Resumo
Diferentes são os recursos explorados pelas narrativas contemporâneas endereçadas aos jovens. Nesta esfera está a narrativa gráfica A arte de Charlie Chan Hock Chye, corpuscom relevância histórica, social e artística do presente estudo. Objetiva-se, a partir de uma perspectiva da metaficção nas linguagens verbal, imagética e gráfica, compreender de que forma a obra multimodal de Liew incita o leitor a conhecer os bastidores da criação artística desta e de outras obras, promovendo um esmaecimento entre o real e o ficcional. Além disso, buscamos destacar como o autor aborda, simultaneamente, a história de Singapura e a biografia de um cartunista ficcional renomado, rendendo uma homenagem às histórias em quadrinhos. Para isso nos utilizaremos das teorias de metaficção (Hutcheon, 1984; Waugh, 1988), da intertextualidade (Genette, 2006) e da linguagem dos quadrinhos (Postema, 2021).
Palavras-chave Sonny Liew; Metaficção; Estratégias metaficcionais; História em quadrinhos; História
Abstract
There are different resources explored by contemporary narratives addressed to young people. In this sphere is the graphic narrative The Art of Charlie Chan Hock Chye, a work with historical, social, and artistic relevance which constitutes the corpus of this study. The objective is, from a metafictional perspective of the verbal, imagetic, and graphic, to understand how Liew’s multimodal work encourages the reader to know the backstage of this and other books, promoting the fading of the boundaries between the real and the fictional. Besides that, we will highlight how the author approaches, simultaneously, the history of Singapore and the fictional biography of a reputed cartoonist, paying homage to the art of comics. For this, we start from the theories of metafiction (Hutcheon, 1984; Waugh, 1988), intertextuality (Genette, 2006), and the language of comics (Postema, 2021).
Keywords Sonny Liew; Metafiction; Metafictional strategies; Comics; History
Introdução
Não é novidade que a literatura contemporânea – em especial aquela destinada preferencialmente ao público infantil e juvenil – tem trazido significativas inovações nos modos de narrar. Seja em termos temáticos ou de arquitetura narrativa, vários são os desafios lançados ao leitor, convidado a ler sinergicamente narrativas multimodais nas quais o diálogo entre texto verbal, ilustração e projeto gráfico mostra-se decisivo para o desvendar das diversas camadas compositivas da obra literária.
Este é o caso de A arte de Charlie Chan Hock Chye, novela gráfica escrita e ilustrada pelo autor malaio Sonny Liew. Publicada originalmente em inglês - pela editora de Singapura, Epigram Book em 2015 - a obra chega no Brasil pela Pipoca & Nanquim, em 2018, com a tradução de Maria Clara Carneiro, alcançando já sua segunda edição em 2019. O livro, amplamente premiado – com três Eisner Awards em 2017 e outras trintas nomeações – e traduzido para diversos países – como Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, França, dentre tantos outros – foi reconhecido pela crítica e leitores em função de sua narrativa e das habilidades artísticas reveladas pelo autor.
A obra se apresenta como uma biografia de um cartunista fictício: Charlie Chan Hock Chye, que supostamente viveu em Singapura ao longo do século XX. Por meio do desvelar da vida dessa personagem – o que ocorre mediante um aparente diálogo entre ela e um interlocutor que inferimos ser a figura ficcionalizada de Sonny Liew, como veremos adiante – , ao leitor é oferecida a oportunidade de um mergulho profundo na história e política desse território asiático, abordando eventos como a ocupação japonesa, a independência do país e o seu desenvolvimento econômico.
Mesclando, desta forma, ficção e realidade – visto que a personagem é fictícia, mas os eventos históricos ocorreram realmente em Singapura – a obra torna-se ainda mais complexa e desafiadora em razão de sua estrutura narrativa não-linear: apresenta saltos entre diferentes momentos da vida de Charlie Chan Hock Chye e, consequentemente, da história do país. Assim, cabe ao leitor unir as peças que compõem este puzzle narrativo, ao mesmo tempo em que é exposto a temáticas sensíveis, como censura, liberdade de expressão e identidade cultural, por um lado; e às dificuldades enfrentadas pelos artistas em um ambiente político instável, por outro.
Soma-se a essa densidade temática o fato de a narrativa não ser construída meramente a partir de uma combinação de imagens em sequência – o que caracteriza, normalmente, as novelas gráficas – mas, também, por meio de fotografias, ilustrações, pinturas e documentos históricos que expandem, de forma significativa, os sentidos suscitados pelo texto verbal. Nesta obra, Sonny Liew mistura, ainda, estilos e técnicas artísticas para retratar diferentes períodos da história de Singapura e do mundo, desde as ilustrações em preto e branco, típicas dos anos 1950, até as cores vibrantes dos anos 1980, demandando e, simultaneamente, oferecendo ao jovem leitor um repertório não apenas literário, mas também histórico, imagético e gráfico.
É a leitura desta complexa obra que propomos neste artigo. Partindo de uma perspectiva metaficcional (HUTCHEON, 1984; WAUGH, 1988), que, no entanto, não se restringe ao texto verbal, intenta-se identificar de quais modos a metaficção opera nas diferentes linguagens dessa novela gráfica multimodal para criar uma experiência que desloca o leitor na indeterminação entre ficção e realidade, estabelecendo um diálogo com o contexto contemporâneo. Almejamos evidenciar como muito mais do que uma biografia fictícia, A arte de Charlie Chan Hock Chye apresenta-se como uma narrativa da história de Singapura que, além de estimular o leitor a (con)fundir os limites entre o real e o ficcional – em termos verbais, imagéticos e gráficos, conforme poderemos observar – incita-o a desvendar os bastidores e as complexidades da criação artística.
1. Uma história de Singapura
A arte de Charlie Chan Hock Chye traz, aos leitores, não somente a história do quadrinista singapurense que dá título à obra, mas também oferece um contexto político e social da história do país em que nasceu e viveu a personagem. Assim, a história de Singapura ocupa um plano muito importante na construção dessa obra, revelando-se como uma das camadas narrativas a serem desvendadas pelo leitor. A medida em que o fictício quadrinista Charlie Chan narra sua trajetória, percebe-se claramente como esta encontra-se atrelada à história do país, revelando, dessa maneira, o impacto que a arte exerce no contexto histórico, cultural e social de uma nação.
O período da ocupação japonesa é um dos aspectos explorados por Sonny Liew. A história de Charlie Chan Hock Chye começa exatamente durante essa ocupação, ocorrida em meio à Segunda Guerra Mundial, sendo esse período histórico retratado não apenas por meio da narrativa verbal, mas também por meio das ilustrações. É interessante observar como, em meio aos fatos cotidianos de Charlie, mesclam-se os episódios históricos, bem como sua atuação, enquanto jovem, através da elaboração de seus quadrinhos, de posicionar-se criticamente em relação ao contexto histórico-social.
De forma semelhante ocorrerá a abordagem, na obra, do movimento pela independência de Singapura e a formação do país como uma nação soberana. Ela examina as lutas políticas e sociais desse período, incluindo a ascensão do Partido da Ação Popular (PAP) e o papel de líderes como Lee Kuan Yew. Longe, no entanto, de apresentar um olhar que simplesmente reforça o discurso histórico oficial, a narrativa de A arte de Charlie Chan Hock Chye apresenta um ponto de vista crítico, advindo não dos vencedores ou heróis, mas dos indivíduos comuns, que vivenciaram a história, mas que não tiveram suas vozes, até então, representadas. Neste aspecto é válido ressaltar como tal discurso não se pretende mais adequado ou correto que os demais, mas como uma possível outra versão do discurso histórico, uma história possível de Singapura. A esse respeito, note-se, por exemplo, na Fig. 01, como o autor, que surge aqui ficcionalizado – verbal e visualmente, como veremos mais adiante – tece críticas ao que se considera o discurso histórico oficial, bem como à falta de percepção das inconsistências presentes nesse discurso, elemento esse típico das narrativas metaficcionais historiográficas (HUTCHEON, 1991).
O rápido desenvolvimento econômico e urbano de Singapura nas décadas seguintes à sua independência, bem como as mudanças sociais e culturais resultantes desse crescimento, incluindo a urbanização, a modernização e as questões relacionadas à identidade nacional, são também abordadas na obra em paralelo ao envelhecimento e amadurecimento profissional da personagem protagonista - trazidos por meio da evolução artística dos traços do quadrinista. Oferece-se, assim, ao jovem leitor a possibilidade de, em meio à biografia ficcional de Charlie Chan Hock Chye, o conhecimento da história desse país asiático, o que se torna prazeroso pela inserção das produções artísticas do protagonista dentro da obra que estamos a ler, de modo que é por meio de seus próprios quadrinhos que tomamos contato com aspectos históricos, culturais e sociais do país. É também por meio dessas produções artísticas – que sofrem importantes transformações em termos de estilo ao longo de A arte de Charlie Chan Hock Chye – que podemos ainda compreender a evolução da indústria da arte em Singapura, os desafios enfrentados pelos artistas, bem como as oportunidades e limitações oferecidas pelo cenário cultural do país. Temas sensíveis como a censura e a restrição da liberdade de expressão também ocupam as páginas do livro, o qual examina o impacto dessas políticas na comunidade artística, questionando as limitações impostas aos artistas e a luta empreendia pela liberdade criativa.
A história de Singapura é apresentada, dessa maneira, a partir de um viés crítico, possibilitando ao leitor conhecê-la a partir de uma outra perspectiva, diferente do discurso tradicional histórico com viés didático. Na obra, é por meio da e na própria arte que acompanhamos a trajetória desse país. A arte de Charlie Chan Hock Chye, no entanto, não se limita a narrar essa história. Desafiante, a obra convida o leitor a, por meio da ficcionalidade de uma aparente verdade biográfica, tecer um olhar crítico também sobre a própria construção narrativa, incitando-nos a conhecer os bastidores da ficção e a (con)fundir, cada vez mais, os limites entre o real e o ficcional, como apresentaremos a seguir.
2. A arte da Arte de Charlie Chan: metaficção em cena
Compreendida por Hutcheon como “fiction about fiction – that is, fiction that includes within itself a commentary on its own narrative and/or linguistic identity” (1984, p. 01), a metaficção refere-se a um tipo de narrativa autorreflexiva que conscientemente coloca em evidência os dispositivos e convenções literárias. Diz respeito, de forma geral, a obras literárias que abordam a própria natureza da ficção, questionando e explorando os elementos da narrativa, os limites da realidade e a relação entre o autor, a obra e o leitor.
Diferentes são os recursos metaficcionais empregados pelos autores para denunciarem a condição de artefato assumida pelos textos ficcionais, podendo-se destacar, dentre eles, “a intertextualidade, o narrador intrusivo, os experimentos tipográficos, a explícita dramatização do leitor, a paródia, a discussão crítica da história dentro da própria história e a desconstrução contínua das convenções narrativas” (NAVAS, 2015, p. 86). Muito mais do que demonstrarem os conhecimentos do autor sobre os bastidores da ficção, o emprego desses recursos, conforme nos explica Waugh (1988), está fortemente atrelado ao nosso contexto, no qual a noção de uma realidade objetiva, universal e única é fortemente questionada. Ao expor a artificialidade da construção ficcional e seu caráter de artefato, a metaficção cria um ambiente em que os limites entre a realidade e a ficção se tornam pouco distintos, desafiando, desta maneira, a ideia de uma única narrativa coerente e, consequentemente, abrindo espaço para múltiplas realidades e interpretações.
Em A arte de Charlie Chan Hock Chye isso pode ser observado em diferentes níveis. Logo nas páginas iniciais, deparamo-nos com um relato do protagonista – como se, efetivamente, sua fala estivesse cumprindo o propósito de contar toda a sua história a alguém, como em uma entrevista. Tal aspecto se reforça visualmente quando, à medida que, em movimento de zoom out, observamo-lo tentando deixar a cadeira em que está sentado para buscar um livro de referência e é repreendido pelo seu interlocutor. O texto da personagem externa ao quadro é ilegível, representada por traços irregulares que simulam a fala do entrevistador. Isso coloca o leitor em uma posição de compreensão unilateral da conversa, ou seja, só tendo acesso à fala de Charlie Chan. Assim, após o entrevistador dizer algo para a personagem, a mesma volta a sentar na cadeira e continua sua entrevista (Fig. 02). Por meio da utilização desse recurso, constatamos que estamos diante de uma narrativa em processo de construção, uma vez que não temos acesso apenas ao conteúdo “editado”, mas também ao desenvolvimento e seus percalços – característica típica das narrativas de cunho metaficcional. Além disso, esse recurso reforça o destaque à personagem protagonista, demonstrando que, mais relevante do que as perguntas, é a voz de Charlie Chan.
Outro elemento da materialidade do livro que contribui para reforçar o aspecto de que estamos diante de uma construção narrativa, é o fato de a folha de rosto vir posteriormente à apresentação inicial feita pelo protagonista, desautomatizando o olhar e a leitura de ordem tradicional de um objeto livro – uma vez que a narrativa já teve início antes mesmo da folha de rosto. Pantaleo (2018) descreve que as ilustrações na folha de rosto, para além de estabelecer o tom e incentivar o início da leitura, podem ser usadas para outras funções, tais como introduzir personagens ou a própria narrativa. E é isso que vemos nessa obra, que traz, na folha de rosto, além do título – explorando uma configuração tipográfica distinta da utilizada na capa –, uma primeira personagem que teria sido criada por Charlie Chan Hock Chye, o jovem Ah Huat, bem como a imagem de uma outra personagem que apresenta o autor e a tradução da obra. Este último personagem, descobrimos posteriormente, tratar-se da caricatura do autor Sonny Liew. Observemos que este aparente detalhe é, no entanto, bastante significativo: o colocar-se do autor como uma personagem dentro da própria obra – aspecto esse que se repetirá ao longo de toda a narrativa – , sugere-nos o “borrar” dos limites entre o real e o ficcional, aspecto que se reforça à medida em que ele se intitula, nesta folha de rosto, como “apresentador” e não como autor da história, buscando conduzir o leitor a reconhecer a personagem Charlie Chan Hock Chye como um real quadrinista de Singapura e a si próprio como um ser ficcional (Fig. 3).
Nas páginas seguintes temos contato com a primeira história em quadrinhos supostamente elaborada por Charlie Chan Hock Chye, em 1956 – de modo que temos uma história dentro de outra história – recurso metaficcional continuamente explorado ao longo da narrativa. É válido observar como, neste caso, o aspecto metaficcional ultrapassa o plano verbal, atingindo o plano da ilustração e gráfico. Assim, temos não apenas a menção da história em quadrinho da personagem Ah Huat, mas ela, integralmente reproduzida nas páginas. É possível notar como o traço empregado nessa história é diferente do que vinha sendo apresentado até então, além da simulação de páginas envelhecidas, conforme podemos observar na Fig. 04.
A inclusão de esboços de desenhos, retratos que se utilizam de diferentes técnicas, documentos oficiais, entre outros, reforça o recurso metaficcional empregado da narrativa, chamando a atenção do leitor para o caráter de artefatos textuais que cada um desses elementos assume, além de incitar a (con)fusão dos limites entre o real e o ficcional – uma vez que, por exemplo, retratos e documentos são lidos como reais, mas nesse caso são totalmente criados ficcionalmente. O encaixe de uma história dentro de outra não se esgota na presença – inclusive material – que acabamos de evidenciar. Outras são também as estratégias empregadas pelo autor, das quais destacamos as constantes referências intertextuais, estratégia essa a qual passamos agora a considerar.
3. Histórias dentro da história: relações com outros textos
A arte de Charlie Chan Hock Chye pode ser lida enquanto um mosaico de referências, uma ode à arte sequencial e outras artes, de vários tempos e lugares. De Osamu Tezuka, nos anos 30 do Japão a Art Spielgeman, nos anos 1980 dos Estados Unidos, Sonny Liew nos apresenta uma imensidão de repertórios, criando uma narrativa que é complexa em si e na relação com outras. Fica claro, nessa obra, a ideia da literatura enquanto palimpsesto (GENETTE, 2006), ou seja, de que um texto nunca se inicia do zero, mas a partir da escrita de muitos outros textos anteriores a ele. A originalidade dessa narrativa está, portanto, não só na presença de referências a outros textos, mas na maneira como essas referências são evidenciadas por meio do repertório artístico de um personagem ficcional e que nos convida, continuamente, a reconhecer tais textos como construtos discursivos.
Genette (2006) apresenta-nos, em Palimpsestos, cinco tipos de transtextualidades, ou seja, de relações que um texto pode estabelecer com outros: intertextual, paratextual, metatextual, hipertextual e arquitextual. Ainda que em A arte de Charlie Chan Hock Chye seja possível encontrar exemplos das cinco relações propostas pelo teórico – como por exemplo, a arquitextualidade da relação taxonômica do título com o próprio conteúdo da narrativa – focaremos em apenas duas delas: a intertextualidade e a paratextualidade.
A intertextualidade é entendida por Genette (2006) como “uma relação de co-presença entre dois ou vários textos” (2006, p. 8), e por Kristeva como quando “o significado poético remete a outros significados discursivos, de modo a serem legíveis no enunciado poético vários outros discursos” (2005, p.185). Ou seja, é a evocação de um outro texto para dentro do próprio texto, seja de maneira verbal, visual ou até sonora. A intertextualidade provoca, em certa medida, uma multiplicidade de vozes dentro da narrativa, podendo ser explorada de diferentes maneiras e linguagens. Genette (2006) detalha as possibilidades da intertextualidade, afirmando que
Sua forma mais explícita e mais literal é a prática tradicional da citação (...); sua forma menos explícita e menos canônica é a do plágio (...), que é um empréstimo não declarado, mas ainda literal; sua forma ainda menos explícita e menos literal é a alusão, isso é, um enunciado cuja compreensão plena supõe a percepção de uma relação entre ele e um outro
(GENETTE, 2006, p. 08).
Percebemos que as características das referências a outros textos versam sobre o quão explícito e literal eles se apresentam no texto, ou seja, o quanto eles são reconhecíveis ao leitor. Isso pode variar, evidentemente, a partir do repertório de cada um, mas a presença explícita ou implícita de outros discursos é o que os diferenciam.
Em A arte de Charlie Chan Hock Chye, encontraremos diferentes formas de intertextualidade, em vários contextos da obra, principalmente pela estrutura da narrativa, que mescla livro de arte com história em quadrinhos biográfica e acervo artístico. A partir de uma narrativa principal (a vida de Charlie Chan, personagem ficcional), a obra se desdobra, mostrando (e não apenas contando), diferentes produções artísticas de Charlie Chan: desenhos da infância, capítulos de gibis na íntegra, diversas tiras publicadas em jornais, autopublicações, esboços, estudos de personagens, pinturas realistas para publicidade, fotos pessoais, entre outros. Acompanhamos assim, em narrativas internas, o amadurecimento do seu traço, as formas como suas referências influenciaram cada etapa do seu trabalho e os estudos de técnicas e estilos – todos esses elementos histórico-gráficos, registros da história de um artista, sendo ficcionais.
Demonstrando essas intertextualidades presentes em A arte de Charlie Chan Hock Chye, em uma das primeiras páginas da narrativa, vemos a seguinte sequência (fig. 05): um quadro sem balão de fala – uma pausa em que o leitor pode ser capturado – um segundo quadro com o texto verbal “no princípio, havia Tezuka”, e o quadro seguinte dizendo “chamavam-no de Deus do Mangá”. A alusão à Bíblia, mais especificamente a João 1:1, “No princípio era a Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”, mostra-nos a relevância que Osamu Tezuka (1928 – 1989) terá para a personagem.
Entendido como Deus do Mangá, Tezuka talvez seja, ainda hoje, o mangaká mais relevante e reconhecido no mundo. Autor de obras como A Princesa e o Cavaleiro, Astro Boy, Kimba, Buda e Recado a Adolf, o artista garantiu seu lugar na história ao definir as principais características do estilo mangá (quadrinhos japoneses), levando essa produção a nível mundial.
A referência de Charlie Chan a Tezuka é constante ao longo da narrativa, mas não se esgota no texto verbal: a estética do artista japonês se reflete na produção do personagem de Singapura, como ao se referir, explicitamente, sobre como A nova ilha do tesouro – obra de Osamu Tezuka – despertou nele a paixão pela linguagem dos quadrinhos: criando a sensação de movimento mesmo com imagens estáticas. Para isso, é reproduzida parte da obra original, mas agora com Charlie Chan vivenciando aquela cena (fig. 06), como se a percepção do movimento o colocasse dentro do quadrinho.
à esquerda, página original de A nova ilha do tesouro (TEZUKA, 1947); à direita, trecho de A arte de Charlie Chan Hock Chye (LIEW, 2018)
Podemos perceber que o universo de Tezuka segue acompanhando, ainda que de forma indireta, ou alusiva, a obra de Charlie Chan; nominadamente, as linhas de movimento características do autor japonês e a inspiração para criação dos primeiros personagens de nosso protagonista: Ah Huat e seu cachorro Yoyo – em diálogo direto com A nova ilha do tesouro (fig. 07). Essa referência à Tezuka, de certa forma, molda todo o estilo e carreira de Charlie Chan Hock Chye. O jogo metaficcional aqui é dado ao descobrirmos que um artista “real” (Osamu Tezuka) influenciou o traço de um ficcional (Charlie Chan) – um emaranhado de fios entre realidade e ficção que dita o tom dessa narrativa.
à esquerda, personagens de A nova ilha do tesouro (TEZUKA, 1947); à direita, personagens de Charlie Chan Hock Chye (LIEW, 2018)
As referências mais explícitas, ou seja, as citações, são sempre indicadas por meio de recursos gráficos como negrito ou itálico, oferecendo, assim, de forma generosa, indicações visuais de ampliação de repertório ao leitor. Nesse sentido, encontramos menções de revistas, como a Beano, da Grã Bretanha, e a Eagle, da Inglaterra; desenhos animados como Popeye e Pato Donald; livros como Ardil-22 e O homem do castelo alto; personagens ficcionais como Dan Dare, Homem-Aranha e Quarteto Fantástico; e artistas como Wally Wood. Essas citações funcionam quase como hiperlinks, transportando o leitor a outros textos, anteriores a eles, trazendo todos para dentro do próprio universo ficcional, enquanto parte de si. Esses links com outras obras e nomes podem funcionar como sugestões aos leitores para que busquem essas referências fora do livro, que se alimentem dessas referências tal qual fez o personagem Charlie Chan.
Diversas outras referências, alusivas, são feitas durante a narrativa. A revista MAD e seus traços cômicos e exagerados; à Maus, de Art Spielgeman, e a estratégia de representar personagens históricos de um país como animais (judeus como ratos, alemães como gatos e poloneses como porcos em Maus, 1980; e singapurenses como gatos, japoneses como cachorros e britânicos como macacos em Força 136, de Charlie Chan em 1956, sugerindo, inclusive, ter sido antecessor do clássico americano); e Carl Barks e sua revolução de estilo dentro dos estúdios Disney, com a criação de Tio Patinhas. Nesses casos, o leitor necessita de um repertório prévio para a identificação – sem que isso seja, no entanto, um impeditivo da leitura para os que não possuem as referências. Como na Fig. 08, a capa do quadrinho de Charlie Chan, Ah Huat e seu Robô Gigante, muito se assemelha com a primeira edição da revista Action Comics, publicada em 1938 pela DC Comics, cuja imagem é icônica, até hoje, por sua relevância histórica para os quadrinhos. A referência, ainda que não seja óbvia, é trazida à tona e torna-se mais factível para o leitor atento, uma vez que o personagem nos conta ter essa familiaridade com a revista, quando diz, no início da narrativa, que nasceu no ano de 1938, ano em que “o superman estreou nos Estados Unidos” (LIEW, 2018, s.p.). Em outras palavras, nesse mundo ficcional de Charlie Chan, o personagem conhece a obra e tem-na como uma referência.
à esquerda, capa da 1ª edição da revista Action Comics (1938); à direita, capa de Ah Huat e seu Robô Gigante (LIEW, 2018)
Outra alusão, um pouco mais explícita, no entanto, é na narrativa interna Dias de Agosto – criada pelo personagem Charlie Chan Hock Chye em 1988 – que dialoga diretamente com Batman: O cavaleiro das trevas (MILLER, 1986). O quadrinho do super-herói, publicado em quatro volumes no ano de 1986 pela DC Comics, nos Estados Unidos, foi um grande marco para a indústria de narrativas gráficas. A publicação foi reconhecida mundialmente, alçando o autor Frank Miller e o próprio personagem Batman para outros patamares – o de narrativas de super-heróis para um público adulto, uma vez que essas histórias eram entendidas somente como entretenimento para crianças.
O cavaleiro das trevas (MILLER, 1986) tornou-se um marco ao trazer densidade e até certa maturidade às temáticas e linguagem dos quadrinhos, dentro de um universo de fantasia e super-heróis. A partir de então, as possibilidades das narrativas gráficas se expandiram para além do público infantil. Essa história acontece dez anos após a aposentadoria de Batman, com um acontecimento que faz o homem-morcego voltar à atividade de herói. No entanto, a presença do personagem cria um sentimento de oposição no mundo: muitos o consideram fora da lei, enquanto tantos outros o admiram. Em Dias de Agosto, de Charlie Chan, somos apresentados a uma entrevista do primeiro-ministro Lim Chin Song, personagem que divide opiniões da população de Singapura e, ao final, uma figura heroica, um homem de branco (contrastando com a silhueta do Batman, toda preta), que descobrirmos ser Lee Kuan Yew, opositor ao governo.
Toda essa narrativa reforça a alusão à narrativa de Miller, que é empregada enquanto referência não apenas no sentido do enredo, mas também visualmente, como podemos ver na Fig. 09. A utilização dos quadros arredondados simulando uma televisão, em que a repórter se comunica com os telespectadores, é um recurso apresentado em O cavaleiro das trevas (MILLER, 2011) e reproduzido em Dias de Agosto. Outras semelhanças são a própria repórter, que parece ter sido adaptada à cultura de Singapura em seus traços; a silhueta da cidade em uma composição que preenche boa parte da página, presente nas duas narrativas; além de todo diálogo e ritmo empregado nos quadros-telas e suas notícias.
à esquerda, página de Batman: o cavaleiro das trevas (MILLER, 2011); à direita, página de A arte de Charlie Chan Hock Chye (LIEW, 2018)
A intertextualidade com a obra de Frank Miller, nesse caso, é amplamente explícita, quase como uma citação. No entanto, em nenhum momento é dito, de forma direta, a fonte consultada, apenas uma indicação de viagem de Charlie Chan aos Estados Unidos, em 1988, ano em que visitou a San Diego Comic Com (evento que acontece anualmente nos Estados Unidos da América), e alguns esboços para Dias de Agosto, no mesmo ano. São pistas ofertadas, dispostas por toda a narrativa, como um quebra-cabeças que faz com que o leitor tenha que juntar as peças, estar atento e ser crítico, para perceber todas as relações e o caráter de constructo assumido por cada um desses textos na composição da obra.
Em outro momento da narrativa, somos apresentados a mais uma criação de Charlie Chan, “o rei dos quadrinhos”, em que o autor-ficcional muda bastante seu estilo, claramente inspirado em Tintim, criado por Hergé. Nesse caso, a disposição dos quadros e estilo de desenho se aproximam muito ao do personagem belga. As outras figuras, que interagem com Charlie Chan (que vira personagem da sua própria ficção, em um myse en abyme que já nos leva a um terceiro nível ficcional), são referências a Tintim, Capitão Haddock e os gêmeos Dupond e Dupont, como podemos ver o comparativo na Fig. 10.
à esquerda, página de Tintim: O tesouro de Rackham, o terrível; à direita, página criada por Charlie Chan Hock Chye (LIEW, 2018)
Essas referências intertextuais não são somente acessórios ou entretenimento para o leitor, pelo contrário, de citações a alusões, a narrativa vai ganhando peso histórico. Ao evocar tantos clássicos da história dos quadrinhos, estamos diante de um texto produzido sem negar todos os outros antes dele – que, pelo contrário, celebra seus antecessores, pois reconhece que sem eles essa obra não existiria. Estamos diante de intertextualidades com obras que mudaram a história dos quadrinhos e subverteram tudo o que era conhecido anteriormente: Tezuka transformou o mangá; Frank Miller, os quadrinhos de super-herói; a Revista Mad e o humor gráfico; Art Spielgman e a relação quadrinhos-literatura; Hergé e narrativas gráficas europeias. O resultado não é outro senão termos diante de nós mais um item para essa lista de obras revolucionárias: A arte de Charlie Chan Hock Chye, de Sonny Liew, transformando nossa percepção dos limites entre realidade e ficção por meio da linguagem dos quadrinhos.
4. As linguagens visuais e materiais de Charlie Chan
A paratextualidade é a segunda relação apresentada por Genette (2006) que iremos abordar na análise de A arte de Charlie Chan Hock Chye. O pesquisador a define como
(...) relação, geralmente menos explícita e mais distante, que, no conjunto formado por uma obra literária, o texto propriamente dito mantém com o que se pode nomear simplesmente seu paratexto: título, subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios, advertências, prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim de texto; epígrafes; ilustrações; errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais acessórios, autógrafos ou alógrafos (...)
(GENETTE, 2006, p. 09).
Devemos refletir, a partir dessa definição, o que Genette (2006) está propondo enquanto texto, uma vez que apresenta elementos enquanto para-textos, ou seja, ao lado do texto. A ideia de que existe um “texto propriamente dito”, resulta em uma noção de que há um texto que não é exatamente texto, apenas “acessório”.
É necessário entender que Genette (2006) fala de um contexto e de uma forma de livro específica, que difere, por exemplo, das histórias em quadrinhos. No entanto, ao nos colocarmos diante desse corpus, é interessante pontuar que, no que se refere a esse tipo de produção, o que o autor define como paratexto passa a ser, igualmente, texto propriamente dito, pois, como descreve Postema:
Os quadrinhos, como uma forma de arte e de narrativa, são um sistema em que o número de elementos ou fragmentos díspares trabalham juntos para criar um todo completo. Os elementos dos quadrinhos são parcialmente pictóricos, parcialmente textuais e, por vezes, um híbrido dos dois
(2021, p. 15).
Em outras palavras, o que é entendido enquanto paratexto em algumas obras, se torna texto em tantas outras, em especial nas histórias em quadrinhos, contribuindo com a sua construção narrativa. E, como veremos em A arte de Charlie Chan Hock Chye (LIEW, 2018), contribuem com a experiência metaficcional da leitura.
A metaficção é, aliás, o fio condutor dessa narrativa, ao nos colocar constantemente em dúvida quanto à relação ficção/realidade, e é gerada também por meio da exploração de diversos elementos da materialidade. O projeto gráfico, brilhantemente desenhado, faz-nos crer que estamos diante da história de um artista que, de fato, existiu, uma vez que acompanhamos mais de 50 anos de sua jornada com detalhes históricos como datas, acontecimentos, fotos, entre outros, e como foi sendo influenciado por questões políticas e sociais de seu entorno. A obra se torna, dessa forma, um acervo completo de um quadrinista ficcional.
O jogo com a materialidade e a utilização de diferentes estilos gráficos, como veremos a seguir, constituem-se também como estratégias metaficcionais. O primeiro elemento que podemos destacar é a jaqueta que envolve a capa dura do livro e antecipa nossa leitura. Esse elemento já apresenta os diferentes estilos de traços que encontraremos no decorrer da história de Charlie Chan; no entanto, o que afirma a metaficcionalidade é, justamente, o que está encoberto pela jaqueta: ao desvelar essa sobrecapa, encontramos uma capa diferente, toda em azul com apenas uma margem preta e um personagem em baixo relevo, como podemos ver na Fig 11. Essa personagem da capa azul, nessa posição e cor, não é um acaso, mas uma reprodução da revista QIANJIN/FORWARD! (“Avançar”), ficcionalmente produzida em 1954 por Charlie Chan e publicada pela também ficcional editora Tiger. Essa foi a primeira publicação em que aparece Ah Huat, o primeiro personagem criado por Charlie Chan, tornando-se uma referência histórica para o personagem. A repetição dessa capa da revista na capa do livro que temos em mãos, reforça, novamente, o jogo metaficcional, em que a ficção se duplica diante de nós. O título da revista, “avançar”, também é um convite ao leitor, depois do (re)conhecimento: “avance na leitura, abra esse livro novamente”. O recurso cria um efeito de termos, em mãos, um livro-arte do próprio quadrinista, onde teremos acesso à sua história e sua obra completa, aproximando o leitor da personagem.
Outra estratégia, no que diz respeito à metaficção é a presença de um entrevistador que dialoga com um Charlie Chan já mais velho, e que será o impulsionador para que possamos conhecer a história do artista. Esse entrevistador – que inferimos tratar-se do próprio autor Sonny Liew ficcionalizado, uma vez que, na própria capa temos a informação que A arte de Charlie Chan Hock Chye é apresentada por Sonny Liew, colocando o autor em um papel de personagem-apresentador – se faz presente na narrativa por meio de recursos gráficos indecifráveis que simulam suas falas e perguntas.
Esse recurso é interessante pois cria uma provocação ao leitor: lemos a resposta de uma pergunta da qual não sabemos o conteúdo, somos instigados a inferir sobre as questões levantadas. Além disso, a “câmera” é colocada na altura do entrevistador (que está “fora de cena”), deixando-nos, enquanto leitores, de frente à personagem – causando a sensação de que Charlie Chan fala diretamente conosco, quebrando a “quarta parede”, recurso esse muito frequente nas narrativas de cunho metaficcional. Mais uma vez temos o efeito de aproximação pessoal do leitor com a obra.
A questão da presença de Sonny Liew se complexifica, ao longo da narrativa, com a aparição de um “narrador-comentarista” visual que faz diversas observações. Uma das formas em que esse personagem aparece é por meio das notas de rodapé (descritas por Genette (2006) enquanto paratextos) em formato de tiras, desautomatizando a forma desse adendo, que é mais comumente encontrado na forma verbal. Esse narrador, que também figura como personagem em pequenas narrativas gráficas baseadas na história de Charlie Chan Hock Chye, se assemelha fisicamente ao autor empírico Sonny Liew pela presença dos óculos, estilo e cor do cabelo, mas em nenhum momento da narrativa nos é “oficialmente” apresentado enquanto tal. Assim, resta-nos, apenas, colecionar pistas e inferir sobre essa presença constante que nos dá detalhes dos acontecimentos, informações extras e reconhece sua função dentro da narrativa. Um exemplo é a Fig. 12 em que, questionado sobre um termo na nota de rodapé, Sonny Liew narrador verbal e visual indica: “tem notas adicionais no fim do livro” (2018, p.195), reconhecendo-se, portanto, como personagem de uma obra ficcional, ao compreender o objeto-livro no qual está inserido.
Observamos como esse narrador também se duplica dentro da narrativa quando, por exemplo, deparamo-nos com a inserção de uma pequena história em quadrinhos intitulada Borracha, cuja autoria é descrita como sendo “por Sonny Liew (baseado em “Talking Hands”, por Chan Hock Chye) (LIEW, 2018, pág. 232). Ou seja, a presença de Sonny Liew ultrapassa a de mero nome do autor na capa do livro, mas se mescla com a narrativa na forma de personagem, narrador e autor ficcionalizado. Assim, essa micro-narrativa gráfica, possui autoria de Sonny Liew, autor empírico, mas tem como inspiração uma história de Charlie Chan, personagem ficcional – criando assim um myse em abyme em que o leitor mergulha cada vez mais profundamente nos níveis ficcionais que se mesclam.
Entre todos os recursos que criam uma experiência metaficcional em A arte de Charlie Chan Hock Chye, o mais presente, sem dúvida, é a exploração de formatos artísticos diversos, deixando a linha entre ficção e realidade muito tênue, a ponto de o leitor questionar esses arquivos. Deparamo-nos, por exemplo, com materiais institucionais e publicitários, reproduções de jornais e até mesmo fotos (Fig. 13), ou seja, elementos que passam credibilidade em todas as circunstâncias, uma vez que são caracterizados pela representação da realidade e não pela ficção. No entanto, nessa obra, todas essas peças são, de fato, ficcionais: são criações do autor para simular um mundo real em que a personagem viveu. Como nos posicionar, portanto, diante dessas peças gráficas realistas, sem nos questionarmos sobre o que é real e o que é ficcional na história de Charlie Chan? Como as reconhecer ou o que questionar a veracidade e no que acreditar? Ou ainda: se a história do personagem é ficcional, mesmo com tantos detalhes, o que mais pode ser ficcional? Até onde essa relação vai? Quais os limites da ficção? Essas perguntas ficam sem resposta objetiva, mas são provocadas por meio da percepção estética e crítica durante a leitura.
Além disso, são apresentadas para o leitor imagens do processo de evolução artística de Charlie Chan: desenhos de sua infância, rascunhos de seus projetos e, até mesmo, retratos de familiares pintados pelo artista (Fig. 13). Estamos diante de um amadurecimento de traços e estilos, uma coleção das experimentações e expressões do quadrinista ao longo de sua vida. Mais uma vez, no entanto, esses são apenas elementos ficcionais: não há, de fato, nenhum processo de desenvolvimento real, uma vez que o artista apresentado, nessa obra, é totalmente ficcional. O leitor, porém, pode se envolver e, acreditando na veracidade que somos ensinados a supor ao vermos essas imagens, concluir, em certa medida, que todos esses documentos fazem parte de uma realidade histórica. O jogo de (con)fundir a realidade e a ficção por meio da simulação de uma vida real – apresentando elementos que “comprovam” a existência e história do artista – se torna um recurso metaficcional bastante intrigante: mantendo a dubiedade e semeando a certeza, nos leitores, de que Charlie Chan é real, a obra só revela no final que o quadrinista nunca existiu e, portanto, todos aqueles documentos históricos são apenas ficção.
Conclusão
A arte de Charlie Chan Hock Chye atinge um nível revolucionário no que tange às narrativas gráficas, uma vez que apresenta um universo notoriamente real de um quadrinista - seus processos, desenvolvimento artístico, esboços, referências e peças de artes visuais -, delineando a crença, em seus leitores, de estarem lendo uma história em quadrinhos biográfica para, em seguida, revelar que aquilo tudo foi “inventado” ou, em outras palavras, elaborado por Sonny Liew – o autor – apenas para a criação dessa obra. Essa revelação, que impacta a lógica da leitura, é a grande inovação que coloca Charlie Chan no mesmo patamar de obras com as quais estabelece relações intertextuais. As imbricações entre a história de Singapura, um quadrinista local – ficcional – e a própria história dos quadrinhos, são projetadas de forma a convencer, até o maior dos estudiosos, da veracidade das informações, as quais fundem e confundem a realidade e a ficção de maneira incontestável, recorrendo, para isso, ao emprego de diferentes estratégias metaficcionais em termos verbal, imagético e gráfico.
Dentre tais estratégias, destaca-se a intertextualidade e a variedade de linguagens presentes nessa obra, que intercalam entrevistas, relatos, flashbacks e as próprias produções do artista, todas de maneira visual – ultrapassando até mesmo os limites do que entendemos como histórias em quadrinhos, uma vez que são mescladas várias mídias em uma grande narrativa-acervo histórica e artística. É também uma grande homenagem às narrativas gráficas, aos artistas que vieram antes e aos que virão depois, colocando no centro da discussão a relevância dessa linguagem literária e suas possibilidades políticas, sociais e históricas.
A obra reverencia não somente a arte dos quadrinhos, mas também os quadrinistas enquanto artistas, pois apresenta ao leitor os bastidores da produção de uma história em quadrinhos: os materiais técnicos, estudos, acessos e dificuldades. Reforça, assim, seu aspecto metaficcional, ao revelar os processos dessas produções durante a própria narrativa. A obra nos faz mergulhar nos meios editoriais, mas sem fazer esquecer “o simples prazer de ler quadrinhos (...) Só a sensação de querer desenhar, de querer contar histórias” (LIEW, 2018, n.p).
Muito mais do que exibição de técnicas narrativas – sejam elas na esfera verbal, gráfica e visual – A arte de Charlie Chan Hock Chye evidencia-nos como a metaficção, ainda que não sendo algo criado na e pela contemporaneidade, estabelece um estrito diálogo com nosso contexto, mostrando-se como uma resposta à natureza fragmentada e complexa de nossa, a multiplicidade de vozes e perspectivas, as relações entre realidade e representação, além das questões de autoria e leitura.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Abr 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
07 Nov 2023 -
Aceito
23 Fev 2024