Resumo
Dada a dificuldade das administrações municipais em ofertar espaços públicos que abriguem a ampla diversidade de demandas da sociedade, a iniciativa privada tem sido cada vez mais provocada em sustentar essa necessidade vital para as cidades. “Espaços públicos de propriedade privada” constituem-se em domínios privados que se abrem ao usufruto coletivo e são uma das possibilidades de se atender a tal apelo. Tais soluções podem ser identificadas no âmbito jurídico municipal brasileiro, instigando a criação de novos tipos de espaços públicos. O intuito dessa pesquisa é promover uma reflexão sobre a pertinência e a sustentabilidade da criação desses espaços na cidade contemporânea. Para tanto, mediante observação direta de usuários e atividades, compara-se um espaço público e três “espaços privados abertos ao usufruto coletivo” na cidade de Curitiba-PR. Como resultados, identificou-se que o espaço público contempla maior variedade de usos e perfis de pessoas, enquanto o espaço privado, quando mais controlado, instiga prejuízos no acesso e na sua plena e irrestrita utilização.
Palavras-chave: Espaço público; Espaço público de propriedade privada; Fruição pública
Abstract
Given the difficulty for municipal administration departments to offer public spaces that can harbor the wide variety of society’s demands, private initiative has been increasingly provoked in order to meet this vital need for cities. “Privately owned public spaces” constitute private domains that are open to collective usufruct and are one of the possibilities for answering to this plea. These solutions can be identified in the Brazilian municipal law sphere, instigating the creation of new types of public spaces. The aim of this research is to promote a reflection on the relevance and sustainability of creating these spaces in the contemporary city. To do that, through a direct observation of users and their activities, we have compared a public space and three “privately owned public spaces open to collective usufruct” in the city of Curitiba, Paraná, Brazil. As a result, we have identified that the public space includes a wider variety of uses and user profiles, while the private space, when it is more controlled, provokes loss in access and its full and unrestricted use.
Keywords: Public space; Privately owned public spaces; Public fruition
Introdução
É proibido fumar! Também é proibido fotografar, pisar na grama, colocar a mão na água, passear com o cachorro, andar de skate, bicicleta ou patins. Também não pode se deitar, porque é proibido dormir. E fazer pesquisa? Pode? O segurança ficou indeciso, mas o administrador de uma praça privada, na cidade de Curitiba-PR (Brasil), supostamente teria achado essa atividade diferente das corriqueiras e resolveu, assim, intervir.
Pesquisar, fumar, fotografar, são atividades cotidianas que, conforme as circunstâncias, podem estar regidas por normas de conduta explícitas (placas de sinalização) ou implícitas (ditadas pela configuração física ou estética). São medidas de controle que orientam o usufruto de determinados locais e estão presentes tanto nos espaços públicos quanto privados; no entanto, subentende-se uma permissibilidade maior nos primeiros já que devem permitir acessibilidade irrestrita da população. Além disso, nos espaços privados, é comum uma delimitação de públicos-alvo, o que pode incorrer em regras desencorajadoras para alguns usuários e/ou grupos sociais.
Contudo, apesar das prováveis diferenças de uso e ocupação desses espaços, observa-se, cada vez mais, uma normalização no uso de expressões que definem a coabitação de ambas as esferas no mesmo espaço físico, como “espaços públicos de propriedade privada”. São termos utilizados geralmente para tratar de locais privados que se abrem ao usufruto coletivo, como os shoppings centers, parques temáticos, praças corporativas, dentre outros. O cerne das discussões envolvendo a coabitação das esferas nesses locais diz respeito à probabilidade de um espaço privado adquirir caráter público a ponto de ser adjetivado como tal.
Nessa discussão é importante ressaltar a contribuição arquitetônica, urbanística e morfológica que qualquer espaço de uso coletivo pode oferecer às cidades (Solà-Morales, 2001), sobretudo devido a impossibilidade real de qualquer local atender as necessidades de todos os usuários em todos os momentos. Assim, os fomentos legais e/ou normativos para a “fruição pública” em lote privado, por exemplo, estão cada vez mais sendo suportados por leis que emanam do processo de planejamento urbano de cidades brasileiras. No entanto, será que espaços de usufruto público estabelecidos a partir dessas normativas possibilitam uma acessibilidade irrestrita, já que a propriedade é privada? É possível conceber um espaço em que as esferas pública e privada coabitem? Em que medida a esfera privada proporciona caráter público em seu espaço físico?
Esses questionamentos foram norteadores da presente discussão, fruto de pesquisa realizada na capital paranaense. Tratou-se de uma investigação reflexiva, suportada por observação direta, procurando envolver o fomento legislativo à reprodução de “espaços privados abertos ao usufruto público” no país. Para tanto, após uma sucinta exposição sobre essa dualidade espacial e escolhas metodológicas, apresentam-se os resultados obtidos para Curitiba. Afinal, até que ponto o domínio privado conseguiria se abrir às vívidas e complexas atividades que se desenvolvem no espaço público?
O público pelo privado
Buscando-se compreender em que medida um espaço privado proporciona caráter público em seu espaço físico, considerou-se que “público” e “privado” são esferas distintas. Ou seja, se a primeira remete a questões que tratam do bem comum, com seu pertencimento atribuído ao governo, ao Estado ou à coletividade, a segunda se vincula ao singular, ao particular e ao não-governamental; ou, se público conformar locais abertos acessíveis a diferentes pessoas, os espaços privados farão referência à “cerca”, ao enclausuramento (Rabotnikof, 2008). De fato, segundo Lavalle (2005), “vida pública” corresponde ao convívio entre as pessoas e o acesso irrestrito da população, uma vez que privacidade envolve a exclusão de qualquer intervenção ou participação na vida pessoal. Para Madanipour (2005), o “espaço privado” é o local controlado pelo indivíduo para seu uso exclusivo, já o “espaço público” é de domínio do Estado e da sociedade. No ambiente privado, pode-se obter bem-estar social e psicológico para o indivíduo exercer sua vontade no mundo exterior, expressar e domar sua agressão; já no local público, explora-se a diferença e a identidade, através da coexistência de verdades e tolerância de opiniões (Madanipour, 2005). Nesse sentido, será que percepções opostas têm condição de harmonizarem-se em um mesmo espaço físico, com ambas as esferas exercendo suas características intrínsecas?
Considerando-se que a compreensão atual dos espaços públicos apreende simultaneamente as dimensões material (configuração física e elementos componentes) e imaterial (práticas sociais) (Rosaneli et al., 2019), será que espaços pertencentes à propriedade privada conseguem abarcar essa dupla dimensão? Na opinião de Whyte (2001), se um espaço privado estiver provido de oportunidades que estimulem a permanência de pessoas (bancos, sombra das árvores, iluminação adequada), pode instigar significativa diversidade de atividades (comer, ler, dormir). Mas seria plausível que tais espaços sejam denominados públicos? Ainda, seria factível a ponto de respaldados por alguma norma e/ou lei?
No Brasil, regulamentações para a “fruição pública” em lote privado consideram o ato de tornar áreas particulares em áreas de uso público através de espaços constantemente abertos, localizados no pavimento térreo das edificações. São leis que, em regra, visam a “qualificação urbana e ambiental”, estando vinculadas à criação de ambientes mais arborizados e que transmitam sensação de segurança. Como exemplo, no Plano Diretor de Recife (2018), destaca-se o objetivo em favorecer a mobilidade urbana através do estímulo para a caminhabilidade. Já nos Planos Diretores de Belo Horizonte (2019) e Curitiba (2015), enfatiza-se o convívio coletivo, através da ampliação das áreas verdes, formação de faixas, largos e praças (Belo Horizonte, 2019), inserção bancos, mesas, paraciclos (Curitiba, 2015).
Embora recentes em planos diretores de municípios brasileiros, incentivos como esse estão consolidados em diversas cidades ao redor do mundo. Nova Iorque (EUA), por exemplo, possui legislação para promoção de “espaços públicos de propriedade privada” (Privately Owned Public Space, ou “POPS”) desde meados do século XX. A finalidade dessa legislação seria seu incentivo em áreas densamente ocupadas, com elevado custo de aquisição de terrenos pela administração pública e, ao mesmo tempo, redução do custeio com a provisão e manutenção desses espaços (Mainers et al., 2020). A conformação de um POPS, entretanto, requer o cumprimento de algumas determinações: conformarem-se abertos e convidativos nas calçadas, acessíveis, seguros, protegidos, confortáveis e envolventes, sendo atualmente denominados “praças públicas” (NYC PLANNING, 2022).
De certo modo, pode-se dizer que há semelhança entre as propostas para a “fruição pública” brasileira e as regulamentações para os POPS de Nova Iorque, principalmente, porque ambos concedem benefícios legais aos seus incorporadores e investidores. Entretanto, no caso norte-americano, a caracterização dos POPS enquanto “praças públicas” evidencia a intenção de instituir locais particulares, mas inclusivos.
Tratando-se da potencial ambiguidade, pesquisas sobre POPS apontaram que, em geral, haveria ausência de diversidade de ocupação e usuários em diversas situações, mas Huang & Franck (2018) apresentaram exemplos de circunstâncias com heterogeneidade de público. Segundo os autores, haveria POPS fechados (galerias) em Nova Iorque que permitiam o fluxo de moradores de rua, sendo que, nos fins de semana e no período da noite, quando não havia turistas ou trabalhadores, o espaço assemelhava-se a um abrigo. Nessa pesquisa, houve o apontamento de que o gestor do POPS contribuiria com a variedade de atividades nesses locais e, também, com comportamentos direcionados à inclusão social. Apesar desse fato, Laredo (2013) assinalou que, nessa mesma cidade, a troca de gestão dos empreendimentos - como no IBM Atrium (1983) - teria motivado alterações físicas e de uso do térreo, fazendo com que a galeria interna perdesse seu caráter público. Essa situação denota a fragilidade na conformação do público pelo privado, sobretudo, porque se altera a representação do espaço urbano a partir de uma pessoa ou de uma corporação.
Essa fragilidade acentua-se quando considerado um provável desequilíbrio na apreensão dos termos “público” e “privado” por parte da sociedade contemporânea, tendendo à supervalorização do segundo em detrimento do primeiro. Nessa argumentação, Sennett (2001) apontou que, desde o início do período Moderno, estaríamos passando por processos de “centramento do indivíduo em sua intimidade”, o que culminariam numa “cultura narcísica”, isto é, o foco na individualidade seria um processo normalizado.
Apesar desse fato, observa-se cada vez mais contínuas “convocações” da esfera privada para ajudar na provisão de espaços públicos, em variadas motivações. Segundo Dupas (2008), haveria uma progressiva incapacidade das instituições públicas fornecerem segurança e garantias aos cidadãos, fato que incorreria no governo empurrando para âmbito privado as responsabilidades sociais de sua competência. No caso das legislações supracitadas, Rodrigues (2018) assinalou que, sob a ótica de agentes públicos norte-americanos, tratar-se-ia de uma estratégia poderosa no desenvolvimento de espaços de uso público, especialmente, quando a cidade não possui recursos financeiros para provê-los. Outras motivações podem estar vinculadas à percepção de valor dos espaços públicos, a partir dos benefícios sociais, ambientais e econômicos que são capazes de proporcionar (Carmona et al., 2008). Para Madanipour (2005), a perspectiva do lucro instigaria a criação de locais atraentes e seguros aos investidores e turistas, numa apreensão do espaço público enquanto mercadoria.
De fato, dentro dos processos de urbanização capitalista, os “espaços públicos de propriedade privada” podem ser entendidos como uma nova necessidade criada para absorver o capital excedente e contribuir para que o mesmo não se desvalorize. Para Harvey (2012), o neoliberalismo incentiva um novo sistema de governança que integra o Estado e os interesses corporativos que, através do poder monetário, assegura a disposição do excedente na moldagem dos processos urbanos. Por outro lado, tem-se discutido a dificuldade do Poder Público em criar e, sobretudo, gerir os espaços públicos, optando por parcerias que, muitas vezes, trazem uma ameaça à essência do domínio comum, como no caso das adoções (ROSANELI, 2021).
Diante desse panorama, o presente trabalho visou contribuir com investigações referentes ao usufruto público na propriedade privada, procurando demonstrar que se o caráter público ou privado de um espaço estiver vinculado às permissões e proibições estabelecidas pela gestão, então esse fato seria evidenciado pela diversidade de usuários e atividades que comportam. Nessa temática, considerou-se ponderações de autores como Schmidt & Nemeth (2010) e Indovina (2002), acerca da apreensão dos espaços públicos e privados a partir de uma acepção gradativa de publicidade. E, ainda que Carmona et al. (2008) tenham proposto uma nova tipologia para espaços públicos a partir do gerenciamento, também reforçaram a possibilidade de contestações sobre esse fato ser socialmente desejável.
Essa investigação visou contribuir, também, com reflexões sobre a tendência - cada vez maior -, de transferência de provisão e gestão dos espaços públicos para a esfera privada, como vem ocorrendo com parques, praças e calçadas em diversas cidades do mundo (Schmidt, 2004) e no Brasil (Rosaneli, 2021). E, sobretudo, refletir se os incentivos para consolidação de espaços públicos a partir da propriedade privada poderiam resultar no estabelecimento de uma nova tipologia de “enclave fortificado” (CALDEIRA, 2003) nas cidades - desprovida de barreiras físicas, mas repleta de barreiras simbólicas - onde determinadas pessoas não entram e atividades não podem ser exercidas, prejudicando, cada vez mais, o exercício da cidadania e, consequentemente, da democracia.
Em campo
Para o desenvolvimento dessa pesquisa optou-se por um método comparativo, o estudo caso-controle, por abarcar o contraste entre duas realidades distintas expostas ao mesmo fator de interesse. O objetivo foi confrontar “espaços privados abertos ao uso público” (caso) e “espaços públicos” (controle), entendendo-se que as diferenças de usuários e atividades se evidenciariam, revelando padrões de comportamentos permitidos e proibidos pela administração dos locais. Tratou-se de uma pesquisa qualitativa dada pela observação direta do comportamento das pessoas em seu cotidiano.
No Plano Diretor de Curitiba (2015), a normatização para “fruição pública” em lote privado considera que a área de fruição mínima (50m2) pode ser convertida até o dobro em área não computável, desde que localizada no alinhamento predial da via, permanecer aberta e sem obstrução ao acesso, não sendo ocupada por construções ou estacionamentos. Considerando que os “espaços privados abertos ao uso público” não foram construídos embasados em normatizações como essa, os critérios para seleção dos objetos de estudo contemplaram características que pudessem aproximá-los da legislação (mais áreas livres do que construídas), além de atributos que permitissem considerações sobre a diversidade de usuários e atividades que podem se desenvolver em um espaço público.
Ainda, como os “espaços privados abertos ao uso público” se situam dentro de lotes, entendeu-se que as praças seriam os espaços públicos com maior aproximação dimensional, preenchendo o quesito da diversidade de usos. Portanto, ficou estabelecido que a investigação ocorreria em praças públicas e em espaços abertos no térreo de empreendimentos multifuncionais em duas possibilidades: na parte frontal do terreno como um alargamento das calçadas públicas (fruição) e em espaços situados em regiões centrais do lote, entendidos como “praças”.
Para localização desses objetos, foram desenvolvidos critérios de busca online. Para as praças públicas, foi realizada uma pesquisa documental cruzando dados do site da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMMA)1 e do Google Maps2, investigando-se todas as praças presentes no último, em novembro de 2019. Foram observados, também no Google Maps, dados referentes ao “horário de funcionamento” além de um gráfico contemplando o “horário de pico”3, relacionado à frequência de usuários. Com relação aos espaços privados, recorreu-se à página do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Paraná (CAU-PR), visando localizar escritórios com empreendimentos potenciais para essa investigação. Com esses critérios, foram selecionadas a fruição do edifício City Centro Cívico e as praças dos edifícios Evolution Tower e Neo Superquadra. A Praça do Japão foi eleita representante dos espaços públicos por ser uma das praças mais frequentadas da cidade, conforme o gráfico “horários de pico”. Entendeu-se que o maior número de pessoas reverberaria em maior diversidade de usuários e atividades, funcionando como referência aos espaços privados (Figura 1).
- A) Praça do edifício Neo Superquadra; B) Praça do edifício Evolution Tower; C) Fruição do edifício City Centro Cívico; D) Praça do Japão. Fonte: Google Street View (2019).
Parâmetros de observação em campo
Após a seleção dos objetos de estudo, foram estabelecidos padrões de comportamento que permitissem simplificar a observação dos registros em campo. Foram separadas as atividades em “movimento” e “permanência”, entendendo-se que a dificuldade de registro se acentuava com a população deslocando-se. Para tanto, recorreu-se a padrões estabelecidos por Thibaud (2013) ao observar passantes de uma praça parisiense, selecionando-se os cinco mais relevantes para esse trabalho: i) “avanço rápido” (comportamento objetivo dos pedestres); ii) “eixo do trajeto” (uso de atividades internas às edificações); iii) “território de espera” (pessoas andando sob um modo de ociosidade); iv) “progressão casual” (passos desacelerados em um avanço lento e flutuante); v) “curiosidade na passagem” (paradas no decorrer do percurso para observação ou contemplação).
Como dados complementares, buscou-se compreender quantas pessoas frequentavam tais locais, qual o gênero e faixa etária aparentes, subentendendo-se que a ocorrência de um número maior e variado de pessoas geraria maior diversidade de atividades. Para os registros, foi desenvolvido um protocolo de campo e, como ferramenta auxiliar, foi utilizado o celular (fotografar, “congelar” situações, registros de voz).
Quanto às datas e horários para a pesquisa, foram consideradas seis visitas para cada local (três durante a semana e três nos finais de semana), em três horários diferentes, distribuídos de forma intercalada ao longo da semana. O tempo em campo decorreu por saturação (mínimo de 45 minutos). Para o posicionamento nos locais, considerou-se as regiões com fluxo de pessoas mais intenso; quando necessário, adotou-se mais de um ângulo de observação.
Características dos objetos de estudo
Sobre as características dos objetos de estudo, a primeira apreciação refere-se à disposição das praças em relação aos bairros e à cidade de Curitiba-PR. Na Figura 2, observa-se a localização da praça pública e o quarteirão em que se situam os espaços privados, todos na região central da cidade. A Praça do Japão localiza-se no bairro Água Verde, as praças privadas nos bairros Centro (praça do edifício Evolution Tower) e Centro Cívico (praça do edifício Neo Superquadra), que é o mesmo bairro da fruição do edifício City Centro Cívico.
- Localização dos objetos de estudo. Mapa menor: cidade de Curitiba-PR delimitando os bairros em que as praças e fruição se localizam. Mapa maior: praças e fruição, em seus respectivos bairros. Fonte: Base IPPUC, alterado por Gláucia Dalmolin (2019).
A proximidade física entre os espaços estudados sugere características semelhantes de público e vizinhança, fato verificado através da investigação em campo. Observa-se, nas figuras 3 e 4, que em ambas as praças privadas predominam usos comerciais ou de serviços; diferente, portanto, da praça pública (Figura 6), cujo entorno predomina usos residenciais, embora também existam empreendimentos comerciais. Um destaque é a fruição do edifício City Centro Cívico (Figura 5), vizinha à praças e parques públicos.
- Praça Privada do edifício Neo Superquadra. Fonte: Base IPPUC, alterado por Gláucia Dalmolin (2019).
- Praça Privada do edifício Evolution Tower. Fonte: Base IPPUC, alterado por Gláucia Dalmolin (2019).
- Fruição do edifício City Centro Cívico. Fonte: Base IPPUC, alterado por Gláucia Dalmolin (2019).
Sobre a configuração física, aponta-se a diferença entre o espaço público (Figura 6) e os espaços privados (Figuras 3, 4 e 5), visto que a Praça do Japão apreende uma área maior (8.420 m2) (CURITIBA, Secretaria Municipal do Meio Ambiente, [19--]), muito próxima à metragem de um quarteirão típico do centro da cidade. Já os espaços privados possuem dimensões mais modestas, estimando-os em menos de 2.000 m2.
Quanto às possibilidades de acesso, embora a praça do edifício Neo Superquadra (Figura 3), apresente três oportunidades (Avenida Cândido de Abreu, Rua Heitor Stockler de França e Rua da Glória), alguns elementos dificultam sua ocorrência, como as duas rotatórias para veículos (com chafariz e floreira), cascata e palmeiras nas extremidades, além dos desníveis em relação à calçada pública (Figura 7A). Já a praça do Edifício Evolution Tower possui duas oportunidades de acesso para pedestres, com escada e rampa vencendo o declive natural da Rua Brigadeiro Franco, além de ser em nível com a calçada na Rua Comendador Araújo (Figura 4) e possuir barreiras em concreto impedindo a entrada de veículos (Figura 7B). Na fruição do Edifício City Centro Cívico, observa-se que sua configuração física se situa no mesmo nível e possui os mesmos materiais de acabamento da calçada pública (Figura 7C). Por fim, a Praça do Japão é circundada por ruas, podendo ser acessada pelos pedestres em praticamente todo o seu perímetro (Figura 6), exceto um trecho com gradil (aproximadamente 100 cm de altura), próximo a um semáforo para ônibus (Figura 7D).
- A) Chafariz como rotatória para veículos na praça do edifício Neo Superquadra; B) Acesso em nível, com barreiras para veículos, na praça do edifício Evolution Tower; C) Fruição no recuo frontal do edifício City Centro Cívico, idêntico à calçada pública; D) Trecho de acesso à Praça do Japão delimitado por um gradil. Fonte: Gláucia Dalmolin (2019).
Uma característica distintiva da Praça do Japão é seu caráter contemplativo, devido aos diversos elementos paisagísticos (espelhos d’água, monumentos, obras de arte) (Figura 8A). Também possui outros mobiliários, como banca de jornal, lanchonete, ponto de táxi e ciclovia, e um equipamento, o Memorial da Imigração Japonesa. No que concerne aos espaços privados, eles possuem características semelhantes de usos internos das edificações. Na praça do edifício Neo Superquadra, além das torres comercial, residencial e corporativa, existem restaurantes, mercado, academia, serviços bancários e de estacionamento. Já na praça do edifício Evolution Tower, as edificações comportam serviços hoteleiros e flat, torre comercial, serviço de estacionamento, além de um espaço cultural. E na fruição do edifício City Centro Cívico, os acessos são para edifícios residenciais, comerciais e estacionamentos. Sobre as áreas externas, destaca-se o edifício Neo Superquadra, cuja configuração espacial é mais elaborada (espelhos d’água, bancos, árvores) quando comparada à praça do edifício Evolution Tower ou a fruição do edifício City Centro Cívico (Figura 8B, 8C e 8D).
- A e B) Elementos paisagísticos na Praça do Japão e na praça do edifício Neo Superquadra; C) Árvores de pequeno porte e poucos elementos paisagísticos na praça do edifício Evolution Tower; D) Ausência de assentos na fruição do edifício City Centro Cívico. Fonte: Gláucia Dalmolin (2019).
A respeito da vegetação, a Praça do Japão possui grande quantidade de piso vegetal e árvores de pequeno, médio e grande porte, numa variedade de espécies. Diferente dos espaços privados, com apenas palmeiras ou árvores de pequeno porte e pouca área com piso vegetal. Ressalta-se que a praça do edifício Evolution Tower e a fruição do edifício City Centro Cívico não possuem bancos e o assento é possível em bordas de floreiras, reentrâncias na fachada das edificações, degraus das escadas e vasos.
Outra característica a ser ressaltada refere-se às placas informativas explicitando normas de conduta. A proibição ao fumo, por exemplo, ficou evidente nos espaços centrais da praça do edifício Neo Superquadra, assim como a indicação - através de cinzeiros -, para que essa atividade fosse realizada em áreas periféricas. Outra regra dessa praça refere-se às orientações para “não pisar na grama” e, na Praça do Japão, sinalizações orientam o uso de guia, coleira, focinheiras nos cachorros. Acrescentando-se que, além de placas indicando comportamentos, observou-se a presença de câmeras de vídeo e guardas para fiscalização, sobretudo, na praça do edifício Neo Superquadra.
- A, B e C) Orientação ao fumo através de placas e cinzeiros, nas praças dos edifícios Neo Superquadra e Evolution Tower; D) Orientação para não pisar na grama, na praça do edifício Neo Superquadra; E) Orientação para cachorros na Praça do Japão; F) Câmeras de monitoramento na praça do edifício Neo Superquadra. Fonte: Gláucia Dalmolin (2019).
Usuários e atividades
O primeiro dado a ser apresentado abarca a frequência de usuários. Observa-se, na Tabela 1, um total de 6.502 pessoas registradas, com variações entre os espaços estudados. Durante a semana o número de visitas foi maior em todos os locais, variando o período do dia. Já nos finais de semana, o meio do dia foi mais frequentado na Praça do Japão e na praça do edifício Evolution Tower. A frequência de pessoas na praça do edifício Neo Superquadra foi maior no período da manhã e, na fruição do edifício City Centro Cívico, foi maior à tarde. Quando se compara o número total de frequentadores durante a semana e finais de semana, nota-se que a Praça do Japão apresentou maior equilíbrio. Nos espaços privados, a maior diferença ocorreu na praça do edifício Evolution Tower.
Na estimativa de gênero4 aparente, a Tabela 2 demonstra que o número de homens foi superior ao de mulheres em 18 das 24 visitas. Apenas numa ocasião houve igualdade e em cinco visitas, o público feminino foi superior.
Na Tabela 3 observa-se os usuários por faixa etária. Sendo um quesito amparado em impressões e opiniões, foram definidos critérios mais específicos de avaliação, visando amenizar essa fragilidade. Desse modo, considerou-se “jovens” apenas pessoas cuja observação denunciasse frequentar uma escola (uniforme, mochila). Quanto aos idosos, a identificação ocorreu a partir da observação no ritmo do caminhar ou alguma característica física (cor dos cabelos ou ausência deles). Assim, pode-se dizer que o estabelecimento dessas preconcepções condicionou uma faixa mais ampla para a categoria “adulto”, predominante em todos os locais (Tabela 3). Apesar disso, observa-se que a Praça do Japão apresentou a maior variedade de público, com crianças, jovens, adultos e idosos, todos os dias, seguida da fruição do edifício City Centro Cívico, com a presença de jovens, sobretudo, durante a semana no meio do dia, e crianças, no final de semana à tarde.
Quanto às atividades, a diferenciação entre registros em “movimento” (pegar o ônibus, “cortar caminho”) e “permanência” (pessoas sentadas ou deitadas) decorreu de ponderações de Gehl (2009), no qual somente atividades permanentes seriam influenciadas pelas características materiais dos locais, ou seja, a presença de bancos estimularia pessoas a sentar e, quem sabe, “descansar”, “contemplar” ou “jogar xadrez” (Tabela 4).
As Tabelas 4 e 5 apresentam os padrões de atividades, sendo 3.712 em movimento e 835 de permanência. Sobre os registros em movimento, observa-se que na Praça do Japão e na fruição do Edifício City Centro Cívico foram identificados os cinco padrões definidos por Thibaud (2013), além da opção “outros”. Nas praças do edifício Neo Superquadra e edifício Evolution Tower, a diversidade das atividades em movimento foi menor, sendo que na primeira foi identificado uma pessoa em “progressão casual” e nenhuma em “território de espera” e, na segunda, não houve ocorrências de “progressão casual”, “território de espera” e “curiosidade na passagem”. Destacando-se que a atividade mais realizada na Praça do Japão e na fruição do Edifício City Centro Cívico foi “avanço rápido”, evidenciando a característica de circulação. Já nas praças privadas, a atividade mais realizada foi “eixo do trajeto”, denotando que, provavelmente, a maioria das atividades ocorre dentro de edificações. Com relação as atividades permanentes, na Praça do Japão, o ato de sentar-se foi o mais registrado durante todas as visitas e, nos espaços privados, a predominância foi de pessoas “em pé”.
Quanto às atividades realizadas, a Tabela 65 apresenta que, de um total de 36 padrões, a Praça do Japão foi a que apresentou maior diversidade de tipos (30), com os demais espaços apresentando resultados quantitativos semelhantes - entre 11 e 16. Ainda, em cinco das seis visitas na Praça do Japão, a atividade mais realizada foi “circulação/cortar caminho”, salvo um dia, cuja maior ocorrência foi “passeio com cachorro”. A segunda atividade mais realizada, durante a semana, foi “uso do celular” e, no final de semana, “descanso”. As seis atividades não identificadas nessa praça foram “abordagem por segurança”, “anotações”, “abrigando-se da chuva”, “entrega de algo”, “esperando o ônibus” e “urinar no espelho d’água”. Já nas praças privadas, durante as seis visitas, os maiores registros foram “eixo do trajeto”, ficando “circulação ou cortar caminho” em segundo lugar, exceto durante a semana no meio do dia, quando “espera de algo ou alguém” foi mais registrada na praça do edifício Evolution Tower e “uso do celular” no edifício Neo Superquadra. Na fruição do edifício City Centro Cívico, a atividade mais registrada foi “circulação” seguida de “eixo do trajeto”.
Por dentro dos dados encontrados
Tal como almejado pelo método, a frequência de pessoas circulando e permanecendo na Praça do Japão contribuiu para o registro de diferentes usuários e diversas atividades, num convívio entre pessoas conhecidas e estranhas. Na Tabela 2 observa-se o equilíbrio de gênero aparente bem como a presença de pessoas de diferentes faixas etárias, sugerindo uma configuração de acessibilidade irrestrita, conforme pautado por Lavalle (2005). Além de possibilitar o acesso, entende-se que a Praça do Japão possui características que podem incentivá-lo devido a presença de espelhos d’água, árvores, atividades no Memorial, pois seriam “convites” à permanência (Whyte,2001).
A identificação de elementos que instigam a permanência de pessoas contribuiria, também, com o caráter contemplativo dessa praça, refletido no registro de pessoas parando para observar os lagos, os monumentos ou cheirar uma flor. Destaca-se, portanto, a influência das características materiais em relação ao uso, visto que a presença de grama e a permissão para pisar nela, por exemplo, pode ter contribuído com a promoção de atividades físicas, descanso, passeio com cachorro. Já as pedras foram utilizadas como assentos alternativos aos bancos, e as árvores, sobretudo as sombras em dias de sol, podem ter contribuído para a realização de piqueniques (Figura 10B). E, mesmo que a atividade “circular/cortar caminho” tenha sido identificada em maior número, registros como meditar, dormir, tocar um instrumento musical, sugerem que os usuários se sentiram à vontade para fixarem-se por um período significativo de tempo. A prática do tai chi chuan aos domingos, exemplifica circunstâncias de programação prévia e atividades imprevistas como “trocar as fraldas do bebê”, indicam convicção de realização.
Outra característica da Praça do Japão é conformar-se “ponto de encontro”, já que foram observadas pessoas sozinhas e, posteriormente, encontrando conhecidos, além de reuniões de ciclistas ou de pessoas durante o “passeio com o cachorro”. Essa atividade, inclusive, demonstrou a existência de triangulações entre estranhos, pois em conversa informal com frequentador, obteve-se o conhecimento de que os donos desses animais haviam estabelecido uma rede de relacionamento cuja comunicação ocorreria, também, via grupo de WhatsApp (Figura 10C).
Ao comparar essa praça com os demais espaços, observou-se que, no caso da fruição do edifício City Centro Cívico também haveria acessibilidade irrestrita (Lavalle, 2005), provavelmente devido ao recuo frontal confundir-se com a calçada pública adjacente. Isso porque, além do mesmo acabamento no piso e, diferentemente das edificações vizinhas (Figura 11B e 11C), não existem barreiras físicas (grades, muros, desníveis, árvores, vasos de plantas) separando os espaços públicos e privados. Assim, as pessoas que chegavam ou aguardavam no ponto de ônibus, fluíam pelo local com naturalidade, aparentando despreocupação em adentrarem local privativo, já que não foram observadas mudanças no comportamento. Uma das atividades que evidenciou tratar-se de local privado, foram trabalhadores - provindos do empreendimento - cuidando da grama sob as árvores.
- A) Recuo frontal idêntico a calçada pública; B e C) Barreiras físicas separando espaços públicos e privados; D) Trabalhadores provindos do empreendimento, cuidando do jardim. Fonte: Gláucia Dalmolin (2019).
Ressalta-se que a fruição do edifício City Centro Cívico enfatiza atividades em movimento, por se tratar de uma calçada e devido à ausência de bancos. Há que se destacar que nesse espaço, a ausência de oportunidades para se sentar pode ser justificada pelo entorno, repleto de espaços públicos vinculados à permanência (Praça Dezenove de Dezembro, a Praça Gibran Khalil, Passeio Público). Embora se subentenda que a presença de bancos qualificaria esse espaço sem perder a primordial função, reflete-se sobre o interesse do empreendimento em proporcionar esse tipo de mobiliário, visto que, talvez, fomentasse o estabelecimento de grupos indesejáveis próximo ao acesso das edificações. Se percebido dessa maneira, a consequência poderia derivar de uma característica inerente aos espaços privados, ou seja, o controle maior do local para uso exclusivo de determinado perfil de usuários (Madanipour, 2005), através de um segurança ou a conformação de algum tipo de barreira no alinhamento predial.
Quanto à frequência de usuários, observou-se na praça do edifício Evolution Tower que nem sempre a quantidade de frequentadores repercute em diversidade de pessoas ou atividades. Tal percepção refere-se ao registro de maior número de usuários e menor diversidade de atividades dentre os objetos analisados, num comportamento corriqueiro de entrada e saída dos edifícios. Inclusive, foi observado que quando as pessoas permaneciam no local, estavam em pé, falando ao celular, fumando, esperando alguém, conversando, enfim, realizando atividades que sugerem uma pausa rápida durante o horário de trabalho. Além disso, no meio do dia ou no final da tarde, quando a praça poderia contemplar outros usos - como o almoço de trabalhadores ou passeio com cachorros da Praça do Japão -, ela permaneceu esvaziada, mantendo sua rotina de circulação.
Um dos fatores que pode ter contribuído com esse comportamento refere-se à ausência de elementos que instigassem a permanência de pessoas, possibilitando outras atividades, como defende Whyte (2001). A falta de sombra das árvores associada a marquises transparentes pode ter comprometido a presença de pessoas por período maior de tempo, uma vez que foram registradas circunstâncias de usuários ocupando algumas nesgas de sombra das edificações. Já o espelho d’água e a vegetação de pequeno porte não se configuraram contemplativos, visto que não foram registradas ocasiões em que as pessoas pararam para observar ou interagir. Tal fato ilustra as considerações de Gehl (2009), no qual ações rotineiras não seriam tão influenciadas pelo aspecto do ambiente.
Ressalta-se que, como uma praça corporativa, entende-se que o objetivo principal seria servir às edificações e, desse modo, talvez inibir alguns usos. Entretanto, apesar do pouco incentivo à permanência fora do expediente, a configuração espacial aberta e em nível com duas ruas possibilitou a identificação de pessoas cortando caminho a pé, de bicicleta ou patinete, em qualquer dia da semana. Provavelmente, tal permissão está associada a ausência ou discreta vigilância já que não foram localizadas câmeras e não existia guarda. Além disso, foram registradas atividades fora do cotidiano, como um casal com duas crianças - sentados na extremidade da praça enquanto pediam dinheiro no semáforo -, ao necessitarem encontrar um local para que uma delas urinasse, fizeram uso do espelho d’água. Embora se esperasse repreensão por tratar-se de espaço privado, nada aconteceu.
Acrescenta-se, ainda, os resquícios de cigarros, cervejas e copos plásticos próximos à lixeira e espaço para fumo, identificados durante a visita diurna, no final de semana. Essa situação sugere que a praça foi utilizada na noite anterior, aludindo tratar-se de um local com permissibilidade para determinados usos, ainda que não vinculados a ele. Destacando-se ser a única praça cujas edificações não contemplam uso residencial. Quem sabe, esse seja o motivo para normas menos restritivas.
- A) Comportamento corriqueiro: entrada e saída dos edifícios; B, C e D) Ausência de elementos paisagísticos como bancos ou árvores; E) Resquícios de cigarros e cervejas próximo às lixeiras. Fonte: Gláucia Dalmolin (2019).
Por fim, a praça do edifício Neo Superquadra caracterizou-se com grande frequência de pessoas, como a praça do edifício Evolution Tower (durante a semana) e com vários elementos paisagísticos (árvores, grama, espelho d’água, bancos) como a Praça do Japão, além dos usos comerciais (mercado, academia, restaurantes). No entanto, diferentemente do que foi observado na praça pública, tais circunstâncias não reverberaram em outras atividades na medida em que as pessoas, via de regra, não pararam para contemplar o espelho d’água e, quando permaneceram no local, ficaram, na maioria das vezes, em pé, na periferia da praça.
Apesar das características materiais e situação de limpeza, que poderiam denotar convites ao acesso e à permanência de pessoas, essa praça revelou-se o espaço mais restritivo e controlado dentre os analisados devido a presença de chamativas câmeras de monitoramento e do pessoal de segurança privativa em duas extremidades. A configuração física, apesar de abrir-se para três ruas sugerindo uma praça aberta ao público em geral, possui barreiras físicas (rotatórias, desníveis e vegetação) e barreiras simbólicas (mobiliários e materiais com acabamento sofisticados), que provavelmente dificultam ou, mesmo, inibem o acesso. Ainda que alguns usos internos às edificações instiguem a permanência de pessoas para um momento de descontração após o expediente e grandes placas comerciais estimulem o acesso público ao mercado ou à lanchonete, são “convites” direcionados ao consumo. Essa característica é exemplificada pela retirada de algumas mesas e cadeiras quando tais comércios estão fechados.
Embora a praça do edifício Neo Superquadra possa favorecer públicos exteriores “cortando caminho” ou utilizando-se dela como ponto de referência para “esperar algo/alguém”, entende-se que essas atividades pertencem a um padrão reconhecido pelas normas de conduta locais e, assim, situações que fujam à expectativa podem representar uma ameaça. Tal ponderação advém de abordagens realizadas pelos guardas a um garoto - que teve sua mochila vistoriada - e a duas ocorrências durante a investigação de campo. Na primeira abordagem, os seguranças foram avisados sobre o fato de tratar-se de uma pesquisa e, na segunda, informaram que compreendiam a situação, mas que seriam orientados pelo administrador a fiscalizar e, por vezes, intervir. Tais situações foram vivenciadas através de perseguições durante os deslocamentos e por tentativas em ler as anotações do diário de campo.
- A) Elementos paisagísticos (árvores, grama, espelho d’água); B) Permanência na periferia da praça; C) Câmeras de monitoramento; D) Comportamento corriqueiro: entrada e saída dos edifícios; E) Usos comerciais. Fonte: Gláucia Dalmolin (2019).
Considerações finais
A relação entre os domínios público e privado tem sido motivo de intensa reflexão nas últimas décadas. Desse debate, é possível considerar que cada momento histórico e cada situação geográfica produz seu próprio tensionamento. Tendo em vista um crescente interesse de regular a criação de novos tipos de espaços públicos em diversas legislações pelo país, a comparação aqui proposta, entre um espaço público “clássico” e três “espaços privados abertos ao uso público”, na cidade de Curitiba, demonstrou a diferença de usufruto e usuários desses locais. No espaço público, o total de frequentadores reverberou no registro de uma variedade maior de pessoas e atividades, enquanto nos espaços privados, mesmo quando altamente frequentados, não se alcançou tal diversidade.
Pode ser argumentado que a diversidade de atividades na Praça do Japão decorreu de suas características físicas e da presença de elementos paisagísticos, pautados por Whyte (2001). Entretanto, a praça do edifício Neo Superquadra também possuía diversos elementos, mas os resultados em prol da diversidade foram menos expressivos. Além disso, quando comparamos essa praça com a do edifício Evolution Tower (poucos elementos paisagísticos), notou-se que não houve alteração significativa no quantitativo e diversidade de atividades, embora, dois registros excedentes na primeira (contemplação e fotografia), provavelmente, estão atreladas à presença desses elementos. Nesse sentido, entendeu-se que o aspecto do ambiente não influenciou significativamente o usufruto local, principalmente porque as atividades rotineiras foram as mais identificadas (Gehl, 2009).
Pode-se dizer que os dados correspondentes à diversidade de usuários e atividades evidenciaram as permissões mais amplas do espaço público, decorrentes da acessibilidade irrestrita. Nos espaços privados, a menor diversidade de usuários, bem como o registro de atividades cotidianas padronizadas reforçaram uma de suas características típicas: a delimitação de “públicos-alvo”. E, ainda que esses espaços aceitem alguma variação em sua utilização, a configuração física e os elementos paisagísticos sugerem ser conformados para orientar o comportamento e explicitar a propriedade particular.
Acrescenta-se que o usufruto da Praça do Japão bem como das praças privadas pode ter sido influenciado pelas normas de conduta - explícitas ou implícitas -, e pelas medidas de controle mais ou menos restritivas. Observa-se que houve “abordagem por segurança” apenas em uma das praças privadas - a Neo Superquadra -, justamente a que possui mais estímulos à permanência. Corrobora com esse fato, registros como “urinar no espelho d´água” na praça do edifício Evolution Tower que, apesar de não ser tão convidativa, possuía uma vigilância mais discreta. Ainda, os resultados mais próximos do que se espera num espaço público ocorreram na fruição do edifício City Centro Cívico, com vigilância discreta e cujo espaço físico confundia-se com a calçada pública adjacente. De fato, nesse local, os registros em campo denotaram a acessibilidade irrestrita, ainda que direcionada a atividades em movimento.
Entretanto, mesmo quando um espaço privado aparenta ser público, se a representação desse espaço puder ser alterada por medidas de controle local, o entendimento que se extrai dessa pesquisa é que não são públicos e, portanto, não deveriam ser nominados como tal. Ressalta-se que, apesar dos objetos de estudo terem possibilitado o registro de usuários e atividades inerentes à cada esfera, provavelmente uma amostra maior de espaços públicos e privados possibilitaria uma visão mais ampla e generalizada dessas diferenças. Além disso, os espaços privados selecionados, apesar de abertos para as calçadas adjacentes, não eram incentivados por normativas a prover um caráter público. Talvez, a replicação desse estudo nos espaços privados definidos pelas legislações possa gerar resultados diferentes, assim como naqueles cuja responsabilidade de gestão foi transferida à esfera privada. De fato, pode-se concluir que o espaço público é uma bússola das tensões de uma dada sociedade.
Declaração de disponibilidade de dados
O conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste artigo está disponível no SciELO DATA e pode ser acessado em https://doi.org/10.48331/scielodata.ULBFPQ
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3
“Para determinar os horários de maior movimento, tempos de espera e duração da visita, o Google usa dados agregados e anônimos de usuários que ativaram o Histórico de localização do Google. [...] Não é possível adicionar as informações manualmente ao seu local”. Disponível em: <https://support.google.com/business/answer/6263531?hl=pt-BR>. Acesso em: 05 abr. 2020.
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4
Bebês/Crianças não foram contabilizadas pela dificuldade em categorizar o gênero.
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Como citar: Dalmolin, G. H., & Rosaneli, A. F. (2023). “Espaço público de propriedade privada”? Estudo sobre espaços privados abertos ao usufruto coletivo em Curitiba-PR. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, v. 15, e20220075. https://doi.org/10.1590/2175-3369.015.e20220075
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Editado por
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Editor responsável: Rodrigo Firmino
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Jul 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
30 Mar 2022 -
Aceito
24 Jan 2023