Resumo
O objetivo deste texto é analisar dados qualitativos dos espaços representacionais das Ocupações Urbanas (OUs) Carolina Maria de Jesus e Nova Canudos, realizadas no primeiro semestre de 2021 pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto na periferia do município de São Paulo. O conceito de “espaços representacionais” é parte da teoria da produção do espaço de Henri Lefebvre (1991), na qual o autor o articula com os conceitos de “práticas espaciais” e “representações do espaço”. Neste texto, utilizou-se de métodos de análise de dados qualitativos (obtidos em texto de Guilherme Boulos e vídeos sobre as OUs analisadas) para demonstrar os atributos sociopolíticos dos espaços representacionais daquelas OUs. Esses espaços representacionais expressam as lutas macro e micropolíticas cujas características foram sistematizadas e sintetizadas em um quadro fundamentado em categorias elaboradas por Suely Rolnik (2018) como parte de sua teoria das insurgências macro e micropolíticas. Do ponto de vista das lutas macropolíticas, denunciam as desigualdades e injustiças sociais e reivindicam direitos coletivos. Do ponto de vista das lutas micropolíticas, constituem-se como atos políticos que anunciam modos de bem viver, conviver e morar em bases solidárias.
Palavras-chave: Ocupações urbanas; Espaços representacionais; Lutas macropolíticas; Lutas micropolíticas
Abstract
This text aims to analyze qualitative data of representational spaces from the Urban Occupations (UOs), specifically the UOs Carolina Maria de Jesus and Nova Canudos, carried out in the first half of 2021 by the Homeless Workers Movement (MTST in Portuguese), in the periphery of the city of São Paulo. The concept of “representational spaces” is part of the Henri Lefebvre’s space production theory,which articulates the concepts of “spatial practices” and “representations of spaces”. We use methods to analyze qualitative data (from the text written by Guilherme Boulos and videos about the UOs) to demonstrate socio-political attributes of representational spaces of those UO. These representational spaces express their macro and micro-political struggles which characteristics were systematized and synthesized in a frame based on categories elaborated by Suely Rolnik (2018) as part of her macro and micro-politics insurgencies theory. From the point of view of macro-political struggles, they denounce social inequalities and injustices and demand collective rights. From the point of view of micro-political struggles, they constitute political acts that announce ways of well living apart and together on solidarity bases.
Keywords: Urban occupations; Representational spaces; Macro-political struggles; Micro-political struggles
Introdução
As cidades brasileiras são reconhecidas nacional e internacionalmente por suas profundas desigualdades socioespaciais. Por causa dessas características estruturais, são adjetivadas como partidas, fraturadas, divididas e apartadas, entre outros predicados que denotam clivagens, discrepâncias e disparidades entre grupos sociais e seus territórios de moradia. Basicamente, esses adjetivos designam as desigualdades e segregações socioespaciais entre as áreas ocupadas pelas camadas sociais ricas e pobres cujos contrastes aparecem em dicotomias que contrapõem, principalmente, as urbanizações de áreas urbanas centrais e periféricas. Em que pese as melhorias urbanas e habitacionais ocorridas nas áreas periféricas durante o último quartel do século XX e o primeiro do XXI, tais desigualdades e segregações socioespaciais persistem nas estruturas urbanas do país. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o percentual nacional de domicílios particulares permanentes adequados aumentou de 51,7% para 72,9% no período entre 2004 e 2015 (IBGE, 2022).
As contradições internas da urbanização paulistana ocorrida ao longo do século XX, sob a égide dos processos de expansão do capitalismo industrial periférico no Brasil, produtoras das profundas desigualdades socioespaciais entre as áreas centrais e periféricas da cidade de São Paulo, foram largamente analisadas e discutidas em estudos urbanos elaborados nas décadas de 1970 e 1980. Esses estudos expõem uma característica histórica e estrutural da urbanização brasileira relativa ao padrão periférico de crescimento urbano associado à reprodução da pobreza em bairros populares da classe trabalhadora desprovidos de serviços, equipamentos e infraestruturas urbanas básicas (Camargo et al., 1975), impulsionado pelos fluxos migratórios causados pela modernização conservadora do campo e da cidade (Singer, 1977) e marcado pela espoliação urbana que expropria a classe trabalhadora de seus direitos sociais básicos (Kowarick, 1993), pela superexploração do trabalho na imbricação e acomodação entre o moderno e o arcaico na formação da sociedade e do capitalismo periférico brasileiro (Oliveira, 1988), pela implantação de loteamentos irregulares em locais com baixa renda diferencial da terra urbana (Bonduki & Rolnik, 1982) e pelas estratégias de produção habitacional (autoconstrução) realizadas pelas trabalhadoras e trabalhadores em parcelas desses loteamentos irregulares (Maricato, 1982).
Uma dessas contradições encontra-se nas desigualdades de acessos sociais às terras urbanas e moradias dignas na cidade. Essas desigualdades impedem o acesso das populações de baixa renda às terras urbanas e moradias dignas com boas condições de vida. Diante disso, trabalhadores e trabalhadoras se organizam de diferentes maneiras para realizar ocupações urbanas, designadas pela sigla OUs, e obter um lugar para morar na cidade, mesmo que precariamente.
No presente artigo, propõe-se analisar os espaços representacionais das OUs realizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), especificamente as OUs Carolina Maria de Jesus e Nova Canudos, localizadas, respectivamente, nas Zonas Leste e Norte do município de São Paulo. O conceito de “espaço representacional” é parte da teoria da produção do espaço de Henri Lefebvre (1991). Aplicou-se esse conceito para analisar os espaços representacionais das OUs, interpretando-os tanto a partir dos conteúdos dos seus próprios meios de expressão (textos e vídeos) quanto por meio de categorias relativas às lutas macro e micropolíticas formuladas por Suely Rolnik (2018). Tais OUs são consideradas como atos políticos que interpelam as desigualdades sociais das cidades brasileiras e disputam acessos às terras urbanas ociosas, muitas vezes retidas especulativamente, para nelas obterem moradias dignas. Este artigo considera somente as OUs que não buscam necessariamente consolidar-se como assentamentos urbanos informais. Nesse aspecto, distinguem-se das OUs que se consolidam em assentamentos urbanos precários permanentes associados à urbanização considerada irregular e ilegal por causa dos seus processos desregulados e extralegais de parcelamento do solo, construção de edificações e instalação de atividades residenciais e não residenciais.
As OUs Carolina Maria de Jesus e Nova Canudos analisadas no presente artigo foram realizadas no primeiro semestre de 2021 em plena pandemia de Covid-19. Fazem parte da história de lutas sociais pela conquista da terra levadas a cabo por setores subalternizados. Tais setores, segundo texto de Miguel Lanzellotti Baldez (2003, p. 77), “[...] sabem que à terra só terão acesso rompendo as cercas em torno dela construídas”. Segundo esse autor, “Na luta pela terra, duas vertentes devem ser consideradas: a luta pela conquista do campo, luta pela reforma agrária, e a luta pela conquista da cidade, luta pela reforma urbana” (Baldez, 2003, p. 77). No presente artigo, enfocam-se os espaços representacionais das lutas pelo acesso à terra urbana para a classe trabalhadora que estão no centro das lutas pela reforma urbana. A despeito dos avanços conquistados no campo jurídico, essas lutas pouco avançaram na busca pela distribuição fundiária equitativa. Isso demonstra que as elaborações jurídicas são importantes, porém não são suficientes para a realização da reforma urbana no Brasil. Daí a importância das práticas coletivas das ocupações de terras e imóveis urbanos como as OUs analisadas no presente artigo. Tais práticas ocorrem necessariamente em contextos de conflitos urbanos e fundiários. Isso porque, conforme conclui Miguel Lanzellotti Baldez (2003, p. 89), “A luta pela terra é uma luta contra o capital, tanto no campo como nas cidades, nessas, com o solo urbano apropriado como insumo da produção capitalista”. As OUs são atos de posse da terra que, para Baldez (2003, p. 90), são realizados por “[...] sujeito coletivo, portanto político, e de ruptura com o subjetivismo individualizante do direito burguês”. O ato de posse da terra
Cria novo modo de aquisição da propriedade, rompendo com o conceito de venda e compra que está no bojo da aquisição entrevivos da propriedade; e submete a propriedade à necessidade e antecedência da posse. É direito que se constrói na luta e na prática da ação política de ocupar a terra.
Conforme afirmação anterior, a OU, como ato de posse da terra, é realizada em contexto de intenso conflito urbano e fundiário que se desdobra no campo jurídico. A advogada Giovanna Bonilha Milano (2017) analisou as decisões judiciais relativas aos conflitos fundiários urbanos compreendidos conforme a Resolução nº 87/2009 (Brasil, 2010, p. 88-97), do extinto Conselho Nacional das Cidades. Segundo essa Resolução, o conflito fundiário urbano é a
[...] disputa pela posse ou propriedade de imóvel urbano, bem como impacto de empreendimentos públicos e privados, envolvendo famílias de baixa renda ou grupos sociais vulneráveis que necessitem ou demandem a proteção do Estado na garantia do direito humano à moradia e à cidade. (Brasil, 2010, p. 90).
A autora identifica quatro linhas argumentativas que fundamentam essas decisões judiciais. A primeira “[...] interpreta o conflito social da disputa fundiária a partir das categorias tradicionais de posse e propriedade edificadas na tradição civilística” (Milano, 2017, p. 2054).
Na segunda linha argumentativa, questionável e discutível, “[...] o direito à moradia é compreendido como norma programática, cuja aplicação se viabiliza exclusivamente pelos atos do Estado-administrador ou do Estado-legislativo” (Milano, 2017, p. 2057). Nesse sentido,
[...] o enfrentamento do argumento apresentado pelos réus acerca da violação do direito à moradia em função do despejo é afastado com a justificativa de que tal situação corresponde a um ‘problema social’ que não pode ser resolvido na seara do Poder Judiciário. (Milano, 2017, p. 2058).
A terceira linha argumentativa identifica as “[...] ocupações como uma conduta antijurídica que deve ser repreendida pelo Poder Judiciário, acima de qualquer circunstância” (Milano, 2017, p. 2062). Nessa linha,
[...] a ênfase recai sobre o caráter reprovável da conduta praticada pelos “invasores” e seu potencial ofensivo à ordem pública, à ordem jurídica e à ordem urbanística. Assim, ainda que a ausência de acesso à moradia seja reconhecida do discurso jurisdicional, a evidência da ocorrência da invasão impede sua inclusão como um direito a ser ponderado no caso concreto. (Milano, 2017, p. 2062).
Conforme Milano (2017, p. 2062),
É como se a escolha dos moradores pela via da ocupação os deslocasse para um campo da ilicitude, de interdito jurídico, que impediria o reconhecimento de quaisquer direitos que pudessem ser aferidos a partir daí. De maneira implícita, ou por vezes, explícita, afere-se que a realização de ocupação — nomeada invasão — para fins de moradia implica a assunção do risco de ser despejado e de ter seu local de moradia submetido à permanente condição de insegurança, em uma renúncia tácita de direitos que ocorrera no ato da invasão.
Por fim, a quarta e última linha argumentativa conecta-se especialmente aos casos em que o “[...] imóvel em litígio envolve área de interesse ambiental” (Milano, 2017, p. 2064). Conforme essa linha, “[...] o direito à moradia é compreendido como um direito individual que, embora legítimo, não pode obstaculizar o direito de todos ao meio ambiente saudável. Há um conflito, ao menos aparente, entre direito à moradia e direito ao meio ambiente” (Milano, 2017, p. 2064). As entrelinhas dessa linha argumentativa “[...] posicionam o morador das ocupações irregulares como uma ameaça ambiental” (Milano, 2017, p. 2064).
Com esse quadro de referências e definições, elaborou-se o presente artigo que, afora esta Introdução, possui quatro partes. A primeira parte expõe a metodologia e as fontes de dados qualitativos utilizadas nas análises sobre os espaços representacionais das OUs do MTST, em particular as OUs Carolina Maria de Jesus e Nova Canudos realizadas nas periferias do município de São Paulo. A segunda parte apresenta as trajetórias de lutas crescentes do MTST desde sua origem ocorrida em 1997 no município paulista de Campinas a partir do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A terceira parte demonstra os atributos dos espaços representacionais das OUs do MTST e de suas lutas macro e micropolíticas, conforme categorias propostas por Suely Rolnik (2018) e com base em texto de Guilherme Boulos (2012) e vídeos sobre as OUs Carolina Maria de Jesus (MTST, 2021c) e Nova Canudos (MTST, 2021a; Boulos, 2021), produzidos por membros do MTST. A quarta e última parte encerra este texto com considerações finais sobre seus elementos principais.
A metodologia e as fontes de dados qualitativos utilizadas nas análises sobre os espaços representacionais das OUs do MTST
As OUs do MTST se constituem em espaços representacionais nos quais se expressam intersecções entre as lutas macro e micropolíticas. As abordagens sobre essas OUs apresentadas neste artigo têm como referência a teoria da produção do espaço de Henri Lefebvre (1991) e das insurgências macro e micropolíticas de Suely Rolnik (2018).
Com base na teoria lefebvriana, as OUs são entendidas como espaço social produzido socialmente. Isso implica em compreendê-las como locais de relações inseridas nos processos sociais de produção e reprodução capitalista que envolvem práticas espaciais, representações dos espaços e espaços representacionais. Segundo Lefebvre,
A prática espacial de uma sociedade oculta o espaço dessa sociedade; ela o propõe e pressupõe em uma interação dialética; ela o produz vagarosa e seguramente conforme o apreende e apropria. De um ponto de vista analítico, a prática espacial de uma sociedade é revelada por meio da decifração do seu espaço1. (Lefebvre, 1991, p. 38 – tradução nossa)
Em relação às representações dos espaços, Lefebvre as define como “[...] espaços conceituais, o espaço dos cientistas, planejadores, urbanistas, parceladores tecnocratas e engenheiros sociais, bem como certos tipos de artistas com inclinações científicas – todos identificam o que é vivido e percebido com o que é concebido”2 (Lefebvre, 1991, p. 38 – tradução nossa). As representações dos espaços indicam concepções dominantes desses espaços baseadas nos espaços vividos e percebidos. Quanto aos espaços representacionais, o autor os apresenta como “[...] espaços diretamente vivenciados por meio das imagens e símbolos a eles associados, e, portanto, o espaço dos ‘habitantes’ e ‘usuários”3 (Lefebvre, 1991, p. 39 – tradução nossa, grifos do autor).
No presente artigo, utilizou-se de somente um dos componentes dessa tríade conceitual da teoria lefebvriana da produção do espaço para analisar as OUs do MTST, especificamente as OUs Carolina Maria de Jesus e Nova Canudos: o conceito de espaço representacional. Partiu-se do pressuposto de que as materializações dessas OUs, após ocorrerem por meio das práticas físico-espaciais realizadas pelos militantes do MTST, geram espaços representacionais de cunho fortemente político cujas imagens e símbolos carregam vários significados e sentidos que merecem ser analisados. Nesse sentido, utilizou-se do conceito lefebvriano de espaço representacional para elaborar análises qualitativas sobre as OUs com vistas a detectar seus atributos e expressos em imagens, símbolos, significados e sentidos divulgados por meio de textos e vídeos criados por membros e colaboradores do MTST. Os textos analisados no presente artigo constituem espaços representacionais de OUs de maneira geral, enquanto os vídeos constituem espaços representacionais específicos das OUs Carolina Maria de Jesus e Nova Canudos.
Esses textos e vídeos constituem-se como as fontes de dados qualitativos utilizadas nas análises e consistem:
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nos textos do livro de Guilherme Boulos (2012), liderança nacional do MTST, intitulado “Por Que Ocupamos? – Uma Introdução à Luta dos Sem-Teto”;
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nos vídeos “Carolina Maria de Jesus – Nova Ocupação do MTST” (MTST, 2021c), “Cozinha Funcionando na Nova Ocupação do MTST na ZN de SP” (MTST, 2021a) e “Ocupação Nova Canudos, do MTST em SP” (Boulos, 2021).
Finalmente, as análises qualitativas sobre esses espaços representacionais de lutas pela terra e moradia urbana adequada utilizam categorias da teoria das insurgências macro e micropolíticas elaborada por Suely Rolnik (2018), presente em um ensaio inserido no livro “Esferas da Insurreição: Notas para uma Vida não Cafetinada”. Nesse ensaio, a autora apresenta as “dessemelhanças e entrelaçamentos” entre as lutas macro e micropolíticas no que diz respeito ao que ela denominou como “foco”, “agentes em potencial”, “o que move seus agentes”, “intenção”, “critérios de avaliação das situações”, “modos de operação” e “modos de cooperação”.
Para Rolnik (2018), o que move os agentes nas lutas macropolíticas é a vontade de denunciar as injustiças sociais e conscientizar, mobilizar e empoderar os grupos subalternos da sociedade. Já nas lutas micropolíticas, a vontade é a de “perseveração da vida” e, ao invés de denunciar, é de “anunciar mundos por vir”, mobilizando “outros inconscientes” por meio de “ressonâncias” e em “[...] processos de experimentação, nos quais se performatizarão outros devires do mundo” (Rolnik, 2018, p. 131).
As lutas macropolíticas operam “por negação” e baseiam-se em “[...] estratégias de ‘combate contra’ os opressores e as leis [...] para subverter a distribuição de posições no interior das relações marcadas pela opressão e a exploração” (Rolnik, 2018, p. 134), enquanto as lutas micropolíticas operam “por afirmação” e realizam o “[...] combate pela vida em sua essência germinativa [para] não ceder ao abuso da pulsão [...] – cujos efeitos são a despotencialização da força vital para desarticular o poder do inconsciente colonial-capitalístico em nossa própria subjetividade” (Rolnik, 2018, p. 135).
Com o quadro de definições metodológicas baseadas nas teorias da produção do espaço de Henri Lefebvre (1991) e das insurgências macro e micropolíticas de Suely Rolnik (2018) apresentado anteriormente, o presente artigo prossegue enfocando os significados e sentidos das imagens, símbolos e enunciados relacionados com os espaços representacionais das OUs Carolina Maria de Jesus e Nova Canudos. Antes, descreve brevemente as trajetórias de lutas do MTST desde sua origem.
As trajetórias de lutas do MTST
O MTST originou-se em 1997 na cidade de Campinas, no estado de São Paulo, a partir do MST, que realizava “[...] discussões internas sobre a importância da atuação urbana para a efetivação da estratégia da Reforma Agrária” (Simões et al., 2017, p. 25). Segundo Débora Goulart (2011), “A unidade das lutas entre trabalhadores do campo e da cidade apareceu como um elemento importante para o MST, que tinha uma larga história nos debates das organizações de esquerda” (Goulart, 2011, p. 13).
Um acontecimento marcante que aproximou o MST dos movimentos sociais urbanos foi a Marcha Nacional de 1997, quando essas discussões internas se desdobraram na liberação de alguns militantes para construir um movimento social urbano a partir da luta por moradia. Para Goulart (2011),
[...] a liberação de militantes para auxiliar no trabalho de constituição de um movimento urbano, a partir da Marcha Nacional de 1997, indicava, além de um interesse, uma deliberação do MST de trabalho na cidade, construindo um movimento análogo, capaz de enfrentar o neoliberalismo e os ataques aos trabalhadores naquele momento. (Goulart, 2011, p. 14).
Assim, os militantes do MST que viviam em Campinas passaram a participar mais ativamente das ocupações que já vinham ocorrendo. Destacavam-se a ocupação San Martin, com cerca de 3.500 famílias; o Jardim Campo Belo, com mais de 3.500 famílias; a ocupação Eldorado dos Carajás, com 650 famílias; a ocupação Carlos Marighella, com cerca de 200 famílias; e a maior de todas, o Parque Oziel, que hoje é um bairro consolidado e abriga mais de 15.000 pessoas (Simões et al., 2017, p. 25).
É a partir de atuações na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) que o MTST se tornou um movimento popular reconhecido nacionalmente. Em 2001, ao articular-se com outras entidades sociais, por exemplo, as Comunidades Eclesiais de Base, o MTST ocupou um imenso terreno na periferia de Guarulhos, o segundo maior município paulista em termos populacionais. Esse terreno localiza-se próximo ao Aeroporto Internacional de São Paulo, também conhecido como Aeroporto de Cumbica, e à Rodovia Presidente Dutra, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro. A proximidade com grandes e importantes rodovias faz parte das estratégias de luta por moradia que ganha visibilidade com os travamentos de rodovias que bloqueiam momentaneamente a circulação da força de trabalho e de mercadorias, dificultando a reprodução do capital. Segundo Goulart (2011, p. 26-27), esses travamentos se tornaram uma das principais ações de luta do MTST, junto com a realização de ocupações de terrenos ociosos.
Com mais de 2.000 famílias e uma parceria com estudantes de Arquitetura e Urbanismo, a ocupação Anita Garibaldi em Guarulhos impressionou a opinião pública por suas dimensões e, especialmente, pela sua forma de organização. Pesquisadores e simpatizantes buscaram entender a luta urbana desse “Movimento Sem-Teto” e suas estratégias urbanas de atuação. A herança política e organizativa do MST possibilitou uma leitura sobre as diferenças e semelhanças entre as lutas pela reforma agrária, no campo, e urbana, nas cidades, caracterizadas por conflitos, acelerações, caos e vastas periferias.
No ano seguinte, em 2002, o MTST continuou sua atuação ocupando imóveis de um grande proprietário da cidade de Osasco, outro importante polo econômico da RMSP. Os participantes da ocupação Carlos Lamarca sofreram três despejos em um intervalo de um ano. Mesmo assim, após anos de batalhas e muita resistência, as famílias conquistaram suas moradias: 120 apartamentos construídos por meio do Programa Minha Casa, Minha Vida e localizados no bairro Jardim Belmonte, em Osasco (Goulart, 2011, p. 28).
A estratégia territorial do MTST avançou em municípios como Campinas, Guarulhos, Osasco e junto a rodovias como a Santos Dumont, Bandeirantes, Anhanguera, Presidente Dutra, Raposo Tavares e Castelo Branco. Em 2003, foi a vez de a região do Grande ABC, berço de lutas sociais históricas, ser alvo dessa estratégia. A ocupação feita no município de São Bernardo do Campo, em um terreno da empresa automobilística Volkswagen, foi batizada de Santo Dias. Com 4.000 famílias, a ocupação Santo Dias estava próxima ao complexo rodoviário Imigrantes e Anchieta, que liga a RMSP à Baixa Santista e ao importante porto de Santos. Houve grande repercussão e, com isso, vieram a repressão e a criminalização do MTST.
Em 2004, após uma tentativa frustrada de ocupar uma área dentro do município de São Paulo, o MTST viveu um de seus piores momentos, em que foi cogitado o encerramento das suas atividades. Porém, segundo Simões et al. (2017), “[...] a falta de recursos e de apoio, somada à criminalização sofrida pelo movimento, deveria servir como combustível, e não fator para desistência”. Assim, os militantes do MTST prepararam uma nova ocupação, que pode ser considerada como um “corte” histórico dessa trajetória: a ocupação Chico Mendes, em Taboão da Serra (Simões et al., 2017, p. 28).
A ocupação, localizada quase na fronteira com o bairro paulistano do Campo Limpo, cresceu e tornou-se referência na região. Durante quase um ano, entre 2005 e 2006, o MTST voltou a realizar lutas memoráveis, como a greve de fome realizada por militantes em frente à casa do então presidente Luís Inácio Lula da Silva, em São Bernardo do Campo. Durante três dias, os militantes do MTST recorreram a essa ação extremada para chamar a atenção do poder público para um despejo iminente da ocupação Chico Mendes. Conquistou-se uma vitória parcial ao negociarem a construção de aproximadamente 800 apartamentos no que, anos depois, ficou conhecido como condomínio João Cândido. Além disso, o MTST conseguiu, junto à prefeitura de Taboão da Serra e ao governo estadual de São Paulo, o auxílio-aluguel para famílias desabrigadas que não tiveram acesso aos apartamentos desse condomínio (Simões et al., 2017, p. 28-29).
O MTST cresceu no final da década de 2000, articulando-se com outras entidades sociais e adquirindo escala nacional, configurando-se como um protagonista da luta urbana no país. Entre 2013 e 2014, conseguiu ocupar áreas no município de São Paulo, atingindo o “coração” da metrópole ao realizar, por exemplo, a ocupação Faixa de Gaza, faixa de terra ociosa localizada entre a favela de Paraisópolis e o bairro do Morumbi, um dos mais ricos da cidade. O MTST escancarou sua luta contra a cidade do capital no período que precedeu a realização da Copa do Mundo de futebol (Simões et al., 2017, p. 39). Nesse período, realizou a ocupação Copa do Povo na Zona Leste do município de São Paulo.
A atuação em escala nacional sempre foi um objetivo da direção do MTST, pois, no Brasil, não é possível constituir uma grande força política e social sem atuações em diferentes regiões do país, principalmente nas regiões metropolitanas. Assim, buscaram-se articulações com vários coletivos atuantes nessas regiões (Simões et al., 2017, p. 38). Segundo Simões et al. (2017, p. 87), “A lógica era acompanhar comunidades que já existiam, fortalecer resistências a despejos, criar vínculos com os territórios a partir da defesa do direito à moradia e estimular processos organizativos territoriais das classes populares”.
No processo de ampliação das atuações do MTST, destacam-se as atuações em diferentes territórios periféricos do país, por exemplo:
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a ocupação de uma creche desativada no município de Maracanaú, no Ceará, em 2015, como forma de “[...] denúncia do abandono da gestão pública em relação aos direitos e serviços” (Simões et al., 2017, p. 83);
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o fortalecimento da luta pela regularização fundiária da Ocupação do Glória, em Uberlândia, Minas Gerais, no fim de 2015, que culminou por meio da mobilização de 2.400 famílias na “[...] assinatura do Decreto do Governo Federal autorizando permuta de áreas, o que possibilitou a regularização do Glória e, posteriormente, a doação da área pela Universidade Federal de Uberlândia ao Governo do Estado de Minas Gerais” (Simões et al., 2017, p. 91);
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a ocupação da estrutura de uma maternidade em Aparecida de Goiânia, no estado de Goiás, em 2015, por 120 famílias (Simões et al., 2017, p. 93).
Essas atuações e lutas nos territórios urbanos periféricos do país revelam certa “adaptabilidade” e “flexibilidade” das estratégias do movimento em cada lugar. Mais recentemente, o MTST realizou as OUs Carolina Maria de Jesus e Nova Canudos, focos do presente artigo, nas periferias da cidade de São Paulo. Essas OUs foram formadas no ano de 2021, no contexto da pandemia de Covid-19. Não é mera coincidência o fato de que essas duas OUs tenham surgido no mesmo período de recrudescimento dessa pandemia. Elas serviram como espaços de luta e de acolhimento para milhares de famílias que viviam em imóveis alugados e sofreram com o agravamento da vulnerabilidade socioeconômica por causa do desemprego em massa, insegurança alimentar, negligência do governo federal, fome, empobrecimento e despejo ocasionado pela dificuldade em continuar arcando com os valores crescentes dos aluguéis de imóveis. Ademais, sabe-se que, no município de São Paulo, a pandemia impacta mais fortemente as populações mais pobres e vulneráveis que vivem em bairros periféricos, conforme Ribeiro et al. (2021) comprovaram em estudo epidemiológico publicado no artigo “Social Inequalities and COVID-19 Mortality in the City of São Paulo, Brazil”. Ademais, essas populações não foram priorizadas nos processos de vacinação contra a Covid-19, conforme evidência apresentada em estudo do LabCidade da FAU-USP (Marino et al., 2021). De uma maneira ou de outra, esses fatores levaram milhares de pessoas a participar das OUs Carolina Maria de Jesus e Nova Canudos, que possuem, cada uma, cerca de 3.000 famílias (MTST, 2021c).
No caso da OU Carolina Maria de Jesus, as famílias organizadas pelo MTST ocuparam um terreno privado de 62.000 m2 localizado em área de ZEIS 24. O terreno estava ocioso há vários anos no distrito do Iguatemi, na Zona Leste do município de São Paulo. Seu suposto proprietário acumula uma dívida ativa em relação ao pagamento do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) desde 2006. Essa dívida atinge o valor de aproximadamente R$ 2,9 milhões. Já no caso da OU Nova Canudos, o terreno ocupado no distrito do Jaraguá na Zona Norte do município também é privado e também está em área de ZEIS 2. O proprietário desse terreno que estava ocioso antes da ocupação também não paga o IPTU desde 2008 e tem uma dívida ativa de aproximadamente R$ 1,36 milhão junto à prefeitura do município de São Paulo. Nota-se que o MTST escolheu cuidadosamente os terrenos das OUs Carolina Maria de Jesus e Nova Canudos. Pesquisou e identificou aqueles com grandes dimensões para acomodar os milhares de ocupantes que, juntos, realizam atos políticos de portes significativos sobre pedaços de terras urbanas retidos especulativamente, com dívidas junto ao poder público e destinados à provisão habitacional de interesse social.
Por fim, segundo Simões et al. (2017), visualizar a trajetória do MTST construída nessas duas décadas de luta é percorrer um conjunto de aprendizagens a partir da aposta em uma política territorial. Essa política tem como pressuposto a organização das famílias trabalhadoras pelos lugares onde vivem e a construção de referência territorial a partir das ocupações. Essa referência se consolida nas vivências dentro das ocupações, nas refeições partilhadas e produzidas nas cozinhas coletivas ou nas redes de cuidado constituídas entre as ocupantes que refazem os laços sociais rompidos no cotidiano fragmentado pelo individualismo. O sentido territorial também aparece no caráter pedagógico da mediação dos conflitos e da auto-organização dos grupos de cada ocupação, no sentimento de pertencimento fortalecido pela simbologia das palavras de ordem, na resistência que ocupa também as ruas em um processo progressivo de construção do poder popular.
Os espaços representacionais e as lutas macro e micropolíticas das ocupações urbanas
Com base na teoria da produção do espaço de Henri Lefebvre (1991), pode-se dizer que as OUs são práticas espaciais que formam espaços sociais constituídos por espaços representacionais vivenciados por seus “habitantes” e “usuários” que enunciam significados e sentidos expressos nas imagens e nos símbolos apreendidos em vídeos e textos divulgados tanto internamente ao MTST quanto externamente ao público em geral. O texto “Por que Ocupamos? – Uma Introdução às Lutas dos Sem-Teto”, escrito por Guilherme Boulos (2012), possui partes relativas aos espaços representacionais das ocupações, que, a despeito de serem genéricas, valem para as especificidades das OUs Carolina Maria de Jesus e Nova Canudos. Os vídeos “Carolina Maria de Jesus – Nova Ocupação do MTST” (MTST, 2021c), “Cozinha Funcionando na Nova Ocupação do MTST na ZN de SP” (MTST, 2021a) e “Ocupação Nova Canudos, do MTST em SP” (Boulos, 2021) são espaços representacionais específicos das OU Carolina Maria de Jesus e Nova Canudos enfocadas no presente artigo.
Os espaços representacionais das OUs em texto de Guilherme Boulos
O objetivo do texto escrito por Guilherme Boulos (2012) é responder à pergunta que compõe seu título: “Por Que Ocupamos?”. Com esse objetivo, propõe “[...] entender um pouco melhor o que leva milhares de famílias trabalhadoras a se levantar e lutar por um pedaço de chão” (Boulos, 2012, p. 11). Nesse objetivo, encontra-se o primeiro sentido dos espaços representacionais das OUs: a luta por um “pedaço de chão”. Luta contra a especulação e o capital imobiliário realizada por aqueles e aquelas “[...] que sofrem com o problema da moradia – seja pela falta, seja pela inadequação das casas ou ausência de serviços básicos – [e que] são os trabalhadores mais pobres, em especial aqueles que vivem nas periferias urbanas” (Boulos, 2012, p. 15). Esses trabalhadores são os “sujeitos da ocupação periférica”, conforme análise elaborada por Nakano et al. (2021).
Os significados e sentidos dos espaços representacionais das OUs são conflituosos e estão em disputa. Trata-se de conflitos e disputas entre os significados e sentidos sociais e políticos desses espaços entre os termos “invasão” e “ocupação”, que, segundo Boulos (2012), são muito distintos. Para ele,
Invasão foi o que fizeram os portugueses e depois deles os grandes proprietários brasileiros. É grilar e roubar uma terra que é pública e deveria ter destinação social em benefício da maioria. Ocupação é algo bem diferente. É retomar a terra dos invasores, para que possa ser utilizada em favor da maioria, dos trabalhadores. É transformar uma área vazia, que só serve para especulação e lucro de empresários, em moradia digna para quem precisa. (Boulos, 2012, p. 44).
Com base nesse argumento, os espaços representacionais das OUs não possuem o significado e o sentido de uma invasão, pois, para Boulos (2012, p. 46), “Ocupação não é crime, é direito” e, além disso, “[...] não é uma escolha, é uma necessidade para muita gente”. É por isso que muitas ocupações realizadas no passado por grupos participantes ou não de movimentos populares são, hoje, “[...] bairros consolidados nas periferias urbanas” (Boulos, 2012, p. 48). Ao se consolidarem como “acesso ao direito à moradia” (Boulos, 2012, p. 48), os espaços físicos dessas OUs produzem espaços representacionais que enunciam significados e sentidos relativos às conquistas de trabalhadores e trabalhadoras realizadas ao longo de grande parte das suas vidas. Enunciam também “o problema da moradia no Brasil” ao mesmo tempo que “Representam a resistência ao modelo mercantil e segregador da Cidade do Capital” (Boulos, 2012, p. 49 – grifo nosso).
Em relação à consolidação da OU em um bairro, vale mencionar uma explicação de Guilherme Boulos (2015), segundo a qual “As pessoas que ocupam um terreno normalmente não estavam em situação de rua. Tinham um local anterior, embora muito precário” (Boulos, 2015, p. 30). Por esse motivo,
A metodologia do MTST implica não estimular as famílias a romperem esse vínculo precário de moradia. Se as milhares de famílias que participam de ocupações, buscando uma condição mais digna de vida, fossem morar definitivamente lá, com todos os seus pertences, o resultado seria a criação em larga escala de novas favelas. (Boulos, 2015, p. 30).
Após esse esclarecimento, retorna-se ao texto de Guilherme Boulos (2012) com espaços representacionais das OUs. Esse texto confirma a existência de tais espaços na constituição das OUs ao evidenciar as aprendizagens de seus “habitantes” e “usuários”. Nesse sentido, as imagens e os símbolos dos espaços representacionais possuem significados e sentidos que são entendidos por meio de interpretações aprendidas na vida cotidiana. Boulos (2012) menciona experiências de aprendizagens de militantes do MTST que, ao participarem de práticas, processos e relações concretizadas com a realização de OUs, aprendem significados e sentidos dos seus espaços representacionais. Ele afirma que “Desde a abertura das ruas, passando pela organização da coleta de lixo, até a forma de solução dos problemas cotidianos podem representar, numa ocupação, um aprendizado de decisão e trabalho coletivo” (Boulos, 2012, p. 64 – grifos nossos). Conclui afirmando que “[...] a ocupação pode tornar-se uma escola de luta, um despertar para muitos sujeitos tratados pelo capitalismo à ferro e fogo nas periferias” (Boulos, 2012, p. 66 – grifo nosso). Enfim, o texto de Guilherme Boulos (2012) mostra que os espaços representacionais das OUs, enquanto “escolas de luta”, expressam significados e sentidos relacionados com enfrentamentos, conflitos, disputas, conquistas, resistências e aprendizados.
Os espaços representacionais em vídeos sobre as OUs Carolina Maria de Jesus e Nova Canudos
Na criação de espaços representacionais das OUs, o MTST e outros movimentos de luta por moradia utilizam nomes de pessoas, lugares e fatos históricos ligados às lutas das classes trabalhadoras contra os processos e as relações de exploração inerentes ao modo de produção capitalista. Não é diferente nas OUs Carolina Maria de Jesus e Nova Canudos, nomes que instauram imediatamente espaços representacionais que remetem diretamente a resistências, insurgências e contradominações.
O nome da OU Carolina Maria de Jesus remete à escritora negra autora da obra “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, em que se lê sobre o dia a dia dos moradores da favela Canindé, na Zona Norte do município de São Paulo, na década de 1950. Nessa obra literária, Carolina Maria de Jesus (2014) descreveu seu cotidiano marcado pela pobreza, dor, sofrimento, angústia e fome.
O vídeo “Carolina Maria de Jesus – Nova Ocupação do MTST” (MTST, 2021c) inicia com uma foto da escritora sorrindo em primeiro plano e, ao fundo, em segundo plano, estão casas simples de periferia. A imagem é fixada durante oito segundos ao som de “Vedete da Favela”, música de autoria da escritora. Em seguida, o vídeo apresenta o momento de realização de uma assembleia para definir o nome da ocupação na Zona Leste do município de São Paulo. As imagens são escuras, com pouca luz por causa do período noturno em que a assembleia foi realizada, mas é possível ver uma multidão em volta de Claudia Garcez, coordenadora estadual do MTST, que, nesse vídeo, discursa. Ela diz:
Carolina Maria de Jesus era uma mulher negra que morava na favela do Canindé. Era uma mulher que catava papel para sustentar sozinha seus três filhos. Eu acho que a Carolina Maria de Jesus era muito parecida com muitas mães que têm entrado nesse terreno, que têm falado que não consegue mais pagar aluguel, que quer morar na ocupação porque está pesado, porque está doído. Carolina Maria de Jesus era uma mulher que escrevia da forma dela o que ela entendia de pobreza e também da fome, a fome que assola as populações mais carentes do Brasil, principalmente as mães e seus filhos. Eu defendo a Carolina Maria de Jesus porque ela era sem-teto como muitos de nós e como a maioria das mulheres que aqui estão. Então, esse nome é forte e eu gostaria que todos hoje pudessem pensar um pouco nesse nome que representa muito do que são as mulheres periféricas, pretas, mães solo e que não têm teto e estão aqui hoje. (MTST, 2021c).
No espaço representacional da OU Carolina Maria de Jesus expresso no vídeo (MTST, 2021c), Claudia Garcez irmana suas companheiras de luta com a escritora cujo nome designa os significados e sentidos das imagens e dos símbolos dessa OU. Esse espaço foi instaurado pelo ato de fincar as bandeiras do MTST em pontos diferentes da terra ocupada. Esse ato significa tomada de posse da terra. A entrada na gleba a ser ocupada, realizada geralmente nas noites de sextas-feiras para dificultar a reação dos proprietários no fim de semana, e a imediata construção dos barracos são gestos políticos e corporais da tomada de posse de um lugar. Esses gestos questionam o exercício especulativo do direito à propriedade fundiária e imobiliária que descumpre sua função social. Com esses gestos políticos, os participantes das OUs Carolina Maria de Jesus e Nova Canudos constituem territórios temporários que servem como bases para processos variados de negociações com autoridades públicas, operadores do direito, proprietários de imóveis, forças policiais, vizinhanças, entre outros agentes, com vistas à obtenção de moradias dignas.
O nome da OU Nova Canudos remete à comunidade constituída por pessoas pobres no interior da Bahia, principalmente por ex-escravos, que, no século XIX, logo após a proclamação da República do Brasil, foi combatida e dizimada pelos soldados do exército nacional, que, ao retornarem ao Rio de Janeiro, ocuparam os morros e deram origem às primeiras favelas do país. A Guerra de Canudos foi registrada por Euclides da Cunha na obra “Os Sertões”. Diferentemente do espaço representacional da OU Carolina Maria de Jesus, constituído a partir de significados e sentidos da vida e das obras literárias da escritora homônima, o espaço representacional da OU Nova Canudos baseia-se na história de um lugar onde uma comunidade oprimida lutou por liberdade e emancipação. Os significados e sentidos desse espaço não são expressos por meio de palavras, mas sim em imagens do momento inicial da ocupação, em que as pessoas constroem seus barracos de lonas plásticas que cobrem estruturas de madeira que formam pequenos cubículos distribuídos ao longo de um caminho principal retilíneo, a partir do qual se ramificam pequenos caminhos tortuosos que serpenteiam entre os barracos. É como se o espaço representacional da OU Nova Canudos, expresso no vídeo “Ocupação Nova Canudos, do MTST em SP”, ressuscitasse a Canudos destruída no final do século XIX por meio de imagens áreas do extenso terreno ocupado, legendadas com a frase “OCUPAÇÃO NOVA CANUDOS - ZONA NORTE DE SÃO PAULO”. Essas imagens aéreas constituem o espaço representacional da OU materializada nos barracos, vegetações, terras e vários tipos de objeto. São seguidas pela cena em que uma mulher aparece com uma ferramenta cavando um buraco no chão para fincar um dos pilares de madeira que vão sustentar seu barraco.
A cozinha comunitária da OU Nova Canudos é tão importante na constituição do seu espaço representacional, que mereceu um vídeo (MTST, 2021a) específico intitulado “Cozinha Funcionando na Nova Ocupação do MTST na ZN de SP”. Esse espaço surge com muitos ocupantes reunidos em torno dele, tendo os barracos ao fundo. Em seguida, duas mulheres preparam alimentos para o café da manhã. Em primeiro plano, é possível observar que uma das mulheres corta os pães e passa manteiga neles. Em segundo plano, há outra mulher responsável pela distribuição desses alimentos preparados para os ocupantes. Nesse plano, observam-se alguns elementos que remetem a uma cozinha, tais como uma bancada com muitas sacolas, copos, potes, panelas e caixas, além de uma geladeira. Em terceiro plano, há uma fila extensa de ocupantes que aguardam pela sua vez de pegar os alimentos distribuídos pela mulher. Surgem as imagens das pessoas em pé segurando seus pratos de comida, enquanto a mesma mulher com camiseta e boné do MTST em frente ao fogão dentro da cozinha diz: “Para o MTST, a comida representa muito. Representa dignidade. E é isso que a gente está aqui fazendo”. Assim se encerra o vídeo, evidenciando que o espaço representacional da OU Nova Canudos é feito com o alimento partilhado e compartilhado na cozinha comunitária cujo espaço representacional se destaca na ocupação por estar na parte mais alta do terreno como em uma acrópole.
As cozinhas coletivas, que são instaladas nos momentos iniciais da ocupação, recebem doações, promovem hortas comunitárias e servem refeições diárias aos militantes. Essas cozinhas coletivas são consideradas os “corações das ocupações” e, portanto, daqueles territórios temporários, pois servem como instâncias para tomadas de decisões e intensificam as sinergias coletivas em torno do alimento compartilhado. Isso é bastante significativo, pois atravessa as relações intersubjetivas, potencializando a solidariedade e a vida em comum.
As lutas macro e micropolíticas nos espaços representacionais das OUs do MTST
Para analisar os sinais das lutas macro e micropolíticas nos espaços representacionais das OUs Carolina Maria de Jesus e Nova Canudos, vale retomar as categorias definidas por Suely Rolnik (2018) mencionadas anteriormente. Muitos dos traços das lutas macropolíticas presentes nesses espaços aparecem no texto escrito por Guilherme Boulos (2012) e nas linhas políticas do MTST apresentadas em seu site (MTST, 2021b). Os traços das lutas micropolíticas foram colhidos nas interpretações dos espaços representacionais dos vídeos sobre aquelas OUs analisados anteriormente. Esses traços foram organizados no Quadro 1.
- As Lutas Macro e Micropolíticas nos Espaços Representacionais das OUs Carolina Maria de Jesus e Nova Canudos do MTST
Considerações finais
Para finalizar o presente artigo, é importante destacar a validade da teoria da produção do espaço de Henri Lefebvre (1991), particularmente do conceito de “espaços representacionais”, em análises sobre as OUs realizadas por membros do MTST, inclusive sobre as OUs Carolina Maria de Jesus e Nova Canudos localizadas, respectivamente, nas Zonas Leste e Norte do município de São Paulo.
É possível afirmar que os espaços representacionais dessas OUs se constituem por meio de textos e vídeos cujos conteúdos possuem ligações diretas com seus espaços físicos, concretos, bem como com suas “práticas espaciais”. Os meios de expressão nos quais esses espaços representacionais se constituem revelam, além dos seus atributos próprios, as características das lutas macro e micropolíticas sistematizadas conforme as categorias elaboradas por Suely Rolnik (2018).
Nesse sentido, os espaços representacionais das OUs se inserem na tradição de lutas sociais contra o Estado e o capital, ao mesmo tempo que revelam pulsões que se insinuam de modo incerto e fugidio nas sutilezas de alguns momentos de falas e em algumas práticas cotidianas dos seus agentes que buscam, por meio do acesso à terra e à moradia urbana adequada, a realização e a continuidade de uma vida digna.
Declaração de disponibilidade de dados
O conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste artigo está disponível no SciELO DATA e pode ser acessado em https://doi.org/10.48331/scielodata.MLV5E1
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1
Na versão em inglês: “The spatial practice of a society secretes that society’s space; it propounds and presupposes it, in a dialectical interaction; it produces it slowly and surely as it masters and appropriates it. From the analytic standpoint, the spatial practice of a society is revealed through the deciphering of its space” (Lefebvre, 1991, p. 38).
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2
Na versão em inglês: “[...] conceptualized space, the space of scientists, planners, urbanists, technocratic subdividers and social engineers, as of a certain type of artist with a scientific bent – all of whom identify what is lived and what is perceived with what is conceived” (Lefebvre, 1991, p. 38).
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3
Na versão em inglês: “[...] spaces as directly lived through its associated images and symbols, and hence the space of ‘inhabitants’ and ‘users’” (Lefebvre, 1991, p. 39).
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4
As Zonas Especiais de Interesse Social 2 (ZEIS 2) são definidas no Plano Diretor Estratégico (PDE) do município de São Paulo para garantir glebas, lotes e edificações urbanas desocupadas para a produção de novas Habitações de Interesse Social (HIS), Habitação para o Mercado Popular (HMP) e usos não residenciais. Além das ZEIS 2, o PDE define mais quatro categorias de ZEIS demarcadas em diferentes partes da cidade, majoritariamente em áreas periféricas.
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Como citar: Nakano, A. K., & Gonçalves, T. A. (2022). Os espaços representacionais das ocupações urbanas na intersecção entre as lutas macro e micropolíticas. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 14, e20210281. https://doi.org/10.1590/2175-3369.014.e20210281
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Editado por
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Editores convidados: Vasco Barbosa, Lakshmi Rajendran e Mónica Suárez
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
05 Dez 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
31 Ago 2021 -
Aceito
04 Jun 2022