Resumo:
Ao narrar a aventura intelectual de Joseph Jacotot, Rancière escova a história a contrapelo - na bela metáfora benjaminiana -, fazendo ressoar uma voz até então condenada ao esquecimento. Este artigo expõe as formas pelas quais Jacotot opõe o mestre embrutecedor ao mestre emancipador, que verifica no presente a igual capacidade de todos e de cada um para compreender as obras da inteligência humana. Em face dessa dicotomia proponho uma imagem intermediária: a de um mestre iniciador, para quem um processo educativo comprometido com o princípio da igualdade clama tanto pela emancipação intelectual quanto pela transmissão intergeracional de um legado de experiências simbólicas que confere durabilidade a um mundo comum de realizações históricas.
Palavras-chave: Emancipação; Igualdade; Joseph Jacotot; Jacques Rancière; Hannah Arendt
Abstract:
By narrating the intellectual adventure of Jacotot, Rancière brushes the story against the grains - resorting to the Benjaminian metaphor -, echoing a voice that seemed condemned to oblivion. This text aims at exposing the ways in which Jacotot opposes a stultifying master to an emancipating one, who verifies in the present the equal capacity of everyone to understand the works of human intelligence. In face of this dichotomy, I propose an intermediate image: the master as an initiator, for whom an educational process committed to the equality principle cries out for both the intellectual emancipation and the intergenerational transmission of a legacy of symbolic experiences that provides durability to a world of historical achievements.
Keywords: Emancipation; Equality; Joseph Jacotot; Jacques Rancière; Hannah Arendt
Jacotot: o grão de areia nas engrenagens do mecanismo pedagógico
Trata-se, aqui, de uma voz solitária que, em um momento vital da constituição dos ideais, das práticas e das instituições que ainda governam nosso presente, ergueu-se como uma dissonância inaudita. [...] Talvez seja preciso escutá-lo ainda, para que o ato de ensinar jamais perca inteiramente a consciência dos paradoxos que lhe fornecem sentido (Jacques Rancière, 2012b, p. 9).
O encontro de Jacques Rancière com a vida e a obra de Joseph Jacotot pode ser descrito como um acontecimento; como um evento que representa uma ruptura em seu pensamento e uma descontinuidade em sua existência. É o que nos afirma o próprio autor de O mestre ignorante por ocasião da cerimônia na qual recebeu o título de Doutor Honoris Causa na Universidade de San Martín (Rancière, 2012a). Embora o interesse de Rancière pela noção de emancipação e seus potenciais efeitos políticos remonte às suas primeiras inquietações intelectuais, foi somente a partir das pesquisas que realizou nos arquivos operários do século XIX - ocasião em que conheceu a obra desse pensador até então relegado ao limbo das ideias pedagógicas - que ela se tornou um dos eixos centrais de suas reflexões sobre as relações entre política, estética e educação. Foi, pois, a partir de sua narrativa acerca das aventuras intelectuais e do pensamento de Jacotot que Rancière passou a conceber novas categorias para pensar o problema moderno dos vínculos entre igualdade, educação e emancipação. Publicado no início dos anos oitenta, O Mestre Ignorante põe em questão tanto as apropriações que os discursos pedagógicos fizeram das teorias reprodutivistas da educação, quanto os pressupostos subjacentes às duas grandes tendências que então disputavam a hegemonia dos discursos educacionais emancipatórios.
A primeira dessas tendências - com forte presença nos debates acerca da educação popular no Brasil1 - concebia a emancipação como um processo educativo que deveria resultar da ação daqueles que, por se acreditarem portadores de uma consciência crítica fundada em discursos filosóficos e científicos acerca do mundo e da sociedade, seriam capazes de liberar o povo - ou a massa - de sua suposta ignorância ou ausência de consciência histórica. Já para a segunda, sua opositora no plano político, era a massa - ou o povo e sua cultura própria - que deveria educar, ou reeducar, esses intelectuais cujo saber era classificado como abstrato e destituído de qualquer valor prático. Opostas em seus diagnósticos, ambas partilhavam, no entanto, de uma crença comum: a convicção de que o saber era uma propriedade privativa de um segmento social que sabia da ignorância do outro e detinha os meios de superá-la ao final de um longo processo de conscientização. Um processo que em muitos aspectos se assemelha à tarefa do filósofo platônico em relação aos seus concidadãos, supostos prisioneiros da caverna das ilusões e da ignorância, da qual só poderiam ser liberados por meio de uma gradativa ortopedia do olhar a ser empreendida sob a supervisão de um mestre cuja compreensão, por ultrapassar o senso comum das aparências, penetraria nas essências e na razão de ser dos fenômenos.
Formuladas como uma resposta absolutamente singular aos desafios da educação popular pós-revolução francesa, as ideias e práticas de Jacotot levaram Rancière a pôr em questão alguns dos pressupostos mais caros às correntes pedagógicas então identificadas com ideais educacionais emancipatórios e igualitários. O mais importante deles diz respeito precisamente à noção de que a emancipação seria o ponto de chegada de um longo - e sempre incerto - percurso educativo que assume como seu ponto de partida a desigualdade entre os dois polos envolvidos no processo de emancipação. O alegado fundamento dessa desigualdade pode variar consideravelmente, a depender da perspectiva teórica ou política adotada por seus adeptos. O caráter assimétrico da relação entre aqueles que se arrogam o direito de conduzir o processo emancipatório e os que nele devem ser guiados pode evocar a oposição entre os que enxergam a essência e os que apenas captam a aparência dos fenômenos, na persistente imagem platônica; entre os que contemplam a floresta e os que apenas enxergam as árvores, na metáfora hegeliana. Mas pode também evocar, em suas versões contemporâneas, a distinção entre uma visão crítica e uma visão ingênua das relações sociais; entre alienação e consciência de classe ou mesmo entre senso comum e saber científico e filosófico.
Em todos esses casos - e independentemente dos pressupostos metafísicos ou epistemológicos adotados -, a jornada rumo à emancipação sempre pressupõe uma transformação gradativa e substancial na qualidade da consciência dos educandos. Guiados ou acompanhados por um mestre2 cujo saber ou cuja consciência se encontra em um patamar mais elevado, a emancipação se identificaria com a progressiva liberação dos grilhões da ignorância; com a superação da alienação ou com o cultivo de uma consciência crítica capaz de aproximar gradativamente os educandos de seus mestres. A igualdade seria, pois, o ponto de chegada do processo de emancipação intelectual por meio do qual um educando ascenderia à mesma condição de seu mestre ou por meio do qual o povo realizaria sua vocação como sujeito histórico consciente. Assim concebida, a emancipação intelectual é um destino ao qual se almeja chegar; uma promessa a se realizar como fruto de uma jornada cujos contornos se encontram pré-concebidos por aqueles que tomam para si a condução do processo emancipatório.
Essa jornada emancipatória, por sua vez, implica sempre o recurso à explicação: procedimento por meio do qual um mestre - ou um professor - deve gradativamente aproximar seu aluno da compreensão que ainda não lhe é acessível, auxiliando-o a superar seus esforços erráticos e a neles imprimir um caráter metódico e gradativo em busca de uma consciência mais crítica e de um saber mais elevado. Essas virtudes intelectuais, apropriadas, cultivadas e transmitidas pelo mestre teriam como meta a emancipação daqueles que com ele compartilharam a jornada. Uma trajetória que, partindo da desigualdade inicial - entre mestre e discípulo; entre professor e aluno -, promete a conquista da igualdade e da emancipação intelectual como resultado final de um longo processo.
Ocorre que, para Jacotot, esse caminho - por mais generosas que soem suas promessas - não é o da emancipação, mas o do embrutecimento; da degradação do ser pensante. Isso porque, ao tomar a igualdade e a emancipação como objetivos da jornada rumo ao futuro, ele as recusa como ponto de partida no presente. Reitera-se, assim, a noção de desigualdade como um fato, perpetuando-se a promessa da igualdade como um destino sempre adiado. No entanto, em Jacotot, conforme alerta Rancière, igualdade e emancipação não são fatos, mas potências que se engendram e crescem por um ato que lhes é próprio: a verificação de sua manifestação aqui e agora. Assim também Jacotot concebe a própria noção de inteligência. Não se trata, para ele, de uma substância de natureza psicológica, passível de mensuração e hierarquização a partir de sua tradução em uma escala ou grandeza matemática, mas de uma potência comum a todos e qualquer um. Uma potência única que se atualiza na fabricação de uma luva ou na resolução de um problema matemático; na tessitura de um argumento filosófico ou na pintura de um quadro. Nas palavras iniciais de uma criança ou na retórica de um líder político.
Daí que, para Jacotot, a igualdade das inteligências - e das capacidades intelectuais - não constitui nem um fato nem um objetivo da ação educativa. Ela é, antes, seu ponto de partida. Mais do que um pressuposto teórico, ela é um axioma prático que convoca o educador a criar formas próprias de verificar essa igual capacidade de todos e qualquer um para compreender, traduzir e produzir obras que atestem a inteligência humana como uma faculdade igualmente compartilhada. Trata-se, pois, de criar formas de manifestação, no ato presente, da capacidade comum a todos de pensarem por si mesmos, sem a necessidade da mediação da inteligência de um mestre que se interponha entre seu aluno e a matéria (um livro, uma obra de arte ou qualquer objeto criado pela inteligência humana). Por essa razão, o mestre que explica - que conduz seu aluno por meio de enunciados, questões ou instruções, que o guia por meio de seus desafios, métodos e procedimentos - embrutece ao invés de emancipar. E assim o faz não necessariamente porque recorra a métodos autoritários, mas porque age na pressuposição de que, sem sua explicação, sem seu saber acerca da matéria em comum e das formas de sua transmissão didática, aquele a quem se dirige seria incapaz de compreendê-la. Ao assim proceder, submete a inteligência de seu aluno à sua; estabelece uma hierarquia cuja superação depende da conformação do aluno a uma trajetória e a um destino previamente concebidos pelo próprio mestre.
Essa submissão da inteligência do aluno a um percurso gradativo e previamente estabelecido pelo professor instaura o que Jacotot denomina lógica do sistema explicativo, para a qual “[...] só se pode saber verdadeiramente algo que se compreendeu. E para que se compreenda, é preciso que lhe seja dada uma explicação, que a palavra do mestre ponha fim ao mutismo da matéria ensinada” (Rancière, 1987, p. 12, tradução nossa). Contudo, a aceitação irrefletida desse princípio - que se firmou historicamente como motor da ação pedagógica e característica da forma escolar - esconde, para Jacotot, um paradoxo: como pode um mestre explicar um livro, formado por um conjunto de argumentos, senão por um novo conjunto de argumentos? Por que, então, precisaria o aluno de um novo conjunto de argumentos orais cujo objeto é precisamente o conjunto de argumentos de um livro ao qual o aluno pode recorrer por si mesmo? Ora, se o aluno é capaz de compreender os argumentos do professor, por que não seria capaz de compreender os que lhe são apresentados no livro? E, ao contrário, se for considerado incapaz de compreender os argumentos do livro, por que não seria igualmente incapaz de compreender os enunciados do professor? Não são eles da mesma natureza? Nesse caso, deveria então o professor apresentar uma nova explicação capaz de explicar a primeira e, assim, ad infinitum?
Na verdade, mais do que encerrar um paradoxo, a lógica do sistema explicativo - e seu discurso da igualdade como promessa a ser realizada no futuro - dissimula a distância que ela mesma cria entre o aluno e a obra; mascara a lacuna que o mestre institui entre a obra e a inteligência que a observa, que com ela interage e a ela atribui um sentido. Uma distância cujo efeito é menos o alcance da igualdade prometida para o final do processo do que a reprodução da crença de que o aluno seria incapaz de, por si só, aprender:
O segredo do mestre é saber reconhecer a distância entre a matéria ensinada e o sujeito a instruir, a distância entre aprender e compreender. O explicador é aquele que estabelece e abole a distância, que a implanta e a reduz por meio de sua palavra (Rancière, 1987, p. 13, tradução nossa).
A explicação não é, pois, um remédio para superar a incapacidade do aluno, mas tão simplesmente a operação por meio da qual o professor instaura essa incapacidade ao prever um caminho e um ponto de chegada a que o aluno deveria convergir. Ao estabelecer a igualdade das inteligências e capacidades como uma meta futura, ela a abole como possibilidade incarnada no presente. Ao mirar a emancipação como destino, ela a frustra como experiência.
Essa fora a conclusão à qual Jacotot chegara como fruto de um acaso que para ele se converteu em uma aventura intelectual: a constatação de que seus alunos de língua neerlandesa aprenderam o francês sem que ele os ensinasse. Recorrendo a seus próprios poderes e capacidades intelectuais, aqueles jovens universitários ensinaram a si mesmos, algo que até então ignoravam. Sem que entre os estudantes da Universidade de Lovaina e Jacotot houvesse uma língua em comum, a aprendizagem não se deu como efeito de explicações transmitidas pelo professor, mas resultou da análise sistemática e atenta a um objeto comum: a edição bilíngue do livro Le Télémaque3. Foi, pois, guiado por uma experiência que brotou do acaso e da necessidade que Jacotot se emancipou de seu lugar de explicador em favor de uma nova relação com aqueles que queriam aprender: a de um mestre emancipador que, por ignorar algo (a língua neerlandesa) levou seus alunos a criarem seus próprios caminhos de aprendizagem pela análise atenta de um objeto comum. O mestre emancipador não se propôs a guiá-los por seu caminho, mas a impulsioná-los a uma aventura intelectual a fim de que trilhassem seus próprios caminhos, testemunhando em ato a igual capacidade humana de compreender toda e qualquer obra forjada pelas mãos e pelo espírito humano.
Não se trata da invenção de um novo método pedagógico cuja eficácia pudesse ser comparada a seus congêneres. O método da igualdade de Joseph Jacotot não é um dispositivo didático, mas uma convicção política a ser verificada por um ato: “[...] pode-se aprender só e sem mestre explicador quando se o quer, seja pela tensão de seu próprio desejo ou pela imposição da situação” (Rancière, 1987, p. 24, tradução nossa). O mestre emancipador é, pois, aquele que atua na vontade do aluno de sair de um círculo de impotência pelos seus próprios recursos e liberar sua inteligência para agir sobre um objeto comum, sem a necessidade de uma mediação instaurada pela inteligência do professor. Em vez de esperar pela igualdade como fruto de um processo educativo ou histórico, o mestre emancipa ao levar seus alunos a confiarem na igual capacidade de todos para produzir atos de inteligência por meio dos quais cada um pode compreender e traduzir para si toda e qualquer manifestação da inteligência humana. A maestria do mestre ignorante não reside, pois, em qualquer sorte de suposta superioridade intelectual, mas tão somente em sua vontade política de criar condições de possibilidade para a experiência da igualdade, subvertendo, dessa forma, a partilha dos lugares preestabelecidos pelas convenções arbitrárias que naturalizam as desigualdades. Jacotot opera, assim, um duplo deslocamento: a emancipação deixa de ser uma meta final para se constituir em um ponto de partida e o mestre deixa de ser um guia intelectual para se transformar naquele que age na vontade de seus alunos, para que eles se emancipem trilhando um caminho próprio para a verificação da igualdade de cada um com todos os demais.
Rancière descreve esse episódio que marca a ruptura no pensamento de Jacotot como um grão de areia que, subitamente e por obra do acaso, se imiscui nas engrenagens do mecanismo da transmissão pedagógica, inviabilizando sua mera e irrefletida continuidade. Uma metáfora que bem poderia ser aplicada ao próprio livro de Rancière, cuja leitura interpela a todos aqueles que, como eu, tiveram na experiência escolar o elemento desencadeador de uma emancipação intelectual, política e sociocultural e que, por força dessa mesma experiência, fizeram da prática docente um campo de luta pela igualdade. Trata-se, portanto, de aqui levar a cabo um esforço - não somente pessoal, mas de uma geração - no sentido de tentar se reconciliar com o próprio passado e com sua esperança de renovação futura em face dos desafios que o pensamento de Jacotot nos lega quando afirma, por exemplo, que:
Explicar as coisas é provar àqueles a quem nos dirigimos que nada entenderiam se alguém não lhes explicasse. Transmitir progressivamente os conhecimentos que tornarão a criança igual a seus mestres é reproduzir a cada passo o dispositivo que volta indefinidamente a estabelecer a distância [entre as inteligências do mestre e do aluno]. É transformar a brecha entre o mais e o menos saber em desigualdade das inteligências [...]. Não há que se fundar escolas para instruir o povo. Há que se dizer às crianças desse povo que eles podem se emancipar sozinhos ao preço de romperem com essa crença que se infiltra nas nossas mais profundas formas de ser e pensar (Rancière, 2012a, online, grifos nossos, tradução nossa).
Deveríamos, em face da força provocativa dessas conclusões de Jacotot, nos render à máxima de que, ao menos no plano institucional das relações escolares, o tempo da emancipação já passou (Rancière, 2011), despojando, assim, nosso exercício profissional de qualquer potencial sentido político? Ou, antes, seria o caso de reiterarmos, como anuncia Rancière anos mais tarde, que a aceitação dessa impossibilidade poderia funcionar, ela mesma, como uma espécie de interdição “[...] destinada a afirmar que a ordem existente é a única possível”? (Rancière, 2011, p. 73). Mais do que uma resposta inequívoca a essa questão, as reflexões aqui esboçadas procuram chamar a atenção para o caráter ambíguo e problemático tanto da noção de transmissão como do próprio sentido político atribuído à escola em O mestre ignorante. Como veremos, em outros escritos de Rancière (1988; 2014) a escola pode figurar como uma instituição que não se encontra em perfeita continuidade com a ordem produtiva e social, guardando, assim, um compromisso potencial e peculiar com a emancipação e a experiência da igualdade. Um compromisso que não se confunde com a assunção da igualdade como um produto mensurável que o aparelho estatal oferece à sociedade, mas como um movimento incessante de seus agentes que, através de falas e ações, buscam verificá-la e atestá-la em suas práticas cotidianas.
A Transmissão, o Mestre Iniciador e a Skholé
Ao descrever a experiência de Jacotot, não são raras as passagens em que Rancière insiste que o papel central do mestre emancipador não é transmitir um saber, mas agir sobre a vontade de seus alunos, neles instigando a vontade de potência daqueles que se concebem como dotados de uma inteligência igualmente partilhada por todos os homens. O mestre emancipador recusa-se, assim, a posicionar-se como portador de um saber mediador entre o objeto comum (como o livro Le Télémaque) e a inteligência daqueles que deles se apropriam em um movimento próprio: “Ele nada lhes transmitiu de sua ciência, nada lhes explicou das flexões da língua francesa. [...] Ele só lhes ordenou que atravessassem uma floresta da qual ele ignorava as saídas” (Rancière, 1987, p. 19, grifos nossos, tradução nossa). Em síntese, segundo Rancière, Jacotot nada lhes transmitiu, mas apenas deles exigiu um certo tipo de atitude inquisidora em relação ao objeto em comum (o livro) e a firme convicção de que seriam capazes de aprenderem por si próprios como efeito de uma vontade livre e de uma inteligência que se concebe como igual e comum a todos.
Mas em que medida o mero fato de reconhecer que Jacotot não lhes tenha oferecido informações prévias nem dissertado acerca da sintaxe ou da gramática da língua francesa nos autoriza a crer que ele, de fato, nada lhes tenha transmitido? Não seria plausível, ao contrário, afirmar que a partir de seus gestos, de suas concepções, de sua história de vida, Jacotot lhes havia indubitavelmente transmitido algo? Que, embora seus alunos tenham percorrido um caminho próprio na aprendizagem da língua francesa, eles assim o fizeram porque seu mestre lhes transmitira, por seus atos e palavras, um princípio político que herdara dos movimentos revolucionários: a paixão pela igualdade? Não seria ainda plausível afirmar que o próprio modo pelo qual Jacotot se dirigia a seus alunos lhes transmitia o ideal pedagógico das Écoles Centrales4, criadas pela Revolução, para as quais a formação do cidadão livre deveria se realizar não por meio de lições formais, mas pelo engajamento em ateliers práticos e experiências intelectuais?
Jacotot inequivocamente lhes transmitira algo, ainda que o objeto dessa transmissão não fosse seu conhecimento da língua francesa nem necessariamente algo que seus alunos pudessem de imediato identificar e nomear. Trata-se, na verdade, de uma experiência recorrente na vida escolar. Quantos de nossos mestres e professores não nos transmitiram algo de inefável com a mera precisão de seus gestos, com o rigor de suas demonstrações ou com a intensidade de sua paixão por uma obra ou área de conhecimento? Ao sugerir uma equivalência entre as noções de transmissão e ensino - e ao identificar a segunda com a lógica do sistema explicativo -, Rancière acaba por obscurecer a peculiaridade do campo semântico de cada uma delas e as complexas relações que mantêm entre si.
Ora, enquanto a noção de ensino, ao menos em seus usos mais correntes, refere-se a um esforço deliberado e intencional de promover a aprendizagem de informações, regras, capacidades e procedimentos - em geral em um campo bastante específico e previamente estabelecido -, a transmissão pode operar - e frequentemente o faz - de modo informal, por meio da impregnação cultural resultante de uma convivência menos ou mais intensa com práticas, valores ou princípios. É desse modo, por exemplo, que nos iniciamos em uma cultura culinária, sem que necessariamente alguém nos instrua formalmente acerca daquilo que uma determinada cultura considera comestível ou dos ritos vinculados a uma refeição. Assim também são, ao menos para Aristóteles (2004), cultivadas as chamadas virtudes intelectuais: antes pelo exemplo e pela prática cotidiana do que pela instrução verbal e pelo ensino explícito.
Em suas análises acerca das relações entre a atividade do ensino e o processo de aprendizagem dessas virtudes, Michael Oakeshott evoca uma experiência que, embora pessoal e singular, aponta para aspectos centrais dessa complexa relação que se pode estabelecer entre a experiência escolar, o ensino formal e a transmissão de princípios, valores e práticas intelectuais:
[...] se me perguntassem as circunstâncias em que a paciência, a exatidão, a economia, a elegância e o estilo me foram revelados pela primeira vez, diria que não cheguei a reconhecê-los na literatura ou na demonstração geométrica até que os houvesse antes reconhecido em outros campos; e devo este reconhecimento a um instrutor de ginástica, para quem a ginástica era uma arte intelectual. E a ele o devo não em razão de qualquer coisa que tenha dito, mas porque era um homem de paciência, precisão, economia, elegância e estilo (Oakeshott, 1989, p. 62, tradução nossa).
O que essa breve narrativa nos revela é o fato de que, paralela e simultaneamente ao ensino formal - ou à lógica do sistema explicativo, nas palavras de Jacotot -, a experiência escolar tem potencial para criar condições de possibilidade de um outro tipo de transmissão intergeracional. Não se trata, em sentido estrito, da veiculação de um conteúdo escolar enunciável, como as informações, os procedimentos e as regras às quais um professor recorre em suas aulas e explicações. Trata-se, antes, de uma espécie de subproduto dessas atividades intelectuais, como a natureza da relação que um determinado professor estabelece com a matéria ou disciplina que ensina; a forma pela qual cultiva esse objeto em comum - a ginástica ou o livro Le Télemaque - que se interpõe entre ele e seus alunos durante uma aula; ou ainda a natureza das relações interpessoais que emergem desse encontro mediado por um objeto em comum, seja ele qual for. É pouco provável que Jacotot pudesse instigar em seus alunos a convicção da igualdade das inteligências e seus poderes por meio da mera enunciação de conceitos. É igualmente pouco crível que Oakeshott aprendesse as virtudes intelectuais que descreve por meio de sua simples exposição retórica por um instrutor de ginástica. Mas se eles assim o fizeram, se o aprenderam, é razoável supor que o tenham feito como fruto de uma transmissão que se operou no quadro de uma experiência escolar, ainda que tal transmissão não tenha sido veiculada por meio de explicações ou exposições verbais.
Essas observações não pretendem desqualificar as críticas de Jacotot à lógica do sistema explicativo e seu possível efeito embrutecedor. É plausível reconhecer que o aparecimento e a solidificação do processo de pedagogização das aprendizagens sociais são indissociáveis da emergência da forma escolar, tal como a descreve Bernard Lahire (2008). Trata-se, para esse autor, de um processo de gradativa institucionalização da transmissão de saberes formalizados, objetivados e codificados em gramáticas e manuais que normatizam seu uso prático e os transformam em objeto de estudo e análise, e não só de uso imediato. Essa codificação, por sua vez, possibilita a fragmentação do objeto em elementos abstratos que passam a ser ensinados em etapas controladas, como no caso de uma aprendizagem da escrita na qual as palavras se decompõem em sílabas; nas quais as funções sintáticas são apartadas do contexto de uso, de forma que um texto pode acabar por perder sua qualidade de objeto cultural para se transformar em utensílio pedagógico a serviço da lógica dos mecanismos explicativos. A recente pedagogização do aprendizado de um esporte como o futebol - com a criação de exercícios isolados de chutes, passes, dribles dissociados da efetiva prática de uma partida - ilustra de forma frisante esse processo de pedagogização das aprendizagens sociais por meio do qual essas se dissociam, ou ao menos se distanciam, do contexto de uma prática social efetiva e concreta.
Nesse sentido, a generalização da forma escolar como dispositivo de difusão da cultura letrada - que se inicia no contexto em que Jacotot tece suas críticas à lógica do sistema explicador - engendra a criação de uma categoria especializada de educadores profissionais, certificados e recrutados pelo Estado, cujo saber deveria englobar não só os conteúdos a serem ensinados, mas também a racionalização de seus processos de aquisição e avaliação. Generaliza-se, assim, a opção por uma relação formal e abstrata de aprendizagem que difere substancialmente das relações de aprendizagem na e pela prática, vigentes nas formas orais de socialização ou nas corporações de ofício, por exemplo. Daí a consolidação de um processo escolar marcado pela segmentação de saberes, pela gradação progressiva de seus conteúdos, pela hierarquização de desempenhos sempre comparados a um ideal final preestabelecido e para o qual todos deveriam convergir, embora poucos realmente o façam.
É, pois, em uma resposta crítica a esses princípios - que assinalam o lugar próprio de cada um na ordem do desempenho escolar e reafirmam a desigualdade das inteligências como fonte de legitimação da partilha arbitrária e desigual da riqueza, do espaço e da fala - que Jacot propõe a abolição da prática explicadora que se interpõe entre a inteligência reificada na obra e aquela do aluno, que a analisa, interpreta e traduz. Mas, em que pesem o caráter agudo de seu diagnóstico crítico e a pertinência política da adoção de seu pressuposto acerca da igualdade das inteligências, a sugestão de uma abolição da mediação entre o objeto comum a ser apreendido - seja ele uma obra, uma capacidade, uma linguagem - e o aluno engendra, por sua vez, novos problemas.
O banimento dessa mediação supõe, por exemplo, que esse complexo legado de experiências simbólicas que se cristaliza nos objetos de uma cultura possa se apresentar sem qualquer sorte de opacidade aos que nela se iniciam; como se o objeto comum prescindisse da palavra humana para iluminar seu funcionamento e desvelar seus possíveis sentidos. É em contraposição a essa crença que gostaria de propor uma terceira figura nesse quadro categorial proposto por Jacotot e narrado por Rancière. Uma figura que se situasse em um ponto equidistante entre o mestre emancipador, que só age sobre a vontade do aluno, e o mestre embrutecedor, cuja explicação impede o aluno de se crer capaz de uma relação própria com o objeto comum. Essa figura é o mestre iniciador. Um mestre pode ser iniciador porque, iniciado nas artes de uma área do saber, expõe, por seus gestos e palavras, a relação pessoal que foi capaz de estabelecer com certos objetos da cultura, reconfigurando seus sentidos à luz do presente. Iniciador porque presume que a inscrição de um sujeito no seio de uma cultura pressupõe seu igual direito à fruição e ao exercício da inteligência que sempre se processa em sua relação com objetos culturais que o antecedem em um mundo comum.
Mas iniciador também porque concebe cada um de seus alunos como seres não só dotados de uma igual inteligência, mas como igualmente capazes de iniciar algo de novo em um mundo cuja durabilidade transcende o transcurso de suas existências. Iniciador porque os homens, lembra-nos Arendt (2011, p. 307), “[...] embora devam morrer, não nasceram para morrer, mas para começar”. É nessa capacidade humana de agir e romper com as amarras do passado que Arendt localiza a liberdade como uma capacidade - ontologicamente radicada no homem - de renovar o mundo comum e se emancipar, em um processo de subjetivação que, embora seja responsável pela eclosão do novo, não ignora que a profundidade da existência humana depende do incessante diálogo que cada geração empreende com os vastos domínios do passado que ainda hoje se fazem presentes.
Um mestre iniciador é aquele para quem o potencial igualitário da experiência escolar não reside em seus possíveis - e sempre incertos - efeitos socioeconômicos posteriores, mas se materializa, antes, pela configuração de uma forma que adquire nas sociedades contemporâneas um sentido próprio: a criação e a extensão a todos de um tempo livre, ou seja, de um tempo em que não se está submetido às exigências do capital, da produção e da satisfação das necessidades vitais. Como ressalta o próprio Rancière, em um artigo escrito poucos anos depois da publicação de O mestre ignorante,
A escola não é uma função ou um lugar definido por uma finalidade social exterior. Ela é, antes, uma forma simbólica, uma norma de separação de espaços, tempos e ocupações sociais. Escola não quer dizer fundamentalmente aprendizagem, mas tempo livre5. A scholè grega separa dois usos do tempo: o uso daqueles cujas obrigações do trabalho e da produção retiram, por definição, o tempo de fazer outra coisa; e o uso daqueles que têm tempo, ou seja, são dispensados das exigências do trabalho. [... A escola] é, antes de mais nada, o lugar situado fora das necessidades do trabalho, o lugar onde se aprende por aprender, o lugar da igualdade por excelência (Rancière, 1988, p. 2, tradução nossa).
Assim, pensar a emancipação e a igualdade como potências da experiência escolar não implica nem em aderir ao discurso liberal da ordem meritocrática do desempenho escolar e das capacidades intelectuais, nem a conceber como um meio para a realização de um fim extrínseco: a igualdade socioeconômica, de cuja luta política as sociedades contemporâneas parecem ter abdicado em favor de sua transformação em um... objetivo educacional!
Se há um potencial emancipador na experiência escolar, este parece antes residir na especificidade de sua forma: “[...] a escola pública democrática já é redistribuição: ela subtrai do mundo desigual da produção uma parte de suas riquezas, para dedicá-la ao luxo que representa a constituição de um espaço-tempo igualitário” (Rancière, 1988, p. 3, tradução nossa). Esse tempo-espaço igualitário e peculiar à experiência escolar é o da democratização daquilo que um dia foi o privilégio distintivo da aristocracia agrário-militar grega e que se converteu em um direito comum a todo e qualquer cidadão a partir da emergência da democracia ateniense: o tempo da scholé. Trata-se, pois, de um tempo de formação, ou seja, de um tempo voltado para um aprendizado cuja virtude não é necessariamente capacitar alguém a fazer algo - ter uma profissão, por exemplo - nem determinar seu lugar na partilha desigual das ocupações e privilégios sociais. A forma escola, historicamente vinculada ao ideal da scholé, é o tempo-espaço voltado a propiciar a todos e a cada um a oportunidade de se constituir como um sujeito singular em meio a seus iguais. Porque o tempo da emancipação não é uma promessa para o futuro; é, antes, a possibilidade de se viver o presente em diálogo com os vários mundos e tempos da experiência humana. É o tempo de viver enquanto iguais no mundo da desigualdade.
Referências
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RANCIÈRE, Jacques. De que se Trata la Emancipacion Intelectual? (Discurso). San Martín: Universidade Nacional de San Martín, out. 2012a. Disponível em: <Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4Y_KwkAnjac
>. Acesso em: 15 mar. 2019.
» https://www.youtube.com/watch?v=4Y_KwkAnjac - RANCIÈRE, Jacques. Prefácio à Edição Brasileira. In: RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante. Tradução: Lilian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2012b. P. 9-16.
- RANCIÈRE, Jacques. Nas Margens do Político. Lisboa: KKYM, 2014.
Notas
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1
Cf. Brayner (2018).
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2
A palavra maître, em francês, possui uma ambiguidade ausente ou bem menos perceptível na língua portuguesa: ela pode se referir tanto a um professor do ensino fundamental como a um senhor a quem se deve obediência. Rancière evidentemente joga com essa ambiguidade em sua obra.
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3
A obra de François Fénelon, As aventuras de Telêmaco, foi publicada em 1699. Originalmente destinada à educação do Duque de Borgonha, ela narra as aventuras do filho de Ulisses. Em sua parte final, a obra faz alusão à queda de um tirano e à fundação de uma sociedade igualitária na qual o trabalho de cada um é valorizado.
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4
Estabelecidas em 1795, as Écoles Centrales visavam substituir os Collèges do Antigo Regime. Com um currículo marcado pela valorização das ciências e suas aplicações, foram consideradas por Durkheim (2014) como um esforço de ruptura com as práticas tradicionais herdadas do ensino religioso. Em 1802 elas são fechadas sob a alegação de que não forneciam uma adequada formação religiosa e moral e concediam liberdade excessiva a seus alunos.
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5
No original Rancière emprega o termo loisir, que pode ser traduzido por lazer, ócio. Optamos por tempo livre, tal como o fazem os tradutores portugueses da obra Nas margens do político (Rancière, 2014).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Jun 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
12 Abr 2019 -
Aceito
05 Ago 2019