aos tomadores de decisão sobre sistemas tecnológicos e políticas públicas para adotar visões abrangentes e não-conservadoras ao prevenir, sancionar e remediar a GBV.

Em seu artigo, Cecilia Ananías Soto, Karen Vergara Sánchez, Consuelo Herrera Monsalve e Beatriz Barra Ortiz, membros da ONG feminista chilena Amaranta, compartilham os resultados de uma pesquisa online sobre violência de gênero en mídias digitais realizada no início da pandemia de Covid-19. O artigo começa com uma introdução detalhada do assunto e o papel das organizações feministas em promover sua visibilidade, e um problema público, bem como as limitações da política e da legislação do atual Estado chileno ele assunto. As narrativas geradas a partir do questionário online autoadministrado mostram uma correlação entre a ausência de medidas de proteção oferecidas pelo Estado e a dependência por parte das vítimas de redes de amigos e familiares, bem como de profissionais de saúde mental. As autoras destacam a ligação entre, de um lado, barreiras existentes para o acesso à educação sexual integral e ao letramento digital e, de outro, a incidência desproporcionalmente alta de violência digital contra mulheres e meninas. Em resposta a essa premissa, a pesquisa também foi concebida como um instrumento pedagógico que incluía “definições e descrições que davam visibilidade, nomeavam e problematizavam” la violência de gênero online.

O artigo de Beatriz Accioly Lins, baseado em um capítulo de sua tese de doutorado em Antropologia (Lins, 2021, Capítulo 4), leva o leitor a uma viagem através das caleidoscópicas paisagens da internet, legais e assim por diante, onde ela procurou entender o que os “nudes” - imagens de cunho erótico ou sexual trocadas de forma rápida e simples pelo uso de plataformas digitais - significam, não apenas como o indesejado “vazamento”, às vezes (figurativamente e literalmente) mortal, de um segredo íntimo. Algo interessante pontuado por Lins é o quanto os nudes e suas trocas representam uma negociação entre prazer e perigo, consentimento e violência. A etnografia de Lins explora essa corda bamba, de um museu de arte a um Fórum de Governança da Internet e a um retiro do Programa de Direitos das Mulheres da APC dentro dele. Contra a corrente das narrativas e intervenções salvacionistas demasiadamente comuns, as histórias que ela conta capturam como os atos de fazer, enviar e compartilhar nudes podem ser não apenas perigosos, mas também prazerosos e gratificantes.

Dois outros artigos neste dossiê, um de Jair Ramos e outro de Bruna Denkin e Fernando Balieiro, conduzem análises sistemáticas de conteúdos e interações de mídias sociais que lançam luz sobre performances tecno-discursivas da “masculinidade online”. Em diálogo com uma longa tradição de estudos sobre masculinidades nas nas Ciências Humanas e Sociais, eles exploram dois ambientes bastante distintos: enquanto Denkin e Balieiro seguem “influenciadores” masculinos que atuam como promotores de uma “masculinidade saudável” online, Ramos observa as batalhas verbais entre os apoiadores de extrema direita do Presidente Jair Bolsonaro que compartilham seu anti-feminismo. Como o artigo de Josiowicz neste dossiê faz, utilizando uma metodologia diferente, esses dois artigos são exemplos ricos da competência e rigor exigidos atualmente para um estudo qualitativo de plataformas integradas. Ambos descrevem cuidadosamente as nuances de como os usuários apropriam-se de diferentes elementos e aspectos dos recursos e ferramentas das redes sociais. Como uma contribuição original para as discussões sobre o papel da “Alt-Right” e da “manosfera” na política nacional (Nagle, 2017), e do populismo digital (Cesarino, 2020), o estudo de Ramos também traz insights sobre questões de violência online; por exemplo, sobre a significação de trollar como uma maneira de construir uma reputação (masculina) nesses ambientes. Em contraposição, na busca pelo autocontrole de impulsos e emoções, os empreendedores de si estudados por Denkin e Balieiro desenvolvem um diálogo aberto com as agendas feministas, embora para propósitos diferentes.

Não foi nossa intenção neste dossiê, nem foi o objetivo da FIRN, realizar um balanço completo ou explorar as muitas janelas que uma abordagem hemisférica sobre feminismo, gênero e sexualidade em tecnologias digitais abre. Para começar, poucos países estão representados, predomina uma abordagem cisgênero e abordamos apenas lateralmente o trabalho generificado na economia digital, ele próprio uma área-chave para a FIRN. No entanto, esses e muitos outros temas amplamente explorados na literatura ao longo dos últimos vinte anos, como a questão do acesso à tecnologias digitais e a cibercultura, são revisitados sob uma luz diferente e esperamos continuar propiciando o rico diálogo aberto pelas contribuições deste dossiê.

Referências

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  • 1
    Este artigo e a organização do dossier “Feminismo, gênero e sexualidade nas tecnologias digitais: perspectivas latino-americanas” fazem parte das atividades dos projetos: (1) “Redes digitais, backlash e dataficação no Brasil”, realizado com auxílio da Associação para o Progresso das Comunicações (APC) e do Centro de Pesquisas para o Desenvolvimento Internacional (IDRC/Canada) como parte dos “Auxílios FIRN para realizar pesquisas por uma internet feminista”, (2) “Redes digitais, violência e política: discursos anti-direitos em plataformas de mídia social no Brasil” (bolsa Prociência UERJ/FAPERJ 2020-23), ambos coordenados por Horacio Sívori, e (3) “Desigualdades e etnografia: internet, seus usos, agenciamentos e possibilidades em favelas do Rio de Janeiro” (Fapesp Jovem Pesquisador n. 2021/06857-7), coordenado por Carolina Parreiras.
  • 2
    Agradecemos aos autores que aceitaram participar deste dossiê e aos editores de Sexualidad, Salud y Sociedad por aceitarem nossa proposta, aos nossos revisores anônimos por sua generosidade e comentários instigantes e à nossa equipe de tradutores por seu trabalho dedicado. Gostaríamos também de expressar nossos agradecimentos ao Programa de Direitos das Mulheres da Associação para o Progresso das Comunicações (APC WRP) por idealizar e implementar, em nível internacional, o projeto que tornou este dossiê possível, e por sua generosa recepção de nossa proposta. Ao International Development Research Centre (IDRC-Canadá) por fornecer apoio financeiro e intelectual, e ao Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ) por fornecer um lar institucional local no Brasil, em especial a Bruno Zilli, da equipe da pesquisa e editor executivo da revista. Por fim, mas não menos importante, nossos sinceros agradecimentos a todos os nossos colegas nesta rede de colaborações, especialmente às coordenadoras da FIRN: Namita Aavriti, Tigist Hussen, Mariana Fossatti e Srinidhi Raghavan.
  • 3
    É importante lembrar, como alertam os autores, que “platform society” é um conceito contestado. Ao buscarem compreender o funcionamento de diferentes plataformas na forma de estudos de caso e propor uma definição de plataforma, o que eles trazem como principal insight é o fato de que o estudo de plataformas não pode prescindir do entendimento das estruturas sociais e políticas mais amplas.
  • 4
    Algo semelhante é proposto por Vaidhyanathan (2018) em relação ao Facebook, entendido por ele como uma plataforma que funciona como uma “máquina non-sense” de desinformação e de vigilância, e, consequentemente, de enfraquecimento da democracia.
  • 5
    A esse respeito, são relevantes os relatórios da FIRN “Mapeamento sobre gênero e tecnologia digital” (Spui; Aavriti, 2018) e o “Relatório especial sobre pesquisa feminista na internet” (Pereira, 2022). Como observado nas suas seções sobre metodologia e limitações, o foco no Sul Global provém principalmente de uma variedade de fontes asiáticas e africanas baseadas na sociedade civil.
  • 6
    Capítulo 4 de seu livro Racismo Algorítmico (Silva, 2022). Agradecemos ao autor e à Edições Sesc São Paulo pela generosa autorização.
  • Tradução
    Isabel Hargrave

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2022
  • Aceito
    28 Jul 2023
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