RESUMO
O presente artigo busca, a partir de uma crescente produção de obras em que as narrativas literárias operam as linguagens verbais e visuais em diálogo, aproximar dois formatos amplamente encontrados em livrarias, bibliotecas e na mão de leitores: as histórias em quadrinhos e os livros ilustrados. Pensaremos em suas similaridades e diferenças, buscando compreender como as obras literárias multimodais transitam entre os recursos desses formatos sem perder a qualidade estética e a continuidade, ou seja, evidenciando a fluidez entre eles. Para isso, iremos analisar o que dizem as referências teóricas (McCloud, 2005; Nikolajeva e Scott, 2011; Linden, 2011) e o que é possível constatar em duas narrativas que fogem dos parâmetros tradicionais desses formatos: Na cozinha noturna (2014), de Maurice Sendak, e Are We There Yet? (2016), de Dan Santat. Refletiremos, assim, sobre esse esfacelamento de fronteiras que revela uma necessidade de compreensão mais ampla do literário.
PALAVRAS-CHAVE: História em quadrinhos; Livro ilustrado; Linguagens literárias; Multimodalidade; Projeto gráfico
ABSTRACT
This article seeks, from a growing production of works in which literary narratives operate as verbal and visual languages in dialogue, to approach the formats widely found in bookstores, libraries, and in the hands of readers: comics and picturebooks. Thinking about the similarities and differences between them, we can understand how multimodal literature transits between the resources of these formats, without losing aesthetic quality and continuity, that is, highlighting the fluidity between them. To this end, we analyzed theoretical references (McCloud, 2005; Nikolajeva and Scott, 2011; Linden, 2011) and observed two narratives that do not reflect the traditional parameters of these formats: In the Night Kitchen (1970), by Maurice Sendak and Are We There Yet? (2016) by Dan Santat. We reflect, therefore, on this confrontation of borders that reveals a need for a broader understanding of literature.
KEYWORDS: Comic book; Picturebook; Literary languages; Multimodality; Graphic project
Sinal, a letra permite fixar as palavras; linha, ela permite figurar a coisa. Assim, o caligrama pretende apagar ludicamente as mais velhas oposições de nossa civilização alfabética: mostrar e nomear; figurar e dizer; reproduzir e articular; imitar e significar; olhar e ler.
Michel Foucault
Introdução
Dentro do universo dos livros preferencialmente endereçados para crianças e jovens, é comum a multiplicidade de linguagens na criação de obras literárias do gênero narrativo. É necessário, portanto, que tenhamos um olhar crítico para todos os signos presentes, em especial àqueles que promovem experiências poéticas. As narrativas gráficas - compostas por diferentes linguagens que expressam sentido por meio de seus valores e aspectos visuais - possuem espaço fixo nas livrarias, bibliotecas e casas de leitores de todas as idades, seja por meio dos livros ilustrados, livros-imagens, histórias em quadrinhos ou outros formatos em que opera o hibridismo de textos verbais e visuais. Entendemos, neste artigo, a palavra texto no sentido de têxtil, ou seja, “no sentido de um tecido formado por muitos fios entrelaçados” (Eagleton, 2020, p. 112), ou, em outras palavras, como linguagem que pode ser expressa como “todos os modos de comunicação, em sons, imagens e palavras” (Hunt, 2010, p. 37). A partir disso, entendemos que a produção literária narrativa pode ser uma arte composta por uma multiplicidade de linguagens, como um tecido de poéticas que produzem, em conjunto, um único texto, formado por seus entrelaçamentos.
Partindo desse recorte, em que o objeto literário é um texto multimodal (Gibbons, 2015), nossa proposta é investigar dois dos formatos que privilegiam fortemente a relação entre palavras e imagens: as histórias em quadrinhos e os livros ilustrados. Em princípio, empregaremos o termo formato para descrever essas produções, partindo da ideia de que o texto literário, nesses casos, se apresenta de uma forma específica, com características que o colocam na categoria de histórias em quadrinhos ou de livros ilustrados. No entanto, essa questão será retomada após nos debruçarmos, em estudos teóricos, à análise de obras, buscando compreender se, de fato, o que estamos observando são formatos - que podem ser de diferentes gêneros e/ou subgêneros literários -, sendo que, neste artigo, iremos trazer somente o gênero narrativo. A apresentação, portanto, desses dois formatos específicos se dá por uma proposta de aproximação entre eles - visto que ambos possuem afinidades e pontos tangenciais, tanto na teoria quanto nas produções literárias.
A aproximação dos formatos se dá, inicialmente, pela presença do elemento pictórico em sequência (seja a unidade um quadro ou uma página), estabelecendo relações indissociáveis e complexas com o texto verbal para compor as narrativas em ambos. As definições teóricas e as referências históricas de produções que marcam o início do desenvolvimento das histórias em quadrinhos e dos livros ilustrados também se misturam, como iremos demonstrar mais adiante. No entanto, apesar de muitas semelhanças, não podemos declarar que ambos são iguais, principalmente se nos debruçarmos nas questões culturais e evidenciarmos o público que se estabeleceu como leitor desses dois formatos. Nossa hipótese, portanto, é a de que exista um grande espectro de possibilidades artísticas entre as histórias em quadrinhos e os livros ilustrados tradicionais, que operam no hibridismo desses dois formatos e resultam em obras de difícil classificação.
Ao nos debruçarmos sobre esses dois formatos, notamos um território fértil para experimentações narrativas que combinam palavras e imagens, em um complexo sistema literário. Faz-se necessária, ao nos depararmos com essas obras, uma leitura das relações entre linguagens - que são trazidas ao leitor por meio de um projeto gráfico que igualmente contribui com a construção narrativa -, além da assimilação dos não-ditos e espaços vazios em que o leitor é convocado à percepção dos limiares.
Nosso objetivo, neste artigo, é refletir sobre os formatos das histórias em quadrinhos e dos livros ilustrados em obras literárias, e evidenciar de que forma a natureza de ambos os aproxima - a ponto de, facilmente, vermos elementos tradicionais de um dos formatos em produções nomeadas como outro - e como a expressão artística acaba por borrar certas barreiras classificatórias.
1 Histórias em quadrinhos e livros ilustrados: o que diz a teoria?
É importante que sejam apresentadas algumas definições dos formatos aqui analisados, uma vez que, a partir delas, é possível começar a traçar um diálogo teórico entre essas duas formas que combinam palavra e imagem em suas narrativas.
Iniciando com o livro ilustrado, precisamos, a priori, ressaltar que utilizaremos essa terminologia que, no Brasil, é o equivalente ao picturebook, álbum ilustrado ou apenas álbum em outros países. Essa definição se diferencia do livro com ilustrações, que, como define Sophie van der Linden, refere-se a “obras que apresentam um texto acompanhado de ilustrações” (2011, p. 24). A autora ainda nos ensina que, nesses casos, é o “texto verbal que sustenta a narrativa” ou, ainda, as ilustrações estão presentes apenas repetindo o que dizem as palavras - quase como um adereço - e não criando um diálogo imbricado entre palavras e imagens.
O livro ilustrado, por outro lado, é caracterizado justamente pela interação entre esses dois textos. Maria Nikolajeva e Carole Scott, em Livro Ilustrado: Palavras e Imagens, asseguram que “[...] o caráter ímpar dos livros ilustrados como forma de arte baseia-se em combinar dois níveis de comunicação, o visual e o verbal” (2011, p. 13); enquanto Linden, em Para ler o livro ilustrado, afirma que os livros ilustrados são
[...] obras em que a imagem é espacialmente preponderante em relação ao texto, que aliás pode estar ausente (é então chamado, no Brasil, de livro-imagem). A narrativa se faz de maneira articulada entre texto e imagens (2011, p. 24).
As autoras pontuam, de maneira relevante, a relação entre palavras e imagens nessas narrativas literárias. A combinação de texto verbal e visual ocorre por meio de um projeto gráfico que explora as possibilidades espaciais e temporais de cada uma dessas linguagens e as associações entre elas. Linden prossegue, explicando que
[e]sse tipo de livro passa por uma ampla efervescência criativa que já não tem limites em termos de tamanho, materialidade, estilo ou técnica, e toda a sua dimensão visual, inclusive tipográfica é em geral elaboradíssima. Assim, o livro ilustrado requer uma leitura crítica à altura (2011, p. 21).
Essa efervescência permite que as produções ultrapassem, de forma mais livre, os limites de formatos tradicionais do livro - seja por meio da exploração do objeto como elemento narrativo, seja na composição visual das páginas e das relações entre as linguagens. É comum a presença de abas, janelas e/ou facas especiais nos livros ilustrados, mas as possibilidades de romper com a tradição não se resume a estruturas complexas, podendo ser um simples convite, imagético ou verbal, a uma manipulação do livro para outras direções, uma diagramação que provoque uma ordem diferente de leitura, entre outras possibilidades, criando uma relação lúdica entre livro e leitor.
Uma das principais características do livro ilustrado é a utilização da página dupla como unidade, ou seja, um trabalho com o espaço total do livro aberto - ainda que, por vezes, a página dupla seja dividida em duas páginas simples, elas são pensadas como conjunto visual para o leitor - como descreve Linden,
[...] o livro ilustrado é um suporte de expressão cuja unidade primordial é a página dupla, sobre a qual se inscrevem, de maneira interativa, imagens e textos e que seguem uma concatenação articulada página a página (2015, p. 28-29).
Entendemos, por fim, que a narratividade no livro ilustrado se dá por meio de imagens e palavras articuladas, em uma leitura sequencial página a página. Essas explanações acerca do formato livro ilustrado nos encaminham para o contraponto com as histórias em quadrinhos, buscando demonstrar suas semelhanças e diferenças teóricas.
Scott McCloud definiu histórias em quadrinhos como “imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador” (2005, p. 9). Importante ressaltar, nessa reflexão de McCloud, a escolha de enfatizar a presença de imagens pictóricas e outras, ou seja, o autor pontua a presença dos textos verbais e visuais nas histórias em quadrinhos, porém compreende ambos como imagens, sendo as ilustrações as imagens pictóricas e as palavras - sejam elas balões de fala, legenda ou onomatopeias - outros tipos de imagens.
Outra estudiosa do formato é Barbara Postema, que, por sua vez, ensina que
[...] os quadrinhos, como uma forma de arte e de narrativa, são um sistema em que o número de elementos ou fragmentos díspares trabalham juntos para criar um todo completo. Os elementos dos quadrinhos são parcialmente pictóricos, parcialmente textuais e, por vezes, um híbrido dos dois (2018, p. 15).
Na descrição da autora, podemos observar, mais uma vez, a importância da relação entre palavras e imagens (elementos pictóricos e textuais), mas, agora, com o acréscimo da ideia de fragmentação, ou seja, expõe a presença dos quadros como elementos relevantes que, ao serem lidos em conjunto e em sequência, constroem a narrativa. Por fim, Linden descreve as histórias em quadrinhos como uma
[...] forma de expressão caracterizada não pela presença de quadrinhos e balões, e sim pela articulação de ‘imagens solidárias’. A organização da página corresponde - majoritariamente - a uma disposição compartimentada, isto é, os quadrinhos que se encontram justapostos em vários níveis (2011, p. 25).
Interessante ressaltar que, nessa definição, Linden descarta a ideia de que as histórias em quadrinhos sejam caracterizadas pelos balões ou requadros. Ou seja, esses elementos, ainda que muito peculiares e presentes nesse formato, não são exclusivos e nem especificam essa produção. Uma das características das histórias em quadrinhos, portanto, é a articulação de imagens que se relacionam entre si na mesma página e ao longo de toda a obra.
Retomando as definições dos dois formatos em análise neste artigo, podemos assinalar que, tanto as histórias em quadrinhos quanto os livros ilustrados possuem como semelhança a utilização de palavras e imagens em suas narrativas, não somente como linguagens separadas, mas por meio de um diálogo que as torne indissociáveis, solicitando uma leitura de ambas em conjunto para compreensão total do texto. Além disso, o projeto gráfico - composição visual e material do livro e seus elementos narrativos - é de grande relevância para ambos os formatos, articulando o ritmo e a ordem de leitura.
O que diferencia, portanto, os dois formatos? Alguns teóricos, como Linden (2011), afirmam que a leitura das histórias em quadrinhos é feita quadro a quadro, ao passo que a do livro ilustrado, página a página. Ou seja, uma maior fragmentação ou disposição de imagens em uma mesma página se aproxima do formato das histórias em quadrinhos, enquanto a presença de uma única imagem, que ocupe total ou parcialmente páginas simples ou duplas, tende a ser mais frequente nos livros ilustrados. Saguisag (2017) reforça esse argumento, dizendo que o uso de quadros é um diferencial entre os formatos, uma vez que “[...] nos quadrinhos, cada página é tipicamente dividida em múltiplos painéis, enquanto, nos livros ilustrados, a página ou prancha é normalmente ocupada por um painel único”1 (Saguisag, 2017, p. 316). Outro aspecto trazido pela autora é a relação entre palavras e imagens: ela diz que, nas histórias em quadrinhos, os textos verbais e visuais são normalmente mais integrados que nos livros ilustrados.
No entanto, nenhuma dessas questões são exclusivas de seus formatos preferenciais. É possível observar, por exemplo, nas histórias em quadrinhos, a utilização frequente de splash pages, recurso de usar uma única ilustração de impacto na página, para causar maior efeito no leitor, ou páginas com um único painel; além disso, também é frequente a estratégia de muitos livros ilustrados de trabalhar com uma fragmentação maior de cenas, gerando uma sequência de quadros dispostos na página dupla. Outra questão importante a se pontuar é como as produções contemporâneas rompem, cada vez mais, com essas características específicas que os formatos apresentavam tradicionalmente: por exemplo, a relação entre palavras e imagens nos livros ilustrados contemporâneos é cada vez mais integrada, uma vez que todos os elementos são pensados para construir sentidos juntos a cada página; ou, ainda, mesmo que as histórias em quadrinhos possuam os balões de fala como característica bastante reconhecível, esse elemento não é essencial para o formato e está sendo cada vez mais utilizado em outras produções, como nos livros ilustrados.
Em resumo, podemos assumir que ambos os formatos operam como textos multimodais, ou seja, são obras que envolvem múltiplos modos semióticos no desenvolvimento da narrativa. Assim, Gibbons (2015) descreve que
Criar um texto multimodal envolve mais do que apenas a escrita; envolve, também, considerar os mais diversos recursos semióticos (palavras, imagens, cores, layout) disponíveis ao autor, que deve decidir como usá-los em combinações criativas com propósitos literários (Gibbons, 2015, p. 294)2.
A potência desses formatos que, nesse recorte, são textos literários, está justamente nas combinações de diferentes linguagens, sem as restrições que algumas nomenclaturas ou conceitos acabam por reforçar. As histórias em quadrinhos e os livros ilustrados encontram-se nesse espectro em que os formatos tradicionais se esfacelam, abrindo espaço para novas experimentações e descobertas artísticas que resultam em obras de difícil classificação - mas não por isso com menor valor literário. A literatura, principalmente no contemporâneo, não se limita mais somente às palavras, se permitindo abraçar multimodalidades e envolver formatos que, antes, estavam estabelecidos às margens dessa arte. Um olhar mais atento da crítica à ampliação dessas produções literárias permite a percepção de uma poética que está, também, para além do texto verbal: ela se faz presente nas imagens, cores, elementos gráficos e no próprio objeto livro.
As histórias em quadrinhos e os livros ilustrados, ao longo da história, traçaram caminhos próprios e distintos, mas é chegado o momento de os reconhecermos, finalmente, também por sua literariedade. Assim, devemos legitimar a literatura que mescla linguagens, gêneros e formatos, possibilitando que esse fenômeno ultrapasse barreiras e incorpore cada vez mais experimentações gráficas na arte literária.
2 ... e o que mostram as produções?
Após os levantamentos teóricos sobre os livros ilustrados e as histórias em quadrinhos, selecionamos duas obras literárias narrativas para demonstrar de que forma, na prática, esses dois formatos acabam por, muitas vezes, se (con)fundir e (con)fluir.
A primeira obra é Na cozinha noturna (2014), do grande autor de livros ilustrados Maurice Sendak, publicada no Brasil, primeiramente, pela Cosac Naify e, mais recentemente, em 2023, pela Companhia das Letrinhas. Em sua ficha catalográfica, encontramos a informação de se tratar de Literatura infantojuvenil, sem, no entanto, especificar se o formato é o de um livro ilustrado ou não. Essa não-definição já abre margem para o que encontraremos em seu conteúdo: um navegar por entre as possibilidades narrativas, em que palavras e imagens dialogam livremente, sem se ater aos limites das características tradicionais de um ou outro formato.
A narrativa de Sendak nos apresenta a Mickey, um pequeno garoto que dorme tranquilamente em sua cama, até que é acordado por barulhos noturnos. A composição da primeira página dupla (Figura 1) já revela que a obra opera em um limiar entre os formatos do livro ilustrado e das histórias em quadrinhos. Podemos observar uma divisão de quadros bem delimitados, um ao lado do outro, com fragmentos do momento entre o dormir e o acordar da personagem. O texto verbal, na página da esquerda, está presente tanto em forma de recordatório - ou legenda -, em um requadro que parece, inicialmente, isolado das imagens, quanto por meio de onomatopeias - “TUM, BUM, TCHUM, BLUM” - inseridas nos quadros; na página da direita, o texto de recordatório parece criar uma ponte com a imagem, ao se complementar com um balão de fala que dá voz a Mickey - “e gritou” “quietos aí embaixo!”. O uso de recursos mais comumente vistos nas histórias em quadrinhos, até então, é bastante evidente nessa obra de Sendak (2014).
Seguimos a leitura das páginas com a composição de palavras e imagens nesse mesmo formato de divisão de quadros horizontais - o que nos lembra também dos formatos de tiras de jornais -; acompanhamos Mickey em uma viagem fantástica com aspectos de devaneio até uma cozinha em que, no meio da noite, três cozinheiros preparam um bolo. Nesse momento, os quadros se transformam em ilustrações de páginas simples para, em seguida, se ampliarem até sangrar em páginas duplas (Figura 2), nas quais o texto verbal está ausente, aproximando mais a narrativa das características tradicionais dos livros ilustrados. Essa dinâmica de alternância de quantidade de ilustrações/quadros em cada uma das páginas segue durante toda a narrativa, utilizando-se, por vezes, dos recursos mais comuns das histórias em quadrinhos e, em outras, dos livros ilustrados.
Ainda que seja possível observar recursos característicos dos dois formatos narrativos analisados neste artigo, a obra Na cozinha noturna (2014) leva em conta seu público preferencial: as crianças, ou seja, um leitor ainda em formação. Assim, os quadros existentes são de tamanhos grandes e formatos regulares, além de serem apresentados em uma disposição de leitura sempre horizontal e linear. Essas características permitem que, de forma progressiva, a alfabetização visual (Dondis, 2015) e a familiarização com as histórias em quadrinhos das crianças aconteça - uma vez que o formato mais comum a elas apresentado seja o do livro ilustrado, profundamente relacionado com a literatura infantil.
Se por um lado as imagens em sequência em diversas páginas nos remetem às histórias em quadrinhos, por outro, a maneira com que o texto verbal é trabalhado nos leva novamente para os livros ilustrados: as frases dos recordatórios são curtas, não ultrapassando duas ou três linhas, acompanhando quase toda a narrativa como a voz de um narrador em terceira pessoa, a tipografia é em caixa alta e posicionada a cada página simples, não a cada quadro (Figura 3). Essas características são mais comuns nos livros ilustrados, principalmente quando pensados para o público infantil e suas aprendizagens de leitura. O texto verbal nas histórias em quadrinhos concentra sua maior força nos balões de fala e, quando presentes em recordatórios, são pequenos comentários de algum personagem, narrador em off pontual ou marcação espaço temporal, além de se referir, normalmente, a cada quadro individualmente.
Na cozinha noturna (2014) é uma obra que nos coloca em um lugar limiar entre os formatos dos livros ilustrados e das histórias em quadrinhos, uma vez que possui fortes características de ambos. Além disso, os limites se tornam ainda mais instáveis quando pontuamos que o autor, Maurice Sendak, ainda que seja reconhecido por sua produção de livros ilustrados, apresente como grande referência, na obra analisada, justamente uma renomada série em quadrinhos publicada em jornais entre 1905 e 1913: Little Nemo, de Winsor McCay. Nemo é um menino que vive grandes aventuras oníricas em narrativas de uma única página, mas que sempre finalizam com a personagem acordando do sonho em sua cama no último quadro. De forma visual, a imagem que Sendak cria de Mickey deitado na cama no início e ao final da narrativa nos transporta diretamente para a obra de McCay, assim como à temática de uma viagem entre a realidade e o mundo dos sonhos.
Dessa forma, Na cozinha noturna (2014) é um exemplo de narrativa que transita entre os elementos dos livros ilustrados e das histórias em quadrinhos por meio da relação entre textos verbais e visuais.
A segunda obra que analisaremos, com o intuito de refletir sobre os (des)limites entre os formatos das histórias em quadrinhos e dos livros ilustrados, é Are we there yet?, de Dan Santat (2016), infelizmente ainda não publicada no Brasil. As linguagens verbais e visuais, nessa obra, são exploradas nas mais diversas formas, buscando a construção de sentidos por meio do diálogo entre elas. Assim, é possível reconhecer os balões de fala, mas também as legendas, a sequência de imagens em quadros e aquelas igualmente importantes, em páginas duplas, reivindicando ao leitor a percepção de leitura de recursos dos dois formatos narrativos aqui analisados.
Inicialmente, ao abrir o livro, nos deparamos com as guardas que apresentam uma sequência de quadros, de mesmo tamanho, indicando a passagem do tempo por meio do pôr do sol e o nascer da lua, em meio a uma paisagem que inclui um carro em movimento (Figura 4). Nessa perspectiva, a utilização do recurso das histórias em quadrinhos torna possível que o leitor seja ainda mais inserido na narrativa, uma vez que ele acompanha toda a trajetória da viagem com a família protagonista a partir da representação do tempo percorrido de uma forma mais fragmentada e, portanto, retratada em cada etapa.
Em seguida, deparamo-nos com uma configuração de página bastante tradicional das histórias em quadrinhos, na qual conhecemos a personagem principal, um garoto que, a caminho da casa da avó com a família, transita entre os sentimentos de animação com o destino e aborrecimento com a viagem longa (Figura 5). Essa informação é dada ao leitor pelo texto verbal acima dos quadros, como recordatórios, mas é também somada à leitura das imagens e dos atributos dos elementos gráficos como formato e tamanho dos quadros. O texto verbal, assim como em Na cozinha noturna (2014), não se limita entre ser apenas legenda ou apenas expressão de fala dos personagens, rompendo essas fronteiras e pretendendo ser os dois simultaneamente, solicitando ao leitor uma leitura contínua de todas as linguagens como um único texto, ou seja, a frase do recordatório tem sua continuação no balão de fala, criando uma relação visual indissociável de todos os textos - como podemos ver na Figura 5, em que recordatório e balões de complementam.
Considerando-se apenas essa primeira página dupla, o leitor pode considerar estar diante de uma tradicional obra no formato de história em quadrinhos. No entanto, ao virar a página, deparamo-nos com uma transformação na forma com que a narrativa é contada. O texto verbal, em tradução livre, diz:
Olhar para fora da sua janela por mil quilômetros de estrada fica chato bem rápido. Nem todos os brinquedos do mundo resolveriam isso./ Mas /o que/ acontece/ quando/ o seu/ cérebro/ fica/ MUITO/ entediado?3 (Santat, 2016, n.p.).
As imagens se ampliam de quadros, em páginas simples, para ilustrações que tomam toda a página dupla como unidade. Além disso, a distribuição do texto verbal se torna chave para uma maior interação do leitor com o objeto livro: as caixas de texto acompanham as bordas da página dupla, mantendo a disposição do texto referente a cada borda, ou seja, para que o leitor consiga fazer a leitura é preciso que ele gire o livro em até 180° (Figura 6). A caixa de texto da última palavra possui o formato de uma seta, indicando que a direção de leitura mudou: ao virarmos o livro de ponta-cabeça, iniciamos uma leitura que voltará no tempo e, portanto, deverá ser feita virando-se as páginas da esquerda para a direita, não mais da direita para a esquerda, forma com a qual estamos habituados. O leitor mais atento perceberá que as ilustrações acompanharam esse voltar no tempo conforme o livro vai girando: carros antigos e trens tomam o cenário ao redor da personagem.
O projeto gráfico faz com que o próprio objeto livro se torne uma linguagem, junto com as palavras e as imagens, se tornando parte do que a narrativa expressa na construção de sentidos. O leitor precisa manusear o objeto, acompanhar a narrativa girando o livro e descobrindo novas formas de ler - tudo isso provocado pelas linguagens múltiplas que, juntas, oferecem uma experiência que ultrapassa os formatos tradicionais.
Seguimos a leitura na ordem indicada, virando as páginas para a esquerda e voltando no tempo progressivamente: cada página dupla apresenta características de épocas mais antigas - de carros para trens, de trens para carroças e, por fim, chegando em um tempo-espaço tomado por dinossauros. A narrativa, nessa sequência, se utiliza de recursos tradicionais dos livros ilustrados: ilustrações de páginas duplas, textos verbais curtos que complementam (sem repetir) as imagens, além do jogo com a materialidade do objeto como linguagem.
É interessante pontuar como os elementos gráficos e pictóricos provocam o leitor: a seta, servindo como caixa de texto verbal, indica a continuação sempre para a esquerda, enquanto o carro, do texto visual, indica um caminho para a direita, constantemente suscitando o sentido tradicional de leitura e desafiando o leitor a escolher entre ir ou voltar (Figura 7). Cabe sempre a esse leitor a decisão: continuar ou suspender a viagem? Ir para o caminho indicado pela seta e voltar mais no tempo ou seguir as pistas visuais e ir para o futuro?
O carro segue voltando no tempo até a pré-história, momento em que a narrativa se utiliza, novamente, do recurso das caixas de texto rentes às bordas, que solicitam ao leitor que o livro seja girado e retome sua posição original. As páginas a seguir se intercalam entre as que apresentam estruturas mais tradicionais das histórias em quadrinhos e as comuns aos livros ilustrados, apresentando um futuro tecnológico em que a família foi parar.
Observando os elementos de interação com a materialidade narrativa, além de estabelecer a necessidade de girar o próprio livro, essa obra ainda traz outras duas oportunidades de descobertas interativas para o leitor: a primeira são QR codes presentes nos balões de falas dos robôs, como uma linguagem própria que deve ser escaneada por um celular e ser desvendada por meio dessa outra tecnologia, e a segunda é a presença de uma sobrecapa no livro, que, ao ser retirada, revela que a capa da obra é como um embrulho de presente, de que os leitores mais atentos se lembrarão, pois é o mesmo padrão do presente que estava no carro com o menino. Esse presente, descobrimos, ao final, é para a avó do garoto: um relógio de parede de modelo antigo. O objeto nos remete ao que foi vivido pela personagem e leitor em toda a obra: viagens no tempo a partir do movimento circular dos ponteiros de um relógio (assim como rodamos o objeto livro para saltar temporalmente), ou seja, o livro que temos em mãos é o próprio presente e uma possibilidade de visitar outros tempos e espaços a partir da literatura.
O jogo com os elementos materiais e a interação com o objeto livro como narrativa são recursos amplamente explorados nos livros ilustrados e pouco nas histórias em quadrinhos. No entanto, essa obra engloba recursos dos dois formatos para criar uma história única, que mescla textos verbais, visuais e materiais do próprio objeto. Interrogamos, portanto, se é possível classificar essa obra exclusivamente como um livro ilustrado ou se a presença ampla de recursos das histórias em quadrinhos não desloca essa nomenclatura para um novo lugar.
Se, por um lado, essas reflexões acerca de conceitos são relevantes para a compreensão das obras e as novas experiências que a literatura se permite, por outro, não devem preocupar o leitor, para quem, no momento de fruição da narrativa, as questões de nomenclatura não alteram a percepção poética. O que podemos observar é que os recursos das histórias em quadrinhos e dos livros ilustrados conseguem, nessas obras, se mesclar facilmente, mantendo o fluxo e o ritmo da narrativa - uma vez que ambos são formatos em que palavras e imagens são indissociáveis e criam, juntos, um único texto final.
(In)conclusões
Após um breve panorama teórico e de análise em torno dos formatos das histórias em quadrinhos e dos livros ilustrados, retomamos nossa reflexão inicial sobre a aproximação entre eles, buscando entender não mais como esses dois formatos se unem, mas como narrativas literárias multimodais exploram recursos gráficos de ambos para criar uma obra que apresenta dificuldades em ser enquadrada em uma única categoria rígida.
Assim, será que Na cozinha noturna (2014) e Are We There Yet? (2016) podem ser considerados definitivamente como narrativas no formato de livros ilustrados? Ou será que são livros ilustrados que se utilizam de recursos das histórias em quadrinhos? Quanto é possível que uma obra se utilize de outro formato e, ainda assim, se mantenha em seu formato original? Como o hibridismo entre os formatos pode afetar a percepção de uma obra?
Talvez esses denominados formatos sejam mais do que uma simples forma em que os textos são expressos. Precisamos levar em consideração que eles são, por si só, meios de transmitir significados com características e gramática próprias. Assim, não seriam eles linguagens compostas pela confluência de outras linguagens diversas (verbais, visuais e do próprio objeto)? Donis A. Dondis (2015) explica a importância de um alfabetismo visual ao nos depararmos com obras literárias multimodais, compostas por textos em que o trabalho gráfico visual e suas fusões sejam relevantes para a construção de significados. Assim, ao nos depararmos com as histórias em quadrinhos e os livros ilustrados, não estamos mais falando de uma forma, um recipiente fechado que contém linguagens, mas, sim, de linguagens que podem se mesclar, intercalar e até mesmo incorporar umas às outras, a partir da combinação das mesmas outras linguagens que as compõe.
Evans propõe o conceito de fusion texts ao se deparar com essas obras de difícil definição e que entrecruzam as diversas linguagens:
Um tipo diferente de livro está surgindo, que exibe algumas, mas nem sempre todas, das características normalmente consideradas como pertencendo às histórias em quadrinhos, novelas gráficas e livros ilustrados. Esses livros borram as fronteiras, mesclando as características dos textos visuais para criar uma categoria que é uma síntese de aspectos de todas elas. Esses são textos de “fusão” [fusion texts] (Evans, 2015, p. 98)4.
Sejam essas produções enquadradas como livros ilustrados, histórias em quadrinhos, fusion texts ou como qualquer outra nomenclatura que busque dar conta do que a multimodalidade pode expressar em uma narrativa, elas devem ser percebidas, principalmente, por seu valor poético. As obras analisadas neste artigo - além de tantas outras - são relevantes justamente pela literariedade apresentada por meio de sua linguagem, que é difícil de nomear, mas que exploram graficamente seus componentes visuais e, mais que isso, apresentam camadas de leitura, desafiam o leitor em seus sentidos e compreensões e operam dentro de uma qualidade estética que as colocam no universo literário.
REFERÊNCIAS
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Declaração de disponibilidade de conteúdo
Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.
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Pareceres
Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discursocom a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.
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No original: “In comics, each page is typically divided into multiples panels, while in a picturebooks, a page or spread is often occupied by a single panel”. Tradução nossa.
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No original: “Creating the multimodal text involves more than just writing; it also involves considering the many different semiotic resources (words, image, colour, layout) available to the writer, who must decide how to use them in creative combinations for literary purposes”. Tradução nossa.
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No original: “Staring out your window at a thousand miles of road can get boring pretty quickly. Not even all the toys in the world can help./ But/ what/ happens/ when/ your/ brain/ becomes/ TOO/ bored?”. Tradução nossa.
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No original: “A different kind of book is emerging, one that exhibits some, but not always all, of the characteristics normally thought of as belonging to comics, graphics novels and picturebooks. These books blur the boundaries, blending the characteristics of visual texts to create a category that is a synthesis of aspects from all of them. These are ‘fusion’ texts”. Tradução nossa.
Parecer I
Sobre o autor do parecerSCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGSParecer I
Trata-se de artigo bem fundamentado, com boas análises literárias e tema contemporâneo. Merece ser publicado. Precisa apenas de um pequeno ajustes no seguinte trecho: “Na Cozinha Noturna, de Maurice Sendak e Are We There Yet?, de Dan Santat.” Feito o ajuste, poderá ser publicado. APROVADO
- recomendação: aceitar
Histórico
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Parecer recebido em
07 Fev 2024
Disponibilidade de dados
Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Maio 2024 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2024
Histórico
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Recebido
05 Out 2023 -
Aceito
03 Mar 2024