Open-access Diálogos em tempos difíceis

A verdade não nasce nem se encontra na cabeça de um único homem; ela nasce entre os homens, que juntos a procuram no processo de sua comunicação dialógica.

Mikhail Bakhtin

No difícil momento que estamos vivendo, quando violência e incompreensão dominam a vasta região que nos deu Mikhail Bakhtin, Valentin N. Volóchinov e Pavel N. Medviédev, consideramos oportuno evocar as palavras de Boris Schnaiderman, ucraniano naturalizado brasileiro, no Colóquio Internacional Cem Anos de Bakhtin, realizado no Centro Universitário Maria Antonia/ USP, nos dias 16, 17 e 18 de novembro 1995. Na palestra de abertura, intitulada Bakhtin 40 graus (Uma experiência brasileira), Schnaiderman nos contava de seus primeiros contatos com a obra bakhtiniana e destacava aspectos que a colocavam em franca contraposição ao contexto de “brutalidade e violência” vivido pelos membros do Círculo:

(...) estávamos predispostos a receber a lição de Bakhtin sobre a importância da multiplicidade de vozes em nosso mundo – uma lição essencialmente de afirmação democrática e antiautoritária, partida de alguém que era vítima direta da violência stalinista (Boris Schnaiderman, 2013, p.17).

O trecho evoca conceitos essenciais do pensamento bakhtiniano sobre a “multiplicidade de vozes em nosso mundo”: aquele diálogo de vozes que nasce do diálogo social das ‘línguas’ (cf. Bakhtin, 2015, p.58) e constituem o “simpósio universal” (BAKHTIN, 2006, p.348). Quatro anos depois, Ken Hirschkop publica Mikhail Bakhtin. An Aesthetic for Democracy (1999), obra em que também reflete sobre essa lição bakhtiniana de afirmação democrática e antiautoritária. Em suas palavras:

Bakhtin não escreve sobre língua e cultura sub specie aeternitatis mas sobre língua e cultura que decididamente romperam com as formas tradicionais: uma língua vernacular, na qual todos têm o direito de falar, na qual nenhum falante detém a autoridade absoluta, e onde os sujeitos deveriam aderir a um código moral conjuntamente elaborado (p.VIII)1.

A lembrança dessas palavras parece-nos extremamente importante neste momento, em que observamos em todo canto o autoritarismo, a violência, a opressão, o racismo, a guerra... tudo que sufoca a diversidade e as possibilidades criativas na comunicação humana. Lembram-nos ainda a importante concepção do Círculo de que a “interação discursiva é a realidade fundamental da língua”, isto é, o diálogo, que “responde, refuta ou confirma algo, antecipa as respostas e críticas possíveis, busca apoio...” (VOLÓCHINOV, 2017, p.219). Diálogo na acepção bakhtiniana ampla, mas também como antídoto a opressão e violência. Essas questões, sem dúvida, motivam os estudos do discurso nas diferentes esferas da atividade humana.

Na mesma palestra, Boris Schnaiderman lembrava um passado recente (1964) vivenciado por ele no Brasil: “Víamos, na prática, sem saber ainda, a demonstração mais palpável da razão que tinha o teórico [Bakhtin], ao afirmar que a língua autoritária reduz tudo a uma única voz, sufocando a variedade e riqueza que existe na comunicação humana” (2013, p.14). E este trecho vai introduzir a apresentação dos excelentes artigos deste número, pois tendo como pano de fundo este difícil período evocado por Schnaiderman, Santiago Bretanha (UFPel) produz o primeiro artigo “Entre a testemunha e a palavra, o dever falar: o testemunho como objeto de uma Antropologia da Enunciação”, em que analisa o livro Retrato calado, de Luís Roberto Salinas Fortes. O livro objeto de análise está entre aqueles motivados pela ditadura militar no Brasil (1964-1985):

(...) uma grande quantidade de obras empenhadas em instaurar, avivar, corporificar as sombras e sobras tecidas por memórias dilaceradas, agarradas a letras e traços que se fazem presentes enquanto vozes/signos/discursos vivos, testemunhas de um momento que, ao se re-apresentar, instaura dor física, moral, existencial. E, por isso, convoca novos interlocutores ativos, novas leituras, novas interpretações (BRAIT, 2016, p.2).

Novas leituras, novas interpretações: se no texto de Brait sobre Retrato calado a fundamentação teórica da análise é o pensamento do Círculo, no impactante artigo de Bretanha, o autor nos apresenta uma análise baseada em fundamentação teórica (inovadora), pautada em Valdir N. Flores, e designada Antropologia da Enunciação. Ela estabelece uma interligação com os estudos do filósofo Giorgio Agamben, que também se baseia em Benveniste e, com isso, inova a discussão sobre a enunciação e sobre a subjetividade na língua. Nas palavras de Bretanha, “o gesto analítico levado a efeito assume a linguística como um conhecimento sobre o homem em sua propriedade loquens, especificamente no instante em que se singulariza no/pelo discurso”. Como se pode perceber, são diferentes vozes teóricas que nos permitem compreender aspectos essenciais do sujeito que “fala” na e com a sociedade. A originalidade da reflexão constitui uma grande contribuição para o campo de conhecimento, interligando linguística, filosofia e literatura de testemunho.

O segundo texto do número “Reconhecendo a índole dialógica da paisagem: por uma semiótica marxista”, assinado por Ítalo César de Moura Soeiro, Ana Rita Sá Carneiro, Siane Gois Cavalcanti, todos da UFPE, também apresenta uma proposta inovadora, desta vez na leitura da paisagem a partir da obra de Mikhail Bakhtin e o Círculo. Aliando autores da Arquitetura e das Letras, o texto trabalha na fronteira entre a filosofia bakhtiniana e os estudos culturais da paisagem, buscando defender a “índole dialógica da paisagem”. Para isso faz uso competente de conceitos bakhtinianos como cronotopo e gêneros do discurso, de modo a chegar à profundeza dos sentidos da paisagem, sem descartar sua materialidade, a história, a geografia e sua dialogicidade.

Os próximos quatro artigos atestam a maturidade da recepção da obra de Bakhtin e do Círculo no Brasil, pois todos procuram tanto o aprofundamento dos conceitos quanto a compreensão de sua especificidade em paralelo com outras correntes filosóficas e literárias. O primeiro deles “Contexto como espaço de criação e cocriação: um olhar sobre obras de Bakhtin e o Círculo”, de Paulo Rogério Stella (UFAL) e Beth Brait (PUC-SP/USP), faz um levantamento rigoroso dos sentidos de “contexto” em obras de Bakhtin, Volóchinov e Medviédev, sistematizando-os. Considerando contexto como espaço de criação e cocriação na produção de sentidos, identificado como comunicação discursiva, sígnica, cultural ou artística, os autores realizam um cotejo das diferentes obras bakhtinianas em diferentes traduções, e chegam a uma tipificação de quatro tipos de contexto na obra do Círculo. Também um estudo inovador: um tipo de ensaio sumamente importante para aqueles que buscam se aprofundar na compreensão do pensamento bakhtiniano.

Da mesma forma metódica e rigorosa, Maria Elizabeth Queijo (PUC-SP), no texto “Corpus e objeto em perspectiva dialógica: uma análise em obras de M. Bakhtin” efetua uma ampla pesquisa nas obras bakhtinianas Problemas da poética de Dostoiévski (1963) e A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1965). Seu objetivo é compreender e discutir as fronteiras entre corpus e objeto nessas obras do filósofo russo. A comparação das diferentes traduções e a pesquisa em um conjunto de textos envolvendo o original russo, textos-moldura e outros enunciados relacionados, muitos deles documentos russos pouco divulgados no meio acadêmico nacional, dá profundidade ao artigo. Desse modo, se, de início, corpus e objeto nos parecem amalgamados na obra de Mikhail Bakhtin, no decorrer da leitura do artigo eles vão gradualmente se destacando.

Miriam Puzzo (UNITAU) assina “A estilística de Spitzer e a estilística bakhtiniana na interpretação da obra de Rabelais”. Na realidade, o artigo é a continuidade de um trabalho que a autora vem desenvolvendo há um bom tempo, visando à compreensão da estilística em Bakhtin; neste artigo, busca a sua especificidade relativamente à estilística de Spitzer, tomando como base a análise que ambos fizeram da obra de François Rabelais. O texto se detém em aspectos contrastantes na interpretação da obra rabelaisiana, propiciando ao leitor a possibilidade de perceber particularidades no enfoque de cada um dos autores.

O próximo artigo, também com viés comparativo, é do campo da filosofia da linguagem. Trata-se de “A natureza intersubjetiva do significado em Bakhtin e Wittgenstein”, assinado por Mateus Toledo Gonçalves (UFPR). O texto interroga os dois filósofos a respeito do modo como veem a natureza intersubjetiva do significado linguístico, a partir do argumento wittgensteiniano contra a linguagem privada e da tese bakhtiniana da orientação dialógica do discurso. De maneira simples, mas profunda, o texto estabelece o diálogo entre os autores, destacando as diferenças no modo como encaram a questão, e mostrando que, enquanto Bakhtin enfatiza as relações de tensão entre os enunciados, o inevitável imbricamento do meu discurso em discursos outros, Wittgenstein investiga uma outra instância de interconexão entre social e língua.

No último dos artigos, “Entre a invisibilidade, o ‘branqueamento discursivo’ e a hipersexualização: imagens de controle sobre o termo negro e o seu lugar na enunciação”, Narjara Oliveira Reis (UFSC) investiga processos de atribuição de sentidos ao termo negro, mostrando como seus sentidos se encontram em plena disputa no contexto sócio-histórico atual. A partir de um recorte de sua tese de doutorado, a autora analisa enunciações de duas aprendizes venezuelanas de língua portuguesa de um curso para mães imigrantes realizado no sul do Brasil; e interpreta os dados do processo de tradução cultural do termo negro, a partir do conceito de “imagem de controle”.

O número contém ainda um obituário e uma resenha. O obituário “Linguista, teórico da literatura, poeta e enxadrista. Em memória do professor Nikolai Vassíliev” nos vem da Rússia e é uma homenagem a Nikolai Vassiliev (1955-2021), pesquisador russo conhecido dos brasileiros que estiveram na XI International Bakhtin Conference, a primeira a ter lugar no hemisfério sul, em Curitiba/PR, em 2003, e no Colóquio Internacional 90 anos de Problemas da obra de Dostoiévski, na Universidade de São Paulo, em 2019. É redigida por Svetlana A. Dubrovskaya, da Universidade Nacional de Pesquisa de Mordóvia, Oleg E. Osovsky e Vladimir I. Laptun, da Universidade Estatal Pedagógica da Mordóvid M. E. Evcevieva, todos pesquisadores de Saránsk, cidade onde Mikhail Bakhtin lecionou por vários anos. Os autores tiveram uma longa convivência com Vassíliev e isso lhes dá a oportunidade de desenhar o perfil deste importante intelectual russo, com profícua produção de textos relativos à problemática dos estudos bakhtinianos, especialmente em relação aos textos disputados. A resenha, escrita por Carlos Gontijo Rosa (PUC-SP), nos apresenta a obra Bakhtin e as artes do corpo, coletânea de artigos organizada por Beth Brait e Jean Carlos Gonçalves, publicada em 2021 pela Editora HUCITEC, São Paulo. O autor faz uma pertinente leitura dos artigos, questionando de modo crítico e competente a viabilidade da aproximação entre Bakhtin e as artes do corpo, e possibilitando ao leitor ter uma visão abrangente do livro.

Enfim, se o homem “se põe todo na palavra, e esta palavra entra no tecido dialógico da existência humana” (BAKHTIN, 2006, p.348), estes textos constituem-se em mais um modo de inserção da universidade e das ciências da linguagem na comunicação dialógica. Por meio deles, Bakhtiniana se insere no simpósio universal da comunicação humana, visando à compreensão do outro, o respeito e a paz, e cumprindo a importante missão de difundir os estudos do discurso, sob a perspectiva bakhtiniana ou não. Por isso, convidamos todos – leitores, autores e colaboradores - a responder ativamente a esses textos, saboreando e incluindo em suas pesquisas esse conjunto. Como podem ver os leitores, trata-se de um número que congrega catorze pesquisadores brasileiros de sete diferentes universidades nacionais (UFPel, UFPE, UFAL, PUC-SP, UNITAU, UFPR, UFSC) e três pesquisadores de duas universidades russas (Universidade Nacional de Pesquisa da Mordóvia e Universidade Estatal Pedagógica da Mordóvia M. E. Evcevieva).

Agradecemos, mais uma vez, o inestimável e constante apoio, auxílio e reconhecimento do CNPq, por meio da Chamada CNPq Nº 15/2021 – Programa Editorial, Proc. 402109/2021-0, e da PUC-SP, por meio do Plano de Incentivo a Pesquisa (PIPEq)/Edital 11913/2022 Publicação de Periódicos (PubPer-PUCSP), Solicitação 22883.

  • 1
    No original: “Bakhtin does not write about language and culture sub specie aeternitas but language and culture which have decisevely broken with traditional forms: a vernacular language, in which all have a right to speak, in which no speaker holds absolute authority, and where subjects should adhere to a moral code they elaborate together”.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. Reformulação do livro sobre Dostoiévski. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.337-358.
  • BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 4. ed. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Forense, 2008, p.125.
  • BRAIT, B. Vozes as dobras da autoria. Revista da Abralin, Vol.15, n.2, 2016, p.1-15. https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/56035/38170 Acesso em 17-03-2022.
    » https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/56035/38170
  • HIRSCHKOP, K. Mikhail Bakhtin: An aesthetic for democracy. Oxford: Oxford University Press, 1999.
  • SCHNAIDERMAN, B. Bakhtin 40 graus (Uma experiência brasileira com a sua obra). In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. 2. ed. 4ª. reimpressão. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2013, p.13-21.
  • VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico nas ciências da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022
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