Open-access Preceitos e consequências da unificação de lógica e metafísica por Hegel: uma reconstrução com base na noção metacategorial da negação

Precepts and consequences of the unification of logic and metaphysics by Hegel: a reconstruction based on the metacategorial notion of negation

RESUMO

Este trabalho apresenta uma interpretação acerca do papel sistemático do movimento lógico na filosofia madura de Hegel, bem como, a partir disso, oferece uma hipótese histórico-genética para a compreensão do desenvolvimento da unificação de lógica e metafísica aplicada de maneira consolidada, primeiramente, na Fenomenologia do Espírito. Mais especificamente, extraímos da diferenciação entre a Lógica (die Logik) e o lógico (das logische) um recurso para explicação da noção metacategorial que Hegel possui de seu método de negação autônoma estendido tanto à lógica, quanto à filosofia da natureza e à filosofia do espírito como disciplinas diversas. Doravante, mostraremos como a compreensão metacategorial da negação tem seu surgimento a partir dos ajustes sistemáticos que Hegel realiza ainda em Jena e como a plena aplicação deste método funcionava como ponto resolução de seus impasses filosóficos.

Palavras-chave: lógica; Fenomenologia do espírito; negação; Hegel

ABSTRACT

This paper develops an interpretation about the systematic role of the logical movement in Hegel’s later philosophy, as well as offers a historical-genetic hypothesis for understanding the development of the unification of logic and metaphysics first applied, in a consolidated way, in the Phenomenology of Spirit. More specifically, we draw from the differentiation between Logic (die Logik) and the logical (das logische) the resource for explaining Hegel’s metacategorial notion of his method of autonomous negation, extended both to logic, philosophy of nature and philosophy of spirit as diverse disciplines. Henceforth, we show how the metacategorial understanding of negation has its emergence from the systematic adjustments that Hegel makes while still in Jena and how the successful application of this method operated as a point of resolution of his philosophical impasses.

Keywords: logic; Phenomenology of spirit; negation; Hegel

1 Introdução

É inegável o salto filosófico-institucional através do qual Hegel foi submetido entre o período de redação do prefácio da primeira e o prefácio da segunda edição da Ciência da Lógica. Antes de qualquer análise teórica comparativa, é preciso ressaltar a distância temporal relativa à redação de ambos. Suas obrigações tornaram-se muito mais exasperantes em Berlim do que eram em Nuremberg, bem como sua fama aumentou consideravelmente e, consequentemente, a necessidade de se posicionar sobre diversos elementos da vida cultural e filosófica tornou- se tarefa exasperante. É natural então que o primeiro prefácio, de 1812, contraste com o segundo, redigido mais tardiamente sob condições e circunstâncias completamente diferentes da vida e da produção de Hegel. A título de exemplo, a data divulgada da redação do Prefácio da segunda edição é 7 de novembro de 1831, ou seja, precisamente uma semana antes de sua morte.

Hegel, no primeiro Prefácio, chega a falar da efervescência evanescente de quando uma nova criação vem à tona (Hegel, 2016, p. 27), no entanto, com a Ciência da Lógica a coisa parece ter ocorrido de maneira diferente exatamente pela necessidade que ele encontrou e supriu através dela ao centralizá-la como uma espécie de chave fundamental para o controle de seu modo filosófico de proceder, a saber, a respeito dos diversos conteúdos e temas com os quais ele lidou naquele intermédio. Diante disso, em comparação com o primeiro, é visível que a riqueza filosófica contida no Prefácio da segunda edição denuncia aquela necessidade de utilizar mais largamente o potencial teórico que a obra possibilitava, com isso, a oportunidade de reposicionar um conteúdo de quase vinte anos atrás mediante carecimentos filosóficos e institucionais renovados. Cabe-nos, assim, a busca pelos matizes filosóficos que se deixam revelar através destes textos de época e momentos tão diferentes da vida do autor.

Escrito cinco anos após a publicação da Fenomenologia do Espírito, de 1807, seria natural que Hegel ao apresentar sua nova obra sentisse a necessidade de dar explicações a respeito das conexões entre elas, ainda mais estando imerso num ambiente onde o fazer filosófico confundia-se com o fazer filosófico sistemático. Isso, bem como também por erigir seu próprio pensamento sob as bases de uma forte crítica a Kant, àquele que verdadeiramente havia deixado um cânone metódico, representado por suas três famosas Críticas. No entanto, quando dissemos que a partir do segundo ele percebeu que poderia utilizar aquela obra para o controle de seu proceder filosófico, estávamos falando exatamente que Hegel entendeu que a Ciência da Lógica continha precisamente os fundamentos de sua “spekulative Kunstprosa” (Henrich, 1976, p. 208), ou seja, um meio de operacionalização lógica da realidade que não pressupunha uma explicitação particular para cada conteúdo trabalhado, tal como ocorria com cada uma das Críticas de Kant, mas um tipo particular de articulação que poderia ser aplicado a todo e qualquer conteúdo. Neste sentido residem os liames da posição a partir da qual a Fenomenologia aparece no interior dos dois Prefácios.

No Prefácio da segunda edição a noção de que as disciplinas da lógica e da metafísica haviam sido unificadas parecia ter criado em Hegel a possibilidade de visualizar um controle de todo seu sistema mediante as bases de um modo de proceder conceitual sobre o qual nenhuma crítica que não estivesse voltada especificamente ao seu próprio arsenal metódico lógico poderia atingir sua teoria. Isso então lhe permitiu um ordenamento sistemático menos rígido a respeito da conexão entre suas obras, uma vez que sua “arte prosaica especulativa” havia sido já desenvolvida, cabendo então ser aplicada a todo o conteúdo da realidade. Esta seria a prova de controle sistemático de Hegel. No entanto, o uso desse controle parece ainda hoje ser objeto de discussões teóricas, uma vez que ali ele oferece uma série de exemplos sobre o conteúdo da lógica como fundamento puro, podendo-se dizer até que valeria como disciplina validacional de um universo constituído espiritual e naturalmente, ou seja, de uma possível precedência lógica em relação àquelas outras partes da filosofia, por exemplo, as demais que foram incluídas na Enciclopédia das ciências filosóficas. Neste caso, seria então mediante esta orientação que Hegel afirmaria que:

[...] esses pensamentos de todas as coisas naturais e espirituais, mesmo o conteúdo substancial, são ainda um [conteúdo] tal que contém várias determinidades e ainda tem nele a diferença de uma alma e um corpo, do conceito e de uma realidade relativa: a base mais profunda é a alma para si, o conceito puro, que é o mais íntimo dos objetos, simples pulso da vida tanto deles quanto do próprio pensar subjetivo dos mesmos (Hegel, 2016, p. 37).

Além de que, para utilizarmos uma expressão de Hegel no escrito Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling, de 1801, pareceria “desajeitado” [ungeschickt] introduzir a Fenomenologia, enquanto momento da ciência, como uma espécie de antessala necessária ao Saber absoluto ao qual ela alcança, uma vez que aquela pretensão ienense, pré-Fenomenologia, de estabelecer uma “Logica et Metaphysica sive systema reflexionis et rationis” havia sido abandonada, ou seja, a necessidade de atribuir um local cuja natureza e tarefa eram meramente negativas, isto é, crítica de todas as falsas pressuposições. Isso depõe a favor do fato de aquela afirmação da existência de um modo de proceder da lógica a ser aplicado aos demais conteúdos seja a pedra de toque da relação entre a Lógica e a Fenomenologia, podendo, ademais, revelar de modo mais profundo os matizes do Hegel ienense e o Hegel de Nuremberg e Berlim.

Em consonância, a princípio, com a própria Fenomenologia aprendemos a não considerar pontos de vistas parciais, mas sim que a verdade está no todo, com isso, que “nem o resultado é o todo efetivo, mas sim o resultado junto com o seu vir-a-ser” (Hegel, GW9, p. 10). Mas além da negativa de ser a Fenomenologia uma antessala, talvez deporia também contra a declaração do conteúdo da lógica ser em si mesmo como um modelo de controle metodológico constituinte de toda a doutrina, uma vez que é afirmado no Prefácio da primeira edição que “seu automovimento é sua vida espiritual e aquilo pelo qual a ciência se constitui e do qual ela é apresentação” (Hegel, 2016, p. 29). Mais especificamente, o reino puro das essencialidades da lógica também estaria em atividade e constituição no proceder espiritual, a saber, aquele no qual a Fenomenologia representava seu conteúdo concreto, estando ela mesma para além de uma propedêutica.

Como vimos, a tensão entre o Prefácio da primeira e o da segunda edição, tal como enfatizamos mediante o problema da relação entre Lógica e Fenomenologia, extrapola o sentido sistemático-organizacional da obra hegeliana e diz respeito muito mais sobre a natureza das funções e categorias lógicas que Hegel apresenta, ou, mais especificamente, de que maneira elas se relacionam com o espírito como algo concreto e exteriorizado. No entanto, cremos que temos razões para demonstrar que essa discussão se dilui no interior da perspectiva hegeliana introduzida já no ato de unificação entre lógica e metafísica, a partir da qual podemos adicionar o adjetivo substantivado “ontológico” quando nos referimos à lógica de Hegel, que se torna patente a partir da introdução da grande lógica.

Há, em certo nível, o anúncio implícito de uma mudança de paradigma nas primeiras linhas de desenvolvimento da escrita do Prefácio da primeira edição da Ciência da Lógica, datado de 1812, que não dizia respeito especificamente àquela obra. Desde a Fenomenologia fica explícito seu empenho teórico em progredir filosoficamente a partir da unidade entre aquilo que nos primeiros anos de Jena poderia ser encontrado de modo separado. Isso diz respeito à unificação entre as disciplinas da lógica e da metafísica, cujo gérmen de tal feito pode ser rastreado desde a concepção do texto que a edição crítica das obras hegelianas preferiu chamar de Systementwürfe II, datado de 1804/05. Este paradigma implícito reforça o caráter inovador do intento de Hegel e isso pode ser visualizado quando ele realiza o diagnóstico filosófico de seu tempo ao dizer que até aquele momento a metafísica havia sofrido poderosas e determinantes modificações ao passo que a lógica havia até então se mantido inalterada. Ora, se os chamados Esboços de sistema de Jena ainda padecem de uma maior exploração por parte da comunidade acadêmica lusófona, todos aqueles que conhecem bem os primeiros movimentos filosóficos da Fenomenologia conseguirão captar a partir disso que Hegel está implicitamente dizendo que sua filosofia, com aquela obra, havia sido a primeira e única até então a realizar uma reviravolta na forma da relação entre as duas disciplinas, ou seja, ele não está anunciando apenas o que fará, mas o que já fez e que não havia sido até então metodologicamente exposto, mas que adiante viria à luz a partir de uma diferente perspectiva. Em outras palavras, a asseveração do descompasso a respeito do movimento filosófico acerca das duas disciplinas, uma sendo modificada amplamente, enquanto a outra permanecia inalterada, indica, de todas as formas, que ambas até então haviam sido concebidas separadamente pela tradição. Isto se explicita quando Hegel diz que, como ele havia lembrado em outro lugar, lugar este a Fenomenologia, “a filosofia, na medida em que ela deve ser ciência, [...] é apenas esta reflexão própria do conteúdo que põe e gera essa sua própria determinação” (Hegel, 2016, p. 28).

Desta forma, o diagnóstico hegeliano acerca do estado de ambas as disciplinas não diz respeito apenas sobre a forma como elas foram trabalhadas nas mãos de outrem, mas também por suas próprias e de tal modo que isso anuncia o tipo inovador de filosofia que ele estava a empreender. A importância desta abordagem trazida à tona na obra de 1812, mais lúcida, acabada e dedicada exclusivamente ao conteúdo da lógica, reside exatamente em tornar explícito aquilo que em Jena, como ele afirma em carta a Niethammer de 20 de maio de 1808, “quase não lancei os fundamentos” (Hegel, 1952, p. 230), apesar de, se pudermos completar, sua aplicação ter sido claramente promovida. Com isso, parece brotar alguma rosa nas cruzes dos diligentes candidatos à dispendiosa investigação acerca da relação entre a Fenomenologia e a Ciência da Lógica, bem como na relação entre os dois prefácios desta obra. De acordo com o que dissemos, não apenas algum conteúdo da Fenomenologia é reafirmado na grande lógica, mas o principal deles.

Mas esse lançar de luz em torno desta problemática, perene à exploração da relação entre as duas obras, pressupõe-se a difícil tarefa imposta mediante a Introdução da Ciência da Lógica, isto é, de discutir um conteúdo fundamental, mas que não pode estar proposicionalmente lá. Isto é, buscar uma compreensão mais precisa do que estamos a dizer quando falamos que Hegel compreende como princípio da lógica um ato relacional e, assim, como ele introduz sistematicamente esta tese, grosso modo, em outras palavras, o que estava implícito nesse ato de unificação entre lógica e metafísica. Talvez a força efervescente de quando Hegel começou a realizar esta operação estivesse mais varonil e não seja de todo inútil demonstrar o que estava em jogo naquela ocasião.

2 A negação autônoma e o princípio metacategorial

Hegel começou a pensar nessa unificação no momento em que abandona definitivamente o espinosismo complexificado à realidade alemã e passa a considerar que a relação de substancialidade “não permite deduzir sua gênese [do Absoluto] como um processo ativo de autogeração, que, diferentemente, estaria já pressuposto naquela estrutura fundamental do ‘outro de si mesmo’” (Oliveira, 2020, p. 82). A descoberta desta estrutura fundamental, mediante os modos de funcionamento da subjetividade, ou autoconsciência, como um ato relacional, que aconteceu por volta de 1804, lhe proporcionou a possibilidade de asseverar implicitamente que, como afirma Horstmann, “tudo o que pode ser considerado como uma entidade [Entität] deve satisfazer certas condições formais” (Horstmann, p. 12-13).

Este princípio pode ser rastreado até o desenvolvimento das diretrizes teóricas que perfazem a Introdução da Ciência da Lógica mediante a necessidade de um início da ciência sem reflexões preliminares ou “formas da reflexão ou regras e leis do pensar, pois elas constituem uma parte de seu próprio conteúdo e têm de ser apenas fundamentada no interior dela” (Hegel, 2016, p. 45). É este local específico de fundamentação de seu próprio conteúdo que nos interessa aqui, ou seja, aquilo que operacionaliza em geral aquele arsenal de determinações lógicas, que surgem no nível do pensamento puro, no curso do progresso da lógica. Isso é suposto uma vez que as próprias determinações lógicas e seu progresso são pronunciadas em proposições articuladas, quer dizer, para o desenvolvimento das categorias é implicitamente pressuposta uma operação básica que seja ela mesma a aplicação de certo inventário de formas e princípios lógicos. Ou seja, supõe-se uma operação interna básica na qual as próprias categorias, em igualdade com seu conteúdo, possam ser apresentadas de maneira relacional. O sucesso de Hegel, deste modo, consistirá em fazer com que esse princípio não se confunda com uma aplicação de regras de inferência proposicionais, mas que ele oportunize e surja do próprio progresso daquelas relações, de maneira que as novas determinações que surgem, aquilo que advém progressivamente, seja consequência necessária das contradições performativas dos relata. Isso é razoavelmente fácil de perceber uma vez que todas as categorias lógicas apresentadas progressivamente trazem em si aspectos que remetem a seus sucessores, de maneira que, consideradas isoladamente, elas mesmas não apresentam determinações adequadas da verdade, mas apenas aspectos parciais desta. Essa operação diz respeito àquelas condições formais que não são apenas aplicáveis às categorias lógicas, mas igualmente a toda realidade e, com isso, também às demais partes do sistema, tal como aquelas apresentadas na Enciclopédia. Em outras palavras, a prioridade hegeliana estaria depositada não em uma parte de seu conteúdo sistemático, mas numa operação fundamental que o justificaria.

Segundo Dieter Henrich “precisamos de uma doutrina metódica destas justificações, que teria o caráter de uma ‘metalógica’” (Henrich, 1971, p. 93). Henrich tende a enxergar através desse procedimento o estabelecimento de um controle metodológico, o que corrobora certa interpretação centralizadora dos preceitos dos expoentes da filosofia pós-kantiana, visível tanto em seu artigo Fichtes ursprüngliche Einsicht, onde atribui à descoberta do princípio da reflexão da subjetividade o controle metódico para todo aparato filosófico de Fichte, quanto em Hegels Grundoperation, quando coloca sob as bases da “negação autônoma” o princípio de ordenamento lógico da realidade de Hegel, ou seja, a descoberta da lógica especulativa, característica da metafísica moderna, pensando assim as relações entre subjetividade e sociabilidade sem o recurso a nenhum tipo de atalho, ou seja, nenhuma Einsicht, como em Fichte. Essa operação consistiria no aspecto peculiar sobre como Hegel autonomizou a negação enquanto “conceito lógico [logische Begriff], que é fundamento para todo conhecimento especulativo” de modo que “a ‘única afirmação verdadeira’ [...] é entendida como a negação da negação” (Hegel, 1986, p. 237).1 Isto consistiria exatamente numa “operação lógica fundamental” que lhe garantiria um “arsenal metodológico controlável” (Henrich, 1976, p. 213). Com isso, o conteúdo dessa metalógica, ou metacategoria, deveria ser retirado da operação fundamental regente da estrutura interna do desenvolvimento das determinações do pensamento puro, quer dizer, que não faz referência a nenhum pressuposto proposicional estanque, mas que enseja a autodeterminação.

Autodeterminar-se significa dar a si mesmo uma determinação, quer dizer, negar a si mesmo, contudo, ao passo que é uma negação autorreferente, uma autodeterminação, e não uma negação pré-determinada, não consiste numa perda de si mesmo, mas em um enriquecimento de si por si: “A forma, assim pensada em sua pureza, contém nela mesma o fato de se determinar, isto é, de dar a si conteúdo e, com efeito, dar o mesmo em sua necessidade - como sistema das determinações do pensar” (Hegel, 2016, p. 66). As categorias lógicas representam, assim, formas explícitas do autodesenvolvimento daquela forma absoluta, expressa enquanto negação autônoma e idêntica a si mesma que, por ensejar movimento, o aparecimento de novas determinações, diz respeito a uma operação fundamental, que é a fonte de todo o progresso lógico imanente. Deste modo, o curso das categorias lógicas pode ser derivado da negação autorreferencial, ainda que o próprio Hegel não tematize essa operação no início do movimento das determinações, quer dizer não apresente explicitamente a negação autorreferente no início. Na Lógica do Ser, o curso das determinações ocorre latentemente, observando a operacionalidade da negação autônoma pressuposta nas passagens do curso dos conceitos da lógica.

É mediante o caráter necessariamente autoexclusivo desta operação, como um pressuposto autorreferente, que se diz ser possível encontrar “as dimensões da lógica e do lógico, die Logik und das Logische, expressando a lógica os modos de pensar e ser, e o lógico esses modos do ponto de vista totalizador do espírito” (Pertille, 2011, p. 64). O lógico é um princípio totalizante e uma operação atuante, Operation e Operandum, que não é temático no mesmo nível de argumentação das categorias da lógica, posto que não é um elemento entre outros - caso contrário se confundiria ele mesmo com os elementos que sua atuação operacionaliza - mas deve se manifestar indiretamente em todo momento do movimento da lógica. Já aquela autorreferencialidade, que operacionaliza imanentemente o desenvolvimento categorial através de uma autorrelação, indica imperativamente que para Hegel, os objetos da lógica são pensamentos objetivos, o que implica que esta disciplina coincida com a metafísica, uma vez que estes pensamentos não só contêm a legitimação, mas também fornecem informações sobre como o mundo realmente é. A negação, mediante as regras que a regem, figurada naquilo que Hegel chama de Aufhebung, “seria um conceito que aparece nesse primeiro grande movimento da Ciência da Lógica, mas que se apresenta na estrutura de desenvolvimento de todo o processo lógico, natural e espiritual” (Pertille, 2011, pp. 64-65). Na Enciclopédia das Ciências filosóficas Hegel diz que o “[...] o lógico é a forma absoluta da verdade e, ainda mais que isso, é também a própria verdade pura” (Hegel, 2012, p. 66).

Considerando as demais partes daquela estrutura, seria papel específico da lógica tematizar aquele proceder da dupla negação, enquanto fundamento do conceito lógico, “em sua função especificamente ‘pura’” (Nuzzo, 2004, p. 41). Deste modo, poderíamos captar a partir da Ciência da Lógica uma macro operação estruturante que, caso estendida, poderia dar o tom também sobre todas as partes em que Hegel separou sua filosofia. Sobre essas partes, nos referimos àquelas distinguidas na Enciclopédia, mais especificamente a Lógica, a Filosofia da Natureza e a Filosofia do Espírito. Segundo Angelica Nuzzo, “o lógico é o próprio pensamento assumido como forma”, entretanto, “ao contrário da lógica, o elemento lógico não consiste numa ciência particular ou numa parte da filosofia em geral, mas é, antes, coextensivo com a totalidade” (Nuzzo, 2004, p. 41). Deste modo, é mister compreender a lógica enquanto uma parte do sistema e o lógico como operação legitimadora do funcionamento de toda a ciência, ou melhor, como diz Fulda, que “leva em conta o que pertence ao ‘fato’ de tais ciências, mas ao mesmo tempo promove mais o autoconhecimento filosófico” (Fulda, 2006, p. 26).

A partir dessa operação fundamental da negação autônoma, a qual ligamos aqui ao sentido empreendido ao das Logische, Hegel acreditou poder demonstrar de que maneira é possível a realização de uma doutrina científica sem pressupostos, ou seja, uma doutrina que fosse exitosa mediante o famoso dilema filosófico do critério, a saber, indicando por sua vez uma espécie de uma ontologia superior, isto é, diferente de uma ontologia basal que supusesse os aspectos subjetivos daquele que questiona sobre o ser. A negação hegeliana fundamental devia ser autônoma exatamente por esse seu caráter, tal qual afirmado na Introdução da Ciência da Lógica, a saber, de ser sem pressupostos, ou seja, de ser autossuficiente como estrutura operacional através da qual todas as categorias presentes na obra são submetidas. Basta concedermos que o movimento categorial é sem pressupostos e que a progressão é coerente para que visualizemos na lógica aquele princípio metacategorial do lógico, ou seja, é o próprio movimento imanente uma demonstração sucessiva de sua própria possibilidade. Neste sentido, a tensão entre “ausência de um pressuposto e a assunção de um resultado faz da negação autônoma a fonte de um progresso lógico imanente. Pode, portanto, servir para justificar o discurso de uma ‘negatividade absoluta’ como a característica do filosofar de Hegel” (Henrich, 1976, p. 215). Assim, aquele carecimento visualizado por Hegel, de realizar um controle de seu sistema mediante um aparato lógico fundamental, é ilustrado pela ocorrência frequente do das Logische no Prefácio da segunda edição da grande lógica em detrimento do primeiro, apesar de poder ser encontrado em articulação já na versão de 1812 da introdução da obra. Esse procedimento, invés de supor uma visão de mundo como fundamento do procedimento filosófico, como bem observara Michael Forster, tratava-se de “uma prova para pontos de vista não científicos, convincente à luz dos próprios pontos de vista e critérios daqueles” (Forster, 1989, p. 158).

3 Pressupostos histórico-filosóficos da unificação de lógica e metafísica

Este parece ser o movimento fundamental que Hegel realiza a partir do momento que efetiva a unificação entre lógica e metafísica, pois este movimento, de autonomizar a negação para além de uma perspectiva meramente formal e subjetiva, foi o que estava fundamentalmente no pacote de desenvolvimento sistemático ocorrido por volta de 1805, quando a lógica deixa de servir apenas como “introdução à filosofia”, eliminando os obstáculos postos pela reflexão no “caminho da especulação”. Grosso modo, o que aconteceu foi que de 1800 a 1803/04, Hegel entendeu a lógica como uma introdução à metafísica, mas, a partir de 1805 começa a identificar tematicamente as duas disciplinas, oferecendo mais distintamente o arcabouço teórico que dará as condições para aquele controle metódico da negação autônoma que ele desenvolveria mais tarde. A centralidade deste feito no curso do desenvolvimento teórico de Hegel é tão sonora que Žižek, por exemplo, afirma peremptoriamente que

Uma maneira de determinar precisamente quando “Hegel se tornou Hegel” é olhar para a relação entre lógica e metafísica: o jovem Hegel, “pré-hegeliano”, distingue Lógica (o estudo de noções puras como organon, os meios para a análise ontológica adequada) e Metafísica (o estudo da estrutura ontológica básica da realidade), e ele “se torna Hegel” no momento em que abandona essa distinção e percebe que a Lógica é já Metafísica: o que aparece como uma análise introdutória dos instrumentos necessários para apreender que a coisa já é a coisa (Žižek, 2012, p. 49).

Uma evidência muito clara da assimilação por Hegel da necessidade da autonomização da negação é o uso recorrente, a partir do seu Systementwürfe II, do conceito de dialética, em detrimento da única aparição anterior, tímida e inefetiva, no Naturrechtsaufsatz (1802/03) (Hegel, GW4, p. 446). De acordo com a sagaz proposta de Elena Ficara (2010), a utilização esporádica do “das Dialektische” nesse período remete às mesmas razões do uso do “das Logische” anos mais tarde. De acordo com essa perspectiva, “o dialético” pode ser rastreado como uma espécie de fóssil teórico da face mais acentuada da unificação de lógica e metafísica expressa na filosofia do Hegel maduro, que dissemos ser aquele aparato lógico fundamental traduzido sob a alcunha de “o lógico”. O que depõe a favor disso é o aparecimento de tal expressão no momento-chave onde o espírito da filosofia hegeliana se sobrepõe à letra e essa unificação já demonstra ser imperativa ainda que o texto não faça jus a essa tarefa exasperante, onde “Hegel se torna Hegel” ainda sem tomar consciência disso. Para verificarmos como esse movimento ocorre convém, entretanto, examinar o estado de ambas as disciplinas no período hegeliano de Jena, assim como, lançar luz sobre o modo como essa discussão se conecta com o problema de uma introdução a filosofia, quer dizer, sobre o modo como se adentra no sistema.

Como afirma Crissiuma, “a relação entre o ponto de vista do filosofar com o ponto de vista da filosofia se entrelaça com a relação do carecimento da filosofia com a filosofia” (Crissiuma, 2017, p. 219). Um acordo sobre entendimento dessa asseveração nos auxilia a despachar de imediato aquele constrangimento teórico inegável que a pesquisa hegeliana encara quando se depara com uma série de afirmações a respeito da absolutidade do sistema filosófico não tolerar pressupostos ao mesmo tempo em que é enfatizado o enraizamento da filosofia num determinado tempo, tendo por tarefa apreendê-lo em pensamento. Mais especificamente, esse constrangimento decorre do fato da questão a respeito de uma introdução a filosofia está intimamente associada com o problema da admissibilidade de pressupostos, que se traduz no problema da aceitação de um critério fundamental da verdade que não pode ser justificado em si mesmo, ou seja, que necessite de um pressuposto que derive de um outro pressuposto. No período hegeliano de Jena conseguimos muito nitidamente enxergar esse acirramento entre absolutidade e admissibilidade de pressupostos quando observamos na Differenzschrift Hegel mencionar que “o carecimento da filosofia pode ser expresso como o seu [da filosofia] pressuposto” (Hegel, GW4, p. 15), e no fragmento denominado Introductio in Philosophiam falar da “filosofia como ciência que não carece de uma introdução, nem pode tolerar uma introdução” (Hegel, GW5, p. 259). Nesta altura que a distinção entre o “ponto de vista do filosofar” e o “ponto de vista da filosofia” parece ser estratégica e dissolver as causas daquele constrangimento.

Para Hegel, “enquanto a filosofia é completa e circular, o filosofar, por outro lado, é algo empírico, que [pode] proceder de vários pontos de vista e diversas formas da formação cultural e da subjetividade” (Hegel, GW5, p. 261). Contudo, a possibilidade de um meio de ligação [Bindungsmittel] nesta distinção entre o filosofar e a filosofia reside especificamente no âmago da resposta que Hegel oferece à questão a respeito da relação da filosofia com a vida. Para Hegel, “o verdadeiro carecimento da filosofia não significa, certamente, outra coisa senão aprender a viver dela e por meio dela” (Hegel, GW5, p. 261). O que ele parece querer indicar aqui é um carecimento que se manifesta na própria estrutura do filosofar, quer dizer, no pensamento sobre a filosofia, que se reflete, dessa maneira, no modo de relação de cada sociabilidade com ela. Como ele diz num outro fragmento do mesmo período, intitulado Logica et Metaphysica, “a filosofia abre ao homem seu mundo interior”, de modo que lhe permite “suportar a limitação da realidade”, ainda que esse espaço, a realidade em questão, não lhe satisfaça; no entanto, apesar dessa insatisfação, Hegel ressalta que esse mundo interior pode tornar-se um “determinado mundo ético”, ou seja, viver da filosofia e através da filosofia, pois, “naquilo que aparentemente é desarmônico, a filosofia consegue compreender a harmonia fundamental” (Hegel, GW5, p. 269). Assim, Hegel conecta a questão do carecimento da filosofia a um modo de eticidade, um viver pela filosofia, o que, automaticamente nos remete que esse viver pela filosofia carrega consigo algo de próprio da filosofia, ou seja, “o carecimento da filosofia também ‘pressupõe’ a filosofia” (Crissiuma, 2017, p. 217).

Sendo a própria filosofia absoluta, é mister que algo de absoluto enseje a orientação daquele que vive da filosofia, de modo que podemos falar então de uma introdução à filosofia no sentido de um esclarecimento dos personagens filosofantes sobre a subjetividade de suas ações, sobre a unilateralidade de suas perspectivas e sua verdadeira relação com a totalidade, com o absoluto. Assim, a tarefa de uma introdução à filosofia pode ser traduzida como uma espécie de meio de ligação entre “a intuição de seu carecimento e a intolerabilidade de introduzi-la” (Baum, 1980, p. 121), ou seja, lança luz sob facticidade de perspectivas unilaterais ao passo que atesta a absolutidade e universalidade da própria filosofia. Contudo, mediante a preservação dessa mesma absolutidade, Hegel atesta que somente a partir da perspectiva dos “pontos de partida empíricos da filosofia” é possível conceber uma “introdução à filosofia”, ou seja, algo que se traduza na possibilidade de um “meio de ligação e ponte entre as formas subjetivas e a filosofia objetiva e absoluta” (Hegel, GW5, p. 260-261). Assim, temos a aceitabilidade de uma introdução mediante a perspectiva empírica destes pontos de partida, por um lado, mas, por outro, a possibilidade de uma elevação à própria filosofia que não admite ela mesma pressupostos. Há uma circularidade que promove a convergência dos pontos, ainda que sob a permanência da tarefa e natureza de cada uma. A tarefa de uma introdução desta forma é elevada ao estatuto próprio do progredir especulativo quando o sujeito compreende a dispensabilidade dela e aprende a não a tolerar quando em perspectiva científica, quer dizer, no ponto da filosofia. Grosso modo, trata-se da passagem do ponto de vista subjetivo para o ponto absoluto.

É especificamente neste ponto que se associa então uma perspectiva tanto espiritual quanto lógica já nos progressos de Hegel em Jena. Considerado o paralelo inescusável entre vida, o carecimento da filosofia e a filosofia, Hegel admite que esse elo pode ser encontrado primeiramente na tomada de consciência do sujeito em seu estado de isolamento, quer dizer, o conhecimento de sua própria unilateralidade, logo, a necessidade de contar com as diversas determinações que o negam caso queira sair deste estado. Vemos com certa nitidez, assim, um germinal processo de desdobramento categorial ao saber absoluto, onde a consciência desperta descobre que seu agir e luta contra “a potência cega da necessidade que joga dentro dela” “é já uma relação com ela” (Hegel, GW5, p. 366-367). Elevar-se a essa perspectiva espiritual, não unilateral, significava para Hegel que a “singularidade subiu ao ponto mais elevado”, de modo que “esse próprio [carecimento] sobe ao ponto mais elevado” (Hegel, GW5, p 367). A ascensão do carecimento ao ponto mais elevado corresponde assim ao cumprimento daquela elevação espiritual do modo de relação dos sujeitos com o mundo, quer dizer, o primeiro passo do filosofar rumo à filosofia absoluta vem acompanhado de uma nova forma de sociabilidade que diz respeito ao “sistema de leis de boa conduta em relação à natureza e à prudência, assim como ao sistema dos costumes e ao que é considerado justo e bom, a todo o saber e, finalmente, a formação da intuição religiosa” (Hegel, GW5, pp. 367-368). Hegel deixa explícito que essa elevação consiste no surgimento de uma nova “figura” que surge da crise de uma “antiga forma ética”, devido ao trabalho de “grandes espíritos” que são “purificados de todas as particularidades da figura anterior” (Hegel, GW5, p. 269). Assim, Baum atesta, “na medida em que contribui para a ‘purificação’ das antigas formas de eticidade, é certamente um fator na justificação ou conquista de um novo mundo ético” (Baum, 1980, p. 123). Trata-se então de elementos breves, mas determinantes para concebermos a questão da pretensão de Hegel de conceber a filosofia calcada na absolutidade ao mesmo tempo em que é seu tempo apreendido em pensamento. Antevê-se aqui a questão da introdução à filosofia pela via da filosofia do espírito, o que ocorre a partir do ponto de vista da consciência que descobre sua verdadeira relação com a totalidade, sendo que este conhecimento é ele mesmo filosofia, ocorre nela mesma e deve ser passível de ser compreendido sistematicamente.

Conviria, sobretudo, dizer que o conteúdo da consciência que experienciou o carecimento da filosofia faz parte da própria filosofia uma vez que aquela circularidade foi admitida. Isso é muito perceptível observando a ideia tardia, embrionariamente já disposta aqui, que a diferença entre o objeto mesmo e o objeto em si é algo interior à consciência, ademais, que a preparação para o conhecimento já é o próprio conhecimento, ou seja, que não há exercícios preliminares e o conhecimento é ele mesmo o caminho que ele percorre. Dada essa circularidade, é mister pensar então que o modo de relação entre o carecimento da filosofia e a própria filosofia, entre o ponto de partida subjetivo e a filosofia objetiva, deveria então já ser compreendido como um tipo de relação especulativa. Por outro lado, nesse estágio do desenvolvimento de Hegel ele não possui aquele dispositivo fundamental expresso como “o lógico” que encontramos nas obras mais tardias capaz de conectar o aspecto introdutório da primeira, que surge através do carecimento pela formação cultural, e a exigência de absolutidade que a segunda carrega. Isso o faz conceber os elementos culturais, objetos de uma filosofia do espírito, quer dizer, de onde brotaria o carecimento da filosofia, ainda não adequadamente associados à “filosofia objetiva”, ponto cabal do conhecimento do absoluto. Esse desajuste é plenamente notado em Crer e saber, de 1802, onde Hegel identifica a cultura do tempo como condição para o acesso ao absoluto, de maneira que a “metafísica da subjetividade” havia levado o processo cultural ao seu fim, à sua completude, e ensejado a “verdadeira filosofia”, mas apenas como uma “possibilidade externa” (Hegel, GW4, p. 413)2. Deste modo, uma vez que os elementos culturais ensejam a filosofia apenas externamente, não seria exagerado dizer que Hegel, no âmbito da apresentação sistemática, escantearia a projeção de uma filosofia do espírito para fora do raio dos elementos cabais de explicação da filosofia mesma.

Seria a filosofia do espírito apenas a introdução, não a filosofia mesma, de modo que se torna claro que, neste período, Hegel não concebe a realização do saber absoluto através da filosofia do espírito tal como acontece na Fenomenologia e na Enciclopédia. Nesta etapa ele até concede a retomada do absoluto através de um processo espiritual, mas posiciona a filosofia numa instância além, mas que, ao mesmo tempo, deveria compreender a Ideia em sua totalidade. Ele diz que “o próprio Ser absoluto, na Ideia, projeta sua imagem, por assim dizer, se realiza na natureza, ou cria nela seu corpo desdobrado, e então se resume em espírito, retorna a si mesmo e se conhece” (Hegel, GW5, p. 262). Ainda que salte aos olhos a inovação hegeliana ao apresentar o processo de conhecimento do absoluto de si mesmo, devemos notar, entretanto, o papel meramente possibilitador do espírito como disposição que resume o material necessário para o retorno do absoluto a si mesmo e, por conseguinte, para o conhecimento de si mesmo. O desajuste consistia, então, na capacidade hegeliana de valorizar a contribuição do processo de conhecimento na formação do conhecimento mesmo. Mais especificamente tratava-se de um déficit filosófico na capacidade de autonomização da negação que, mais tardiamente, tornaria Hegel capaz de conceber o vir-a-ser do absoluto como “o movimento do pôr-se-a-si-mesmo, ou a mediação consigo mesmo do tornar-se outro” (Hegel, GW9, p. 18). O domínio da aplicação da negação autônoma deveria ser, assim, capaz de livrar Hegel do erro de instanciar a filosofia mesma para além de seus condicionamentos da formação cultural, que seriam reunidos numa filosofia do espírito.

Posicionada nesta instância, a filosofia ensejava a possibilidade de compreensão fundamental da Ideia absoluta observado através da relação lógico-metafísica. A “verdadeira filosofia” seria aquela que comportava em si já a resolução dos impasses da consciência em seu processo de conhecimento, entretanto, este ponto que seria alcançado na metafísica supõe já o processo de desenvolvimento que se mostra na lógica, de maneira que o processo lógico apresenta, e a metafísica comporta como realização, aquela demanda através da qual brota o carecimento da filosofia, a saber, da demanda por abandono de toda perspectiva unilateral no processo de conhecimento. O mesmo padrão circular da relação entre o carecimento da filosofia e a filosofia se apresenta na relação da lógica com a metafísica, ainda que Hegel assevere sistematicamente a separação entre ambas.

Mais especificamente, a lógica de Jena, de 1801/02, era vista como a doutrina sobre as determinações imanentes da forma da Ideia pura no conhecimento, organizadas mediante categorias, e servia como uma espécie de introdução sistemática à metafísica mesma. A metafísica sucedia a lógica como exposição de objetos em sua autossubsistência, ou seja, para além da divisão entre sujeito e objeto, forma e conteúdo, que sói enviesar a sobreposição para um dos lados dos relata. Entretanto, como na Fenomenologia, na lógica de Jena, que se centra especificamente na progressão do conhecimento ao infinito, há em cada passo do progredir lógico um momento “para nós” da exposição, que não está disponível como um saber de primeira ordem para o conhecimento, mas que é suposto para o deslindar das determinações.

Hegel diz, por exemplo, que ao contrário daquela circularidade que proporcionaria a justaposição dos elementos do sistema, Hegel trata a razão, campo da metafísica, como “arquétipo” [Urbild] (Hegel, GW5, p. 272), ao qual a finitude, através da reflexão do entendimento, procura copiar, asseverando que a verdadeira descoberta para a finitude é saber que as categorias do conhecimento emergem da especulação. Mais especificamente, o absoluto era concebido aqui como o modelo que ensejava a progressão dissolução das relações antinômicas da reflexão do entendimento. Imitar o absoluto era o dispositivo explicativo para o avanço do conhecimento na lógica de 1801/02 e isso significava especificamente a tentativa do entendimento de se depurar de suas determinações, mas o problema desta concepção é que o pensamento verdadeiro do absoluto não pode ser de acesso da consciência finita. Isto significa que era suposta uma reflexão positiva, propriamente filosófica, da dialética propriamente negativa da finitude, mas como a lógica deveria introduzir a metafísica, para que a separação fosse real nenhum pressuposto metafísico deveria realmente ser tomado, contudo, uma vez que acontece, estabelece já dentro da lógica o princípio especulativo, tornando aquela separação sem justificação. Introduzir um campo do “para nós” na explicação da finitude na lógica significaria a existência de um ponto do saber que supõe automaticamente uma progressão no conhecimento ao qual o filósofo teria de ter alcançado o saber absoluto previamente, atribuído aqui à metafisica (Schäfer, 2001, p. 89). A natureza circular é, portanto, inescusável para Hegel.

Implicitamente há desde então uma interdependência circular entre forma e conteúdo, onde o mecanismo lógico disposto aqui depende já de uma dialética não apenas crítica, mas constitutiva do conhecimento. Isso atesta muito claramente que a exposição do conteúdo da Ideia no conhecimento requer já uma definição sobre esse próprio conteúdo, que se realiza apenas quando se conhece a si mesmo, e indica, ademais, fundamentalmente, que a distinção entre lógica e metafísica ocorria de maneira meramente descritiva. Dizemos descritiva pois o ponto que Hegel acreditava ter alcançado na metafísica, superando a necessidade de superação dialética, que era atribuída apenas à lógica, despreza o projeto inicial da lógica mesma de não ser nenhum manual de guia do raciocínio, mas que fosse também constitutiva do conhecimento se não quisesse apenas fazer uma utilização instrumental daquilo que se alcançou no progredir, nem fazer com que esse apenas recebesse passivamente aquele que acendeu ao conhecimento dele, quer dizer, o que está em jogo aqui era a ideia suscitada acima da correspondência entre forma e conteúdo que supõe a contribuição do meio na constituição do resultado.

Com isso, estamos dizendo que a relação lógico-metafísica que Hegel apresenta deveria ter a pretensão de demonstrar a autoconstituição categorial da consciência que conhece, onde as determinações do objeto demonstram ser elas mesmas aquelas do sujeito, quer dizer, ambos são constituídos numa mesma série de determinações fazendo com eles se relacionem reciprocamente. Com isso, Hegel poderia oferecer um princípio relacional da totalidade com os singulares, do absoluto com o sujeito, de modo que um se completava mediante a realização do outro. Em outras palavras, tratava da aplicação do dispositivo da negação autônoma na assunção do conhecimento.

Isto aparece de modo bastante claro no Systementwürfe II, de 1804/05, de modo que Eckart Förster dirá que “Hegel desenvolve aqui pela primeira vez o método do movimento conceitual”, onde a sucessão das categorias consiste na elevação de cada uma ao infinito, “de modo que a destruição de sua respectiva finitude não é mais necessária de nossa parte” (Förster, 2018a, p. 154). Esta versão mais tardia da lógica continua apresentando a distinção anterior entre lógica e metafísica, contudo, assume que o progresso das categorias da reflexão na lógica ocorre devido a negatividade de suas determinações. No processo de desenvolvimento do conhecimento essas categorias progridem refletindo gradualmente nelas mesmas a transformação de seu significado. Isso ocorre até que, por fim, “nossa reflexão” e o movimento interno das categorias se fundem em um só e o campo metafísica é alcançado. “Nossa reflexão” (Hegel, GW7, p. 75) consiste aqui no campo privilegiado daquele que ascendeu à metafísica, ou seja, tratava-se exatamente da aceitação do campo do “para nós” pressuposto implicitamente já no projeto de lógica anterior. Com isso, Hegel não se utiliza do ato explicativo do absoluto como arquétipo na explicação do progresso lógico-categorial, mas introduz no coração do processo dialético das determinações da finitude o método da negação autônoma, isto é, de uma dialética não apenas destrutiva, mas também construtiva. Entretanto, na mesma obra, Hegel fala de um ponto que seria “resgatado do desaparecimento na dialética” (Hegel, GW7, p. 137) na metafísica, quer dizer, Hegel pronuncia um ponto de identidade especulativa isento de dialética que sustava a circularidade especulativa daquele princípio relacional num anticlímax que não condizia com as consequências do que desenvolvera, e que, como sabemos, cai no extremo oposto de seu desenvolvimento maduro na Ciência da Lógica, onde a dialética designa a especulação em si mesma. Hegel visa uma especulação sem dialética e uma dialética sem especulação, não obstante, falha em ambas.

Em Jena, um dos pontos que demarcam a separação entre lógica e metafísica é a capacidade do conhecimento de refletir sobre si mesmo, de maneira que enquanto o conhecimento que não reflete sobre si constitui o objeto da lógica, o conhecimento que reflete sobre si deve constituir o campo da metafísica. É exatamente este o ponto que se encontra na passagem da lógica para metafísica no Systementwürfe II, e podemos visualizar isso quando Hegel assinala um novo tipo de conhecimento autorreflexivo, onde o começo do filosofar, que ocorre mediante um carecimento por e da filosofia, é concebido adequadamente:

A lógica começou com a própria unidade, com o que é igual a si mesmo. Mas não justificou isso. [...] Esta unidade com a qual se começa é um resultado, mas isso não foi de forma alguma explicitado nela; [...] Na medida em que não era posta como resultado, a unidade era um começo arbitrário, um primeiro contingente” (Hegel, GW7, p. 129).

A metafísica, desta forma, deveria operar como uma justificação do resultado demonstrando a absolutidade do começo, quer dizer, Hegel supõe o ponto alcançado como realização de um progredir, como um resultado do conhecimento, mas susta especificamente a mobilidade deste ponto final quando alcançado, de modo que o próprio progredir não fosse ele mesmo plenamente integrado nesse resultado. De acordo com a pretensão de Hegel, neste ponto, “o dialético” não é coextensivo ao movimento do conhecimento, entretanto, como vimos, a lógica mesma pressupõe um campo reflexivo de suas ações, que deveria ser possível apenas na metafísica, o que suporia, para fins de justeza metódica, uma circularidade onde o ponto alcançado não deveria estar dissociado do próprio meio, quer dizer, da estrutura dialética e lógica que o possibilitou. Assim a lógica hegeliana de Jena apresentada por volta de 1804/05 já é ela mesma metafísica, quer dizer, reflexão sobre o conhecer, fazendo com que o significado positivo da dialética reconstrutiva não pudesse ser separado do significado destrutivo, negativo, da própria lógica.

Deste modo, o déficit no que diz respeito a valorização do meio, da lógica, para o alcance daquele ponto fundamental da metafísica difere muito daquilo que será um ponto-chave da argumentação na Fenomenologia, a saber, que “a ‘razão’ só entra na história a partir da sua adoção de um ponto de vista reconstrutivo” (Crissiuma, 2017, p. 228), ou seja, o déficit recai especificamente na ciência reconstrutiva que daria o tom da totalidade orgânica da filosofia hegeliana. Falamos de um ponto de vista reconstrutivo que não poderia ser confundido com qualquer perspectiva subjetiva, que não toleraria pontos de vista parciais, logo, que aquilo que seria reconstruído seria ele mesmo verdadeiro, de modo que a razão que entrou na história pela via reconstrutiva, como uma espécie de rememoração [Erinnerung] no saber absoluto, sempre lá esteve, desde o começo. Do ponto de vista da Ciência da Lógica, o que se alcança através da rememoração é a purificação do ser-aí imediato por meio de um movimento que o tornou puro, o resultado de uma abstração perfeita. O objeto de consideração então deve ser aquilo que se alcança mediante o ir além do ser finito e suas determinações, quer dizer, a posse da “verdade do ser”, que na Ciência da Lógica é identificada como “essência” (Hegel, 2017, p. 31). Entramos, assim, naquele campo onde cada determinação é, ao mesmo tempo, a totalidade de uma relação, ao mesmo tempo que é uma face dela. O ser, por constituir-se de suas determinações ao mesmo tempo que cada determinação oposta é compreendida como uma contraparte essencial dele, anula a si mesmo, de modo que, a reflexão sobre esse processo de negatividade do ser conduz à interiorização dele mesmo na essência.

Na Lógica da Essência a negação que passa todo ser é então internalizada como um ato constante de rememoração e tornada, ela mesma, a essência. Não se trata de uma reflexão externa, mas interna, tornando a verdade do ser a essência. Com isso, mesmo respeitando a delimitação do escopo das duas perspectivas, fenomenológica e lógica, percebemos que a aplicação do conceito de Erinnerung tanto na Fenomenologia quanto na Ciência da Lógica corresponde exatamente ao exercício de acomodação de determinações opostas dentro um contexto unificado que emerge como resultado de um processo. Na primeira, tratava da reconstrução do processo espiritual, na segunda, do puro ser, ou Ansichsein, como resultado da internalização da negatividade que fora apresentada na Lógica do Ser. Vimos, assim, que em ambos os casos o que estava em jogo era a produção, em um contexto unificado, de um resultado por meio da atividade rememorativa que supunha internalização da negatividade intrínseca ao processo relacional, tendo isso como a possibilidade da capacitação ao absoluto dos objetos que cada uma perspectiva tratava.

Tanto a perspectiva fenomenológica quanto a perspectiva lógica diferem daquela concebida por Hegel no Systementwürfe II por estabelecer que o ponto a ser alcançado não é apenas passível de ser reconhecido no final da série completa, mas que ele mesmo apenas é o que é no final desta série, como um princípio relacional e dialético. Naquele escrito, Hegel concebe a metafísica como campo reflexivo, como internalização do conhecimento, como refletir sobre si mesmo, porém, faltava especificamente a dinamicidade da ciência reconstrutiva capaz de dar a liga à negatividade das passagens e, então, possibilitar o reconhecimento de seus próprios atos no momento de rememoração e que justificasse então a própria reflexão. Essa unificação tornaria possível aquele reconhecimento rememorado no final da série e suporia então a dedução do processo lógico como algo ele mesmo a ser alcançado. A reflexão sobre o lógico, que tornaria possível a elaboração da lógica, então deveria ser alcançada como resultado da dinâmica interna dos relata, no final da qual o autor em posse da exposição já chegou. Não se tratava da consciência de um ponto que sempre lá esteve e que agora se tornou conhecido, mas de um processo vivo e ativo que produz conhecimento de si mesmo e através de si mesmo, ou seja, autoconsciência. Faltava-lhe então a espiritualização da substância que daria o certificado de que aquilo que foi rememorado na metafísica, em posse da Ideia, correspondesse a um desenvolvimento que dizia respeito às próprias determinações em negatividade, não a qualquer padrão externo, faltava-lhe dar dinamicidade ao próprio resultado alcançado, conferindo ele como resultado mais consciente da atividade do movimento lógico, e faltava-lhe “a unificação entre lógica e metafísica que permitiria o discurso de que o finito, através da reflexão, não é suspendido externamente pela razão” (Oliveira, 2020, p. 76).

4 A gênese da questão a partir da lógica ienense

Nesse momento, convém um esclarecimento sobre as divisões internas da lógica ienense. Como já dissemos, na lógica de 1804/05, Hegel assevera que “a lógica começou com a própria unidade, com o que é igual a si mesmo” (Hegel, GW7, p. 129). A questão é, observando o desenvolvimento dos preceitos que Hegel elaborara tempos antes para seu tratamento da lógica em Jena, não deve haver aqui nenhum estranhamento. De acordo com as anotações de Troxler, aluno que assistira às palestras sobre Lógica e Metafísica (1801/1802), Hegel começara sua exposição partindo da “determinação da filosofia segundo Schelling”, concebendo a lógica de acordo com as “formas da finitude (do entendimento)”3 que se seguem da “Ideia do absoluto segundo Schelling”, na medida em se divide em ideal e real4, ser e pensar (Troxler, 1988, p. 63). A “Ideia do absoluto segundo Schelling” consistia na asseveração da razão como ponto de partida da filosofia, sendo compreendida como “indiferença total do subjetivo e do objetivo”, do pensar e do ser, do ideal e do real, de modo que aquilo que atribuímos a toda finitude como determinações, consistia em nada mais que um descompasso quantitativo que não dizia respeito ao absoluto qualitativamente5. Nos escritos preparados para essas aulas que Troxler assistira, Hegel irá dizer que “o primordial é que conhecemos a simples Ideia da filosofia mesma, depois deduzimos a divisão da filosofia” (Hegel, GW5, p. 263). Essa dedução, sob a qual estaria assentada as formas da finitude, consistiria assim na divisão da Ideia simples do absoluto apresentada, sendo acomodada, de acordo com o que tudo indica, segundo a divisão schellinguiana entre real e ideal, objetivo e subjetivo. A primeira parte, real e objetiva, consistiria naquilo que Troxler chama de “lógica transcendental”, acomodando as categorias da “quantidade, qualidade e relação” (Troxler, 1988, p. 68) e a segunda parte, suposto ser a lógica geral, ideal e subjetiva, consistiria, de acordo com o próprio Hegel, em “conceitos, juízos e conclusões” (Hegel, GW5, p. 273).

A questão primordial para nós aqui é que essa mesma sequência da lógica de 1801/02 é apresentada na lógica de 1804/05, de maneira que da qualidade se segue a quantidade, seguindo dela a relação, seguindo dela o conceito, seguindo dele o juízo, seguindo dele a conclusão. O que não aparece é qualquer referência a apresentação da Ideia simples comungando aquilo que posteriormente viria a ser dividido. Contudo, sabemos bem que Hegel assevera que “a lógica começou com a própria unidade”, e que o texto que hoje temos em mãos da lógica de 1804/05 é apresentado faltando as duas primeiras páginas, que acomodariam o arco 1-3. Isso depõe muito a favor da existência prévia de uma parte destinada a exposição da Ideia do absoluto, tal como Hegel planejava em seus esboços da lógica de 1801/02, o que indicaria ainda uma adesão ao princípio schellinguiano no início de redação de tal escrito, assim como, lançaria luz a respeito da separação entre lógica e metafísica que o texto acomoda6.

Somente o absoluto compreendido não apenas como substância, mas também como sujeito pode acomodar a Ideia que é e se desenvolve através si mesma, que é, portanto, não apenas o material do qual totalidade é feita (substância) mas também aquilo que faz a totalidade (sujeito), ou seja, que é ela mesma um resultado. Hegel em 1804/05 parece vislumbrar o abandono desse princípio substancialista ao passo que atesta que o momento dialético, ou, podemos dizer, lógico, é suposto presente em cada categoria lógica, de modo a ensejar aquele controle do sistema que Hegel alcançara mais tardiamente. Que esse manuscrito tenha aparecido em nossas mãos sem as duas primeiras páginas que conteria a exposição da Ideia do absoluto também depõe a favor da tese que Hegel vislumbrou que, em algum momento onde esse escrito lhe servia de principal exposição da lógica, tal como o absoluto mesmo não poderia estar como uma espécie de orientação para uma intuição intelectual ou transcendental, não poderia estar como “solo” “igual a si mesmo” para o conhecimento (Förster, 2018 b , p. 297).

Para usar a nomenclatura proposta por Dieter Henrich (1980, p. 104), Hegel possuía de fato uma ideia razoavelmente adiantada de sua forma conceitual, pois aplicara bem a ideia da negação autônoma às determinações da finitude dentro da lógica ienense, ajustava aos poucos sua forma principial, de modo que o absoluto concebido como princípio devesse acomodar todas as consequências da negatividade intrínseca das determinações da finitude não apenas como substância mas também como sujeito, mas possuía ainda um déficit recalcitrante no que diz respeito a sua forma sistemática, no modo como concebia a conjugação da particularidade dos elementos do sistema com sua justaposição dentro de um contexto orgânico. Da perspectiva da lógica, esse ajuste na apresentação sistemática só seria suprido a partir do momento que Hegel apresentasse sua lógica especulativa madura, possibilitando, mais tardiamente, apresentar de modo organizado sua versão sistemática mais completa na Enciclopédia. De maneira muito nítida, esse ajuste passava por uma nova configuração da relação entre a filosofia e sua introdução, bem como abria o flanco para a entrada de um elemento fundamental do sucesso da nova lógica.

No âmbito desses ajustes sistemáticos, o que chama atenção aqui é que essa concepção de que a própria Ideia se constitui em seu movimento elimina a separação que apresentamos anteriormente entre o carecimento da filosofia e a filosofia mesma, de modo que aquela pronunciada interdependência, aquela referência circular pressuposta, mas que se perdia na letra do texto, possa ser agora melhor resolvida devido ao caráter autorreferencial que comporta o absoluto pensado também como sujeito. Observando tanto a Fenomenologia quanto a Enciclopédia, vemos que aquele papel atribuído à filosofia do Espírito, como introdução à filosofia, permanece, mas é então conciliado tanto com o preceito da Ideia do absoluto que se desenvolve, quanto com a perspectiva lógico-metafísica da dialética, do movimento conceitual na determinação categorial da finitude. Para acomodar esse desenvolvimento conceitual, Hegel havia previsto lançar, junto com a primeira versão da Fenomenologia intitulada Wissenschaft der Erfahrung des Bewusstseyns, uma exposição da lógica, formando finalmente o conjunto daquilo que se chamaria System der Wissenschaft (Förster, 2018a, pp. 145-148). Hegel concebe a Fenomenologia em 1806 como “a preparação para a ciência de um ponto de vista, pelo qual ela é uma nova, interessante, e a primeira ciência da filosofia” (Hegel, GW9, p. 446) e, além disso, projeta que “um segundo volume conterá o sistema da lógica como filosofia especulativa e as duas outras partes da filosofia, as ciências da natureza e do espírito” (Hegel, GW9, p. 447).

O ponto problemático e que se conecta com nossa questão aqui é que Hegel não previra inicialmente os adendos que faria adicionando os capítulos sobre O espírito, A religião, e O saber absoluto aos três capítulo anteriores, sobre a Consciência, Autoconsciência e Razão; ademais, muito menos cumpriu a promessa de lançar uma segunda parte que conteria o sistema da lógica. A respeito da primeira parte do sistema, tudo nos leva a crer que sua intenção sobre ela estava ligeiramente desatualizada, sendo necessários os suplementos adequados. No capítulo sobre O espírito, que estava fora dos planos iniciais, Hegel afirma que as figuras do espírito “em vez de serem figuras apenas da consciência, são figuras de um mundo” (Hegel, GW9, p. 240), revelando, assim, que a “ciência da experiência da consciência”, o conjunto das seções que previra inicialmente para a primeira parte do sistema, conduz de fato a consciência natural ao conhecimento absoluto, mas que este ponto permanece abstrato e formal se não for ao mesmo tempo tratado em sua objetividade, ou seja, localizado espiritualmente. É adequado dizer então que o acréscimo de partes formando aquilo que hoje conhecemos como a Fenomenologia do Espírito ocorreu mediante a tomada de consciência por Hegel do elemento espiritual que constitui o absoluto, quer dizer, consciência da necessidade de apresentar a Ideia do absoluto em seu movimento, de maneira que a negação pela qual passa toda determinação seja parte da vida do absoluto e que seja esse o ponto mais elevado ao qual alcança a consciência no conhecimento filosófico. Completava-se, assim, aquela internalização do movimento da consciência que antes se perdera na transição da lógica para a metafísica no Systementwürfe II.

Podemos dizer que quando Hegel apresenta essa identificação ele apresenta, finalmente, uma organização sistemática mais adequada para os princípios conceituais implícitos que lançara em Jena, que supunham a justaposição do absoluto com a consciência que reflete, quer dizer, uma reconciliação do ser-em-si com o ser-para-consciência no conhecimento filosófico. Mais especificamente, Hegel demonstra como o conhecimento da consciência que se elevou à substância ética no final do capítulo Razão, na conclusão da Wissenschaft der Erfahrung des Bewusstseyns, pode ser encontrado no próprio conceito desenvolvido desta substância (Förster, 2018 a , p. 146). Mas, com isso, aquela antiga separação entre lógica e metafísica na forma de sistema de Hegel se desfaz. À lógica cabia antes mostrar a natureza dialética de todo finito, seu movimento lógico, e conduzi-lo ao ponto de vista infinito, contudo, se o conhecimento que eleva cada determinidade ao infinito é compreendido no progresso dialético, a metafísica, como ciência do próprio infinito, como ciência do absoluto, tem de ser também dialética, portanto, tem de ser também lógica. À lógica cabia agora ser ciência pura do movimento lógico de cada determinidade, portanto, ser ela mesma metafísica, não apenas sua introdução, tratar ela, por sua vez, da coisa mesma, uma vez que a perspectiva do Espírito será demonstrar que toda atividade é sua própria determinação; da perspectiva do puro saber na Fenomenologia passamos para a perspectiva do puro ser na Lógica.

Esta teria sido a motivação cabal para o abandono hegeliano da lógica apresentada no Systementwürfe II, pois, mesmo que Hegel tenha descartado suas partes iniciais, que começou “com a própria unidade” e apresentava a Ideia do absoluto com sua divisão em real e ideal de acordo a doutrina de Schelling, aquele esboço carecia ainda da demonstração de uma forma lógica que acomodasse uma nova compreensão do processo de negação das determinações. Essa exigência é melhor compreendida observando o modo como as relações negativas são estabelecidas no capítulo Espírito da Fenomenologia, a saber, toda determinação é simultaneamente si mesma e o todo compreendido espiritualmente. Ora, isso requeria um tipo de explicação completamente diferente sobre a forma de relação das determinações. A lógica, como a ciência das formas finitas de ser e pensar, até então havia mostrado apenas a suspensão mútua das determinações finitas na unidade absoluta mediante a passagem de uma determinação para outra. Agora, contudo, com a ideia da unidade que se diferencia, era suposta uma explicação que demonstrasse simultaneamente a determinação como parte de uma relação e como o todo da mesma, aquilo que Hegel apresentaria de modo mais acabado apenas em 1813 em sua Doutrina da Essência (Förster, 2018 a , pp. 160-161). Ou seja, era necessário estabelecer um novo tipo de mediação lógica que apresentasse a mediação do aparecimento e sua essência, o que, por volta de 1804/05 acontecia apenas a partir da passagem da lógica para a metafísica, de maneira que, em posse desta não houvesse a internalização de uma Erinnerung tal qual aparece na Lógica da Essência mais tarde7. É exatamente esta internalização que garante as condições de possibilidade da passagem do ser para o pensar, da lógica objetiva para lógica subjetiva, sem nenhum tipo de atalho, quer dizer, de uma perspectiva realmente internalizadora do processo. Por isso, Franz Ungler, analisando essa relação, afirma que “esta reflexão exterior”, que se alcança na metafísica, “por mais correta que seja sua observação, na medida em que mostra a correspondência de um e outro [ser e pensar], é igualmente errada em vista de seu resultado, na medida em que a reflexão absoluta é o fundamento da identidade e da diferença” (Ungler, 1980, p. 159). Tendo em vista o desajuste sistemático a respeito do tratamento da essência no período de Jena, é sintomático que na lógica de então Hegel apresente elementos que só poderiam ser compreendidos na metafísica, causando assim o desajuste que tornava a separação entre lógica e metafísica apenas retórico, pois aquilo que corresponde ao tratamento das essencialidades é apresentado na seção intitulada “sistema dos princípios” da metafísica, enquanto seu aparecimento é tratado na lógica, enquanto relação do ser (Ungler, 1980, p. 159). Sem esse elemento lógico-conceitual o que acontece na lógica e metafísica de 1804 é ainda uma dificuldade de pensar a negação determinada, o movimento lógico, como algo que é próprio do ser, quer dizer, faltava um dispositivo que tornasse possível a passagem da determinação finita ao absoluto de modo que a negação que lhe acometia fosse compreendida como originalmente sua, ou seja, autodeterminação.

5 Encaminhamento

A necessidade dessa exposição estaria compreendida por Hegel e apresentada primeiramente a partir do momento que ele inclui na Fenomenologia a identificação do saber da consciência com sua forma concreta, espiritual, o que sugeria um novo tipo de compreensão lógico-especulativa do processo relacional de autoconhecimento da Ideia. Isso remataria toda a possibilidade compreendida mais tarde, declarada no Prefácio da segunda edição da Ciência da Lógica, a saber, de uma determinação que opera sobre as determinações, e que se situa ao nível dos fundamentos do sistema, perpassando livremente aquelas três divisões famosas da Enciclopédia, compreendendo a lógica mesma, mas também a natureza e o espírito. Isto só teria sido possível mediante a unificação de lógica e metafísica que gerou a capacidade de Hegel aplicar o dispositivo lógico no campo das passagens dos elementos que constituem o seu sistema. Pensando na estrutura da lógica, o lógico seria capaz de mostrar a passagem de uma categoria a outra, como na Lógica do Ser, mostrar como ela está em unidade com aquilo que ela nega, como na Lógica da Essência, e também compreender todo seu vir-a-ser afirmativamente, como faz a Lógica do Conceito.

Referências

  • BAUM, M. 1980. Zur Methode der Logik und Metaphysik beim Jenaer Hegel. In: K. DÜSING; D. HENRICH (Eds.), Hegel in Jena Bonn: Bouvier, p. 119-138.
  • CRISSIUMA, R. 2017. A conciliação entre história e saber absoluto na primeira concepção hegeliana de filosofia: em torno da articulação dos conceitos ‘pressuposto,’ ‘introdução’ e ‘carecimento da filosofia’. Revista de Estudos Hegelianos, 23: p. 209-238.
  • FICARA, E. 2010. Ursprünge des Ausdrucks >Das Logische< beim frühen Hegel. Archiv für Begriffsgeschichte, 51: p. 113-125.
  • FÖRSTER, E. 2018a. Das Paradox von Hegels Jenaer Logik.Zeitschrift für philosophische Forschung, v. 72(2): p. 45-161.
  • FÖRSTER, E. 2018b. Die 25 Jahre der Philosophie. Eine systematische Rekonstrution. Vittorio Klostermann GmbH: Frankfurt am Main, 400 p.
  • FORSTER, M. 1989. Hegel and Skepticism Harvard University Press: Cambridge, 256 p.
  • FULDA, H. F. 2006. Methode und System bei Hegel. Das Logische, die Natur, der Geist als universale Bestimmungen einer monistischen Philosophie. In: H.F. FULDA, Systemphilosophie als Selbsterkenntnis Würzburg: Königshausen & Neumann, pp. 25-50.
  • HEGEL, G.W.F. 2016. Ciência da Lógica: 1. Doutrina do ser. Petrópolis: Vozes, 464 p.
  • HEGEL, G.W.F2017. Ciência da Lógica: 2. Doutrina da essência. Petrópolis: Vozes , 272 p.
  • HEGEL, G.W.F2012. Enciclopédia das Ciências filosóficas em compêndio I. A Ciência da Lógica. São Paulo: Loyola, 448 p.
  • HEGEL, G.W.F1952. 122 Hegel an Niethammer. In: J. HOFFMEISTER (Ed.). Briefe von und an Hegel Band I. Hamburg: Felix Meiner, p. 226-233.
  • HEGEL, G.W.F1986. Solgers nachgelassene Schriften und Briefwechsel. In: G.W.F. HEGEL. Berliner Schriften, Werke, Band 11. Suhrkamp: Frankfunt am Main, p. 205-274.
  • HEGEL, G.W.F1968. Gesammelte Werke Band 4. Hamburg: Felix Meiner , 622 p.
  • HEGEL, G.W.F1998. Gesammelte Werke Band 5. Hamburg: Felix Meiner , 827 p.
  • HEGEL, G.W.F1971. Gesammelte Werke Band 7. Hamburg: Felix Meiner , 387 p.
  • HEGEL, G.W.F1980. Gesammelte Werke Band 9. Hamburg: Felix Meiner , 526 p.
  • HENRICH, D. 1976. Hegels Grundoperation. Eine Einleitung in die ‘Wissenschaft der Logik’. In: U. GUZZONI; B. RANG; L. SIEP (Eds). Der Idealismus und seine Gegenwart. Festschrift für Werner Marx zum 65 Geburtstag. Hamburg: Felix Meiner Verlag , p. 208-230.
  • HENRICH, D. 1971. Hegel im Kontext Frankfurt: Suhrkamp, 229 p.
  • HENRICH, D. 1980. Absoluter Geist und Logik des Endlichen. In: K. DÜSING ; D. HENRICH (Eds.). Hegel in Jena Bonn: Bouvier , p. 103-118.
  • HORSTMANN, R-P. Ontologischer Monismus und Selbstbewußtsein. Disponível em https://www.philosophie.hu-berlin.de/de/lehrbereiche/idealismus/mitarbeiter1/horstmann/texte/ontomo_sb_1985.pdf Acesso em: 23 de maio de 2022.
    » https://www.philosophie.hu-berlin.de/de/lehrbereiche/idealismus/mitarbeiter1/horstmann/texte/ontomo_sb_1985.pdf
  • NUZZO, A. 2004. La Logica. In: HEGEL. Fenomenologia, Logica, Filosofia della natura, Morale, Politica, Estetica, Religione, Storia Editora Laterzi, p. 39-82
  • OLIVEIRA, L. F. 2020. Da metafísica da substância à metafísica da subjetividade: os caminhos de Hegel e Schelling se separam em Jena. Sofia, 9(1):71-84.
  • ORSINI, F. 2014. Il problema dell’ontologia nella Scienza della logica di Hegel Tese de Doutorado, Università degli Studi di Padova, 403 p.
  • PERTILLE, J. 2011. Aufhebung, meta-categoria da lógica hegeliana. In: Revista de estudos hegelianos, 15:58-66.
  • SCHÄFER, R. 2001. Die Dialektik und ihre besonderen Formen in Hegels Logik Hamburg: Felix Meiner Verlag , 360 p.
  • TROXLER, I. V. P. 1988. Nachschriften. In: DÜSING, K. Schellings und Hegels erste absolute Metaphysik (1801-1802) Köln: Dinter, p. 63-77.
  • UNGLER, F. 1980. Das Wesen in der Jenaer Zeit Hegels. In: K. DÜSING ; D. HENRICH (Eds.). Hegel in Jena Bonn: Bouvier , p. 157-180.
  • ŽIŽEK, S. 2012. Less than Nothing: Hegel and the Shadow of Dialectical Materialism. London: Verso, 1056 p.
  • 1
    A respeito disso, Orsini é preciso quando afirma que os méritos de Henrich estão em afirmar que “a ‘negação’ que se encontra na lógica de Hegel não é operação de ninguém (a mente humana, o sujeito transcendental, o agente individual) nem uma operação que deve ser aplicada a algo que se pressupõe negar. A negação, portanto, é ‘autônoma’ (selbständig) ou ‘autorreferencial’ (selbstbezüglich)” (Orsini, 2014, p. 305).
  • 2
    Com isso, Hegel posicionava seu sistema, como expressão da “verdadeira filosofia” para além daquilo que ele chama de filosofias da reflexão da subjetividade, que seria figurado nas filosofias de Kant, Fichte e Jacobi.
  • 3
    Hegel assevera que as formas da finitude “emergem da razão”, mas são “despojadas daquilo que é racional pelo entendimento” (Hegel, GW5, p. 272).
  • 4
    “A separação do ideal e do real está agora na transição da inconsciência para a consciência” (Troxler, 1988, p. 74).
  • 5
    Schelling distingue no absoluto sua essência de sua forma de ser, de maneira que, caso reunidos, ideal e real formariam apenas uma identidade numérica, quantitativa, não atingindo sua essência imutável e que não é redutível a reunião de suas partes. Hegel, de acordo com Troxler, concebia, nesse mesmo sentido, que “as determinações que o ideal dá ao real nada mais são do que afecções que o último [real] transmite ao primeiro [ideal] através da sensação. O absoluto não pode ser afetado por isto, e a série infinita de atos que ocorrem como posição e contraposição em seu escopo não têm significado para ele (de acordo com sua essência)” (Troxler, 1988, p. 74).
  • 6
    Quem se debruçou sobre isso originalmente foi Eckart Förster em seu artigo “Das Paradox von Hegels Jenaer Logik”, 2018a.
  • 7
    Por esses motivos apresentados por Förster, o desenvolvimento da Doutrina da Essência representava um ponto de inflexão no projeto de Hegel sobre a Lógica (Förster, 2018a, pp. 160-161).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Maio 2022
  • Aceito
    11 Maio 2023
location_on
Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS Av. Unisinos, 950 - São Leopoldo - Rio Grande do Sul / Brasil , cep: 93022-750 , +55 (51) 3591-1122 - São Leopoldo - RS - Brazil
E-mail: deniscs@unisinos.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro