Open-access Ministérios no WhatsApp: gênero, sensorialidades e transformações ético-políticas no cotidiano de mulheres evangélicas1

Ministerios en WhatsApp: género, sensorialidades y transformaciones ético-políticas en el cotidiano de mujeres evangélicas

Resumo

Diferentes análises sobre a participação política de evangélicas(os) pentecostais no Brasil nos últimos anos têm chamado a atenção para transformações causadas pelos usos de mídias digitais por estes grupos. Em busca de ampliar este debate a partir de elementos que compõem usos cotidianos de grupos de oração no WhatsApp, o objetivo deste artigo é compreender como as disputas engajadas por mulheres pentecostais têm ressignificado suas carreiras pastorais e formado novas coletividades evangélicas. Com a emergência de outros modos de viver as intimidades propiciadas por dispositivos móveis, reflito sobre relações religiosas estabelecidas através de imagens e sons em grupos de WhatsApp, além dos impactos digitais nas dinâmicas de autoridade religiosa feminina e sua expansão transnacional.

Palavras-chave: evangélicos pentecostais; WhatsApp; mídias digitais; gênero; religião

Resumen

Diferentes análisis sobre la participación política de los evangélicos pentecostales en Brasil en los últimos años han llamado la atención sobre las transformaciones provocadas por el uso de medios digitales por parte de estos grupos. Buscando ampliar este debate a partir de elementos que componen el uso cotidiano de los grupos de oración en WhatsApp, busqué comprender cómo las disputas libradas por las mujeres pentecostales han resignificado sus carreras pastorales y conformado nuevas colectividades evangélicas. Con el surgimiento de otras formas de experimentar las intimidades que brindan los dispositivos móviles, reflexiono sobre las relaciones religiosas que se establecen a través de imágenes y sonidos en los grupos de WhatsApp, además del impacto digital en la dinámica de la autoridad religiosa femenina y su expansión transnacional.

Palabras clave: evangélicos pentecostales; WhatsApp; medios digitales; género; religión

Abstract

Recent literature on the political participation of Pentecostal evangelicals in Brazil has drawn attention to the transformations caused by their use of digital media. To broaden this debate, in this article I describe the everyday use of the WhatsApp instant messaging program by prayer groups, shedding light on how disputes engaged by Pentecostal women have re-signified their pastoral careers and formed new evangelical collectivities. With the emergence of other ways of experiencing the intimacy provided by mobile devices, I reflect on religious connections established across images and sounds in WhatsApp groups, in addition to the digital impact on the dynamics of female religious authority and its transnational expansion.

Keywords Pentecostal evangelicals; WhatsApp; digital media; gender; religion

O som do alerta de mais um dia de campanha irrompe na tela do celular. Em poucos minutos, o horário do almoço é preenchido por dezenas de notificações agrupadas em uma única aba da tela de bloqueio que mostra somente a mensagem mais recente. As rápidas alterações no envio ativam a curiosidade para acessar o conteúdo do grupo. Das centenas de mulheres que compõem os grupos homônimos de WhatsApp “Mulheres Virtuosas”2, imagens, mensagens de voz e de texto podem ser simultaneamente visualizadas por quem está online. Escolho ouvir o primeiro dos áudios em que uma voz firme e segura faz uma saudação: “Paz do Senhor, Mulheres Virtuosas”.

A fala, feita por uma das administradoras do grupo, é acompanhada por breves interrupções para atender ao pedido de uma criança que chora ao fundo. Sua voz anuncia que aquele é o segundo dia da “campanha pela vida sentimental”, convocando as participantes a orar e jejuar junto. Quase sussurrando, outra voz do áudio seguinte irrompe automaticamente pedindo para que o Espírito Santo visite seu cunhado no hospital. A participante justifica que sua oração teria sido feita em tom de voz baixo porque, naquele momento, estaria no banheiro de seu ambiente de trabalho. Quanto mais mensagens de voz chegam, aumentam também as reações instantâneas com respostas em formato de mensagens de texto breves. São brados de “Aleluia”, “Glória a Deus”, “Amém”, acompanhados de imagens estáticas ou gifs, além de desenhos de mãos juntas em oração e separadas em louvor em emojis, cujas cores transitam entre diferentes tons de pele, prevalecendo os mais escuros.

Se as cores, brilhos e movimentos das imagens fornecem experiências visuais que remetem à ludicidade, os tons de voz empregados nas orações ditam o ritmo particular da temporalidade das mensagens de voz, mais frequentemente chamada de “áudios”. Tanto as mais longas como as mais curtas apresentam detalhes que convidam quem ouve a fechar os olhos e imaginar não somente quem ora, mas visualizar locais e pessoas às quais a oração é destinada. Uma das participantes envia uma foto de um recipiente com óleo de unção, que também chama de azeite, pedindo proteção divina enquanto conta, por mensagem de voz, que está derramando o conteúdo em peças de roupa e fotos do filho que, naquele momento, frequentaria a “boca de fumo”3.

Percorro também os corredores do hospital que tem seu nome e bairro anunciados e chego até o corpo acamado de uma paciente cujo nome, assim como o do filho da participante anterior, é anunciado com uma selfie de seu rosto e um pedido de oração. As detalhadas descrições dos caminhos da mão divina encenam toques em cada órgão da paciente, assim como o azeite que unge cada membro do corpo do filho usuário de drogas. Através de sonoridades formadas por diferentes tons de voz, é possível transitar por casas, bocas de fumo e outros espaços pelos quais as orações buscam garantir cura e proteção aos filhos, maridos, familiares, bem como às próprias mulheres que oram juntas no grupo de oração tanto de forma síncrona quanto assíncrona.

Embora analisar o cotidiano online não estivesse inicialmente nos horizontes de uma pesquisa que se iniciou em cultos destinados às mulheres evangélicas, as interações digitais nos grupos de WhatsApp Mulheres Virtuosas passaram a receber cada vez mais centralidade no tempo e espaço dedicados ao trabalho de campo. Acompanhar a rotina formada por enviar e ouvir “áudios” com pregações, orações, testemunhos e intensa troca de imagens nos grupos de “zap” -um dos nomes pelos quais o aplicativo é popularmente conhecido em nosso país -abriu espaço para uma virada analítica realizada ainda em períodos anteriores à eclosão da pandemia do novo coronavírus. Os resultados dessa pesquisa são discutidos na minha tese de doutorado (Mochel, 2023); neste artigo discutirei seus principais achados.

Ao longo de 2017 e 2022, convivi com um conjunto formado por cerca de cento e cinquenta mulheres, conduzindo entrevistas e observação participante, que intercalaram interações online e offline, inspiradas na metodologia multimodal da etnografia com/ na/ pela internet proposta por Hine (2020). Enquanto as interações presenciais envolveram cultos realizados em igrejas e lares evangélicos, o cotidiano online reuniu dois grupos de WhatsApp formados exclusivamente por mulheres e liderados por um casal de pastores pentecostais4 que não estava formalmente vinculado a uma igreja. Entre as seguidoras do casal, havia três modalidades de pertencimento religioso: as que congregavam em pequenos ministérios de igrejas como a Assembleia de Deus; aquelas que frequentavam grandes conglomerados de denominações conhecidas como neopentecostais, parte do que Mafra (2013) chamou de “membresia flutuante”; e havia, ainda quem estivesse afastada das igrejas, conhecidas nesse contexto pelo termo “desviadas”.

A etnografia nos “grupos de oração”5, como mais frequentemente os chamavam as interlocutoras da pesquisa, integrou parte significativa da convivência entre o grupo. Nomear-se como Ministério, conforme veremos mais adiante, apontava a disputas entre sua atuação desinstitucionalizada e a igreja como espaço congregacional privilegiado. Ser Ministério ou projeto, como também indicavam, configurava-se parte de uma ação legitimadora adotada pelo casal, para se referir à combinação entre frequentar cultos e eventos em que pregavam e participar do cotidiano de seus grupos de oração no WhatsApp.

Minha entrada nos grupos como pesquisadora era conhecida e reforçada por mim e pelas lideranças para as participantes novas sempre que necessário. Diferente de grande parte das pesquisas em grupos de WhatsApp que monitoram tendências eleitorais6, não atuei como anônima nos grupos7. Participei das interações cotidianas online e offline junto ao Ministério produzindo registros audiovisuais de diferentes eventos, tais como cartazes, jornais e outros materiais solicitados pelas interlocutoras ao longo da etnografia. Optei por não participar do cotidiano nos grupos que envolviam o compartilhamento de orações, jejuns e testemunhos, embora este engajamento audiovisual permitisse minha circulação como alguém que, mesmo não sendo evangélica, nas palavras delas estaria “trabalhando pra Jesus”.

Havia diferentes maneiras de se tornar parte de um ou mais grupos de oração femininos liderados pelo casal de pastores. A entrada era facilitada via links públicos, compartilhados pela pastora em grupos no Facebook, ou através de convites como o que me foi feito após o primeiro culto que frequentei no trabalho de campo. A estratégia de divulgação do casal seguia outras que pude encontrar em diversos grupos de oração digitais vinculados a links que podem ser facilmente encontrados através de grupos na mesma rede social, geralmente intitulados com nomes de igrejas, pastores(as) e cantoras(es) gospel, ou de pesquisas em buscadores como o Google. Ao longo do trabalho de campo, fui adicionada a alguns destes grupos por pastores e membros de igrejas que conheci durante a pesquisa, mas não se tornaram meus interlocutores.

Esta breve incursão me levou a notar que, de modo geral, seus integrantes também costumam compartilhar conteúdos semelhantes aos daqueles em que estive inserida. Os grupos de oração evangélicos são compostos por pessoas que podem ou não ser lideranças em igrejas ou pertencer a uma mesma igreja ou denominação. Do mesmo modo que nos grupos em que realizei a pesquisa, os integrantes também costumam compartilhar orações por áudio, vídeo e texto, versículos bíblicos, mensagens motivacionais, memes político-partidários, oportunidades de emprego, divulgação de eventos religiosos, entre outros. São diversas possibilidades, a depender do tamanho do grupo, dos laços de quem os integra, de marcadores sociais predominantes entre as(os) participantes e das regras de quem os gerencia.

Em vez de indicar comparações, estilos narrativos e propostas mais recorrentes, meu objetivo com esta análise foi compreender como usos cotidianos de smartphones por estas mulheres têm possibilitado a construção de políticas religiosas para além dos templos. Investigo como estas políticas vêm sendo vivenciadas através de performances da intimidade que envolvem gravar e escutar orações através de áudios no WhatsApp e compartilhar imagens. Para isso, nas próximas seções, analiso trânsitos institucionais e não-institucionais do casal de pastores que gerencia os grupos de oração, além de como estas entradas vêm formando novas coletividades evangélicas entre suas seguidoras.

Ao seguir perspectivas antropológicas engajadas em compreender articulações entre religião e mídias (Stolow, 2005; Meyer; Moors, 2006; Machado, 2013; Jungblut, 2012), analisei formas como os usos flexíveis, móveis, instantâneos e personalizados do WhatsApp como “tecnologia da vida” (Cruz; Harindranath, 2020) vêm moldando “virações” próprias de nosso contexto de desigualdade socioeconômica. Busquei, ainda, indicar como projetos ético-políticos de expansão pentecostal no mundo vêm transformando e sendo transformados através dos usos de mídias digitais, ampliando e consolidando redes de ajuda mútua nas quais o digital conforma processos articulados por marcadores sociais da diferença (Lins; Parreiras; Freitas, 2020).

Os deslocamentos espaço-temporais mediados pelo uso dos smartphones têm agregado às funcionalidades do WhatsApp neste contexto novas maneiras de exercer a autoridade religiosa e de exercer a fé pentecostal entre coletividades de mulheres evangélicas. Extrapolando enquadramentos analíticos mais comuns do WhatsApp às dinâmicas eleitorais brasileiras, esta análise buscou contribuir para compreender o lugar de práticas religiosas não-institucionalizadas no pentecostalismo para a conformação do que Machado (2020) chamou de uma “estética da política pentecostal”.

“Eu não nasci pra ser pastora de igreja”: mobilidades e virações

A trajetória do casal de Cristiane e Bruno, ambos pastores que viviam como pregadores itinerantes em diferentes igrejas pentecostais, era marcada pelo que descreviam como “uma vida repleta de renúncias”. Ambos negros, com idades em torno dos quarenta anos e sustentando duas filhas, a alusão às renúncias sugeria uma separação entre os “verdadeiros pastores” e os “profissionais da fé”. Destes, buscavam constantemente se diferenciar. A ascensão na carreira pastoral marcava sua adesão a um projeto ético para exercer o que apontavam como o “chamado” para servir a Deus, em que estavam sempre renunciando aos descansos e prazeres em suas itinerâncias como pregadores em diferentes igrejas pentecostais.

Em suas variadas reflexões sobre o chamado, Cristiane compartilhou comigo que seu desejo por viver um “chamado com as mulheres” havia se desdobrado através de uma experiência de encontro com o Espírito Santo, a partir de um culto que acompanhou em seu quarto pela TV. Embora tenha se reconhecido pentecostal desde a adolescência, quando se batizou em uma filial da Igreja Quadrangular em Belo Horizonte, o “destravamento” de seu trabalho como pastora foi atribuído ao “mover de pessoas sendo curadas e libertas”, proporcionado pela atuação de um pastor que liderava o culto em questão. Meses depois, Cristiane descobriu que a igreja pela qual se interessou na TV havia chegado no centro do Rio de Janeiro, cidade para a qual se mudou e vivia quando nos conhecemos, passando a frequentá-la, acompanhada de seu marido Bruno, até serem consagrados pastores.

Assim como a Igreja Quadrangular, que foi fundada por uma mulher e é uma das pioneiras no pastorado pentecostal feminino, esta igreja também ordenava pastoras mulheres. Suas dimensões de grande porte, com sede em São Paulo e diversas filiais distribuídas pelo Brasil, orientavam para outra diferença fundamental que posicionava Bruno e Cristiane em lugares subalternos na relação com outros pastores e pastoras da instituição: sua função como pastores voluntários. De modo distinto aos “oficiais” e “100%”, como são chamados aqueles que se dedicam integralmente e “vivem da obra” recebendo auxílios financeiros para o desempenho de suas funções no local, o casal e outros voluntários recebiam somente pequenos valores para custear passagens até a igreja e permaneciam por todo o tempo do culto em funções de suporte aos pastores oficiais.

Ao mesmo tempo em que a falta de reconhecimento destacava a renúncia para viver o chamado, “cuidar de mulheres” qualificava um projeto paralelo que Cristiane e Bruno passaram a desempenhar a partir de suas atuações nesta igreja, mas se desdobrou fora dela. A criação do Ministério “Mulheres Virtuosas” foi iniciada naquele espaço como uma experiência religiosa coletiva desde sempre atravessada pelos fluxos digitais:

O Projeto Mulheres Virtuosas começou muito despretensioso. Eu não imaginei que ia crescer. Na época, o bispo responsável por lá pediu que eu ajudasse a cuidar, a atender àquelas mulheres, que às vezes eram pedidos que havia lá. Eram pedidos, por exemplo, “pastora, eu estou com um problema numa área íntima”. Então ele, como homem, não se sentia confortável de atender, até por ser uma coisa espiritual e tem que ter a parte de respeito. E aí meu esposo via que o número de mulheres começou a aumentar e eu ficava até 2h, 3h da manhã atendendo às mulheres. Ele falou: “por favor, faz um grupo no WhatsApp, porque eu não aguento mais!”, e ali nasceu o grupo das mulheres virtuosas no WhatsApp. (Entrevista com a pastora Cristiane, realizada presencialmente em 10 de junho de 2017).

Diferente de Cristiane, a participação de Bruno nos grupos de oração intitulados “Mulheres Virtuosas” era discreta. Como único homem que integrava estes grupos, suas interações eram mais formais e restritas à companhia da pastora. Com exceções de momentos breves, nos quais havia elogios à sua esposa em ocasiões especiais, como datas de aniversário ou de casamento, o casal frequentemente orava juntos em mensagens de voz e gravação de vídeos para liderar campanhas de oração e jejum, também chamados de “atos proféticos”8. A rotina digital nos grupos era dotada de estratégias que estimulavam as participantes a se tornarem “virtuosas”, termo pelo qual passavam a ser chamadas pelo casal e por outras integrantes assim que adentravam na rotina dos grupos.

Além de possibilitar vínculos de intimidade baseadas em marcadores de gênero e sexualidade e abrir espaço para doações esporadicamente recebidas de suas seguidoras por graças alcançadas, os agenciamentos feitos pelo casal através das mídias não eram autorizados aos(às) pastores e pastoras oficiais da denominação à qual estavam vinculados voluntariamente. Administrar um grupo, Ministério/ ou Projeto paralelo indicava para desafios em torno das práticas de desinstitucionalização religiosa, analisadas por Sanchis (2006) a partir da criação de “brechas institucionais”, espaços que nos conduzem a refletir sobre o “lugar do religioso” nestas configurações. Não ser uma pastora de igreja, ao mesmo tempo em que precisava “fazer seu nome” em uma igreja, reverberava diretamente na escolha de Cristiane por atuar mediada pelas mídias, experiência comum àquela que já havia a convocado a exercer seu chamado como pastora.

As ambiguidades provocadas pelo desconforto de não ter “uma sede”, “uma placa”, “um registro”, como o casal costumava reforçar, apresentavam tanto tensões entre presença e ausência da igreja enquanto espaço de culto como os efeitos de autoridade gerados por símbolos institucionais. Como demonstra o significado do papel timbrado trabalhado por Das e Poole (2004) como materialização das regulamentações e burocracias no âmbito do Estado, em contrapartida, ser uma “igreja sem placa” não sedimentaria no mesmo grau os modos convencionais de representar o cotidiano institucional, normalmente negociado a partir da circulação de objetos e suas escrituras.

A falta de vínculos institucionais, em um contexto em que são as instituições que valorizam e dão legitimidade às carreiras pastorais, oferecia ao casal aquilo que Côrtes (2017) chamou de uma posição “bastarda”. Ao analisar carreiras de pregadores itinerantes, a autora sugere que estes sujeitos que circulam nos grandes centros urbanos vendendo testemunhos sobre o passado no crime, nas drogas, na homossexualidade, nas religiões de matriz africana, formam um “ex-tudo” que compõe o precarizado mercado de pregações do mundo das virações, que contorna o pentecostalismo como dispositivo urbano contemporâneo (Birman et. al., 2017). No entanto, diferente dos sujeitos descritos por Côrtes, que não mais ou nunca haviam se vinculado a nenhum tipo de institucionalidade religiosa, Cristiane e Bruno apresentavam o benefício limitado de poderem “fazer seus nomes” como pastores voluntários de uma grande denominação nestas itinerâncias.

Investigar carreiras pastorais que se constroem nesse contexto indicou para críticas às homogeneizações produzidas por enquadramentos do campo evangélico, as quais costumam colocar em primeiro plano “denúncias” sobre a suntuosidade de templos e a ostentação de lideranças às custas de dízimos de fiéis. Ao acompanhar o casal de pastores em questão, direções opostas ao que este cenário costuma considerar foram levantadas para refletir sobre os projetos ético-políticos que abrangem uma amplitude de lideranças pentecostais periféricas e aprofunda questões que atravessam religiosidades pentecostais e suas mobilidades de gênero e raça. A construção de uma carreira pentecostal ordinária, para estes sujeitos, ao contrário do que panoramas denunciatórios levam a crer, está entremeada por limites significativos aos(às) aspirantes ao pastorado e, longe do que estes argumentos colocam, podem não trazer riqueza às lideranças envolvidas.

A trajetória do casal pelas virações que atravessam carreiras pentecostais apontou para maneiras de não somente situar o casal nestas dinâmicas, como também identificar formas pelas quais pode-se “furar” espaços pré-estabelecidos para as hierarquias e construir um Ministério paralelo através da modalidade voluntária. Além disso, estes caminhos refletem como “usos inerentes” do celular, conforme definiu Miller (2013), moldam carreiras pastorais nesse contexto. As mobilidades através dos usos dos smartphones apresentam maneiras de compreender como esta forma de comunicação promove mudanças em relação à renda entre classes urbanas populares, aqui mobilizada por trocas de favores e redes de confiança estabelecidas através de contatos em “redes extensivas”.

Do engajamento que se deu através dos usos das mídias e de sua circulação em diferentes igrejas e espaços da cidade, o casal conseguiu criar seus próprios canais de comunicação diretamente com as fiéis, além daquelas que conheciam noutros espaços nos quais eram convidados a pregar. Na medida em que o contato direto com o mundo espiritual é um fator diferencial no contexto evangélico, Cristiane e Bruno conduziam seus caminhos através destes e outros dispositivos da “estrutura cindida de autoridade” que orienta as rupturas forjadas nas éticas pentecostais (Reinhardt, 2021).

Construir um caminho estratégico de atuação pastoral através do WhatsApp sugeriu, ainda, que o casal adotasse orientações que se encontram com as de outras propostas de mobilidades que articulam usos de smartphones aos regimes de visibilidade e ocupação provocadas por aplicativos móveis. Semelhantemente às muitas outras carreiras de influenciadores(as) digitais brasileiros(as) em contextos periféricos, as carreiras pastorais “bastardas” também são “trajetórias de ascensão social vivenciadas a partir da inserção em ambientes digitais” (Barros, 2022, p. 20). Por sua vez, estas trajetórias refletem a lenta mobilidade social que obteve significativo crescimento em cenários econômicos mais recentes, após a chegada dos governos petistas no início dos anos 2000.

Através dos usos do celular e do WhatsApp, Cristiane e Bruno vêm construindo maneiras de elaborar sustentos que não advêm da dedicação institucional como pastores de uma instituição religiosa. Para realizar um “trabalho de missão” em países como Itália e Espanha, nos anos de 2018 e 2019, por exemplo, Cristiane contou com auxílios financeiros, como passagem e hospedagem financiadas por imigrantes brasileiras que participavam dos grupos de oração e residiam nestes países. Na medida em que não havia por parte do casal uma proposta de um dízimo pago periodicamente, o patrocínio era lido enquanto dádiva que expressa “ajuda” e “agradecimento” por graças alcançadas de suas seguidoras, indicando maneiras como estas carreiras pastorais vêm conduzindo sua atuação através de usos específicos que agentes evangélicos fazem do caráter móvel do celular e das funcionalidades do aplicativo WhatsApp.

Transformando casas, parentescos e igrejas

Entre as muitas singularidades que a etnografia de um Ministério sem vínculos institucionais pôde oferecer a esta análise, a entrada nos grupos de oração femininos no WhatsApp apresentou uma maneira de conhecer a expansão do cotidiano devocional de mulheres evangélicas no tempo e espaço. Em seus quartos, salas de estar, locais de trabalho, deslocamentos em transportes públicos pela cidade, entre muitos outros espaços possíveis para se colocar em oração, a rotina coletiva de preparação em campanhas de jejum e oração e compartilhamento de conteúdos que dialogavam com seus engajamentos com Deus indicavam que qualquer momento e local poderiam ser preparados para a posição de “joelho no chão, boca no pó”9.

Desde deslocamentos ao trabalho aos quartos de suas casas, os chamados do casal de pastores por áudio a “se colocar de joelhos aí de onde estiverem” eram atendidos em dinâmicas que implicavam diretamente relações diferenciadas com o tempo. A prática da oração na madrugada, recorrente entre variados grupos de evangélicos pentecostais, combina-se com os usos do celular para a oração coletiva nos grupos através de diversas justificativas: “À meia-noite, os povos são perturbados”, “Às três da manhã, horário em que castas de demônios estão soltas”, foram alguns dos argumentos mobilizados para localizar maior disponibilidade para a oração nestes horários. As justificativas também ganhavam tom pragmático, como orações feitas ao meio-dia, na medida em que haveria maior disponibilidade para orar durante o almoço, horário em que necessariamente estariam em casa ou no intervalo do trabalho. Combinados a isso, argumentos amparados em interpretações bíblicas se articulavam à adequação ao cotidiano:

Existe um espírito de morte que assola ao meio-dia.

15h é a hora nona, o horário em que Jesus consumou na cruz o sacrifício.

Os demônios, espíritos da morte, são setas que voam ao meio-dia, horário que marido e filhos chegam para almoçar (Trechos de mensagens de voz compartilhadas nos grupos de WhatsApp em 2018 e 2019).

Os deslocamentos nas dimensões de espaço e tempo destacam modos como o caráter móvel do celular cria formatos para orar junto, permitindo diferentes usos entre as mulheres que integravam o Ministério. Tais formatos se adequam aos horários, deslocamentos urbanos e rotinas das mulheres e lideranças evangélicas, podendo ser compreendidos muitas vezes como continuidades ou extensões que uma necessária presença no espaço físico da igreja costuma provocar em reivindicações pela identidade evangélica. Um dos exemplos mais comuns a este respeito está nas diferenças já popularizadas nesse contexto que separam “crentes domingueiros”, em referência à presença nos cultos somente aos domingos, de “crentes de verdade”, indicando as hierarquias que a presença física na igreja conforma aos pertencimentos evangélicos.

Estas classificações reverberavam em falas constantes da pastora Cristiane sobre os necessários distanciamentos entre o espaço da igreja e os usos religiosos do celular. Além de suas orientações destinadas à importância de que cada integrante do grupo continuasse indo às suas devidas igrejas, após o aumento do número de mulheres participando dos grupos de WhatsApp em decorrência da pandemia, a pastora me indicou em uma de nossas conversas que diminuiria a frequência de pregações e as substituiria pelas orações, pois as participantes dos grupos não estariam mais indo às suas igrejas. As preocupações da pastora indicavam experiências que posteriormente foram compartilhadas por algumas interlocutoras comigo a respeito do lugar substitutivo ocupado pelo cotidiano religioso online.

Para Virgínia, 40 anos e imigrante na Itália, que me contou estar “sem igreja” nos últimos anos, esta substituição é realizada a partir da associação com a figura da principal liderança do grupo como espaço prioritário de relação cotidiana com a fé. Devido ao fuso horário e à sua rotina de trabalho exaustiva, Virgínia explica que a pastora “sempre esteve disponível” para ouvi-la “desabafar” e “chorar” nos únicos horários em que ela também teria disponibilidade. Agregando ao papel acolhedor de quem é chamada de “mãe na fé” e de pastora que “sempre está à disposição no privado”, o celular ganha uma dimensão espaço-temporal transformadora nesses cotidianos religiosos. Ao mesmo tempo, as divisões entre público e privado, que reverberam nos dualismos provocados entre igreja e casa, religião e espaço público, são deslocadas por Virgínia, que também utilizava o celular para fortalecer suas relações coletivamente com Deus, amparada em temporalidades específicas ao seu cotidiano como imigrante na Itália. “Estar sempre à disposição” incluía, sobretudo, fazer-se disponível em horários menos comuns para se estar acordada, como a madrugada, ou que podem se adaptar à rotina corrida de trabalho. Além disso, o contato com a pastora estreitou práticas que permitiram formas de aproximação mais calorosas de tratar as pessoas e de viver a experiência religiosa:

Eu sinto muita falta do avivamento! Daquela coisa gostosa de você se derramar, sabe? Eu lembro que um dia eu fui num culto, aí eu comecei a me derramar, eu tava tão emocionada com a presença do Espírito Santo que eu chorava! [...] Tipo assim, às vezes você quer dançar. Aonde é um pecado dançar pra Deus? Tem um louvor, tô dançando pra Deus! Lógico, sempre com ordem e decência... mas as pessoas te olham! [...] Então assim, esse calor da oração, do chorar, do pular, do bater palma, aqui não tem! (Entrevista com Virgínia realizada por chamada de vídeo no WhatsApp, janeiro de 2021)

Assim como Virgínia, Luíza, outra imigrante brasileira na Itália, associava as experiências em igrejas italianas como “muito frias” e “mais tradicionais”, aludindo à falta da manifestação de dons espirituais. Além do espaço de acolhimento direto para seu sofrimento, Luíza ressalta que a pastora Cristiane passou a ocupar um espaço de aconselhamento para dúvidas sobre como praticar a Palavra que ela não havia conseguido encontrar em contatos anteriormente estabelecidos nas igrejas que frequentou. Ao participar de grupos de jovens e ter contatos com outros pastores em diferentes igrejas, Luíza me contou sobre questionamentos que ficavam sem resposta e sobre ter recebido a fama de “pérola rebelde”.

Nestas redes de que Virgínia, Luíza, suas familiares e outras virtuosas faziam parte, a pastora Cristiane se apresentava em contraposição a uma presença distanciada dos pastorados exercidos nos espaços das institucionalidades. Semelhante ao que Miller (2021) chama a atenção a respeito dos usos contextuais dos smartphones, os casos destas mulheres evangélicas imigrantes indicam experiências que evocam vínculos com a memória dos lugares em que nasceram e cresceram. Partindo de diversos exemplos sobre estes usos, o autor explora a noção de smartphones como “casas de transporte”. Integrados aos usos do WhatsApp e outros aplicativos móveis, estes dispositivos têm proporcionado outros modos de convivência mais aceitáveis que os da família tradicional, o que, por sua vez, vem modificando relações familiares e intergeracionais.

Miller indica que as analogias entre usos do digital e espaço doméstico não são novas e foram descritas por diversos autores sobre experiências digitais anteriores ao dos usos de mídias sociais nos smartphones. No entanto, também reflete sobre como a inovação causada por dimensões afetivas da personalização e capacidade móvel dos smartphones tem “criado uma forma de lar que nunca existiu antes” (Miller, 2021, p. 867, tradução minha)10. Considero este dado importante para refletir sobre como os sentidos de igreja têm sido ressignificados entre brasileiras imigrantes evangélicas, na medida em que a condição de multipertencimento e desterritorialização (Appadurai, 1996) em que se encontram remete às memórias afetivas vivenciadas em suas “casas”, modo como também chamam seu país de origem.

No entanto, nem sempre é na dimensão coletiva que muitas escolhem vivenciar estes novos processos. Ao contrário de Virgínia, que integra um dos grupos do WhatsApp, Luíza encontra na troca de mensagens instantâneas com a pastora “no privado” uma maneira de estabelecer contatos com Deus que não foram bem-sucedidos nas igrejas que frequentou. A experiência de Luíza identifica como os vínculos ao Ministério podem ser estabelecidos não necessariamente através da presença nos grupos; os laços sustentados em mediações com a pastora “no privado” também podem ser um meio de habitar noções de pertencimento evangélico.

Se para as interlocutoras são transformados sentidos de casa, parentescos e igreja, as dinâmicas digitais entre coletividades femininas pentecostais constroem também novas carreiras pastorais. Ao fazer parte de um formato digitalizado de interação com sua liderança, as participantes dos grupos de oração estabelecem uma relação de confiança que envolve práticas voltadas à divulgação e crescimento do Ministério. De modo público ou velado, essas mulheres passam a autorizar a partilha de conteúdos como testemunhos e orações, sobretudo aquelas enviadas por mensagem de áudio, para que a pastora os publique em redes sociais e os compartilhe nos diferentes grupos de oração que lidera. Assim, mesmo que Luíza e outras mulheres não estejam no cotidiano online do grupo, a mediação de Cristiane e, em menor medida, também do pastor Bruno fazem com que elas passem a integrar esta coletividade com os “encaminhamentos”11 que promovem a sensação de multidão de vozes compartilhadas nos grupos de oração.

Ao contrário de Luíza, cujo contato está restrito ao elo produzido com a pastora “no privado”, Virgínia está conectada em espaços diferentes e de forma síncrona ou assíncrona com outras virtuosas, promovendo o estreitamento de suas relações com o divino. Ao ouvir uma oração gravada e orar junto, ambas estabelecem comunicações entre si para fortalecer comunicações com Deus. As estratégias adotadas em encaminhamentos de mensagens, vídeos e outros usos feitos pelo casal nesse contexto são parte de um conjunto maior dos deslocamentos que aqui operam. Como indico desde a seção anterior, eles são causados tanto pela flexibilidade em suas carreiras pastorais “voluntárias” como pelos deslocamentos espaço-temporais dos usos religiosos dos smartphones e aplicativos móveis pelas mulheres evangélicas que participam dos grupos. Analiso, por fim, a construção deste Ministério também através de uma perspectiva que considerou as dimensões sensoriais contidas em enviar imagens, gravar e ouvir áudios como canais privilegiados de estabelecimento do que evangélicos pentecostais chamam de “intimidade com Deus”.

O celular como “campo de batalha”

Ore junto, não fica só ouvindo. Tem muitos milagres que não acontece porque você não abre a sua boca.

Tem mulheres q moram em Portugal Londres Itália e Estados Unidos fora as q moram em OUTROS Estados e q fala q até pelo áudio sente a presença de Deus12.

Os hábitos cotidianos de compartilhar imagens e gravar mensagens de voz durante as orações, aliados à prática do casal de pastores de realizar pregações por mensagem de voz, propiciam experiências sensoriais em que o celular passa a ser instrumento que conduz para a ação em batalhas contra demônios que a todo tempo atingem famílias evangélicas pentecostais. Através da impostação da voz que “perde a vergonha”, “abre a boca para orar”, como frequentemente indicam as integrantes em suas orações e a pastora em suas pregações, gravar e escutar áudios corporifica virtudes almejadas nestas condutas.

Nesse sentido, as disposições corporais coletivamente compartilhadas através da circulação de áudios nos grupos de oração recebiam frequentes estímulos das integrantes. Além do envio da pastora Cristiane de “bênçãos especiais” para aquelas que enviassem suas orações neste formato, participantes se justificavam caso deixassem de mandar mensagens de voz durante as campanhas e compartilhassem suas respostas em outros formatos, como textos, emojis e figurinhas13. Enquanto algumas alegavam o impacto de condições de saúde como gripes, ou da “vergonha de falar com Deus” e outros motivos que sinalizavam para diversas questões impeditivas, outras mulheres indicavam a importância do áudio através da solicitação de mensagens de voz com orações. Desse modo, a oração chegaria em quem as necessitasse, a exemplo de familiares enfermos que poderiam orar junto ao acompanhar a voz de quem ora à distância pelo WhatsApp.

Os pedidos pelos áudios não abrangiam somente orações, mas incluíam também outras práticas frequentes, como o envio de mensagens em vídeo e voz por integrantes que estariam presencialmente nos eventos para os quais o casal de pastores era convidado a pregar. Ao longo de registros audiovisuais que fiz de momentos diversos nos cultos, participantes que não estavam nestes eventos pediam para que eu e outras mulheres enviássemos “mais áudios” para que elas continuassem “recebendo bênçãos” e “orando junto”. Estas diferentes situações indicam dois caminhos que me chamaram a atenção para o desenvolvimento de disposições éticas relacionadas à escuta.

De um lado, as formas de participar do grupo nos momentos de oração são hierarquizadas de modo que recursos como mensagens de texto e imagens, como ilustrações, emojis e figurinhas, são menos requisitados. Por outro lado, as mensagens de voz (e não as de texto e outros formatos) com orações e testemunhos das participantes eram os únicos conteúdos compartilhados pela pastora entre os diferentes grupos de oração que gerenciava, produzindo a sensação de multidões de mulheres em diferentes países que oram simultaneamente.

As pedagogias voltadas ao disciplinamento através das orações e pregações em áudios também imprimem condições sensoriais distintas às mensagens compartilhadas em outros formatos pelo WhatsApp. Em seu trabalho sobre a escuta de sermões em fitas cassete entre muçulmanos no Egito, Hirschkind (2006, 2021) argumenta que havia diferenças envolvidas entre escutar sermões e músicas por meio das fitas cassete. Enquanto a música promoveria tranquilidade e receptividades mais espontâneas para o contato com o divino, os sermões movimentariam o que o autor chamou de práticas de “progressão moral”, que envolvem, sobretudo, habilidades cuidadosas do exercício de “ouvir com o coração” (Hirschkind, 2021, p. 215).

Deter a atenção sobre o que se escuta, nesse sentido, seria um diferencial no contexto abordado pelo autor para adquirir profundidade nas práticas de progressão moral. Ouvir áudios realizando tarefas domésticas cotidianas, a caminho do trabalho ou no momento de dormir era comum entre as integrantes dos grupos, configurando-se enquanto práticas estimuladas pelas lideranças como modos de disseminar a Palavra através de mensagens de voz. Tais vantagens aprimoradas pelo WhatsApp também dialogam com os marcadores sociais da diferença que estão em jogo. Entre distintos graus de escolaridade, por exemplo, os áudios e vídeos podem ser priorizados por aquelas(es) que apresentam maior dificuldade em ler e escrever, conforme já apontou Spyer (2018).

Na medida em que o momento coletivo da oração também era vivenciado como privado, a experiência de gravar e ouvir áudios era realizada em locais descritos como “cantinhos de guerra”, espaços estes que não contam com a presença física de outras pessoas. Na imagem abaixo, enviada por uma interlocutora que descreveu seu “quarto de oração” quando falamos dos grupos de WhatsApp em nossa entrevista, sobressaem elementos relacionados à importância de demarcar um lugar reservado no qual se possa “guerrear” em oração. Em conversas que tive a respeito com outras mulheres evangélicas, elas também indicaram ter “cantinhos de oração” que muitas vezes não eram quartos, mas espaços menores da casa demarcados pela presença de elementos religiosos utilizados durante a oração, tais como Bíblia, azeite, suco de uva, pão, entre outros.

Imagem 1
Registro fotográfico de um quarto de oração

Imagens 2 e 3
Ilustrações compartilhadas no WhatsApp

Em paralelo, a circulação de imagens14 determina outros modos como as intimidades entre mulheres eram estabelecidas nestes grupos de oração. Considero os registros domésticos de campanhas e as fotografias de entes queridos, em sua maioria selfies caracterizadas por imagens frontais de rostos ora sorridentes, ora em situações de debilitação em hospitais e situações de violência urbana, fortes propiciadoras da criação de vínculos mantenedores de participações no grupo. Diferente do que ocorre com o apelo lúdico de gifs, figurinhas e emojis coloridos, com efeitos dinâmicos que simulam movimentos, as fotos resultantes da câmera dos smartphones contam com grande engajamento das participantes em orações.

Este engajamento acontece, sobretudo, através do uso de imagens que solicitam por pedidos de oração para pessoas que não fazem parte do grupo. Acompanhadas de mensagens de texto ou de voz que justificam os pedidos pelas orações para “filhos no tráfico”, “filhas na prostituição”, amigas que estão em hospitais, casais que correm o risco de se divorciar, entre muitos outros motivos, tais fotografias viabilizam dinâmicas específicas de confiança e intimidade nos grupos de oração.

Imagens 4 e 5
Registros de participação em campanhas de oração no WhatsApp, montagem feita pelas interlocutoras

As imagens acima, enviadas durante duas campanhas diferentes de jejum e oração, indicam paralelos com a similitude da espontaneidade de fotografias caseiras, resultantes de momentos coletivos de socialidade. Por outro lado, o caráter lúdico de memes, gifs e figurinhas que se relacionam aos momentos de oração promovem outras modalidades de engajamento. Embora ocupem a maior parte das telas de celulares, estas imagens não recebiam retornos das participantes e eram compartilhadas repetidamente e em grande quantidade. Nisto se incluem, além das ilustrações amplamente enviadas em massa por diferentes interlocutoras, as próprias imagens vinculadas às campanhas de jejum e oração que as lideranças compartilhavam de acervos disponibilizados gratuitamente em buscadores na internet ou encaminhadas no próprio WhatsApp por outros contatos (ver, por exemplo, imagens 2 e 3).

Os distintos engajamentos que atravessam as ilustrações de autores(as) desconhecidos(as) estão refletidos na importância que sua combinação com o áudio ou texto exerce para as participantes. Um exemplo disto foi a mensagem de texto compartilhada em um dos grupos de oração por uma participante que pede para que alguém compartilhe com ela uma “passagem de Jonas”, referência a um personagem bíblico presente em uma “ministração” da pastora Cristiane que havia circulado em dias anteriores. Mais do que simplesmente “anexos ao texto principal da etnografia”, estas imagens são “objetos de uma auto-representação” (Silva, V., 2015, p. 59) e indicam dinâmicas relacionais específicas às campanhas, oferecidas com frequência ainda maior nos grupos durante a pandemia do novo coronavírus.

As dinâmicas diferenciadas geradas pelo compartilhamento de imagens autorais são destacadas pela antropóloga Beatriz Lins (2019), que indica como a chegada da câmera frontal nos smartphones trouxe transformações significativas em seus usos. Além dos emojis, gifs, figurinhas e outros formatos de imagem que permeiam o cotidiano lúdico dos grupos de WhatsApp, registrar e compartilhar fotos de si em estéticas amadoras que marcam o tom de intimidade compartilhada se tornou um dos principais meios de estabelecer comunicações em aplicativos de mensagens. Conforme indica a autora, “o envio e recebimento das imagens é uma interação social que invoca noções de lealdade e confiança” (Lins, 2019, p. 66).

Assim como a escuta dos áudios, olhar imagens estáticas e em movimento, autorais e geradas por desconhecidos(as), ver e ouvir vídeos, vêm proporcionando condições sensoriais para a emergência de projetos ético-políticos nos quais as religiosidades pentecostais estão fortemente engajadas. Na experiência corporal e subjetiva de ouvir pregações, vocalizar gravando orações e produzir conteúdos como fotos e vídeos durante os cultos e demais festividades nas igrejas, o engajamento religioso de mulheres evangélicas no WhatsApp demarca um espaço devocional e ocupacional, cuja estética e circulação vem tanto propiciando transformações nos modos de exercer a autoridade religiosa como aprimorando o exercício da fé em experiências religiosas não-institucionalizadas.

Considerações finais

Ao longo deste artigo, argumentei sobre como os usos de grupos de oração por mulheres evangélicas configuram uma rotina digital na qual o WhatsApp, como dispositivo religioso, torna-se tecnologia central para novos modos de exercer institucionalidades, aqui vividas na forma de Ministérios. A atribuição de maior valor ao compartilhamento de mensagens de voz desenvolve sensibilidades em que a escuta cotidiana de áudios autorais produzidos pelas interlocutoras possibilita a emergência de projetos e performances éticas, ampliando circulações femininas mediadas pelo digital. Os usos do WhatsApp são provocados por mobilidades de gênero, raça, classe e geração que tensionam fronteiras entre institucional e não institucional e nos convocam a refletir sobre a privacidade proporcionada por este aplicativo como espaço seguro para viver múltiplas formas de ser evangélica.

Além disso, demonstro como essas coletividades digitais vem promovendo a emergência de novas carreiras, consolidadas através de dinâmicas de viração no pastorado pentecostal. No caso das fiéis, o deslocamento no espaço e no tempo provocado pelo uso do celular não simula a repetição ou a extensão do cotidiano institucional, mas desenvolve um profundo auto cultivo da escuta da oração e o treinamento de novas formas de exercício da fé pentecostal.

Durante o período de realização da pesquisa que resulta neste artigo, a multiplicação de análises sobre eleições e grupos de WhatsApp - e, mais recentemente, do Telegram - formados por evangélicos(as) produziu diagnósticos sobre estes contextos como “novas igrejas”. Considero estas interpretações redutoras, diante de possibilidades complexas e originais que fazer grupos neste aplicativo tem proporcionado. Além de não corresponder ao que ouvi das interlocutoras durante a pesquisa, que constantemente buscavam diferenciar os grupos de WhatsApp em que compartilhavam cotidianos de oração de denominações religiosas que frequentavam ou não, as relações que estas coletividades de mulheres estabelecem com as tecnologias digitais significam rupturas com o que era considerado opressor, alvo de “contaminações”. Muitos exemplos nesse sentido diziam respeito aos conflitos morais vivenciados nas igrejas, e também às experiências negativas relacionadas à “politização” que, segundo elas, teria passado a atingir estes espaços com mais força desde a eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro em 2018.

Se há, nesse sentido, uma expansão nas noções de igreja e um conflito em relação ao modelo analítico do exercício da fé cristã, considerar a vida religiosa no digital apenas como continuidade do templos ou dependente deste subestima a capacidade de seus e suas agentes tanto de produzirem novos formatos para fortalecer a fé coletivamente como de ser evangélicas(os) hoje. Grupos de WhatsApp evangélicos não necessariamente são “grupos da igreja”. Este termo opera uma simplificação que não corresponde às formas como seus membros costumam nomeá-los, dentre as quais “grupos de oração” é a mais frequente.

Na medida em que igrejas foram desde sempre lugares de disputa, vincular qualquer prática religiosa aos templos parte não somente de noções institucionalizadas destes espaços, mas também repercute seu enclausuramento às infraestruturas materializadas em arquiteturas e liturgias específicas a seus contextos de origem. Adotar esta reflexão é importante para não reproduzirmos noções em que as dinâmicas online seriam separadas e/ou secundárias, subordinadas, portanto, ao offline. Assim, em vez de investir em hipóteses sobre atualizações ou replicações de formatos de igreja no digital, aponto para outras materialidades e sensorialidades implicadas em repercutir a fé pentecostal que tanto podem ser físicas, apresentadas principalmente através do uso dos celulares, como adotar o formato de imagens, paisagens sonoras, artefatos litúrgicos e outros objetos que compõem as interações pentecostais.

Grupos evangélicos no WhatsApp tem se tornado erroneamente o alvo de análises que os vinculam unicamente à disseminação de fake news. A convivência etnográfica com tais grupos leva a refletir que a ausência de posicionamentos críticos à ideia de uma fusão entre “evangélicos” e “extrema-direita” no debate público é tão preocupante quanto o caráter salvacionista de tais análises e seu desconhecimento de dinâmicas básicas do cotidiano evangélico no WhatsApp.

As dinâmicas não institucionalizadas desta pesquisa ofereceram a possibilidade de não conceber grupos de oração como extensões das igrejas evangélicas, posicionando imagens, textos e sons do WhatsApp como elementos centrais de uma vida religiosa para além dos templos. Ao analisar as saudações de bom dia/tarde/noite, em sua composição com flores, corações, brilhos, palavras motivacionais e conteúdos bíblicos - que no Brasil levaram à criação do estereótipo das “tias e tios do zap” - busquei alargar a compreensão crítica do imaginário religioso enquanto dimensão transformadora dos usos do WhatsApp em nosso país.

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  • 1
    Este artigo resulta de uma pesquisa financiada com bolsa de doutorado pela Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Tecnológico e Científico do Maranhão (FAPEMA). A autora é doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ) e pesquisadora do NuSEX - Núcleo de Estudos em Corpos, Gêneros e Sexualidades.
  • 2
    Para preservar a identidade das interlocutoras da pesquisa, todos os nomes de pessoas, grupos e instituições utilizados neste artigo são fictícios. Termos e expressões êmicas ouvidas no trabalho de campo serão utilizados entre aspas e remetidas aos seus contextos de fala em nota de rodapé, quando houver necessidade desta explicitação.
  • 3
    Termo pelo qual são popularmente conhecidos locais em que ocorrem vendas de drogas ilícitas no Rio de Janeiro.
  • 4
    Alterno entre os usos dos termos “evangélicos”, “evangélicos pentecostais” ou simplesmente “pentecostais” para me referir ao pertencimento religioso das(os) interlocutoras(es), o que não incluiu os chamados “protestantes históricos”. O termo mencionados faz referência aos protestantes renovados e pentecostais, dissidências do protestantismo que creditam aos movimentos de avivamento, pentecostes ou pentecostalização o poder de manifestação de dons do Espírito Santo, como falar em línguas (glossolalia), profetizar, curar e expulsar demônios (Mafra, 2001). Nesse contexto, encontrei a nomeação “neopentecostais” em menor medida, embora igrejas como a Universal do Reino de Deus tenham feito parte da circulação adotada por grande parte das interlocutoras.
  • 5
    Grupo de oração é um termo amplamente utilizado para designar reuniões entre membros que podem ser tanto da mesma religiosidade quanto mais restritos a determinadas denominações religiosas. Ao longo desta pesquisa, observei a ocorrência desta nomeação em diferentes mídias sociais, cuja referência mais direta era feita às coletividades formadas por grupos cristãos católicos carismáticos. Entre as interlocutoras, seus usos davam continuidade a práticas tradicionais no contexto evangélico, como os “círculos de oração”, cujas práticas estão mais voltadas à leitura coletiva e estudo dirigido da Bíblia.
  • 6
    Como contraponto, trabalhos como os de Cesarino (2020) têm apostado na rentabilidade da etnografia em grupos de WhatsApp. A autora analisa disputas travadas na extrema direita brasileira no interior do que chamou de “arquitetura neoliberal do digital”. Perspectivas como esta fornecem críticas das explicações simplistas e preconceituosas que imputam aos grupos evangélicos a disseminação de notícias falsas.
  • 7
    Para os casos de pesquisas que envolvem riscos à integridade física dos(as) pesquisadores(as), vale ressaltar que as preocupações sobre a posicionalidade da pesquisa no âmbito dos estudos sobre a internet têm motivado diferentes abordagens ético-metodológicas em busca de preservá-los(as) de potenciais ataques. Ferguson (2017), por exemplo, adotou a categoria “online lurker” para suas investigações sobre crimes e transações ilícitas na “darknet”.
  • 8
    As campanhas são ocasiões em que participantes se reúnem para cumprir um objetivo, geralmente relacionado a um tema proposto pela liderança religiosa, tais como vida sentimental, financeira, cura para doenças, entre outros. O termo “campanha” também pode ser utilizado como alternativa aos termos “propósito” e “ato profético”, envolvendo práticas em que se profetiza por ações divinas no mundo e intercessão para causas consideradas difíceis. Em geral, tais ações são realizadas de modo coletivo e, em alguns contextos, também é comum que à dinâmica da batalha espiritual se agregue a execução de atividades específicas para se comunicar com Deus, com a utilização de objetos, “pontos de contato” como peças de roupa, fotografias, óleo de unção, entre outros. As atividades e objetos frequentemente recriam passagens bíblicas e remetem aos usos feitos por apóstolos para operar milagres através da fé.
  • 9
    A expressão bíblica do Velho Testamento corresponde à posição de humilhação e submissão perante Deus. Ver: Lamentações 3, 29: “Ponha a sua boca no pó; talvez ainda haja esperança”.
  • 10
    No original, em inglês: “the smartphone is a form of home that has never previously existed”.
  • 11
    A função “encaminhar” foi adotada pelo WhatsApp em 2014, permitindo que o(a) usuário(a) possa enviar uma mesma mensagem para diferentes contatos. Desde 2019, a empresa Meta, que gerencia o aplicativo, gerou um limite para o encaminhamento simultâneo de uma mesma mensagem para até cinco contatos ou grupos por vez. A partir de 2020, mensagens identificadas como “encaminhadas com frequência” foram limitadas ao envio para um contato ou grupo por vez.
  • 12
    Trechos de mensagens de voz e texto, respectivamente, compartilhadas nos grupos de oração “Mulheres Virtuosas” no ano de 2018.
  • 13
    Originalmente nomeadas de “stickers”, ou “adesivos” em inglês, as figurinhas chegaram ao WhatsApp em 2019 e possibilitaram tanto ampliar formatos para compartilhamento de memes quanto agregar outros modos de comunicação através do aplicativo (Germano, 2019). Trata-se de pequenos ícones com imagens estáticas ou em movimento, que contam com dinâmicas autorais de produção facilitadas através de recursos de fácil acesso, como aplicativos gratuitos voltados a esta atividade. Tais dinâmicas de produção não se estendem somente a indivíduos, mas também a grupos formados por empresas e organizações não institucionalizadas que têm utilizado figurinhas para ampliar a divulgação de seus conteúdos.
  • 14
    Neste plano da observação participante, solicitei a autorização das interlocutoras para uso de imagens, áudios e mensagens de texto compartilhados nos grupos de WhatsApp. Na medida em que não tive contato direto com todas as participantes dos grupos, utilizei somente conteúdos daquelas cujo contato se estendeu à realização de entrevistas e/ou convivência presencial no trabalho de campo. Para mais acordos éticos estabelecidos no uso de informações compartilhadas nos grupos, ver Mochel (2023).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2022
  • Aceito
    02 Jan 2023
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