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LOPES, Twig Santos. 2024. Violência Política contra as Mulheres. Rio de Janeiro: Mórula. 272 p.

LOPES, Twig Santos. Violência Política contra as Mulheres. Rio de Janeiro: Mórula, 2024. 272

Concluir a leitura do livro Violência Política contra as Mulheres me fez lembrar da historiadora feminista Joan Scott e seu texto Usos e abusos do gênero (2012). A autora começa esse escrito dizendo que, depois do sucesso do seu clássico texto Gênero: uma categoria útil de análise histórica ([1995] 2019SCOTT, Joan. 2019. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.), amplamente lido e referenciado, ela pensou que a desnaturalização de diferenças sexuais antes consideradas como inatas/naturais havia se tornado uma espécie de senso comum científico, um pressuposto de diversos estudos. Desse modo, o gênero teria deixado de ser uma agenda de pesquisa, pois não demandava maiores esforços analíticos para ser compreendido.

Porém, ao contrário do que pensou durante um tempo, Scott conclui que ainda vale à pena estudar e investir - academicamente e politicamente - em gênero. Ela começa o Usos e abusos do gênero dizendo que talvez o conceito de gênero houvesse esgotado suas potencialidades. Porém, os acontecimentos daquele período na França, país ao qual a historiadora americana dedica inúmeros estudos, a fizeram mudar de ideia e renovar seu interesse nos estudos de gênero. Uma cartilha sobre o corpo humano, aprovada pelo Ministério da Educação causou intensos debates na primavera de 2011, sendo censurada por políticos católicos e certos pais e educadores. O material mostrava fotos de casais de orientações sexuais diversas - um casal formado por duas mulheres, um por dois homens e outro heterossexual - para, logo na sequência, deslindar sobre funcionamento do corpo humano, hormônios, etc. Os críticos da cartilha diziam que o “gênero” estava desestabilizando os papéis naturais entre homens e mulheres, inclusive a orientação sexual heterossexual.

Outra situação citada por Scott (2012)SCOTT, Joan. 2012. Usos e abusos do gênero. Projeto História. 45, p. 327-351. é a polêmica sobre o uso do véu - hijab - por estudantes mulçumanas em escolas francesas. Segundo a historiadora, as defesas dessa proibição sugerem um suposto apreço francês pela igualdade entre homens e mulheres, o que deixa implícita a ideia de que as normas mulçumanas quanto ao gênero sejam retrógradas e menos “civilizadas” que as francesas. É um uso do gênero que formula imagens de nações e religiões mais ou menos civilizadas/desenvolvidas e que está ligado a uma questão de migração e de relações internacionais. Scott (2012)SCOTT, Joan. 2012. Usos e abusos do gênero. Projeto História. 45, p. 327-351. utiliza esses dois episódios para mostrar o quanto debates sobre gênero ainda estão em voga, sendo parte do cenário político contemporâneo e, por isso, demandando, ainda, bastante reflexão.

Algo semelhante ocorre com os estudos sobre violência contra a mulher ou sobre mulheres em situação de violência no contexto brasileiro. A promulgação da Lei Maria da Penha e os quase vinte anos de sua implementação (a lei é de 2006) podem dar a ideia, como se verá na sequência, errônea, de que há uma espécie de esgotamento no tema da violência contra as mulheres. O livro de Twig Lopes, baseado em sua tese de doutorado defendida em 2023 no Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio, mostra que não. Existem renovadas discussões sobre mulheres e violência que não se encerram na violência doméstica. E o mundo social - os movimentos de mulheres inclusos - reage criticamente ao elaborar novas categoriais de mobilização social e jurídicas para dar conta do machismo e da misoginia que atravessa nossas vidas e instituições. Ao se debruçar sobre a violência política contra as mulheres, Lopes mostra que esse é um nome novo para um problema antigo, que agora começa a ser enfrentado de frente por parlamentares brasileiras.

Com prefácio de Luciana Costa, professora do departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e orelha de Paula Lacerda, professora do departamento de Antropologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o livro está dividido em três capítulos. No primeiro, intitulado Movimentos feministas e de mulheres: o surgimento do “mosaico de diversidades” em meio à luta por (re)democratização no Brasil, a autora resgata a deflagração da segunda onda feminista no Brasil em meio à ditadura militar, nos anos 1960/70, evidenciando a pluralidade de grupos e de demandas feministas/de mulheres desde aquele período, embora o contexto fizesse com que elas se unissem em torno da bandeira comum do fim da ditadura. A autora mostra como as articulações desde essa época culminam na priorização da luta contra a violência como a principal bandeira dos movimentos feministas brasileiros. Considerados, sempre, em sua pluralidade, como Lopes se preocupa em demonstrar.

O segundo capítulo, denominado Sobre o ato de nomear: teorizando sobre violência política, traz as discussões teóricas das Ciências Sociais, particularmente da Ciência Política, para pensar as questões da representação feminina na política, passando pelas cotas de mulheres nas candidaturas ao executivo e ao legislativo, a discussão atual sobre o assunto, pois houve algumas mudanças legislativas recentes quanto às cotas, até chegar à violência política. Nesse ponto, fica evidente a relação entre baixa representação feminina e violência política; e forjar tal relação é um dos ganhos da obra. Nesse mesmo capítulo, Lopes traz autoras de outros países da América Latina, especialmente da Bolívia, país a ter a primeira lei sobre violência política de gênero, para mostrar como a discussão ocorre em outros locais, evidenciando a especificidade do Brasil quanto ao assunto. Diferente da Bolívia, em que a legislação diferencia assédio de violência política, criando espécie de gradações entre os fenômenos, na formulação brasileira não houve a criação de gradações entre assédio político e violência política.

No capítulo 3, Expressões da violência política contra mulheres no Brasil, a autora volta-se para situações de violência política vividas por cinco parlamentares, a partir de dados secundários, depoimentos públicos destas mulheres em seus perfis de redes sociais e, também, no livro organizado por Manuela D’Ávila, Sempre foi sobre nós: relatos de violência política de gênero (2021D’ÁVILA, Manuela. 2021. Sempre foi sobre nós: relatos de violência política de gênero no Brasil. Porto Alegre: Instituto E se fosse você.). É nesse capítulo também que autora apresenta análises sobre a lei que institui a violência política no código eleitoral (Lei nº 14.192/2021) e que cria o crime de violência política no código penal (Lei nº 14.197/21). Lopes debate as implicações da escolha legislativa ao criar um crime eleitoral, cujas vítimas podem ser somente candidatas mulheres ou mulheres detentoras de mandatos, e, simultaneamente, uma lei que cria um crime comum - violência política - cujas vítimas podem ser quaisquer pessoas que tenham seus direitos políticos restringidos.

Nas discussões sobre as mudanças legislativas, a autora analisa o primeiro processo de violência política de gênero na justiça eleitoral, ainda em tramitação, que trata da violência sofrida pela vereadora de Niterói (RJ), Benny Briolly, além das discussões legislativas quando da aprovação das mudanças legislativas no Congresso Nacional. Como Lopes destaca na introdução do livro, o debate sobre violência política contra as mulheres é recente e também o é as leis que têm buscando encapsular juridicamente o fenômeno. O que a autora faz é mostrar como ocorreu a emergência dessa discussão, indicando caminhos para análises futuras sobre a violência política contra as mulheres. Como ocorre a violência política contra mulheres de extrema direita? Elas reconhecem ter sofrido esse tipo de violência? O que deve ocorrer com aqueles que praticam esse tipo de violência? A lei penal é adequada para conter a violência política ou são necessários outros meios jurídicos para conter essa espécie de violência? São perguntas ainda em aberto e que o livro pode ajudar na reflexão que leve a algumas respostas. E, por gerar questionamentos para esses problemas sociais - e acadêmicos - no presente é que a leitura da obra se impõe.

Referências

  • D’ÁVILA, Manuela. 2021. Sempre foi sobre nós: relatos de violência política de gênero no Brasil. Porto Alegre: Instituto E se fosse você.
  • SCOTT, Joan. 2012. Usos e abusos do gênero. Projeto História 45, p. 327-351.
  • SCOTT, Joan. 2019. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2024
  • Aceito
    24 Maio 2024
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