Resumos
Este trabalho analisa se as ações dos entes públicos em investigações fiscais são limitadas pelo medo. Por hipótese, a ação de servidores públicos honestos é condicionada pelo medo de serem qualificados como aqueles com conduta reprovável. Sob a perspectiva das teorias do medo, da ética teleológica e da Ação Racional, descreveu-se esse fenômeno, a partir da variável legal enforcement, integrante das teorias da evasão fiscal. Por meio de entrevistas com magistrados, auditores fiscais, advogados e contadores, constatou-se que toda ameaça, pressão social e riscos provocam medo no tomador de decisão tributária, que tenderá a não mais decidir contra os interesses do Fisco.
Ética do Medo; Servidores Públicos; Sonegação fiscal; Execução jurídica
This paper examines whether the actions of public entities in tax investigations are limited by fear. By hypothesis, the action of honest public servants is conditioned by the fear of being qualified as those with misconduct. From the perspective of theories of fear, and teleological ethics of Reasoned Action, described this phenomenon, from the legal enforcement variable, belonging to the theories of tax evasion. Through interviews with magistrates, tax auditors, lawyers and accountants, it was found that any threat, pressure and social risks cause fear in the tax decision maker, who tend not to decide more against the interests of the Treasury.
Ethics of fear; Public Servants; Tax evasion; Legal execution
Introdução
O presente estudo preocupa-se, primordialmente, com a “aplicação da lei” (legal enforcement) e suas limitações. Não a aplicação da lei no sentido jurídico de subsunção do fato à norma (DINIZ, 2003, p. 409-417), mas o grau de confiança que as pessoas esperam com a qualidade de execução das leis com base no seu primado (lícito/ilícito), a eficácia, a imparcialidade e a previsibilidade das cortes (KAUFMANN; KRAAY; MASTRUZZI, 2005; RICHARDSON, 2008).
Almeja-se investigar se a aplicação da lei, quando exercida com excessos ou abusos, por meio da ação dos seus agentes (Polícia Federal, Civil, fiscalizações fazendárias, Ministério Público etc.), pode, nessas circunstâncias, criar um estado de “ética do medo”, expressão derivada da tese de Jonas (1984). Embora inaugurada no campo do ambientalismo, Jonas (1984) propõe, com a “heurística do medo”, uma ética que, a partir de certas ameaças ou privações, o homem tenha sua capacidade de ação limitada, para que não se torne uma maldição para si mesmo ou para a coletividade.
Neste artigo, a expressão “ética do medo” é utilizada para definir o resultado comportamental decorrente da “aplicação da lei” com base no seu primado, que faz com que membros do Poder Público (auditores e analistas tributários, juízes, promotores, etc.), corruptos ou com desvios de comportamento ético – que chamaremos de “maus servidores” – responsáveis pela fiscalização ou julgamento de matérias tributárias, deixem de assim agir. Suas ações ilícitas são limitadas ou cessadas pelo medo de serem os próximos a serem detectados e punidos, por envolvimento com esquemas de sonegação fiscal (RICHARDSON, 2008), embora criando a falsa impressão de que agora passaram a agir com ética. No entanto, é uma ética do medo (JONAS, 1984), na sua face explícita. Face explícita, por ser um resultado conhecido e esperado da “probabilidade de detecção do ilícito” e da “aplicação da lei” baseada em sanções, aspectos já consagrados como integrantes das teorias de evasão fiscal (ANDREONI; ERARD; FEINSTEIN, 1998, p.818).
Richardson (2008), porém, ao utilizar, teórica e empiricamente, a variável “aplicação da lei”, interpretou os dados coletados considerando somente a face explícita dela esperada (ética do medo), ou seja, quando aplicada com base no primado da lei e somente sobre os “maus servidores” e sobre os contribuintes sonegadores de impostos.
Este trabalho detectou a existência de outro fenômeno, derivado da “aplicação da lei”, propondo-se que pode haver outra face da mencionada “ética do medo”. Uma face oculta, silenciosa, mas com possibilidade de gerar efeitos colaterais e perniciosos para um Estado Democrático. Examina-se se a referida face oculta pode decorrer dos efeitos de ações exercidas com excessos, sensacionalismos ou mesmo com abuso de poder, verificadas em algumas investigações policiais, ministeriais ou fazendárias no combate à sonegação fiscal. Nessas situações, nasce a possibilidade de que essas ações impactem pessoas inocentes que se encontram nos arredores do alvo da “aplicação da lei”: os membros do próprio Poder Público, íntegros e sem desvio de comportamento ético, que chamaremos de “bons servidores”. São aqueles servidores responsáveis, diariamente, pelo exame de projetos de planejamento tributário, seja na esfera administrativa, seja um Magistrado na esfera judicial.
Como exemplo, cita-se as ocasiões das famosas operações que detectam grandes esquemas de sonegação de tributos, em que se usa a prática de divulgar, precipitadamente, por meio de estrondosos flashes na mídia em geral, os nomes de todos os envolvidos, inclusive pessoas suspeitas, muitas vezes sem provas, fatos concretos ou mesmo tecnicamente mal interpretados (SANTOS, 2007). Dentre esses suspeitos se inclui, não raro, o nome de servidores públicos responsáveis pela análise de projetos de planejamento tributário (cisões, incorporações, reestruturações societárias etc.), inclusive na esfera judicial (pedidos de liminar em ações e em mandados de segurança, todos em matéria tributária). Muitas vezes, esses membros do Poder Público são posteriormente inocentados, mas tiveram suas decisões equivocadamente mal interpretadas como instrumentos de acumpliciamento em esquemas de sonegação, quando, na verdade, não passa de trabalho cotidiano e de cunho técnico, às vezes de alta complexidade, o que inclusive pode ensejar equívocos de interpretação (SINDIFISCO, 2011).
Possivelmente, os colegas desses “bons servidores”, que em outras situações foram confundidos como sendo “maus servidores”, após assistirem o martírio alheio, onde a mídia figura como principal carrasco (PEREIRA, 2004; GLASSNER, 2003; GARCIA, 2005), podem ser tomados de medo (ZAFFARONI, 1999; AINSWORTH, 1981; MORRIS; KRATOCHWELL, 1983). Se acometidos pelo medo, possivelmente adotarão sistemas defensivos específicos (DEJOURS, 1998), tendendo a não mais tomar decisões que os exponha a esse risco (FISHBEIN; AJZEN, 1975; AJZEN; FISHBEIN, 1980; SPIELBERGER, 1985; HUNT; VITELL, 1986; REST, 1986; JONES, 1991; FREITAS; DANTAS, 2014).
A propósito, a causa do medo desses bons servidores serem confundidos com membros corruptos, denomina-se, neste artigo, de medo de “probabilidade de confusão ou equívoco”.
Logo, levantam-se as seguintes questões:
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Eventuais excessos, ações abusivas ou arbitrárias dos agentes responsáveis pela aplicação da lei pode gerar medo nos membros do próprio Poder Público, íntegros e sem desvio de comportamento ético, tomadores de decisão em matéria tributária?
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Se positivo, esse “medo” pode afetar, de algum modo, as suas decisões em matéria tributária, levando-os a decisões extremamente conservadoras ou ao indeferimento de pleitos legítimos de economia de tributos?
O presente artigo analisará se as investigações policiais ou fiscais, em que se utilizam métodos que possam ferir direitos e garantias fundamentais de pessoas, podem gerar um estado de medo nos membros do próprio Poder Público (“bons servidores”) que ainda não foram alvo dessas investigações. Se positivo, se o medo pode afetar, de algum modo e de que maneira, as suas decisões em matéria tributária. Não é, portanto, um trabalho empírico com abordagem quantitativa, pois não busca enumerar ou medir eventos, nem emprega instrumental estatístico para análise dos dados.
Os estudos quantitativos em que se utilizou a variável “aplicação da lei”, na tentativa de explicar os motivos que levam os contribuintes de diversos países a sonegar tributos (JACKSON; MILLIRON, 1986; PORCANO; PRICE, 1993; ANDREONI; ERARD; FEINSTEIN, 1998; BRUNETTI; WEDER, 2003), especialmente o trabalho de Richardson (2008), consideraram somente a reação comportamental dos contribuintes propensos à sonegação fiscal e dos membros corruptos do Poder Público ligados à área tributária (“maus servidores”).
Desta forma, este estudo justifica-se porque propõe que a variável “aplicação da lei” também venha a ser interpretada sob um novo prisma: o medo do que aqui chamamos de “probabilidade de confusão ou equívoco”, sobre os “bons servidores”.
O trabalho encontra-se estruturado em cinco seções. Na seção 1, a introdução, contendo a contextualização do tema, a formulação do problema, a apresentação dos objetivos, as justificativas e contribuições. No Capítulo 2, o referencial teórico. No Capítulo 3, a metodologia. No Capítulo 4, são analisados os dados coletados, apresentados e interpretados os resultados encontrados. Por fim, no Capitulo 5, são apresentadas as conclusões, as limitações do trabalho e as sugestões para futuras pesquisas.
REFERENCIAL TEÓRICO
Aplicação da lei e sanções
A “aplicação da lei” ou “execução jurídica” (legal enforcement) é uma regra de indicador de lei produzida por Kaufmann, Kraay e Mastruzzi (2005) para o World Bank, calculado baseando-se em vários índices que medem a extensão da confiança das pessoas de cada país para com as regras da sociedade, tais como a qualidade de execução legal com base no primado da lei (lícito/ilícito), a eficácia, a imparcialidade, e a previsibilidade das cortes e a probabilidade de corrupção, detecção e punição (RICHARDSON, 2008). Não se trata, portanto, de aplicação da lei no sentido jurídico, que seria a aplicação do direito ou aplicação jurídica por um órgão competente (juiz, tribunal, autoridade administrativa ou particular) que consiste em submeter um caso particular ao império de uma norma jurídica, ou seja, aqui não se trata de analisar os efeitos da subsunção do fato à norma (DINIZ, 2003, p. 409-417).
Portanto, ao utilizá-la como uma variável independente – aplicação da lei ou execução jurídica (LEGAL) - Richardson (2008) ressalta que o aspecto aplicação jurídica, baseada no primado da lei, prevê uma base importante para a prevenção das formas desviantes de comportamento, tais como a corrupção e a evasão fiscal. O aspecto “aplicação da lei” como importante medida nos estudos em torno da evasão fiscal também é apoiada em diversos estudos (BRUNETTI; WEDER, 2003).
A Teoria da Ação Racional
A Teoria da Ação Racional reconhece que os seres humanos são racionais e valem-se das informações disponíveis, avaliando riscos e implicações de suas ações e comportamentos, a fim de decidirem sua realização. Considera que as pessoas comportam-se de forma racional, avaliando o que têm a perder e a ganhar com a concretização de suas ações, onde ideias, metas pessoais, valores, crenças e atitudes influenciam o seu comportamento no trabalho (FISHBEIN; AJZEN, 1975).
De acordo com Sobral (2009), essa teoria sustenta que uma parte significativa do comportamento humano tem um fundamento racional que o torna previsível por meio da análise da intenção de agir, a qual é fortemente influenciada pela atitude perante o comportamento em questão e pela norma subjetiva – ou pressão social – associada a esse comportamento. Assim, muitos comportamentos são antecipados por uma intenção de agir que resulta de uma avaliação racional da realidade (FISHBEIN; AJZEN, 1975).
A Teoria da Ação Racional tem dois determinantes básicos que são a atitude comportamental e a norma subjetiva, onde a atitude seria o fator pessoal e a norma subjetiva seria o fator social (DIAS, 1995). Há quem defenda, ainda, que o julgamento moral, sendo uma avaliação individual sobre a aceitabilidade ética de um determinado comportamento, também integra a Teoria da Ação Racional (REINDENBACH; ROBIN, 1988, 1990). Por exemplo, o indivíduo crê que fazer o que deseja pode proporcionar uma satisfação inicial, por julgar que decorre de um procedimento eticamente correto, mas que, posteriormente, há riscos de que essa mesma ação possa lhe atrair consequências prejudiciais e mais intensas do que os benefícios obtidos, o que não valeria a pena (FISHBEIN; AJZEN, 1975). Foi assim que esse modo racional de se avaliar cada decisão deu o nome à Teoria da Ação Racional, porque enseja uma avaliação racional do comportamento a cada instante (D’AMORIM, 1995).
Esforço teórico conjugado
Busca-se um esforço teórico conjugado entre as teorias da ética teleológica, do medo e da Ação Racional, as quais servirão de base à análise e possível solução da problemática levantada neste trabalho e darão consistência aos resultados das entrevistas e da pesquisa documental, adiante abordados.
Para se examinar o comportamento do tomador de decisão em matéria tributária, num ambiente de ameaça, pressão ou exposição a riscos, utiliza-se da teoria da ética teleológica, a ética da responsabilidade. (WEBER, 1992; SROUR, 2003). Segundo seus princípios, havendo consequências da ação, surgirão dúvidas e questionamentos, fazendo com que o tomador de decisão avalie os possíveis riscos de sua possível ação (SROUR, 2003). Assim, o processo decisório será lento e complexo, obedecendo a um método indutivo, onde se medirá as consequências da ação (SARMENTO; FREITAS; VIEIRA, 2008).
Os interesses privados inseridos no contexto das esferas públicas podem gerar resultados desalinhados ao esperado pela sociedade. Tal situação se opõe à nova lógica gerencial que se mostra necessária, a fim de superar os desafios exacerbados pelo crescimento das expectativas individuais dos usuários e pela necessária prestação de contas e responsabilização dos agentes públicos (CABRAL; BARBOSA; LAZZARINI, 2008).
A possibilidade desses riscos ou ameaças afetarem a integridade do tomador de decisão será examinado pelas teorias do medo. Essa emoção pode surgir como reação natural diante de um perigo real, como consciência de uma ameaça a sua integridade (DELUMEAU, 1999; HERSEN, 1973; AINSWORTH, 1981; MORIS; KRATOCHWILL, 1983), pois considera que todo ser humano é suscetível ao medo (DELUMEAU, 1999; BARLOW, 2002; EKMAN; DAVIDSON, 1994; LEWIS; HAVILAND, 2000; PLUTCHIK, 2003; FREITAS; DANTAS, 2014), inclusive tomadores de decisão.
Conjuga-se a teoria do medo com a da ética teleológica. Desta última extrai-se a premissa de que todo ser humano, posto entre um desejo e o medo de prosseguir, diante da existência de riscos no caminho, faz com que reconheça que esse conflito constitui lhe um dilema de natureza ética (HUNT; VITELL, 1986; REST, 1986, SOBRAL, 2009). As teorias do medo afirmam que esse ser humano tende a adotar sistemas defensivos específicos, notadamente não mais prosseguir comportando-se do modo anterior que o exponha a tais riscos (DEJOURS, 1998; 1999, CUNHA; MAZZILLI, 2005).
Dejours buscou responder como fazem os trabalhadores para não adoecer diante de situações de trabalho precário. Assim, a maioria dos trabalhadores consegue se manter na normalidade, buscando defesas para superar esse sofrimento, pois, mesmo quando não surgiam doenças mentais, eram constatadas consequências mentais. Esse efeito é denominado fator enigmático (NUNES; LINS, 2009).
A aplicação da Teoria da Ação Racional (Theory of Reasoned Action) afirma que o comportamento desse mesmo ser humano terá um fundamento racional, que o torna previsível por meio da análise da sua intenção de agir sem riscos, totalmente influenciado pela pressão situacional (FISHBEIN; AJZEN, 1975). Dessa maneira, seu comportamento será antecipado por uma intenção de agir que resulta de uma avaliação racional da realidade (FISHBEIN; AJZEN, 1975; EAGLY; CHAIKEN, 1993; AJZEN, 2001; MAROT, 2003; SOBRAL, 2009).
A Teoria da Ação Racional (TAR) é adotada em estudos comportamentais para esclarecer a relação entre atitude e comportamento. Entretanto, embora possua resultados positivos no modelo proposto, a teoria encontra críticas significativas dada suas limitações. Na TAR, as atitudes são um preditor de intenções comportamentais. Atitudes são as avaliações globais do comportamento do indivíduo. A TAR também especifica as normas subjetivas como o outro determinante das intenções. As normas subjetivas consistem nas crenças de uma pessoa sobre outros significados que ela acha que pode influenciar no comportamento. Essas normas subjetivas são assumidas para avaliar as pressões sociais sobre os indivíduos a realizar ou não realizar um determinado comportamento (CHAVES, 2013; BERTOLIN; ZWICK; BRITO, 2013).
Enfim, é possível que venha a agir sob uma ética do medo, na medida em que, sob tais ameaças, terá sua capacidade de ação limitada, para que não se torne uma maldição para si mesmo (JONAS, 1984).
Ainda no estudo do medo, conclusão principal de Perri 6 (2001, p. 443) se coaduna com tais proposições teóricas, de que “toda estratégia política em torno da percepção e aversão ao risco é uma forma racional de se temer”. Essa conclusão parece estar em concordância com a base principiológica da Teoria da Ação Racional, que sustenta que uma parte significativa do comportamento humano tem um fundamento racional que o torna previsível por meio da análise da intenção de agir, quando muitos comportamentos são antecipados por uma intenção de agir que resulta de uma avaliação racional da realidade (FISHBEIN; AJZEN, 1975).
Metodologia
De início, esclareça-se que a coleta de dados primários e secundários, realizada neste trabalho, não tem o propósito de uma constatação empírica abrangente, porque não envolve testes estatísticos. Com a amostragem indicativa do fenômeno estudado, propiciada com os dados coletados, procura-se reforçar as proposições teóricas encontradas na pesquisa bibliográfica e vice-versa, alternando-se a reflexão entre teoria e fatos.
Para análise e tratamento dos dados coletados, notadamente quanto aos objetivos deste estudo, utilizou-se o método indutivo, onde o processo e seu significado são os focos principais da abordagem (LUDKE; ANDRÉ, 1986; ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER, 1999; FLICK, 2004).
A coleta de dados primários foi realizada por meio de entrevistas semi-estruturadas com as pessoas sujeitas ou que vivenciam o problema pesquisado. Ao todo, foram realizadas 20 (vinte) entrevistas, sendo 18 (dezoito) no Estado do Espírito Santo e 2 (duas) no Estado do Rio de Janeiro, a saber: Categoria A: 5 (cinco) magistrados, sendo um desembargador federal, 3 (três) juízes federais e um juiz estadual, todos já tendo atuado em varas fiscais; Categoria B: 3 (três) auditores fiscais e 2 (dois) analistas tributários; Categoria C: 5 (cinco) advogados tributaristas e 5 (cinco) contadores consultores em planejamento tributário.
As entrevistas ocorreram de forma individualizada, algumas pessoalmente, outras, à distância por meio do envio do roteiro por e-mail ao longo do segundo semestre de 2010. O caráter individual da entrevista apresenta-se nas posições sócio-mentais de cada entrevistado, refletidas da sua vivência profissional, passada e presente, diante do tema.
Desse modo, as entrevistas foram divididas em duas partes. A primeira, foca a visão externa do entrevistado para o problema apresentado, sem que tenha contato com a segunda parte, que foca a visão interna do entrevistado, a sua percepção dentro do problema. Essa divisão teve o propósito de evitar vieses em suas respostas, pela possível influência mental antecipada pelo conhecimento da segunda, que afeta o “eu” do entrevistado. As entrevistas foram guiadas pelas seguintes apresentações, cujas perguntas, construídas pelo autor, constam da no Quadro 1, mais adiante:
Primeira Parte: No estudo da evasão fiscal, analisaram-se os diversos aspectos que influem no comportamento do contribuinte quanto às obrigações tributárias, dentre eles aspectos culturais, políticos, religiosos e legais. Sobre o aspecto legal, criou-se uma medida (variável) denominada “aplicação da lei” (legal enforcement), que se destina a medir o grau de eficiência que o Poder Público (Fisco, Polícias, Ministério Público, Judiciário, etc.) exerce sobre os indivíduos para detectar e punir sonegadores de impostos. Dependendo do nível de aplicação da lei, estudos concluíram que o Poder Público pode gerar um estado de “ética do medo”, que seria o cumprimento das obrigações tributárias pelo medo de ser detectado e punido, tanto em relação aos contribuintes, como aos membros do Poder Público responsáveis pela fiscalização e aplicação da lei em matéria tributária (policiais, auditores, promotores, juízes). No campo do combate à corrupção, ligado à evasão fiscal, também se espera a mesma reação dos membros do poder público com desvio de comportamento ético: cessar as atividades criminosas pelo medo de ser detectado e punido.
Segunda Parte (realizada somente após concluída a fase anterior): O presente estudo, por outro lado, examinou a possibilidade de haver outra face da “ética do medo” e suas possíveis influências em torno do fenômeno da evasão fiscal. Essa outra face seria a reação dos membros do Poder Público sem desvio de comportamento ético, num ambiente de pressão e ameaças. Falando do aspecto “aplicação da lei”, um ambiente de pressão e ameaças talvez possa ocorrer nas situações em que órgãos do Poder Público venham a exercê-la utilizando meios ou diligências que ofendem certos direitos individuais constitucionalmente garantidos, ou mesmo de forma abusiva. Como exemplo, citam-se as operações da Polícia Federal, Fisco e Ministério Público, etc. Sem falar nas escutas telefônicas, é comum a divulgação na mídia, no início das operações, do nome de todos os envolvidos, alguns deles magistrados lotados em varas fiscais, promotores, auditores fiscais, dentre outros servidores, todos responsáveis por pleitos judiciais ou extrajudiciais visando a redução de tributos. Alguns foram posteriormente inocentados, tidos como meros suspeitos de práticas ilícitas ou confundidos com servidores corruptos. Alguns já declararam que dificilmente se recuperarão do estigma social sofrido com a divulgação de seus nomes na mídia. A psicologia mostra que toda ameaça, pressão social ou riscos provocam medo em qualquer ser humano, por se encontrarem na oposição entre dois desejos, o de prosseguir e o de recuar, terminando por adotar sistemas defensivos, notadamente o de não tomar decisões que o exponha a tais riscos.
As entrevistas foram tratadas de forma coletiva. Preocupou-se não só em descrever os resultados percentuais globais, mas também com o propósito de decifrar o conjunto de significações das falas dos entrevistados e mesmo a carga de emotividade com que responderam as questões (FLICK, 2004; ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER, 1999).
A coleta de dados secundários foi realizada por meio de pesquisa documental. Abrangeu pesquisa de reportagens e matérias jornalísticas, relatando fatos, depoimentos e comportamentos de pessoas das quais não se teve acesso direto, bem como notas e manifestos de órgãos de classe de pessoas ou de grupo de pessoas expostas ao problema levantado, divulgadas em seus sítios na internet ou por meio da mídia em geral (BAILEY, 1982; LUNA, 1999). Os documentos foram tratados de forma individual, pelo método de análise de conteúdo (BARDIN, 1977, p. 42).
Resultados Encontrados
O resumo dos resultados das entrevistas e da pesquisa documental é apresentado na Quadro 1 e Quadro 2 a seguir. Em relação às entrevistas, o Quadro 1 apresenta o percentual da maioria das respostas dos entrevistados das categorias “AB” e “C”, bem como a média (u) entre estas. Nos resultados considerou-se, ainda, o sentido e a intenção das falas dos entrevistados:
O Quadro 1, nos resultados das questões 1, 2 e 3, da primeira parte das entrevistas, e nos das questões 1 e 2, da segunda parte, indicam que os agentes responsáveis pela “aplicação da lei”, no combate à evasão fiscal, muitas vezes agem de modo abusivo, cometendo excessos e arbitrariedades, violando direitos e garantias fundamentais de servidores investigados e não investigados. Ainda no Quadro 1, nos resultados das questões 1, 2, 4 e 5, da segunda parte das entrevistas, confirma que se a “aplicação da lei”, no combate à evasão fiscal, for exercida com excessos, abusos ou arbitrariedades, pode gerar um estado de medo entre os membros do próprio Poder Público, em princípio íntegros e sem desvio de comportamento ético, tomadores de decisão em matéria tributária. Nos resultados das questões 1, 3, 4 e 5, da segunda parte das entrevistas, extrai-se a confirmação de que um ambiente de ameaças ou pressão, causado pela ação abusiva ou arbitrária dos agentes da lei, gerando medo, pode afetar de algum modo, as decisões judiciais ou administrativas em matéria tributária, nas quais se pleiteiam economia de tributos (planejamento tributário). A maneira como as decisões são afetadas foram relatadas pelos entrevistados igualmente de modo expressivo (80% de ambos os grupos entrevistados), qual seja, de que indefeririam o pedido liminar, deixando para apreciar o pedido judicial de economia de tributos para o final do processo (sentença de mérito) ou postergaria para um momento posterior ao início da ação. Outros 40% desses 80%, afirmaram que as decisões condicionariam a concessão de liminares (os magistrados) ao prévio depósito em dinheiro ou garantia real equivalente, no montante envolvido. Dentre os auditores, relataram que agiriam, como têm agido, com extremo rigor e conservadorismo e provavelmente indefeririam pleitos de economia de tributos ou projetos de reestruturação societária quando não restasse demonstrado um propósito negocial de fundo, ainda que escorado em leis civis ou comerciais.
Segundo os contadores entrevistados, os auditores afetados pelo medo quase sempre decidem em favor do fisco, mesmo quando o contribuinte trilha seu processo de economia de tributos dentro da lei. Todavia, relataram que esse medo que acomete os auditores reside no risco que sentem de ter suas decisões tidas por suspeitas de favorecerem esquemas de sonegação. Terminam por autuar o contribuinte, lançando inconformidades. Prefere o auditor fiscal que o caso seja julgado pelo Conselho de Contribuintes do que “deixar o seu pescoço na reta”. A expressão “deixar o seu pescoço na reta”, extraída ipsis literis da entrevista não só de um contador, mas de um dos auditores entrevistados, embora vulgar, tem importante significado científico para o presente trabalho, porque pode ser tecnicamente decodificada. Por meio da análise de conteúdo (BARDIN, 1977; BAILEY, 1982), pode ser traduzida como a adoção de um sistema defensivo causado pelo medo, frente a um perigo imaginário ou real (DELUMEAU, 1999; HERSEN, 1973), qual seja, do auditor ser taxado de complacente ou condizente com esquemas de sonegação fiscal. Prefere não decidir sozinho.
No Quadro 2, procurou-se sintetizar as situações ou episódios fáticos em que os agentes da lei excederam-se ou comportaram-se de modo abusivo, empregando meios arbitrários durante investigações ou ações. Por fim, preocupou-se em extrair o sentido das comunicações e o comportamento das pessoas alvo das reportagens jornalísticas, buscando-se a sua significação com o problema levantado neste trabalho (BARDIN, 1977).
O resultado da pesquisa documental complementa o resultado verificado nas entrevistas. A pesquisa documental, resumida no Quadro 2, corrobora os resultados das entrevistas, na medida em que os órgãos representativos de classe de magistrados (AJUFE, 2004; BERGAMO, 2011), de auditores fiscais (SINDIFISCO, 2011), de advogados (OAB-SP, 2005) e até mesmo a própria Advocacia Geral da União (SOUZA, 2011), emitiram sinais de repúdio e preocupação com ações dos agentes da lei, que estariam sendo abusivas, arbitrárias e injustas. Denunciaram que, em muitos casos, essas ações geraram um império do medo, além de estigmas sociais em servidores que, inicialmente tidos como suspeitos e posteriormente inocentados, foram marcados para o resto de suas vidas com o resultado da “aplicação da lei” feito dessa forma (Documentos nº 01, 02, 04 e 05).
Conclusões teóricas sobre os resultados
Os resultados das entrevistas e da pesquisa documental confirmaram que os agentes responsáveis pela “aplicação da lei”, no combate à sonegação fiscal, muitas vezes cometem excessos e agem de modo abusivo ou arbitrário. Esse modo de agir pode gerar medo nos membros do próprio Poder Público, tomadores de decisão tributária, afetando, de algum modo, suas decisões, retardando-as ou indeferindo pleitos de economia de tributos.
O esforço teórico conjugado, da base principiológica das teorias da ética teleológica, do medo e da Ação Racional, explicam as causas e os efeitos dos resultados encontrados.
Apoiado pela teoria da ética teleológica é possível afirmar que o comportamento do tomador de decisão, encontrando-se num ambiente de ameaça, pressão ou exposição a riscos, reflexionará com a ética da responsabilidade. (WEBER, 1992; SROUR, 2003). Segundo seus princípios, havendo consequências da ação, surgirão dúvidas e questionamentos, fazendo com que avalie os riscos de sua possível ação (SROUR, 2003). Assim, o processo decisório será lento e complexo, obedecendo a um método indutivo, onde se medirão as consequências da ação (SARMENTO; FREITAS; VIEIRA, 2008).
Se as decisões contra os interesses do Fisco podem gerar riscos ou “probabilidade de confusão ou equívoco”, o medo surgirá como reação natural diante desse perigo real, como consciência de uma ameaça a sua integridade (DELUMEAU, 1999; HERSEN, 1973; AINSWORTH, 1981; MORRIS; KRATOCHWILL, 1983). Todo ser humano é suscetível ao medo, inclusive os tomadores de decisão (DELUMEAU, 1999; BARLOW, 2002; EKMAN; DAVIDSON, 1994; LEWIS; HAVILAND, 2000; PLUTCHIK, 2003).
Conjuga-se a teoria do medo com a da ética teleológica. Desta última extrai-se a premissa de que todo ser humano, posto entre um desejo e o medo de prosseguir, diante da existência de riscos no caminho, faz com que reconheça que esse conflito constitui lhe um dilema de natureza ética (HUNT; VITELL, 1986; REST, 1986; SOBRAL, 2009). Nos resultados encontrados, o dilema consiste entre o desejo de julgar imparcialmente, segundo o primado da lei (lícito/ilícito) e o medo de, se assim proceder, expor-se ao risco de “confusão ou equívoco”.
As teorias do medo afirmam, ainda, que esse ser humano, sob ameaça, tende a adotar sistemas defensivos específicos, notadamente não mais prosseguir comportando-se de uma maneira que o expunha a tais riscos (DEJOURS, 1988, 1999, CUNHA; MAZZILLI, 2005). Os resultados dos dados coletados mostram que esses servidores públicos, acometidos pelo medo, tenderão a não mais proferir decisões contrárias aos interesses do Fisco. Considere-se, ainda, a possibilidade da mídia também influenciar essas decisões, exercendo uma pressão que pode prejudicar o exercício do poder discricionário na aplicação do primado da lei, proporcionando a parcialidade nas decisões, fazendo que direito e garantias fundamentais sejam violados (COUTINHO, 2002; BATISTA, 2003; BUJES, 2008).
Escorando-se nos princípios de base da Teoria da Ação Racional, pode-se concluir que o comportamento do servidor público, acometido pelo medo de “probabilidade de confusão ou equívoco”, terá um fundamento racional, que o torna previsível por meio da análise da sua intenção de agir sem riscos, totalmente influenciado pela pressão situacional (FISHBEIN; AJZEN, 1975; SOBRAL, 2009). Dessa maneira, seu comportamento será antecipado por uma intenção de agir que resulta de uma avaliação racional da realidade (FISHBEIN; AJZEN, 1975; EAGLY; CHAIKEN, 1993; AJZEN, 2001; MAROT, 2003; SOBRAL, 2009). Enfim, pode-se concluir que esse servidor público agirá sob uma ética do medo, na medida em que, sob tais ameaças, inclusive de ser estigmatizado socialmente por meio da mídia (PORCANO; PRICE, 1993) terá sua capacidade de ação limitada, para que não se torne uma maldição para si mesmo (JONAS, 1984).
A relação entre o medo, o dilema ético surgido e ação racional do ser humano tomador de decisão tributária, pode ser esquematizado por meio da Figura.
O centro das esferas, na Figura, demonstra o estado de medo, que resulta num dilema ético, consistente entre o desejo de julgar imparcialmente, segundo o primado da lei (lícito/ilícito) e o medo de, se assim julgar, expor-se ao risco de “probabilidade de confusão ou equívoco”. Toda ameaça, pressão social ou riscos provocam medo em qualquer ser humano (DELUMEAU, 1999; BARLOW, 2002; EKMAN; DAVIDSON, 1994; LEWIS; HAVILAND, 2000; PLUTCHIK, 2003). Trata-se de uma oposição entre dois desejos, entre dois sistemas, o consciente e o inconsciente (DEJOURS, 1998, 1999). No presente caso, conflita-se o magistrado julgador e o auditor fiscal, íntegros, com o desejo de cumprir o primado da lei, garantindo o direito dos contribuintes, em contradição com a ameaça ou risco de serem confundidos com “maus servidores”. Essa hesitação e esse conflito respondem por aspectos concretos da realidade, no caso, a estigmatização ocorrida com outros colegas, deste modo exigindo sistemas defensivos específicos (DEJOURS, 1998). A consciência da ameaça de ser confundido com servidores desonestos é traduzida pelo medo, podendo assumir inúmeras formas (AINSWORTH, 1981), ou mesmo assumindo uma reação emocional mais ou menos intensa diante de um perigo específico, no caso real, ou mesmo se imaginário fosse (MORRIS; KRATOCHWELL, 1983).
Observadas tais constatações na dimensão ética, considerando o dilema entre o dever e o risco, tal como antes demonstrado, os resultados das entrevistas e dos documentos examinados convergem com os das proposições teóricas existentes, no sentido de que fatores de natureza individual e contextual influenciam o julgamento moral e as intenções comportamentais das pessoas expostas a esses dilemas éticos (JONES, 1991; REST, 1986). Desse modo, constata-se que a estigmatização social equivocada de servidores honestos, leva outros servidores a agir com autoproteção, pela patente existência subjetiva de riscos (PEREIRA, 2004), intimamente relacionada com a mídia (GLASSNER, 2003). Via de consequência, afeta seres humanos tomadores de decisão, judicial ou administrativa, pois na atualidade impera o sentimento coletivo de medo e insegurança (ZAFFARONI, 1999; BUJES, 2008), inclusive o medo da polícia, no caso de ser injustamente estigmatizado (ROAZZI; FEDERICCI; CARVALHO, 2002).
Na Figura, a seta indicativa da “ação racional” e o desenho da mão indicando “pare”, representam a explicação da Teoria da Ação Racional (FISHBEIN; AJZEN, 1975) sob o comportamento final do servidor público que se encontra sob o medo e sob um dilema de natureza ética. Sendo homens racionais, o medo causado pelo risco de que suas decisões sejam mal interpretadas e serem confundidos com servidores com desvio de comportamento ético, com o risco de serem estimatizados, constitui-se num fundamento resultado de uma avaliação racional da realidade. Tal avaliação torna previsível sua reação diante de tais ameaças, notadamente cessando ou paralisando-se diante desse perigo, ou seja, não mais tomando decisões contra o Fisco e que, assim, os exponha a esses riscos.
Por fim, traz-se a conclusão principal de Perri 6 (2001, p. 443), que se coaduna com a Teoria da Ação Racional, de que “toda estratégia política em torno da percepção e aversão ao risco é uma forma racional de se temer”.
Considerações finais e Sugestões
Os resultados encontrados são consistentemente sustentados e confirmados pelas proposições teóricas extraídas da pesquisa bibliográfica, a partir dos quais se pode concluir que a “aplicação da lei”, se exercida com excessos, abusos ou arbitrariedades, provoca medo nos membros do próprio Poder Público, mesmo naqueles íntegros, sem desvios de comportamento ético ou que ainda não são alvo de investigações.
Infere-se, ainda, que esse estado emocional de medo pode afetar as decisões desses membros do Poder Público. O medo de que suas decisões sejam mal interpretadas, por acolher teses jurídicas que proporcionam economia lícita de tributos e, assim, serem apontados como suspeitos de integrarem esquemas de sonegação, fazem com que prefiram decidir em favor do Fisco. Agem, assim, racionalmente, cujo comportamento pode ser antecipado, na medida em que sopesará o que tem a ganhar, entre agir com a ética da imparcialidade, ou a perder, pelo risco de ser estigmatizado socialmente como corrupto, inclusive pela mídia.
No combate à evasão fiscal, é esperado, pelos Governos, que com a “aplicação da lei”, com base no seu primado (lícito/ilícito) e de modo eficiente, o seu alvo seja atingido. No seu campo de impacto, esperam atingir os verdadeiros sonegadores, dentre eles eventuais servidores públicos corruptos, que compactuam e colaboram com esquemas de sonegação fiscal. Com isso, cria-se um estado de ética do medo entre esses “maus servidores”. Todavia, se a “aplicação da lei” for executada com excessos, abusos ou arbitrariedades extrapolará, consideravelmente, a área alvo de impacto, em cujos arredores encontram-se pessoas inocentes, os “bons servidores”.
Muito embora o propósito da “aplicação da lei” seja o de fazer justiça tributária, combatendo a sonegação, se exercida com excessos, abusos ou arbitrariedades pode produzir um efeito potencialmente colateral – a parcialidade nas decisões tributárias – o que gera injustiça tributária. Este fenômeno faz com que o primado da lei ceda lugar ao primado da força. Gera, portanto, um efeito colateral não esperado, nem desejado, por um Estado Democrático de Direito, onde o Poder Público deveria agir somente secundum legem, ou seja, segundo a lei.
Deste modo, a importância dada por Richardson (2008) aos dados coletados a partir da variável “aplicação da lei” deve ter o seu campo de interpretação ampliado, porque se limitou a considerá-la somente quando baseada no seu primado (lícito/ilícito) e sobre os “maus servidores” e demais sonegadores. Não imaginou a possibilidade de desvios na sua execução, nem os efeitos decorrentes. Logo, as explicações dos aspectos que influenciam no aumento ou diminuição da evasão fiscal não devem desprezar o provável efeito do medo nas decisões em matéria tributária, que provoca a desvirtuação do princípio do primado da lei.
Vale dizer, se os pleitos de economia lícita de tributos (elisão fiscal) forem indeferidos, postergados ou de algum modo negativamente afetados pela influência do medo, a pré-disposição desse comportamento pode ser notada pelo contribuinte, possivelmente desestimulando-o de recorrer aos métodos de planejamento tributário. Se assim for, não terá outra alternativa senão a de pagar o tributo.
A consequência lógica leva a crer que esse comportamento talvez leve ao aumento da arrecadação fiscal, o que geraria a falsa impressão de que se está aumentando o nível de eficiência do aspecto “aplicação da lei” no combate à evasão fiscal. Seriam dois efeitos paradoxais decorrentes da aplicação da lei. Um deles é desejado pelo Estado Democrático: o aumento da arrecadação fiscal pelo combate à sonegação. Outro, oculto, repudiado e não esperado pelo mesmo Estado Democrático: o aumento da arrecadação fiscal pela via da parcialidade, pela imposição do poder, pelo cerceamento do direito ao planejamento tributário.
Deste modo, propõe-se que, ao lado da variável independente aplicação da lei (LEGAL), passe a ser considerado os efeitos do medo de probabilidade de confusão ou equívoco e sua provável influência sobre as decisões judiciais e administrativas envolvendo o planejamento tributário. Essa proposição é justificável, na medida em que a variável “aplicação da lei”, ao se destinar a medir a confiança com a qualidade de execução das leis, a eficácia, a imparcialidade e a previsibilidade das cortes, bem como a probabilidade de detecção de ilícitos (KAUFMANN; KRAAY; MASTRUZZI, 2005), este trabalho demonstrou que há um efeito potencialmente colateral que afeta essa credibilidade de eficácia, de imparcialidade e de previsibilidade das cortes, o que justifica sua importância.
Enfim, espera-se ter contribuído para aumentar o ângulo de visão e o campo de interpretação dos dados coletados a partir da variável “aplicação da lei” e a melhoria da compreensão dos efeitos que dela pode se esperar, com isso abrindo novos horizontes para futuras pesquisas. Se esse medo e suas consequências ocorrem no Brasil, pode estar ocorrendo em outros países.
Algumas limitações de pesquisas devem ser consideras. Dentre elas, o número limitado de pessoas entrevistadas e de documentos analisados, nada obstante a intenção de coletá-los a título de apoio à pesquisa bibliográfica.
Observa-se, ainda, que esta pesquisa não se utilizou de métodos estatísticos, por não ter o propósito quantitativo. Logo, as constatações são limitadas ao campo descritivo, por ser este o seu propósito, razão de se ter utilizado a base principiológica das teorias de base, inclusive da Teoria da Ação Racional. Por exemplo, não se testou empiricamente, pelos métodos de pesquisa empírica adotados pelos modelos da TAR, as atitudes das pessoas sujeitas aos dilemas éticos causados pelo medo de probabilidade de confusão ou equívoco. Segundo D’Amorim (1995), o método básico de medição desses comportamentos, pela TAR, consiste na utilização de questionários especificamente elaborados para essa finalidade.
Consequentemente, futuras pesquisas quantitativas poderão testar, empiricamente, as atitudes das pessoas sujeitas aos dilemas éticos causados pelo medo de probabilidade de confusão ou equívoco, pelos métodos de pesquisa empírica adotados pelos modelos da Teoria da Ação Racional e, assim, suprir uma das limitações desta pesquisa.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2015
Histórico
-
Recebido
30 Mar 2013 -
Aceito
01 Out 2014