RESUMO
Exercício de análise do discurso da dança de espetáculo através do conceito bakhtiniano de cronotopo. A partir do gênero do balé clássico, estabelece-se o teatro como cronotopo constitutivo que concretiza espaço-temporalmente seus valores sócioestéticos. A análise de transgressões cronotópicas permite identificar o surgimento do balé moderno com base em duas coreografias do artista russo Vaslav Nijinski.
PALAVRAS-CHAVE: Cronotopo; Gênero discursivo; Valores; Coreografia; Teatro
ABSTRACT
The exercise of analysis of performance dance discourse is carried out grounded in Bakhtin’s concept of chronotope. On the basis of the classical ballet genre, theater is established as a constitutive chronotope that materializes its social-aesthetic values spatial-temporally. The analysis of chronotopic transgressions allows identifying the emergence of modern ballet based on two choreographies by Russian artist Vaslav Nijinski.
KEYWORDS: Chronotope; Discourse genre; Values; Choreography; Theater
Introdução
O presente artigo pretende dar continuidade a um estudo anteriormente publicado no qual o discurso da dança foi analisado com ajuda do conceito de gênero discursivo, segundo Bakhtin e o Círculo. Será aqui perseguida a mesma abordagem metodológica, qual seja a de recortar, no discurso multisemiótico da dança, apenas a dimensão coreográfica. No estudo precedente, foi possível fixar enunciados típicos de diferentes gêneros, como o balé clássico romântico e o hip-hop, e assim identificar os valores socioestéticos afirmados em cada discurso (AMORIM, 2020).
Dessa abordagem, resulta uma análise parcial que não pretende dar conta da dança em sua condição de fato estético global1, totalidade tecida por várias linguagens. Escolhe-se designá-la exercício de análise, uma vez que se pretende que ela permita, ao mesmo tempo, aprofundar o entendimento da produção de sentido em um dado corpus e exercitar o uso concreto de um ou mais conceitos das teorias adotadas, de modo a confrontar seus limites e possibilidades. Desse modo, o exercício deverá produzir contribuições para o campo teórico, seja ao precisar e aprofundar os conceitos em questão, seja ao ampliar seu campo de validade.
Tomar o discurso da dança como objeto implica aceitar o seu caráter verbovisual. Embora permeado de componentes verbais, como os títulos das criações, por exemplo, que participam ativamente da totalidade produtora de sentido, a predominância de sua componente visual é incontestável. Sobre essa materialidade, Grillo (2012, p.241) precisa que “[...] a linguagem visual funda-se sobre uma matriz indicial que comporta uma relação icônica ou de semelhança com os referentes do mundo”.
Entretanto, afora a pantomima dos primeiros balés clássicos, à medida que avançamos na história da dança, mais se complexifica a dimensão de iconicidade do discurso visual. De fato, sem a inscrição em um universo de valores próprios de cada gênero, mais difícil se tornam ler e analisar a discursividade da dança em sua coreografia. A essa forma de relação de sentido com a qual o discurso visual da dança opera, escolhe-se denominar iconicidade complexa. Assim, no estudo precedente, ao identificar as formas recorrentes em diferentes gêneros do discurso da dança foi possível demonstrar que os enunciados de cada um desses gêneros afirmam e encarnam valores sociais e estéticos específicos que informam e conformam a iconicidade dos gestos coreográficos.
1 O conceito de cronotopo
A iconicidade complexa do discurso coreográfico demanda que se convoque mais um conceito bakhtiniano para a leitura, a saber, o conceito de cronotopo, uma vez que o próprio Bakhtin já nos indica sua importância ao falar de cronotopo do gênero quando da formulação primeira do conceito.
Para Bakhtin, esse termo, emprestado à ciência biológica e à física, designa determinadas condições de indissociabilidade entre tempo e espaço no seio de uma narrativa. Nas análises literárias que desenvolve, o espaço é marcado por índices temporais do mesmo modo que o tempo somente se encarna naquele espaço. De acordo com o gênero discursivo em questão, um espaço-tempo lhe é peculiar. Por exemplo, no romance Madame Bovary de Flaubert, Bakhtin nos mostra a forma do tempo ao lhe conferir uma densidade material:
Essa cidadezinha é o lugar do tempo cíclico dos costumes. (...) Aqui, o tempo carece do curso progressivo da história, move-se por círculos estreitos: o círculo do dia, o círculo da semana, do mês, o círculo de toda a vida. Um dia nunca é um dia, um ano não é um ano, uma vida não é uma vida. Dia após dia repetem-se as mesmas ações cotidianas, os mesmos temas de conversa, as mesmas palavras, etc. (...) É o tempo cíclico, ordinário e cotidiano dos costumes. (...) Aqui o tempo é desprovido de acontecimentos e parece quase parado. Não ocorrem nem “encontros” nem “partidas”. É um tempo denso, viscoso, que se arrasta no espaço (BAKHTIN, 2018, p.223-224).
Bakhtin (2018), ao final de seu trabalho de análise dos diferentes cronotopos na história do gênero discursivo do romance, nos diz: “A arte e a literatura estão impregnadas de valores cronotópicos de diferentes graus e dimensões” (p.217; grifos no original).
O cronotopo em Bakhtin remete igualmente à realidade empírica, extra discursiva. “O cronotopo determina a unidade artística de uma obra literária em sua relação com a autêntica realidade” (BAKHTIN, 2018, p.217).
Entretanto,
Como dissemos, entre o mundo real que representa e o mundo representado na obra passa uma fronteira nítida e intransponível. Isso nunca se pode esquecer e - como tem sido feito e por vezes ainda se faz hoje - nem se pode confundir o mundo representado com o mundo que representa (realismo ingênuo) (...). Todas as confusões desse gênero são totalmente inadmissíveis em termos metodológicos (BAKHTIN, 2018, p.230-231).
O que não justifica a ideia de ausência de relação entre um e outro:
A obra e o mundo nela representado entram no mundo real e o enriquecem, e o mundo real entra na obra e no mundo representado tanto no processo de sua criação como no processo de sua vida subsequente, numa renovação permanente pela recepção criadora dos ouvintes-leitores (BAKHTIN, 2018, p.231).
Vemos aí que Bakhtin refere o cronotopo também ao contexto espácio-temporal do leitor e do autor enquanto unidades empíricas a inscrevê-las sempre em uma discursividade:
Como se nos apresentam os cronotopos do autor e do ouvinte-leitor? Antes de tudo, eles nos são dados na existência material externa da obra e em sua composição puramente externa. Mas o material da obra não é morto, mas falante, significante (ou sígnico), não só o vemos e tateamos como sempre ouvimos vozes nele (ainda que numa leitura silenciosa e de si para si) (BAKHTIN, 2018, p.229).
Se insistimos nas citações e nas nuances que traz cada uma delas, é porque consideramos, como Holquist (2015, p.34), que “o cronotopo permanece como um nó górdio2 de ambiguidades” em suas inúmeras interpretações e utilizações. Holquist refere-se às duas partes que compõem o texto “Formas do tempo e do cronotopo”: a primeira parte, redigida de 1934 a 1937, e as “Observações Finais”, redigida em 1973. A primeira se concebe na fase da preocupação de Bakhtin com a teoria do romance. Por exemplo, ele analisa ali o modo pelo qual a visão do tempo de Goethe estrutura sua narrativa. Na segunda, ele retoma seus interesses metafísicos da juventude e seu diálogo com Kant. Holquist explica que Bakhtin adota a ideia kantiana de um sujeito dividido e da não coincidência entre a consciência e o conhecimento e a realidade do mundo. Essa concepção rompe com a ideia cartesiana de transparência do sujeito para si próprio. Mas Bakhtin diverge quanto ao estatuto das categorias de espaço e tempo, que em Kant são a priori e transcendentais, enquanto que, para Bakhtin, elas se integram na concretude empírica e histórica.
Holquist trata então da complexidade do texto de Bakhtin e conclui dizendo que a maturidade no tratamento do conceito de cronotopo, isto é, a reflexão desenvolvida e redigida poucos anos antes de sua morte em 1975, delineia os limites da análise, inscrevendo-a no âmbito discursivo. Para tanto, retoma a comparação com Kant.
Outra enorme diferença entre Kant e Bakhtin (...) é que Kant conhecidamente nunca levanta a questão do papel da linguagem na negociação da aparência. Para Bakhtin o caso é justamente o oposto: ele está focado na linguagem na mesma intensidade que Kant a desconsidera. (...) se tempo e espaço se abrigam “naturalmente” na lógica e na ciência, os cronotopos têm seu habitat natural - e único -na linguagem. Em nosso uso cotidiano dos cronotopos, a abstração tempo-espaço é domesticada quando a dispomos no discurso (HOLQUIST, 2015, p.50).
De nossa parte, concordamos com Holquist e podemos concluir primeiramente com uma citação do próprio Bakhtin, onde a unidade espaço-tempo do cronotopo é tratada enquanto expressão e, portanto, dotada de forma sígnica:
Ademais, assimilamos de certo modo qualquer fenômeno, ou seja, incluímo-lo não só no campo da existência espaçotemporal, mas também no campo semântico. Essa assimilação compreende também um elemento de valoração. Mas as questões relativas à forma de ser desse campo e ao caráter e à forma das valorações assimilativas são questões puramente filosóficas (mas não metafísicas, é lógico) que não vamos discutir aqui. O que nos importa, pois, é o seguinte: sejam quais forem esses sentidos, para que integrem a nossa experiência (e, além disso, a experiência social), eles devem ganhar alguma expressão espaçotemporal, ou seja, uma forma sígnica que possamos ouvir e ver (um hieróglifo, uma fórmula matemática, uma expressão linguísticoverbal, um desenho, etc.) (BAKHTIN, 2018, p.235-236; grifo no original).
Em segundo lugar, do ponto de vista metodológico, parece-nos que o próprio Bakhtin nos fornece “as fronteiras da análise cronotópica” e os limites da pesquisa com esse conceito, quando define o objeto das ciências humanas como sendo o discurso. Assim, já que não somos historiadores, nem geógrafos, nem filósofos, nem arquitetos ou engenheiros, “nosso” cronotopo deve estar sempre circunscrito ao âmbito da linguagem.
2 Os pontos de partida
Partimos da afirmação de que é possível transpor categorias e conceitos bakhtinianos elaborados no âmbito da linguagem verbal e da arte literária para materialidades verbo-visuais ou visuais. Assim, enfrentamos o desafio de considerar que, de uma maneira geral, é possível tomar a coreografia da dança de espetáculo como um discurso e que, portanto, a ele podem ser aplicados de modo pertinente os conceitos de gênero discursivo e de cronotopo.
Em relação a este último, que é o objeto do presente trabalho, cabe uma ressalva. Não trataremos do cronotopo das histórias representadas nos diferentes balés. A morte do cisne, O entardecer de um fauno e A sagração da primavera serão aqui abordados em suas coreografias do ponto de vista do gênero e não da especificidade de cada história narrada. Até porque, a mesma história, com a mesma música, pode ser representada em coreografias diferentes a inscrevê-las em outros gêneros discursivos cujos valores socioestéticos mudam radicalmente. Ora, sabemos que, na perspectiva bakhtiniana, uma vez alterados os valores, o objeto estético não é mais o mesmo. Foi o caso do primeiro deles, A morte do cisne na versão para street dance criada pelo coreógrafo e dançarino John Lennon da Silva3. O mesmo ocorreu com A sagração da primavera, que foi representada por diferentes coreógrafos do gênero designado como dança contemporânea. O caso mais notório de transformação radical é a coreografia da alemã Pina Bausch para a companhia Tanztheater Wuppertal.
Ao levar em conta o fato de que a História do balé e da dança evolui através da hibridização e da invenção de gêneros, uma tarefa se impôs em nosso trabalho precedente: identificar enunciados coreográficos típicos. Tais enunciados genéricos aparecem como recorrentes em diferentes coreografias e constituíram o objeto de nosso interesse na medida em que afirmam os mesmos valores socioestéticos. Ao prosseguir nessa linha metodológica, trabalharemos aqui o conceito de cronotopo na sua relação íntima com os valores do gênero ao concretizá-los na dimensão espácio-temporal.
Nosso corpus é composto de três fragmentos discursivos, todos extraídos de vídeos disponíveis no youtube. A análise trata do diálogo tenso entre eles e o gênero convencionalmente chamado de balé clássico. Por isso, precisamos partir deste último e retomar algumas de suas especificidades de modo a poder analisar os demais.
O gênero balé clássico encontra seu apogeu e concretiza seus valores em enunciados típicos e no cronotopo do teatro, tal como construído em vários países ocidentais no século XIX e primeira metade do século XX. Concretamente iremos nos referir aos seguintes teatros: Mariinsky de São Petersburgo, na Rússia, e os parisienses Châtelet, Opéra Garnier e Teatro des Champs Elysées, construídos nessa sequência cronológica. Os dados retirados da Wikipédia francesa encontram-se no Anexo.
Teatro Opéra Garnier (1875): estilo “eclético” e “historicista”. Alexander Hoernigk, 06 de abril de 20106.
Embora se trate de diferentes locais, de diferentes datas e de diferentes arquiteturas, nossa primeira hipótese de análise é que, no que diz respeito ao gênero discursivo do balé clássico-romântico e os valores afirmados em seus enunciados típicos, estamos diante do mesmo cronotopo. Vejamos suas características.
A sala de espetáculos dos quatro teatros apresenta a disposição conhecida como “teatro italiano” que consiste numa grande sala em forma de U e uma cena ampla e elevada, permitindo ao público grande visibilidade. A fronteira absoluta entre palco e plateia é assim concretamente estabelecida.
Outro elemento dessa concretização é a espessa cortina, geralmente de veludo, que fecha o palco e impede, inclusive do ponto de vista sonoro10, que o público tenha acesso ao que se passa com os artistas fora do espetáculo.
As particularidades desse espaço somente ganham funcionalidade se intrinsecamente relacionadas às particularidades do tempo: há um momento previsto para iniciar e acabar o espetáculo; há um momento certo para o público entrar e deixar a sala; há um momento previsto para o público se manifestar e aplaudir (ou não, ou vaiar etc). Coordenado a esses momentos, o espaço da cena se mostra ou se esconde, se fecha ou se abre. Vemos assim que esse cronotopo delineia outro importante componente do gênero segundo Bakhtin: a relação com o ouvinte-espectador. Ela é aqui inteiramente regulada, uma vez que o frequentador habitual conhece e adere a suas regras.
Um elemento cronotópico importante é a iluminação da sala, que instaura o tempo-espaço do espetáculo: quando as luzes se apagam, a cena se revela e o espetáculo começa; ao se reacenderem, o espetáculo termina ou há um intervalo na discursividade do espetáculo. Devemos tratar também do espaço-tempo dos aplausos12, que pode, de certa maneira, ser considerado como um pequeno cronotopo que se relaciona com o cronotopo geral já descrito. Nele, as luzes já estão acesas, mas artistas e público permanecem presentes. Embora separados espacialmente, eles dialogam diretamente: os aplausos e as saudações de “bravo!” são respondidas pelos movimentos corporais codificados do agradecimento e, eventualmente, algumas expressões contidas de sorriso ou de emoção da parte dos artistas. O ir e o voltar à cena não significam aqui o desaparecimento e a aparição, mas sim uma resposta à plateia que permanece aplaudindo. Mas o timing desse diálogo também é convencional e integrado por todos: mesmo nos aplausos fervorosos e prolongados, é preciso terminar; após uma série de aplausos/agradecimentos, os artistas não voltam à cena e o público deixa o teatro.
A partida de um espectador durante o espetáculo não abre muita margem à interpretação e podemos dizer que ela está igualmente codificada. A menos que se produza algum problema, por exemplo, um caso de mal-estar súbito do espectador, a partida será interpretada como um desagrado do espetáculo. Logicamente, se isso ocorre com vários espectadores, a primeira hipótese será excluída e a manifestação de desagrado por parte de alguns influenciará de um modo ou de outro a resposta de todos os espectadores, podendo estimular aqueles que hesitavam a igualmente deixar o teatro.
O que o cronotopo do teatro13 aqui tipificado permite dizer? Que valores socioestéticos do discurso do gênero balé clássico-romântico nele se concretizam? Para responder, tomemos como exemplo um balé exemplar do gênero, o célebre A morte do cisne, criado no Teatro Mariinsky em São Petersburgo, na Rússia, centro de excelência dos profissionais russos da arte do balé - dançarinos, músicos, coreógrafos, figurinistas etc. O coreógrafo em questão, Mikhaïl Fokine, é considerado o grande mestre da passagem para o romantismo, valorizando, além da técnica, a expressividade dramática.
Em nosso estudo precedente, vimos que toda coreografia do balé clássico afirma como valor a ideia de elevação. Sua verticalidade dirigida às alturas indica uma ruptura com o mundo cotidiano. Oferece imagens de uma idealidade onde a leveza de um corpo quase diáfano o libera do peso e do desalinho de nossos gestos habituais. Converge para isso o uso de sapatilhas de ponta que alongam o corpo e o posicionam num patamar mais alto. Pernas e braços, pés e mãos dirigem-se às alturas. Do mesmo modo, a leveza dos tecidos, como o tule dos tutus. A hierarquização entre os dois mundos é clara visto que a elegância das formas e a delicadeza das cores apontam para uma humanidade sublimada e depurada.
O corpo apresenta medidas inteiramente proporcionais e harmônicas. Nada destoa ou fica fora do lugar e a linha predomina sobre o volume. Conjuga-se ao corpo um figurino que enfatiza o caráter longilíneo e esguio. No caso específico do balé A morte do cisne, o caráter dramático da proximidade com a morte se expressa e se intensifica pela tensão entre o alto e o baixo, o voo e a imobilidade da morte.
O dispositivo do palco instaura um jogo de presença/ausência, visibilidade/invisibilidade, com ajuda dos efeitos de luz e de cenografia, e pela alternância de entradas e saídas do palco. O escuro, em que o artista penetra ao desaparecer para o público e de onde surge sem ser visto, engendra uma teatralidade da aparição e do mistério em que, mais uma vez, o valor de ruptura com o mundo cotidiano é consagrado.
O palco é imenso em todas as dimensões: tanto na largura e na altura quanto na profundidade, o que acentua o caráter de magia de todos os dispositivos técnicos – cenários, figurinos, iluminação etc. As grandes cortinas de veludo, matéria nobre e imponente, intensificam a teatralidade ao mesmo tempo em que isolam e protegem o artista. A relação entre os interlocutores, artista e plateia, é assim delimitada, contribuindo para tematizar a separação entre o ordinário e o extraordinário.
O acesso ao mundo da arte enquanto esfera de elevação começa com a entrada do teatro e continua pelos corredores, escadarias, salões etc. luxuosamente decorados. A escadaria monumental interna conduz o público aos seus lugares hierarquicamente dispostos em função do poder aquisitivo e da classe. Hierarquia invertida em que o nível mais alto (balcão simples) corresponde ao menor poder aquisitivo e o mais baixo (plateia), ao maior.
A fachada dos prédios já é, ela própria, indicadora de que se adentra um mundo especial que nada tem em comum com a realidade cotidiana e banal. No Teatro Opéra Garnier de Paris, as escadarias externas e internas acentuam esse mesmo sentido de ascensão. Todos esses espaços de percurso ganham significado na temporalidade que os atravessa: o tempo do antes, da espera e da expectativa que avança até o grande momento em que as luzes se apagarão e a o espetáculo terá início.
Consideramos o cronotopo do teatro constitutivo do gênero discursivo balé clássico. O autor o integra em seu processo de criação da coreografia, do mesmo modo que o bailarino em sua interpretação. O mesmo se pode dizer do espectador: seu olhar é informado e enformado pelas características desse contínuo espaço-temporal. Sobre a condição cronotópica do autor e do ouvinte enquanto “homens reais”, na expressão de Bakhtin (2018), este nos diz:
(...) se encontram num mundo histórico real uno e inacabado, que está separado do mundo representado no texto por uma nítida fronteira principial. Por isso podemos chamar esse mundo de mundo criador do texto: ora, todos os seus elementos – a realidade refletida no texto, os autores que o criam, os interpretadores do texto (se eles existem) e, por último, os ouvintes-leitores que o recriam e nessa recriação o renovam – participam igualmente da criação do mundo representado. É dos cronotopos reais desse mundo que representa que se originam os cronotopos refletidos e criados do mundo representado na obra (no texto) (p.230; grifos no original).
Embora referida ao romance e eventualmente ao texto ou poema dramático, a citação parece valer para o balé e para a dança enquanto espetáculos teatrais.
3 A modernidade
O nascimento do chamado balé moderno16 tal como encenado nesses mesmos grandes teatros resulta de um verdadeiro acontecimento de sentido. Na sua origem, temos um artista considerado até hoje e desde sempre como genial: Nijinski17. Dançarino que se tornara célebre em seu tempo, não apenas na Rússia, mas igualmente na Europa ocidental, era aclamado por conjugar virilidade e graciosidade e, também, pela capacidade técnica e atlética de realizar saltos de altura inigualável que atravessavam toda a extensão do palco. Ainda como dançarino, ele vai revelar seu caráter rebelde ao resolver se libertar das expectativas de seu público. Em documentos da época como em seu diário, critica as coreografias que se tornaram inteiramente previsíveis, ao oferecer as proezas de seus saltos como num espetáculo de circo ou o sentimentalismo de afetação melosa. Decide então criar suas próprias coreografias18.
Seu desejo e sua coragem têm o apoio do igualmente ousado empresário russo Serge Diaghilev. Fundador da companhia chamada Os Balés Russos, realiza com ela turnês na Europa ocidental a apresentar os melhores bailarinos do Teatro Mariinsky. Ambos decidem pela criação de um balé baseado na composição de Debussy, ela própria baseada no poema homônimo de Mallarmé, O entardecer de um fauno (L’aprèsmidi d’un faune). Juntos, visitam museus, principalmente o Louvre de Paris, onde observam minuciosamente os vasos e outros objetos da Antiguidade de modo a identificar elementos dessa estética, à qual pertencem os mitos e a personagem do Fauno.
O próprio poema de Mallarmé parte do poeta Ovídio (43 AC) e das lendas em que o fauno e a ninfa se enamoram sem poderem consumar seu idílio. Tanto no poema quanto no balé, sugere-se que tudo pode não passar de um sonho do fauno, ou de sua embriaguez, ou ainda de sua música produtora de magia. O Sátiro é uma encarnação dionisíaca, deus da dança e da embriaguez. No balé, ele aparece a consumir cachos de uva e a tocar sua flauta.
O fauno ou sátiro é um composto de homem e animal, com a parte inferior do corpo semelhante a um bode. Na coreografia registrada pela escrita de Nijinski, o pas de deux coloca a animalidade na relação com a ninfa e revela extrema sensualidade. Ao final, a ninfa se vai e deixa sua echarpe. O fauno se vê sozinho e excita-se com a echarpe da ninfa; deita-se sobre ela numa clara evocação do ato sexual e o balé termina com o fauno atingindo o clímax do gozo.
Apesar do caráter explícito, a estética do balé do Fauno não almeja uma representação realista. Para coreografar a lenda do Fauno e sua ninfa, Nijinski reproduziu a postura dos corpos tal como aparecem nos vasos egípcios: rosto, braços e mãos de perfil com o tronco do corpo em posição frontal. Em vez dos gestos longilíneos e contínuos do balé clássico, aqui a animalidade é acentuada pelo aspecto pesado da parte inferior do fauno e pelos gestos oblíquos e entrecortados. A cena, por sua vez, foi idealizada com o cenógrafo e figurinista Léon Bakst20, de modo a diminuir a profundidade e criar um aspecto de superfície como a pintura nos objetos da arte antiga. Os dançarinos ocupam praticamente o mesmo plano, sem efeitos de perspectiva e sem os efeitos de verticalidade ascendente.
O que Nijinski nos mostra é uma verdadeira e concreta reflexão estética: a arte remetendo à arte. Em vez de repetir e consagrar os valores da estética tradicional do balé, interroga a própria noção de estética tornando-a plural.
Temos aqui um exemplo altamente significativo do princípio de alteridade que opera no interior da forma estética: a arte fala (ou briga) com a arte. Isso quer dizer que se trata de uma arte puramente abstrata ou, como se diz, de “arte pela arte”? De modo algum. Estamos diante de uma forma tensa que atesta um embate de valores socioestéticos. Em seu texto de filosofia estética, “O problema do conteúdo, do material e da forma”, ao criticar o que chama de ‘estética material’, Bakhtin (2002) diz:
A forma, compreendida como forma do material somente na sua definição científica, matemática ou linguística, transforma-se de um certo modo na sua ordenação exterior, isenta de momento axiológico. O que permanece totalmente incompreensível é a tensão emocional e volitiva da forma, a sua capacidade inerente de exprimir uma relação axiológica qualquer, do autor e do espectador (...) (p.19).
O mesmo valor de abertura e pluralidade da discursividade de O entardecer de um fauno será confirmado na coreografia do ano seguinte, o balé A sagração da primavera, cuja música foi encomendada a Stravinsky21. Agora, o tema é o mito pagão russo que fala do ciclo de renovação da terra e da vida pelas estações do ano, pela alternância entre velhice e juventude, entre nascimento e morte. Para os leitores bakhtinianos, esse tema remete imediatamente à estética popular do carnaval e, aqui, de fato, os valores dessa estética aparecem na recriação de danças e ritos da Rússia popular e profunda. Porém, não se encontram o riso e a irreverência da temática bakhtiniana. Embora de origem popular e camponesa, estamos diante de um rito religioso: escolhe-se a mais bela moça do vilarejo para ser sacrificada em oferenda aos deuses através de sua morte.
Se compararmos a morte da moça em Nijinski com a morte do cisne em Fokine, veremos o choque entre as duas estéticas23. No Cisne, nem no momento final da morte, há descontinuidade do gesto ou da linha: até a morte é harmoniosa e sublimada. Já em Nijinski, a agonia e o pânico que antecedem o momento final são feitos de gestos e movimentos disparatados, dissimétricos, como se o corpo da moça se desarticulasse. A repetição obsessiva e extenuante, os socos no chão, as pernas que tremem, os braços que balançam freneticamente, os passos largos e desajeitados como se uma das pernas não mais funcionasse, tudo parece convergir para sublinhar o caráter violento da cena. Uma vez que evoca um corpo em perda de controle, nada aqui pode se assemelhar ao caráter melancólico, delicado e harmonioso da agonia do cisne.
Por outro lado, um detalhe interessante aparece como uma espécie de assinatura de Nijinski. Vimos que o balé do Fauno termina com o espasmo do gozo e, no balé da Sagração, a última cena, marcada por um acorde musical potente, é o espasmo da morte: o braço da moça sacrificada cai bruscamente e as luzes se apagam. O corpo dessa estética é um corpo de espasmos, um corpo vivo que pulsa. Embora nada tenha de realista, o discurso da dança aqui não visa à sublimação pelo etéreo. A coreografia de Nijinski rompe inteiramente com os valores do balé clássico romântico de seu tempo.
Uma das marcas notáveis dessa outra estética na Sagração da primavera é a posição dos pés, que não somente não realizam as proezas de uma sapatilha de ponta, como ainda devem se movimentar, ou melhor, dançar, virados para dentro. Quanto aos saltos, eles reaparecem, mas, aqui, não promovem os grandes deslocamentos através do palco e se fixam compulsivamente no mesmo lugar. Nenhuma suavidade ou graciosidade, e sim, movimentos vigorosos e repetitivos a evocar a violência da irrupção da vida e a do rito de morte. Ao invés da verticalidade ascendente, é a terra que é valorizada: muitos movimentos acontecem no plano baixo e os dançarinos batem no chão com as mãos ou com os pés, acompanhados pela música intensamente ritmada.
Ao invés dos movimentos longilíneos ascendentes, temos linhas cortadas na altura do pulso e mãos que apontam espalmadas para baixo ou para cima. Temos pulsos cerrados apontados para o alto em cenas coletivas que evocam um gesto de luta. Aparecem também movimentos de dissimetria acentuada, com membros superiores e inferiores que se dirigem de modo desordenado. Corpos em estado de loucura ou, se quisermos nos ater à temática literal do balé, corpos possuídos pelas forças operantes no ritual pagão. A marcação enfática do ritmo com os pés, marchando ou saltando, produz uma sonoridade que, ao contrário do balé clássico, não esconde o peso e a força dos corpos. Essas escolhas valoradas pelo artista criador apontam para uma estética comumente chamada de primitivista.
A primeira coreografia de Nijinski estreou com o corpo de balé russo e o próprio Nijinski no papel do Fauno. Foi em 1912 no Teatro Châtelet de Paris, o mesmo onde a companhia de Diaghilev já havia apresentado as criações russas de balé clássico. A segunda coreografia, A sagração da primavera, estreou também em Paris, com a mesma companhia russa, no Teatro dos Champs Elysées em 1913. A estreia do balé em maio, após os concertos musicais de março, marcava a inauguração do teatro recémconstruído. Como vimos anteriormente, embora localizado em espaços distintos e tendo sido construído em data e arquitetura distintas, é possível analisar sua cronotopicidade como sendo a mesma dos outros teatros na relação que se estabelece com o discurso do gênero do balé clássico. O Teatro des Champs Elysées apresenta uma arquitetura inovadora de estilo marcadamente art déco, mas isso não muda a cronotopicidade que permite concretizar os valores próprios do gênero até então consagrado.
Se for válida essa hipótese analítica, precisamos agora tentar compreender o efeito provocado pelos dois balés, o do Fauno e o da Sagração. O primeiro provocou muitas reações negativas tanto do público quanto da crítica dos jornais da época. Mas o segundo provocou um verdadeiro escândalo.
Vimos que o corpo coreografado de O entardecer de um fauno dialoga com outras artes e materiais que trataram do mesmo objeto anteriormente. Note-se que o título do balé tem como subtítulo a menção Poema coreográfico24. O objeto discursivo fauno fala através de muitas vozes – das representações nos vasos da antiguidade, do mito, do poema, da composição musical etc. Temos pelo menos cinco referências de artistas que dele trataram no século XIX e início do século XX: Mallarmé, Manet, Gauguin, Débussy e Nijinski. Mas tudo isso parece ter ficado de fora na interpretação de grande parte do público.
Do ponto de vista dialógico, podemos ainda dizer que os dois balés, o Fauno e a Sagração respondem à estética do balé clássico, ao polemizar com ela, ao colocá-la em questão. Sem as referências do balé clássico, a ruptura que operam não poderia ser compreendida. Se assim é, o acontecimento de sentido pode ser entendido como uma transgressão cronotópica.
Entendemos assim que, sem o cronotopo do teatro, seria difícil entender o escândalo de Nijinski. Em sua celebração da natureza, Isadora Duncan dançava quase nua em salões privados e isso não produziu o mesmo acontecimento de sentido. A transgressão do Fauno e da Sagração refere-se aos valores supostamente partilhados com os espectadores que ali se encontram. Nijinski frustra seus admiradores ao negar o valor atribuído ao virtuosismo espetacular. Em vez disso, no balé do Fauno, propõe gestos e movimentos de extrema lentidão que servem à ideia de uma cena sonhada, de um devaneio numa tarde quente. A redução da profundidade e da perspectiva do palco evoca mais a estética de pinturas planas do que a teatralidade grandiosa. No balé da Sagração, a violência rítmica, os corpos dissimétricos, os gestos vigorosos e a força de atração do solo de onde parecem se engendrar os movimentos, tudo isso apaga qualquer imagem de leveza, suavidade ou pureza de um mundo idealizado das alturas. Na ocasião do espetáculo, romperam-se também as regras de interação entre os interlocutores. Embora se tratando de um dispositivo teatral onde a relação palco-plateia deveria obedecer às regras do gênero clássico de espetáculo, as vaias e os assobios impediram os dançarinos de ouvir a música e Diaghilev, responsável pelo espetáculo, foi obrigado a acender as luzes da plateia inúmeras vezes.
A transgressão aqui identificada demanda que tratemos da problemática do ouvinte ou destinatário, conforme elaborada pelo Círculo Bakhtiniano. Diz-nos Volóchinov (2019):
(...) toda a estrutura formal depende, em grau significativo, da relação entre o enunciado e o caráter compartilhado e subentendido das avaliações daquele ambiente social para o qual a palavra foi pensada. A entonação criativamente produtiva, segura e rica é possível apenas com base em um “coro de apoio” pressuposto (p.124).
Podemos conceber como destinatário pressuposto nos dois balés de Nijinski um espectador de classe social alta, habitué dos grandes teatros e iniciado nas referências do balé ou, se preferirmos, uma memória discursiva, onde as várias referências estéticas que atravessam os corpos poderiam ser mobilizadas para a produção de sentido. O discurso coreográfico dirige-se igualmente à vanguarda intelectual e artística da época, uma vez que tanto a poesia de Mallarmé quanto a música de Debussy e de Stravinsky já haviam sido, no final do século precedente, identificados e adotados como precursores da modernidade. Do ponto de vista de uma cronotopia ampliada25, estamos em Paris, no teatro que inaugura o estilo art déco e os ventos da modernidade sopram cada vez mais fortes nessa década inicial do século XX. Prova disso é o fato de que, no mesmo ano de 1913, o retrato de Isadora Duncan havia sido gravado em alto relevo no mesmo Teatro des Champs Elysées.
Teríamos aí o “coro de apoio” que parece ter participado de modo interno e inerente à forma criada. Alguns intelectuais da época, como Jean Cocteau, valorizaram muito a criação de Nijinski. Alguns colocaram em relação os movimentos do balé do Fauno com a pintura cubista. Mas foram poucos. Mesmo Stravinsky e Debussy expressaram incompreensão a respeito das coreografias criadas por Nijinski para suas composições.
O endereçamento enquanto relação de alteridade é um dos eixos da concepção de linguagem de Bakhtin e o Círculo. O outro a quem se responde e que se convoca participa intrinsecamente da construção discursiva e sua produção de sentido. No caso em análise, a distinção entre destinatário suposto e destinatário real revela-se de maneira contundente. Grande parte do público que real e efetivamente assistiu aos dois balés reprovou o trabalho de Nijinski e não se constituiu como “coro de apoio”.
Observamos que em sua reflexão sobre a relação do artista criador com seu ouvinte, Volóchinov não deixa muito espaço para se pensar a transgressão criadora. Embora admita a possibilidade de desacordo e de um tom de irritação no enunciado, não chega a formular a possibilidade de uma riqueza própria à transgressão, bem ao contrário:
Já quando esse apoio não existe, a voz perde a força, sua riqueza entonacional é reduzida, como acontece quando uma pessoa, ao rir, de repente percebe que está rindo sozinha: o seu riso cessa ou se altera, torna-se histérico, perde a segurança e a clareza, e a pessoa se torna incapaz de produzir palavras engraçadas e alegres (VOLÓCHINOV, 2019, p.124).
Parece-nos que, no caso da arte, é impossível entender a criação transgressora e adiante de seu tempo sem o conceito de supradestinatário. Volóchinov (2019, p.125) chega a esboçar elementos para esse conceito quando fala do “terceiro participante”. Mas é em Bakhtin que o conceito é claramente definido.
O autor nunca pode deixar que ele mesmo nem o conjunto de sua obra discursiva fiquem inteiramente à mercê plena e definitiva dos destinatários presentes ou próximos (porque até os descendentes mais próximos podem equivocar-se), e sempre pressupõe (com maior ou menos consciência) alguma instância superior de compreensão responsiva que possa se deslocar em diferentes sentidos (BAKHTIN, 2016, p.104-105).
Podemos dizer que o supradestinatário liberta a obra dos limites interpretativos de seu contexto, de seu horizonte avaliativo, de seus “coros de apoio”. Destina a obra para além de seu tempo, como bem sintetiza Bezerra (2016, p.163): “É nesse grande tempo que o supradestinatário a reinterpreta à luz de novas conquistas (...)”.
A respeito do “escândalo Nijinski”, concluímos então que o discurso coreográfico instaurou valores que transgrediram aqueles encarnados no cronotopo do teatro. Dessa maneira, ultrapassou a unidade espaço-tempo em que se engendrava, dançou para o grande tempo e endereçou sua arte ao horizonte nascente da modernidade. Cronotopicidade futura? Uma coisa é certa: com Nijinski, o horizonte de valores do cronotopo do teatro foi alargado de modo a se abrir para novos valores da discursividade da dança. Hoje, nos Teatro des Champs Elysées e no Teatro Châtelet apresentam-se espetáculos de dança contemporânea, alguns extremamente radicais em sua discursividade, como do brasileiro Grupo Corpo ou da já citada Pina Bausch.
Conclusões
Queremos concluir com o problema da transgressão, uma vez que este foi o principal elemento revelado por nossa análise. Tratamos de um exemplo histórico de transgressão cronotópica produzida por um discurso coreográfico radicalmente inovador, prenunciador do novo gênero que posteriormente seria conhecido como Balé Moderno. Gostaríamos de finalizar com um exemplo do processo inverso, isto é, de transgressão do sentido de um discurso coreográfico clássico, produzida pela mudança de cronotopo.
Vejamos o contexto. Estamos em janeiro de 2020, na França das imensas manifestações populares contra as reformas ultraliberais do governo Macron, em especial contra a reforma do sistema de aposentadoria. Praticamente todas as categorias profissionais assalariadas estão nas ruas e a greve dos transportes paralisa o país durante mais de um mês. Considerando-se que a vida nas grandes cidades francesas depende inteiramente dos transportes coletivos, um grande transtorno se instala no cotidiano dos trabalhadores não assalariados que não estão em greve. Para irem ao trabalho, precisam pedir carona, ir de bicicleta, patins ou a pé, o que, evidentemente, dobra ou triplica o tempo gasto para tanto. Apesar do transtorno, 65% da população apoia os grevistas. Além das passeatas, várias manifestações pontuais foram produzidas. Caminhoneiros fecharam estradas, portuários fecharam portos, eletricitários cortaram pontos de energia por algumas horas, advogados lançaram suas togas pretas ao chão na escadaria do Palácio da Justiça, e... bailarinos do corpo de balé do Opéra Garnier dançaram do lado de fora do tradicional teatro.
Podemos aqui identificar o cronotopo da praça ou da rua, central na obra bakhtiniana sobre Rabelais e a cultura popular. Estamos em lugar aberto, a distância entre palco e plateia se relativiza e o tempo escapa à regulação codificada dos espetáculos no interior do teatro. A orquestra, também presente, traz a música do Lago dos Cisnes, composta por Tchaikovsky para o balé do mesmo nome27 e que é o mais conhecido balé do gênero clássico. Ao mesmo tempo, a rua traz suas sonoridades que escapam a qualquer controle e incidem na escansão da escuta ao alterar as medidas do tempo musical: buzinas, sirenes, vozes.
A iluminação é a do dia, comum a todos, artistas e público, e não produz efeito de magia ou mistério. No cinza frio de Paris, a cena é clara, transparente. Os valores do cronotopo popular se impõem ao discurso do balé inserindo-o no discurso coletivo. Nas imponentes arcadas do teatro, as faixas de protesto penduradas ocupam a posição de novo componente verbal do discurso, substituindo os programas distribuídos antes dos espetáculos: “Ópera em greve”, “A cultura em perigo”. A fachada, a entrada, as arcadas, a escadaria são as mesmas, mas ganham uma nova dimensão cronotópica. As arcadas imponentes com seu material nobre de pedra são barradas em sua verticalidade por faixas horizontais em que o material, a disposição e o conteúdo dos dizeres exibem uma origem popular com valor de luta.
Vemos aqui a dimensão política do cronotopo, uma vez que polis é o espaço do viver junto e que o modo como se distribuem lugares e posições em seu interior configura um regime político de partilha da sensibilidade artística. Nesse “balé protesto” parisiense, há uma reconfiguração do espaço-tempo do teatro e é a tensão entre os valores dos dois cronotopos que produz intensidade e densidade de sentido. Podemos aqui identificar a relação do cronotopo com a realidade empírica tal como indica Bakhtin.
A relação de alteridade está no cerne da produção de sentido da discursividade: é porque aquele lugar remete a uma arte das alturas que o baixo da rua pode ganhar voz. É na medida em que a entrada do Opéra Garnier significa convencionalmente um índice dos valores da arte da elevação que se pode contrapor a diferença com o cronotopo da rua e os valores dos movimentos sociais de protesto. Ao se manter a coreografia, a música e o figurino do gênero clássico, a voz da arte tradicional se une à voz das manifestações populares e o corpo da dança integra o corpo coletivo. Aqui, o artista serve e adere à causa política. Mas é justamente a presença da forma clássica e tradicional, tanto do corpo quanto do teatro, que confere força ao discurso, trazendo o diálogo efetivo entre o popular e o erudito pela articulação entre o ético e o estético.
Devemos concluir que toda transgressão é criadora? Não. Será necessário levar em conta se ela apenas desfaz o que estava estabelecido ou se permite afirmar novos valores. Em caso afirmativo, que discursividade ela supõe? De todo modo, em face de valores, a discussão irá sempre ultrapassar a questão metodológica para exigir do pesquisador um pensamento não-indiferente face aos novos valores afirmados. A título de ilustração, a foto abaixo da fachada do Teatro Opéra Garnier data da ocupação nazista de Paris. Escolhemos utilizá-la para finalizar o presente texto com uma ilustração forte da problemática aqui tratada, a fim de provocar no leitor a formulação de novas questões.
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PareceresTendo em vista o compromisso assumido por Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.
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Declaração de disponibilidade de conteúdo
Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.
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Como exemplo de abordagem que contempla as múltiplas linguagens articuladas no discurso da dança, ver o excelente artigo de Irene Machado indicado na bibliografia.
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Nó que é impossível desatar.
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Analisado em nosso artigo precedente.
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Todos os links das fotos a seguir referem-se às licenças de uso de imagem. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Spb_06-2012_MariinskyTheatre.jpg
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Do ponto de vista da física acústica, o veludo é um tecido que favorece o isolamento sonoro.
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Uma variante do aplauso é a codificação dos balés clássicos que são compostos de quadros (ballet à tableaux): as cenas são criadas de modo que haja um solo, um duo, um trio etc. de caráter virtuosístico cujo final é marcado por uma pausa na música e na dança. A cena parada sinaliza para o público o momento de aplaudir o bailarino, mesmo com as luzes apagadas. Terminado o aplauso, a dança e o enredo retomam. Ver, por exemplo, o renomado balé O corsário, de Marius Petipa (1818-1910).
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A expressão “cronotopo do teatro” será utilizada ao longo do texto sempre se referindo apenas aos grandes teatros nacionais ocidentais construídos até o início do século XX.
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Importante distinguir o balé moderno da chamada dança contemporânea, que se inicia nos anos sessenta e vigora até hoje. A coreógrafa mais emblemática do gênero é a alemã Pina Bausch.
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Vaslav Nijinski, bailarino e coreógrafo russo de origem ucraniana (1889-1950).
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Outros artistas contribuíram para o surgimento da dança moderna. É o caso notadamente da americana Isadora Duncan (1877-1927), que se apresenta na Europa, com muito sucesso, já em 1902. Suas apresentações, porém, aconteciam em espaços privados e não eram institucionalizadas e enquadradas por companhias ou teatros estatais.
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Léon Bakst, pintor, decorador e figurinista russo (1866-1924).
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Igor Stravinsky, compositor russo (1882-1971).
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Entretanto, Fokine e Nijinski eram contemporâneos e ambos integravam o Mariinsky e a companhia de Diaghiliev. Isso prova que, do ponto de vista histórico, o moderno e o clássico não são valores que se separam de modo estanque, seja cronológica, seja institucionalmente.
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O título completo figurava no programa e no cartaz: L’après-midi d’un faune. Poème chorégraphique.
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Uma questão metodológica se coloca: para tratar dessa cronotopia ampla, seria necessário recortar a discursividade que nela se engendra para se proceder à análise. Por exemplo, poder-se-ia pesquisar os jornais da época e os artigos de crítica literária e das demais artes, o que aqui não foi empreendido.
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Criado no Balé do Teatro Bolchoï de Moscou, em 1877, por diferentes coreógrafos.
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Declaração de disponibilidade de conteúdoOs conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.
REFERÊNCIAS
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» http://dx.doi.org/10.1590/2176-457342617» https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/42617 - BAKHTIN, M. Teoria do romance II As formas do tempo e do cronotopo. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2018.
- BAKHTIN, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al São Paulo: Hucitec, 2002. p.13-70.
- BAKHTIN, M. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica. In: BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016. p.71-107.
- BEZERRA, P. Posfácio. No limiar de várias ciências. In: BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso São Paulo: Editora 34, 2016. p.151-172.
- BRAIT, B; GONÇALVES, J. (org.). Bakhtin e as artes do corpo São Paulo: Hucitec, 2021.
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GRILLO, S. V. C. Fundamentos bakhtinianos para a análise de enunciados verbovisuais. Revista de Filologia e Linguística Portuguesa, Universidade de São Paulo, v. 14, n. 2, p.235-246, 2012. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/flp/article/%20view/59912 Acesso em: 09 jan. 2023.
» https://www.revistas.usp.br/flp/article/%20view/59912 - HOLQUIST, M. A fuga do cronotopo. Tradução de Ivan Marcos Ribeiro e Luciana Moura Colucci de Camargo, In: BEMONG, N., BORGHART, P.; DOBBELEER, M. de; DEMOEN, K.; TEMMERMAN, K. de; KEUNEN, B. (org.). Bakhtin e o cronotopo Reflexões aplicações perspectivas. São Paulo: Parábola Editorial, 2015. p.34-51.
- MACHADO, I. Corpo grotesco bem temperado: ressonâncias em ritmo de Bach, In: BRAIT, B.; GONÇALVES, J. (org.). Bakhtin e as artes do corpo São Paulo: Hucitec, 2021. p.121-146.
- VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e na poesia Ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019.
Parecer I
Sobre o autor do parecerSCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGSParecer I
El título se adecua al desarrollo del trabajo el cual consiste en analizar las coreografías propuestas por Nijinski como transgresoras del cronotopo del teatro clásico. Remite a la clasificación genérica de ballet clásico propuesta en un trabajo anterior y a la noción de cronotopo como matriz cronotopizada de un conjunto de valores sociales y estéticos, los cuales ilustra de modo conveniente. Analiza con cuidado la puesta escénica de dos obras de ballet La siesta del fauno y La consagración de la primavera para mostrar qué aspectos de la concepción clásica del cuerpo en movimiento son transformados y cuestionados, promoviendo la hipótesis del cambio cultural hacia la modernidad en la transgresión provocativa del bailarín ruso en las corporalidades y en otros lenguajes coreográficos. Se ocupa también de señalar las respuestas negativas del público a esta nueva interpretación del sentido en la performance de la fábula. Es evidente que se conoce y cita de modo conveniente y actualizada la teoría bajtiniana acerca del concepto teórico del cronotopo tanto en el mundo creado cuanto en la imagen creadora y receptora, en esa difícil frontera ente la realidad del autor y del público y su representación textualizada, lo cual se complejiza mucho en el texto teatral, cuestión que a mi juicio debería al menos apuntarse como conflictiva entre la conciencia creadora y ell mundo creado y entre el receptor potencial y el real. Finalmente destaco la adecuación del paper al formato y lenguaje de un trabajo científico claro en su desarrollo y riguroso en muchos de sus términos. Mi evaluación es positiva al entenderlo como intención lograda de trasladar una categoría teórica un tanto ambigua a otros discursos artísticos que son pensados dentro de una evolución diacrónica, como hace Bajtín con la novela. A manera de sugerencia propongo que no solo se presente la producción de Nijinski por referencia a la socioestética anterior sino que se la dote de una nueva denominación que atienda a sus características intrínsecas y sincrónicas, para evaluar como dice Bajtín, el modo de “asimilar” o sea de componer artísticamente su cronotopo histórico real y dar testimonio de ese tiempo espacio en el espectáculo propiamente dicho. APROVADO COM SUGESTÕES
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Parecer II
Sobre o autor do parecerSCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGSParecer II
O artigo apresenta uma importante e atualizada discussão sobre as artes da cena (dança e teatro) apoiada teórica e metodologicamente nos estudos de Bakhtin e o Círculo. A linguagem apresentada é científica e aborda análises e resultados que em muito contribuirão para as áreas do conhecimento com as quais o texto dialoga. O título e o resumo são adequados e se relacionam totalmente com o conteúdo do trabalho. A publicação do artigo em Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso certamente reverberará possibilidades de leitura não estigmatizadas sobre o balé clássico, já que o caminho escolhido pelo autor é provocativo no sentido de mobilizar sentidos, e não de afirmá-los ou categorizá-los, simplesmente. A densidade e o rigor dedicados ao trabalho não só justificam, como incentivam a sua aprovação para publicação. Identifiquei que na última referência bibliográfica Volóchinov está escrito com “s” e não com “c” como na obra referenciada. APROVADO
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Review I
Sobre o autor do parecerSCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGSReview I
The title is appropriate to the development of the article, which focuses on analyzing the choreographies created by Nijinski as transgressors of the chronotope of classical theater. It refers to the generic classification of classical ballet proposed in a previous study and to the notion of chronotope as a “chronotopized” matrix of a set of social and aesthetic values, which the author conveniently illustrates. He/She carefully analyzes the staging of two ballets, namely, The Afternoon of a Faun and The Rite of Spring, to show which aspects of the classical understanding of the body in motion are transformed and questioned. He/She thus proposes the hypothesis of a cultural change towards modernity through the Russian dancer’s provocative transgression of corporalities and other choreographic languages. The study is also concerned about pointing out the public’s negative responses to this new interpretation of meaning in the performance of the fable. It is evident that the Bakhtinian theory about the theoretical concept of chronotope is known and quoted in a convenient and updated way in relation to the created world and to the creative and receiving image on that difficult border between the reality of the author and the audience and its textualized representation. This becomes very complex in the theatrical text. In my opinion it should at least be pointed out as a conflictual issue between the creative consciousness and the created world and between the potential and the real receiver. Finally, I highlight the adequacy of the paper to the format and language of a scientific work in its development and rigor in many of its facets. My evaluation is positive as I understand it as a successful intent to transfer a somewhat ambiguous theoretical category to other artistic discourses that are thought within a diachronic development, as Bakhtin does with the novel. As a suggestion, I propose that Nijinski’s production not only be presented as a reference to previous social aesthetics, but that it be given a new name that takes into account its intrinsic and synchronous characteristics in order to evaluate, as Bakhtin puts it, the form of “assimilation,” that is, to artistically compose Nijinski’s real historical chronotope and bear witness to that space-time in the very performances. ACCEPTED WITH RECOMMENDATIONS
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Review II
Sobre o autor do parecerSCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGSReview II
The article presents an important and up-to-date discussion on the performing arts (dance and theater) theoretically and methodologically grounded in the studies of the Bakhtin Circle. The language presented is scientific and its analyses and results will greatly contribute to the areas of knowledge with which the text dialogues. The title and abstract are adequate and fully relate to the content of the work. The publication of the article in Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso will certainly offer possibilities of non-stigmatized readings on classical ballet, once the path chosen by the author is provocative in the sense that he/she mobilizes meanings and not simply affirms or categorizes them. The density and rigor dedicated to the work not only justify, but also encourage its approval for publication. I noticed, on the list of bibliographical references, that Voloshinov is spelled with an ‘s’ and not with a ‘c,’ as it is found in the referenced work. ACCEPTED FOR PUBLICATION
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Disponibilidade de dados
Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Mar 2023 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2023
Histórico
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Recebido
08 Out 2022 -
Aceito
18 Jan 2023